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Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.55 no.102 São Paulo Jan./June 2022

 

DIÁLOGOS

 

Hiperconectividade e exaustão

 

Hyperconnectivity and exhaustion

 

Hiperconectividad y agotamiento

 

Hyperconnectivité et épuisement

 

 

Pedro Colli Badino de Souza Leite

Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Autor do livro Uma flor nasceu na rua! A psicanálise que continua a brotar por aí. Coordenador do grupo de estudos O mal-estar na civilização digital. São Paulo / pedrocolli@gmail.com

 

 


RESUMO

O artigo apresenta a ideia de que a hiperconectividade contemporânea é a base para um fenômeno sem precedentes em nossa cultura: a captura e a simbolização de nossa vida inconsciente a partir do trabalho conjunto entre big data e inteligência de máquina. Tal processo é descrito em detalhe e comparado aos conceitos de "função-alfa" e "construção". Se as big techs detém máquinas que exercem funções psicanalíticas parciais, estamos diante de um novo sistema econômico - o capitalismo de vigilância - e de um novo tipo de metapsicopoder que vem sendo usado para influenciar eleições ao redor do globo. Assim, a Psicanálise se vê interrogada tanto pelo ângulo clínico quanto em sua vocação histórica para refletir sobre as vísceras inconscientes do poder.

Palavras-chave: Psicanálise, simbolização, big data, inteligência de máquina, capitalismo de vigilância.


ABSTRACT

The article presents the idea that contemporary hyperconnectivity is the basis for an unprecedented phenomenon in our culture: the capture and symbolization of our unconscious life through the joint work between big data and machine intelligence. Such a process is described in detail and compared to the concepts of 'alpha-function' and 'construction'. If big techs have machines that perform partial psychoanalytic functions, we are facing a new economic system - surveillance capitalism - and a new type of metapsychopower that has been used to influence elections around the globe. Thus, Psychoanalysis finds itself questioned both from the clinical angle and in its historical vocation to reflect on the unconscious viscera of power.

Keywords: Psychoanalysis, symbolization, big data, machine intelligence, surveillance capitalism


RESUMEN

El artículo presenta la idea de que la hiperconectividad contemporánea es la base de un fenómeno inédito en nuestra cultura: la captura y simbolización de nuestra vida inconsciente a través del trabajo conjunto entre big data e inteligencia artificial. Tal proceso se describe en detalle y se compara con los conceptos de 'función alfa' y 'construcción'. Si las grandes tecnológicas tienen máquinas que realizan funciones psicoanalíticas parciales, nos enfrentamos a un nuevo sistema económico, el capitalismo de vigilancia, y un nuevo tipo de metapsicopoder que se ha utilizado para influir en las elecciones en todo el mundo. Así, el Psicoanálisis se encuentra interpelado tanto desde el ángulo clínico como en su vocación histórica de reflexionar sobre las vísceras inconscientes del poder.

Palabras clave: sicoanálisis, simbolización, big data, inteligencia artificial, capitalismo de vigilancia


RÉSUMÉ

L'article présente l'idée que l'hyperconnectivité contemporaine est à la base d'un phénomène sans précédent dans notre culture : la capture et la symbolisation de notre vie inconsciente à travers le travail conjoint entre le big data et l'intelligence artificielle. Un tel processus est décrit en détail et comparé aux concepts de « fonction alpha » et de « construction ». Si les grandes technologies ont des machines qui remplissent des fonctions psychanalytiques partielles, nous sommes confrontés à un nouveau système économique - le capitalisme de surveillance - et à un nouveau type de métapsychopouvoir qui a été utilisé pour influencer les élections dans le monde entier. Ainsi, la psychanalyse se trouve interrogée à la fois sous l'angle clinique et dans sa vocation historique à réfléchir sur les viscères inconscients du pouvoir.

Mots-clés : Psychanalyse, symbolisation, big data, intelligence artificielle, capitalisme de surveillance


 

 

Deve renunciar à prática da psicanálise todo analista que não conseguir alcançar em seu horizonte a subjetividade de sua época.

(Lacan, 1998)

O contemporâneo é aquele que percebe o escuro do seu tempo como algo que lhe concerne e não cessa de interpelá-lo, algo que, mais do que toda a luz, dirige-se direta e singularmente a ele.

Contemporâneo é aquele que recebe em pleno rosto

o facho de trevas que provém do seu tempo.

(Agamben, 2006)

 

Introdução

A necessidade e o prazer de se conectar a si mesmo ou a outrem é um fato imemorial de nossa espécie. No entanto, a invenção da internet - a "rede-entre", ou a "entre-rede" - parece demarcar um capítulo recente e acelerado na história da conectividade humana. O embrião da internet foi uma rede de computadores chamada ARPAnet, financiada pelo Departamento de Defesa dos Estados Unidos ao final da década de 1960. Seu objetivo era transmitir dados militares sigilosos no contexto da guerra fria e interligar centros de pesquisa espalhados pelo território do país. O nascimento dela se tornou oficial em 29 de outubro de 1969, quando dois pesquisadores de universidades distintas trocaram uma primeira mensagem que atravessou mais de quinhentos quilômetros de distância.

De lá para cá, uma revolução digital aconteceu em pouco mais de cinquenta anos. Em 1977 a Apple lançou o Apple ii, seu primeiro computador pessoal de maior disseminação, seguida pela ibm com seu pc em 1981. Em 1985 surge o Windows, abrindo as portas para mensageiros e programas de chat como o mirc (1995) e o icq (1996). Neste mesmo ano nasce o Hotmail, primeiro serviço de e-mail gratuito e acessível a todos com acesso à rede. Em 1998 foi fundado o Google, e um ano depois conversávamos pelo msn Messenger. Em 2002 conhecemos o Linkedin, e em 2003 o Skype. Em 2004 Zuckerberg lançou o seu livro das faces (Facebook), alguns meses antes do lançamento do Orkut. 2005 e 2006 foram os anos de surgimento do YouTube (você-tevê) e do Twitter, respectivamente. Em 2007 Steve Jobs nos apresentou seu iPhone (eu-telefone), sendo seguido de perto pelo lançamento do sistema operacional Android, em 2008. Neste mesmo ano conhecemos o Spotify, ao mesmo tempo em que o Wi-Fi chegava ao Brasil dez anos depois de sua invenção. Desde 2009 vivemos as profundas mudanças que acompanham o WhatsApp. 2010 e 2011 nos trouxeram Instagram e Zoom, e desde 2016 deslizamos os dedos pelo TikTok. Em paralelo a tudo isto, a rede por meio da qual nos conectamos saltou do virtual para o mundo físico, por meio de dispositivos, sensores, aparatos vestíveis etc. Aqui devemos atentar ao visionário artigo de Mark Weiser, "O computador para o século XXI" (1991). Nele, o cientista propõe o conceito de "computação ubíqua":

As tecnologias mais profundas são aquelas que desaparecem. Elas se entrelaçam no tecido da vida cotidiana até que sejam indistinguíveis desta. ... Máquinas que se encaixam no ambiente humano em vez de forçar humanos a entrar no ambiente delas farão do uso do computador algo tão revigorante quanto um passeio no bosque. (Weiser, 1991)

Justamente, hoje testemunhamos a rede desaparecer pouco a pouco. Ela está se transformando no próprio ambiente onde vivemos, infiltrado agora pela "internet das coisas". Vivemos acompanhados de nossos telefones, relógios, carros, geladeiras, aspiradores, camas, escovas de dente - todos eles smart e interligados entre si. Assim, frente a tal retrospectiva em velocidade avançada, podemos nos perguntar: quais os efeitos da hiperconectividade sobre nós?

Para contornar a cilada do maniqueísmo e da melancolia, devemos primeiro reconhecer alguns benefícios oriundos da hiperconexão. Para além dos inúmeros confortos e facilidades do dia a dia, é fato que a vida online oferece voz e visibilidade para muitos que nunca a tiveram, e não digo isso apenas do ponto de vista da liberdade de expressão. Por exemplo: por meio da internet muitos grupos e sujeitos conseguem divulgar habilidades, produtos e serviços - e assim retomar sua devida participação política, social e econômica. Além disso, o ambiente digital frequentemente se torna palco da luta pelos direitos humanos e pela democracia. Entre 2010 e 2012 assistimos aos acontecimentos da chamada Primavera Árabe, uma onda de protestos e revoltas contra regimes autoritários em diversos países do norte da África e do Oriente Médio. Ali pudemos observar o protagonismo das mídias sociais ao favorecer a descentralização e a sincronicidade das ações, assim como ao proteger o direito à liberdade de imprensa. Dentre as consequências do episódio, acompanhamos a queda de três déspotas que há décadas assolavam Tunísia, Egito e Líbia. Em seguida, houve a contrarresposta de muitos daqueles Estados no sentido de aprender sobre o uso das mesmas mídias para retomar e endurecer o controle sobre a população. Além disso, outros dois exemplos marcantes do papel central das novas tecnologias na defesa dos direitos humanos podem ser constatados nos movimentos #MeToo e #BlackLivesMatter. O compartilhamento de tais hashtags por meio do Twitter, Facebook e outros tem sido fundamental para que a violência contra a mulher e o racismo possam sair do estado de silenciamento em vários âmbitos - denúncias que paulatinamente vão produzindo seus devidos efeitos dentro do contrato social.

Por outro lado, o advento da internet e da hiperconexão parece ocorrer em concomitância a importantes transformações intrapsíquicas e intersubjetivas. Cito algumas sem a pretensão de esgotar a lista. A inflação narcísica e a hiperprodutividade desenfreada do eu - fenômenos ligados ao cansaço e à exaustão (Han, 2010/2017). Pari passu, a rarefação do outro e da experiência de alteridade. A ascensão do par exibicionismo/voyeurismo, assim como a espetacularização da vida cotidiana banal. O enfraquecimento do juízo a respeito da realidade - o que pode ser constatado na proliferação de deepfakes e fake news. O crescimento qualitativo/quantitativo da polarização e dos discursos de ódio. O hiperestímulo digital que pressiona por engajamento, e que parece desmontar a capacidade de atenção profunda e de contemplação etc. Pois bem, cada um desses pontos merece investigação cuidadosa, e a psicanálise certamente não seria o único campo a poder contribuir nessa longa tarefa de reflexão.

No entanto, penso que um determinado aspecto de nossa vida contemporânea solicita a nós, psicanalistas, em especial. Ao longo dos últimos anos, algo parece ter se modificado na estrutura profunda que dá suporte à hiperconectividade. Até certo ponto nessa história recente, éramos nós aqueles a buscar por pessoas, serviços e informações dentro da rede. No entanto, tal fluxo unidirecional de dados se tornou uma via de mão dupla, e agora a própria rede também nos toma como objeto de indexação e pesquisa. Isso se dá por meio dos dados que vazamos através de nossas múltiplas conexões, a todo instante. Os sites que visitamos, produtos que compramos, aplicativos que instalamos, mensagens, fotos, curtidas etc. Vivemos numa sociedade da informação onde a maioria de nossas ações no mundo virtual, ou no mundo físico infiltrado pela computação ubíqua, são traduzidas em dados digitais. Dessa forma, podemos afirmar que tais dados a nosso respeito alimentam uma sofisticada indústria de vigilância, que evoluiu a ponto de ter acesso a nossa vida mental inconsciente. Hoje, viver em hiperconexão significa viver numa casa transparente.

Ainda atordoados pelo fenômeno sem precedentes e de difícil apreensão, estamos começando a fazer as perguntas que favorecem o pensamento crítico. Como se dá esse intrincado processo de apreensão de nossa vida inconsciente por meio do big data e da inteligência de máquina? Qual o sentido metapsicológico de tal ação e como ela interroga a prática psicanalítica? Qual o tipo de poder que advém de tal assimetria de conhecimento? Como isso pressiona a produção de novos tipos de subjetividades? Quais as respostas singulares que cada sujeito sob transferência oferece a essa nova injunção econômica e cultural? Estas são algumas das novas esfinges que nos lançam suas trevas, e que aguardam respostas específicas de nosso campo teórico-clínico.

 

iPsychoanalyst

Michal Kosinski é um cientista de dados que coordena um grupo de pesquisa em Stanford a respeito do comportamento humano. Em 2013 ele e sua equipe publicaram um artigo chamado "Traços e atributos [de personalidade] são previsíveis a partir de registros digitais do comportamento humano". O estudo foi conduzido a partir da análise de likes de usuários do Facebook, pegadas digitais que deixamos para trás enquanto participamos da mídia social. Tratava-se de 58 mil indivíduos que contribuíram, em média, com 68 likes, ou seja, quase quatro milhões de likes que foram utilizados para alimentar e treinar um algoritmo de predição. Este por sua vez buscava adivinhar características dos participantes como: idade, gênero, etnia, religião, traços de personalidade, inteligência, orientação política, orientação sexual etc. O resultado foi surpreendente, pois revelou que as curtidas contêm o potencial de revelar aspectos íntimos e muitas vezes confidenciais a respeito de nossas personalidades. A partir de tal conjunto de dados digitais, o algoritmo conseguiu prever: se um usuário era branco ou negro com acurácia de 95%; o gênero, 93%; a orientação sexual, 88%; se votava em democratas ou republicanos, 85%; se fumava, 73%; e se bebia álcool, 70% etc. O estudo também foi revelador no sentido de que as predições não se baseavam em informações explícitas, mas sim em padrões de curtidas que são pouco intuitivas a "olho nu". Por exemplo, os likes mais preditivos para o atributo "alta inteligência" foram: thunderstorm, science, The Colbert Report (programa de comédia norte-americano, uma sátira sobre especialistas em política falando na televisão) e curly fries (um tipo de batata frita). Do outro lado, os likes mais preditivos para "baixa inteligência" foram: Sephora (rede de cosméticos francesa) e Harley-Davidson (fabricante de motos). Certamente há de se questionar quais foram os instrumentos usados para aferir e quantificar características como "inteligência", e qual o construto de "orientação sexual" privilegiado no desenho do estudo. Mesmo assim, trata-se de resultados impactantes devido a sua altíssima precisão preditiva a partir de poucos dados digitais públicos e de fácil acesso a todos.

Cinco anos depois, Kosinski e sua equipe publicaram o próximo artigo que alargava a mesma linha de investigação: "Redes neurais profundas são mais precisas do que humanos em descobrir a orientação sexual a partir de imagens faciais" (2018). Aqui os cientistas avançaram um pouco mais ao treinar o algoritmo não com likes, mas sim com 35 mil fotos dos participantes em questão. Os resultados não deixaram a desejar: a máquina alcançou a incrível acurácia de 91% para descobrir a orientação sexual declarada pelo sujeito apenas por meio de algumas fotos. Tal poder de predição é impressionante e muito pouco intuitivo. Penso que tendemos a aceitar melhor que nossa intimidade possa ser adivinhada por meio de likes do que por meio de nossa mera imagem facial. Em sua reflexão sobre os resultados, a equipe de pesquisa discute o fato de que tais predições podem se estender não apenas aos aspectos já conscientes e privados (em nossa linguagem, reprimidos) de um dado sujeito, mas também a atributos inconscientes e desconhecidos de sua personalidade (inconsciente recalcado, ou então biológico).

Em um trabalho recente (Souza Leite, 2021a), busquei detalhar mais dois exemplos do processo de incursão e saqueamento de nosso inconsciente por meio do digital. No primeiro, uma matéria investigativa do TheNew York Times expunha como uma rede de varejo - a partir da coleta e compra de enormes conjuntos de dados sobre seus clientes - conseguiu desenvolver um algoritmo com a capacidade de saber que uma mulher estava grávida antes do que ela mesma. Tal predição era alcançada por meio de variações quase invisíveis em seus padrões de compra. Por exemplo: a inundação de hormônios gravídicos torna o olfato mais sensível, o que faz com que boa parte das gestantes - sem o saber - deixe de comprar produtos perfumados e passe a preferir cremes e loções sem odor. Antes mesmo que a gravidez pudesse vir a se tornar um objeto psíquico, o big data já havia registrado essa sutil mudança na sensopercepção das futuras mães.

No segundo exemplo, acompanhamos as ações da famigerada empresa de consultoria política chamada Cambridge Analytica, que oferecia a seus clientes "comunicação estratégica para o processo eleitoral". No entanto, denúncias de ex-funcionários revelaram a real natureza de seu negócio: coletar e comprar dados a respeito de populações específicas com o intuito de invadir e se apropriar de aspectos conscientes e inconscientes de suas personalidades. Tais informações eram então usadas para influenciar eleições em diversos países na direção contratada por atores políticos ocultos. No trabalho citado, acompanhamos a atuação da Cambridge Analytica nas eleições de Trinidad e Tobago de 2010. Ali, a empresa britânica descobriu que os jovens trinitários se dividiam em dois grupos - um mais ligado às tradições de suas famílias (ou seja, tendiam a votar em quem lhes era indicado pelos pais), e outro mais independente de seus antepassados. Mais uma vez: surpreende o fato de que a empresa sabia das inclinações morais dos jovens antes mesmo do que eles, usando tal predição para corromper o sagrado rito eleitoral de uma nação.

***

Pois bem, nesse momento temos na mesa quatro exemplos contundentes da capacidade do meio digital de se apropriar de elementos de nossa vida mental inconsciente. A predição por meio de likes; a predição por meio de meras fotos; o algoritmo da rede de varejo que prediz clientes gestantes; e a Cambridge Analytica, que previu ligações mais ou menos intensas dos jovens caribenhos com sua tradição. Assim, já é hora de nos perguntarmos: qual o sentido metapsicológico de tal apropriação de nossa intimidade por terceiros?

Para esboçar uma resposta, proponho que o trabalho conjunto entre big data e inteligência de máquina se aproxima do amplo conceito psicanalítico de simbolização, a partir da qual são construídas as representações conscientes e inconscientes (Vorstellung). Nesse ponto usarei como referência o que foi descrito por Freud nos trabalhos A interpretação dos sonhos (1900/2019), O recalque (1915/2010b) e O inconsciente (1915/2010a). Nestes, a pulsão irá se inscrever e se representar no aparelho mental por meio de representantes-representações, trilhando o caminho entre representação de coisa (Ics) e representação de palavra (Pcs e Cs). Ali podemos acompanhar a complexa travessia entre o somático e o psíquico, ao longo do qual trabalhamos para dar forma e linguagem a elementos de origem orgânico-sensorial. Assim, no mundo de hoje - infiltrado pela computação ubíqua e pela lógica da produção/vazamento de informações - observamos que cada elemento presente nesse caminho pode ser materializado na forma de dados digitais. Alterações hormonais-sensoperceptivas se traduzem em mudança no hábito de compras. Representações inconscientes de coisa se transformam em pequenos atos sintomáticos e atuações cotidianas, que serão eventualmente registrados no digital. Representações de palavra ganham corpo de diversas formas, como curtidas na rede social. Esta é a matéria-prima que produzimos todos os dias: a materialização de nossa vida inconsciente que será usada para alimentar uma nova indústria.

Assim, uma vez alcançada a transposição de elementos inconscientes para dados digitais, a inteligência de máquina irá agora transformar o barulho de tal massa de dados em uma melodia de predição. Nesse ponto evocarei outros dois conceitos psicanalíticos a partir dos quais poderemos traçar alguns paralelos entre a função da máquina e funções da mente humana. Em primeiro lugar, estou me referindo ao conceito de construção, no qual o analista é regressivamente solicitado pelo inconsciente de seu analisando, e trabalha para pôr a descoberto representações recalcadas. Depois, penso no conceito de função-alfa como proposto por Bion em O aprender com a experiência (1962/1966). Neste, observamos uma fina investigação de como os elementos sensoriais encontram veredas rumo à sua psiquicização, dentro da metáfora onde o aparelho psíquico irá digerir os elementos-beta e transformá-los em elementos-alfa.

Voltando aos exemplos, veremos agora como estes iluminam tais teorias psicanalíticas e vice-versa. Comecemos pelo caso das mulheres gestantes, onde a simbolização parte do ponto mais distante: o orgânico. Nesse caso, a inundação hormonal já havia provocado importantes alterações fisiológicas - incluindo o aguçamento do olfato - enquanto ainda não se inscrevera no registro psíquico. Assim, tal transformação no aparelho sensoperceptivo pode ser entendida como acúmulo crescente de elementos-beta, conforme sua definição pelo Dicionário enciclopédico inter-regional de psicanálise da IPA:

Como os elementos beta são estímulos sensoriais antes de adquirirem qualquer significado, eles são diferentes do conceito de "representações" de Freud. Enquanto o último pode ser consciente ou inconsciente, os elementos beta são, por definição, além - ou melhor, anteriores - à consciência, eles não são psíquicos, mas "existem" ou estão registrados apenas em um contexto somático ou em nível neurobiológico (os órgãos sensoriais e o cérebro são partes do último). ... É importante notar que os elementos beta são necessariamente inconscientes, porque eles ainda não são psíquicos, mas não porque sofreram recalcamento ou outra alteração defensiva exigida pelo conflito com o superego, ou a ansiedade produzida pelos significados prazeroso ou assustador de seu conteúdo. Uma vez que os elementos beta são transformados em elementos alfa - ou seja, eles podem se tornar psíquicos - eles podem atingir a saturação de significado, adquirir status simbólico, estar ligados a outros elementos mentais para formar fragmentos de narrativas, cadeias associativas, etc. É então que adquirem status como representações e podem ser usados para formar pensamentos e ideias que podem ser trazidas à consciência ou recalcados no inconsciente por causa da ansiedade que despertam. (IPA, s.d., p. 156)

Dessa forma, o aumento de níveis hormonais se traduz em níveis crescentes de elementos-beta. Estes por sua vez se reificam na forma de variação de dados a respeito do hábito de consumo. A gestante, sem perceber, troca seus produtos perfumados por produtos sem cheiro. Em seguida, a inteligência de máquina recebe tais dados e os digere dentro de um significado específico: "esta mulher está grávida". Assim, uma vez que a ciência de dados/computação transforma elementos sensoriais em elementos pensáveis, podemos aproximar e comparar tais ações com a função-alfa. No entanto, as novas representações agora esculpidas não serão devolvidas àquelas clientes - como ocorreria na clínica analítica -, mas serão usadas segundo o interesse de outrem. Nesse ponto, a mesma sequência metapsicológica pode ser usada para pensar a predição da orientação sexual por meio de fotos. Aqui é provável que ainda estejamos próximos ao orgânico-sensorial, pois é a própria morfologia do rosto humano que será convertida em dados digitais, os quais irão abastecer as redes neurais profundas em sua tarefa eletrônica de previsão.

Por outro lado, nos demais exemplos observamos um procedimento similar, mas com diferenças em relação ao tipo de elemento psíquico que os dados reificam. Por exemplo, no estudo sobre a predição com base nos likes, os dados digitais se assemelham à materialização de conteúdo já integrado ao psíquico e recalcado. Por isso mesmo, nesse caso a ação orquestrada entre big data e processamento computacional não se aproxima mais da função-alfa que digere elementos-beta, mas sim do conceito analítico de construção, conforme descrito por Freud em Construções em análise (1937/2018a):

Ele tem que adivinhar, ou melhor, construir o que foi esquecido, com base nos indícios deixados. ... Seu trabalho de construção - ou, se preferirem, de reconstrução - mostra uma ampla coincidência com o do arqueólogo, que faz a escavação de uma localidade destruída e enterrada ou de uma edificação antiga. ... [mas] é diferente com o objeto psíquico, cuja pré-história o analista procura levantar. ... Tudo de essencial está preservado, até mesmo o que parece inteiramente esquecido se acha presente em algum lugar e de algum modo, apenas soterrado, tornado indisponível para a pessoa. (Freud, 1937/2018a, pp. 330-332)

A mesma metáfora da máquina arqueóloga também parece esclarecer o exemplo da Cambridge Analytica com os jovens caribenhos. Estes foram adivinhados e separados em dois grupos - um mais e o outro menos inclinado a votar segundo a voz de seus pais. Nesse caso podemos supor que os dados vazados a respeito dos jovens permitiram a reconstrução de algum aspecto dos sujeitos ligado ao ideal do eu - herdeiro do complexo edípico e representante da cultura e da moral no mundo intrapsíquico. Ou seja, a máquina distinguiu aqueles com maior ou menor investimento libidinal inconsciente em torno das imagos parentais e seus valores.

Tomemos agora um instante para olhar o conjunto de nossa investigação até aqui. A hiperconectividade nos oferece dados sobre tudo, mas também nos invade e nos pressiona a produzir dados a respeito de tudo o que somos. A exorbitante massa de informações é sem precedente na história humana, e alimenta algoritmos de alto poder computacional. Estes por sua vez encontram música na cacofonia - predições acuradas a respeito de nossa vida consciente e inconsciente. O trabalho de simbolização cibernética da vida inconsciente é alheio ao nosso entendimento, e se aproxima dos conceitos psicanalíticos de construção e função-alfa. A captura digital de nossa vida anímica abrange diversos componentes da anatomia psíquica inconsciente - desde o orgânico (variações hormonais, morfologia da face), passando pelo isso, pelo eu, até o ideal do eu/supereu (ligação mais ou menos intensa a imagos parentais e às tradições culturais e familiares). Como se isso não bastasse, outros autores ainda sugerem que também a experiência afetiva-emocional pode ser antevista por meio de processos análogos (Kakarla & Reddy, 2014).

Perplexos, aguardamos para descobrir até onde nossa vida inconsciente pode ser materializada na forma de dados digitais, e ter sua simbolização antecipada pela máquina em relação à nossa consciência. Por exemplo, para além da orientação sexual em nível psicológico, poderia a sexualidade infantil também ser reconstruída pelo aprendizado de máquina em nível metapsicológico? O algoritmo conseguiria adivinhar qual é o "brilho no nariz" do objeto que me provoca fascínio e excitação (Freud, 1927/2018b)? Seja como for, pouco a pouco vamos tomando conhecimento a respeito de nosso estado de nudez psíquica, e da assimetria de poder epistemológico com a qual convivemos diariamente.

 

Metapsicopoder

Penso que os fenômenos contemporâneos que tento descrever e interpretar nos interessam enquanto psicanalistas e enquanto cidadãos. Por um lado, a situação de transparência e vulnerabilidade na qual nos encontramos só pode ocorrer em paralelo à produção de novas subjetividades. Por conta desse fenômeno, a clínica analítica começa a testemunhar respostas singulares que cada sujeito oferece a tais mudanças culturais. Por outro ângulo, a incursão sobre nosso inconsciente através da hiperconectividade revela que existe uma nova forma de poder político e econômico. Esse fato recruta a psicanálise em sua vocação para refletir sobre como grupos, empresas e Estados inventam meios de manipular aspectos inconscientes da mente humana em torno de seus próprios interesses. A nomeação de tais operações e o deslindamento de seus sentidos faz parte da tradição psicanalítica, e é fundamental para recuperar nossa capacidade de lucidez e reflexão. Sim, há outros campos que também podem fazê-lo a partir de suas ferramentas específicas, mas penso que não temos direito ao silêncio sobre as questões mais profundas a respeito do poder em nossa época. Vejamos então como isso ocorre em detalhe.

Ao final do ano de 2020, um grupo de jornalistas britânicos teve acesso a arquivos secretos da campanha digital de Donald Trump em 2016 - a qual contou com ajuda de funcionários da Cambridge Analytica e do próprio Facebook (Rabkin et al., 2020). O arquivo ventilado pelos jornalistas mostrou que a campanha republicana tinha acesso a um número colossal de dados a respeito de 200 milhões de americanos. Ali, a invasão aos aspectos conscientes e inconscientes dos eleitores revelou quais deles eram os menos inclinados a votar em Trump, e todos estes foram agrupados em um arquivo chamado Deterrence (dissuasão, impedimento, intimidação). Em seguida, o comitê digital do partido começou a dividir o grupo Deterrence em subgrupos menores, de acordo com suas diferentes vulnerabilidades a serem exploradas com o objetivo de que não comparecessem à votação. Esse tipo de uso do conhecimento sobre nossa vida mental Cs/Ics foi resumido por Chris Wylie, ex-funcionário e delator da Cambridge Analytica17: "Nós exploramos o Facebook para colher dados dos perfis de milhões de pessoas ..., e construir modelos para explorar o que sabíamos sobre elas e mirar nos seus demônios internos" (Wylie, 2019).

Pois bem, um dos subgrupos Deterrence era uma população de 3,5 milhões de afro-americanos. O comitê digital de Trump reconstruiu que um dos "demônios internos" de boa parte de tal grupo era sua inclinação a ver a candidata rival, Hillary, como uma figura racista. Assim, marqueteiros da campanha republicana editaram um antigo vídeo de 1996 no qual Hillary chamava um pequeno grupo de jovens afro-americanos envolvidos com cartéis de drogas de "superpredadores" (C-SPAN, 2016), pois, segundo ela, apenas lhes interessava a busca de mais clientes para seus produtos. O novo vídeo editado ganhou um claro tom sensacionalista e racista, fabricado na medida para provocar reações de ódio no subgrupo Deterrence contra a democrata. O objetivo de tal ação era justamente que aqueles que fossem votar em Hillary decidissem se abster do voto. Nesse ponto, chamo a atenção do leitor para o fato de que o exemplo dos "superpredadores" é apenas um dos casos em que vulnerabilidades da vida mental Cs/Ics são exploradas com precisão cirúrgica. Provavelmente uma série de outros subgrupos também tiveram seus "demônios internos" reconstruídos e atingidos por outros tipos de vídeos e mensagens.

O efeito da campanha republicana antivoto foi impressionante. Em média houve uma queda de 7% no número de votos dos eleitores afro-americanos, e uma queda ainda maior nos estados cruciais de Michigan, Wisconsin e Ohio. Tratava-se da primeira queda de votos de tal população em vinte anos. Até o final daquelas eleições Hillary continuaria lutando sem sucesso para aumentar seus votos entre jovens, latinos e afrodescendentes. Trump venceu em estados tradicionalmente azuis, e foi eleito presidente em 2016. Eis aqui um nítido exemplo da nova modificação de comportamento em massa permitida pela simbolização de aspectos inconscientes de nossa vida mental.

***

Para pensar as novas estratégias de poder e seu sentido metapsicológico, devemos desviar por um instante nosso foco de partidos ou nações. O poder de simbolizar e explorar nossos fantasmas inconscientes é apenas contratado por eles, e está presente tanto na campanha republicana quanto na democrata. O uso mais ou menos ético que cada grupo faz desse poder encobre um ponto mais grave: por que ele deveria existir em primeiro lugar? Por que toleramos a violação de direitos humanos contida na comercialização de nosso inconsciente? Sim, seguramente o que já se estudou até aqui sobre regimes autoritários, fascistas e totalitários permanece intacto. No entanto, isso parece não ser mais suficiente na compreensão de novas formas de manipulação mediadas pelo digital. Precisamos agora dirigir nosso olhar para outros atores - os donos do aparato de computação ubíqua que detêm posse sobre nossos dados digitais. Estou aqui me referindo àqueles que fabricam e vendem as previsões a respeito de nosso organismo, de nossos afetos e de nossas representações recalcadas.

No livro A era do capitalismo de vigilância (2019/2021), a filósofa Shoshana Zuboff nomeia tais personagens: Google, Facebook, Amazon, Microsoft e Apple. Trata-se de empresas com poder computacional muito maior do que aquele nos estudos citados até aqui. Por exemplo, em 2018 o Facebook divulgou detalhes a respeito de sua inteligência de máquina mais recente, afirmando que seu algoritmo "ingere trilhões de pontos de dados todos os dias" e que "desde sua instalação, mais de um milhão de modelos já foram treinados, e o nosso serviço de predição cresceu para alcançar mais de seis milhões de predições por segundo" (Dunn, 2018). O grifo é de minha parte. Mais do que impérios, tais conglomerados inventaram novas formas de economia e poder ao antecipar a simbolização de nossa vida inconsciente milhões de vezes a cada segundo, e hoje inspiram outras empresas a tomar o mesmo caminho. Para pensar sobre essa estrutura inédita, Zuboff cunha o seguinte vocábulo como esboço cartográfico de uma terra incognita:

Ca-pi-ta-lis-mo de vi-gi-lân-cia, subst.

1. Uma nova ordem econômica que reivindica experiências humanas como matéria-prima gratuita para práticas comerciais ocultas de extração, predição e vendas; 2. Uma lógica econômica parasítica na qual a produção de bens e serviços é subordinada a uma nova arquitetura global de modificação de comportamento; 3. Uma funesta mutação do capitalismo, marcada por concentrações de riqueza, conhecimento e poder sem precedentes na história da humanidade; 4. A estrutura que serve de base para a economia de vigilância; 5. Uma ameaça significativa para a natureza humana no século XXI, assim como o capitalismo industrial foi para a natureza nos séculos XIX e XX; 6. A origem de um novo poder instrumentário que afirma seu domínio sobre a sociedade e propõe desafios surpreendentes para a democracia de mercado; 7. Um movimento que pretende impor uma nova ordem coletiva baseada na certeza absoluta; 8. Uma expropriação de direitos humanos fundamentais que é melhor compreendida como um golpe: a derrocada da soberania do Povo. (Zuboff, 2019/2021, p. 14)

No item 6 de sua definição, ela nomeia o poder que permite a existência da nova ordem econômica como "poder instrumentário". Este é o novo produto fabricado e vendido pelo capitalismo de vigilância. Seus clientes são empresas, partidos e nações interessados na modificação em massa do comportamento humano, seja no âmbito do consumo ou do voto. Quero agora me deter sobre alguns pontos a seu respeito, e usarei a matriz conceitual da filósofa para lhe acrescentar algumas outras ideias.

Em primeiro lugar, para compreendermos tal dinâmica devemos revisitar Freud em Psicologia das massas e análise do eu (1920/2011). O processo de identificação amorosa com os líderes, a equiparação deles ao eu ideal, a introjeção de seus valores e o rebaixamento do pensamento crítico continuam a ocorrer tal qual. No entanto, aqui não se trata de líderes religiosos, políticos ou militares, mas sim de um seleto grupo de gênios da tecnologia e suas marcas - bilionários que avançam na conquista das conexões globais e também no espaço sideral. Apesar de sua proposta de hiperexposição, curiosamente muitos têm aversão ao holofote, e evitam sistematicamente fotos e entrevistas. No entanto, por vezes a névoa que os encobre se espairece, e conseguimos vislumbrar o interior de seus sistemas ideológicos. Tomo como exemplo Larry Page, um dos fundadores do Google, que certa vez deixou escapar numa declaração os imperativos que guiam sua acumulação de capital e poder:

- O que é o Google?

- Se tivéssemos que nos encaixar numa categoria, seria informação pessoal. ... Sensores são muito baratos. ... Armazenagem é barato. Câmeras são baratas. Pessoas irão gerar uma quantidade enorme de dados ... Tudo o que você algum dia ouviu, viu, ou vivenciou se tornará pesquisável. A sua vida inteira será pesquisável. (Edwards, 2021)

E qual o sentido maior dessa injunção por transparência? Por que toda a nossa vida deve se tornar indexada e pesquisável? O mesmo Page poderá nos responder, em mais um de seus raros e precisos esclarecimentos: "Nossa ambição maior é transformar a experiência Google como um todo, tornando-a maravilhosamente simples, quase automágica, porque nós compreendemos o que você quer e podemos entregá-lo instantaneamente" (Alphabet Inc., 2011).

Nesse ponto encontramos algumas respostas sobre possíveis significados da hiperconectividade contemporânea. Ela é um dos pilares desse novo sistema de poder. Sem a mobilização do narcisismo e do par exibicionismo/voyeurismo não haveria vazamento de dados suficiente para a fina simbolização de nossa vida inconsciente. Assim, a libidinização e a identificação com esse tipo de figura e seus valores nos levam a uma sociedade de culto à autoexpressão, onde tudo se torna publicável, postável e visível. Se vivemos num mundo onde toda nossa vida é pesquisável, e nossos desejos, compreendidos, vivemos então num novo tipo de panóptico. Hoje o panóptico de Page vai tomando o lugar do panóptico de Bentham. Neste, os prisioneiros são mantidos isolados dos demais e observados em seu comportamento externo. Naquele, cada sujeito constrói ativamente sua própria parte do panóptico por meio da hiperconectividade. Sua autoiluminação contínua permite acesso ao organismo e aos diversos componentes de sua anatomia psíquica. Principalmente: no panóptico de Bentham impera a restrição da liberdade. No de hoje, sua arquitetura só é possível pela preservação e exploração do sentimento de liberdade na vida digital (Han, 2019/2021). Cada compra, postagem e curtida devem ser experimentadas como uma escolha livre do sujeito. Este parece ser um ponto crucial do poder instrumentário, pois se a liberdade não se vê cerceada, o pensamento crítico não tem contra o que se opor.

Em seguida, um outro ponto que chama a atenção a respeito do instrumentarismo é sua indiferença radical em relação a quem somos, no que acreditamos e pelo que lutamos. Em métodos autoritários conhecidos, o Estado busca a posse e a reforma da alma de seus indivíduos, ou seja, nenhum sentido pode existir por fora do grupo que ocupa o poder. Por outro lado, nessa nova forma de domínio nossa alma parece ser irrelevante, pois o que interessa é tão somente a digitalização de nossos dados, e então a modificação em massa de nosso comportamento nos âmbitos do mercado ou da política. Um memorando vazado do Facebook em 2016 ilustra com primor tal indiferença. Nele encontramos as palavras de Andrew Bosworth, atual vice-presidente da rede social, sobre qual o princípio norteador da empresa:

Nós conectamos pessoas. O que pode ser bom se elas fizerem disso algo positivo. Talvez alguém encontre o amor. Talvez chegue até a salvar a vida de alguém à beira do suicídio. Então conectamos mais pessoas. O que pode ser ruim se elas fizerem disso algo negativo. Talvez custe uma vida ao expor alguém a pessoas agressivas. Talvez alguém morra em um ataque terrorista coordenado com as nossas ferramentas. E ainda assim, nós conectamos pessoas. (Mac, Warzel & Kantrowitz, 2018)

Como se vê, o sistema é pautado pelo cinismo. Tanto faz se salvamos ou executamos uma vida humana. O que importa mesmo é que haja conexão entre pessoas para que os dados continuem a fluir pelos largos canos do panóptico. Aqui o Big Brother de Orwell - tão interessado na posse e controle da alma - dá lugar ao Big Data de Zuckerberg, indiferente aos nossos motivos e significados. O que lhe interessa é somente o poder de simbolizar o inconsciente, e a sutil modelagem comportamental tornada possível a partir disso. De resto, cada um que pense ou faça o que quiser, incluindo o terrorismo. Portanto, trata-se de um poder que não se compromete em erigir certos ideais do eu em torno dos direitos humanos. Consequentemente, podemos supor que o recalcamento e a sublimação vão se tornando dispensáveis em alguma medida, liberando a pulsão de morte e sua erotização destrutiva.

Por fim, o ciclo de poder se completa na forma de manipulação invisível do comportamento de um sujeito ou de um grupo. Como vimos, isso se dá por meio do despertar calculado de nossos demônios internos. Para que esta última etapa possa acontecer, torna-se necessário um enfraquecimento da realidade - onde nossos fantasmas inconscientes serão experimentados não como dados de realidade interna, mas sim, externa. Nesse ponto o novo poder instrumentário conta com a ajuda de mudanças na produção e na legitimação da verdade em nossos tempos. Acompanhamos tais mutações no trabalho do colega Nelson da Silva Junior, A política da verdade e suas transformações no neoliberalismo: o sujeito suposto saber nos tempos do algoritmo (2019). Nele, o autor afirma que a hiperconectividade gera uma "democracia da verdade", ao mesmo tempo em que transforma o papel do cientista ou do intelectual como legitimadores dela:

Eles ainda têm a tarefa essencial de produção de tecnologias eficazes e complexas. Em outras palavras, eles ainda são responsáveis pela produção de verdades. É o seu papel enquanto difusores e legitimadores da verdade que mudou. Primeiro, eles perderam o privilégio de dar a última palavra sobre os assuntos de seu domínio. Pois não só a internet tornou-se uma fonte quase infinita de conhecimento instantâneo, mas também o ambiente digital oferece uma miríade de diferentes pontos de vista opostos ao seu. Isso provoca o que talvez seja a mudança mais importante no regime da verdade de nossa sociedade: com tanta informação, com tanto material contraditório, agora cabe ao consumidor decidir o que pode ou não ser considerado verdade. O atual agente legitimador na nova economia da verdade de nossa sociedade, é, de fato, o próprio homem comum. (Silva Junior, 2019)

Justamente, capturado pelo big data, atingido em seus fantasmas inconscientes, e tendo seu juízo de realidade minuciosamente ludibriado, o homem comum ainda poderia recorrer aos tradicionais legitimadores de verdade para calibrar suas faculdades críticas. No entanto, a sociedade da informação de hoje o elegeu para ocupar essa delicada posição de última instância que detém a "última palavra". Assim, ele cede à exploração de suas vulnerabilidades ao mesmo tempo em que frui do sentimento de autonomia e liberdade. É de se perguntar: em quais momentos não somos esse "homem comum"?

 

Conclusão

Em uma charge recente, o cartunista André Dahmer dá corpo a uma parte do que visitamos até aqui. Nela encontramos dois personagens: o primeiro de pé, segurando e apontando um celular para o segundo. Este, exausto, sentado em posição fetal. Um diz ao outro: "levante-se, você precisa gerar conteúdo".

Estamos exaustos de participar ativamente da construção desse novo panóptico. Estamos exaustos de produzir dados para a simbolização desavisada de nossa vida inconsciente. Estamos exaustos da exploração de nosso sentimento de liberdade e de nossos demônios recalcados. Estamos exaustos do esforço de preservar a lucidez em meio a novas estratégias de alienação do sujeito a partir da hiperconectividade. No entanto, partindo de um ponto de vista psicanalítico, isso não é tudo. Para evitar qualquer tipo de moralismo, seria ainda necessário examinar como cada sujeito em sua singularidade lida com tais transformações de nosso tecido cultural. Em que medida nos identificamos, nos defendemos, gozamos etc., com os novos ideais que pressionam e seduzem? Infelizmente não terei espaço para entrar em detalhes a respeito de como essas mesmas questões são relançadas a partir da clínica psicanalítica, mas posso indicar ao leitor dois trabalhos onde tive a oportunidade de fazê-lo (Souza Leite, 2021a, 2021b). Sobretudo, acho muito proveitoso quando posso escutar a respeito da clínica de colegas que parecem tocar no mesmo tema. O desafio é grande, pois estamos todos mergulhados nas mesmas trevas que pretendemos distinguir nas análises que conduzimos. Ou seja, os pontos cegos de ambos os lados tendem a se unir contra o processo analítico. Talvez o tempo e as parcerias de pesquisa poderão nos oferecer mais exemplos e respostas.

As questões tratadas neste breve artigo têm sido ampliadas e aprofundadas num grupo de estudos chamado O mal-estar na civilização digital. Ali, em meio ao diálogo entre colegas, vez ou outra desponta em nós um sentimento de indignação. Algo como uma área do corpo que estava dormente, acorda formigando, e passa a sentir dor novamente. Assim, constatamos que de alguma forma a hiperconectividade havia nos levado a um estado de hipoconectividade e anestesiamento. Penso que momentos como este são o motivo maior de nossos esforços. É somente a partir desse despertar que nossa escuta analítica e nosso senso cívico podem recuperar algo de sua vitalidade. Até onde poderemos fazê-lo?

 

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Recebido em: 6/11/2021
Aceito em: 14/1/2022

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