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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.55 no.102 São Paulo jan./jun. 2022

 

DIÁLOGOS

 

Comentários

 

 

Leopold Nosek

Membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). São Paulo / leopoldnosek@gmail.com

 

 

Me vejo no que vejo
Como entrar por meus olhos
Em um olho mais límpido
Me olha o que eu olho
É minha criação
Isto que vejo
Perceber é conceber

Águas de pensamentos
sou a criatura
Do que vejo

(Octávio Paz, trecho do poema "Blanco", 1966)

Com imenso prazer me vejo diante da tarefa de comentar a reflexão de Pedro Colli. É um escrito raro que articula a metapsicologia freudiana e o mundo no qual esse pensamento emerge. Vejo uma familiaridade na contradição evocada nas citações que abrem seu trabalho: já de início, o apelo de Lacan e de que o analista esteja presente e comprometido com sua época seguido da preciosa reflexão de Giorgio Agamben, afirmando que estar em contato com o contemporâneo é poder ver as obscuridades nas quais estamos mergulhados. Isso vale para a microscopia da clínica e para a reflexão conceitual.

Essas citações funcionam como introito ao que virá em seguida. Seu olhar mais sintonizado com o atual me inspira, acorda minhas memórias e me propõe novos percursos. Sinto também familiaridade com seu pensamento, como meu trabalho acerca do Traumático da Vida Cotidiana pode ilustrar. Comemoro a publicação desse trabalho numa revista da SBPSP.

Lembro que os homéricos não tinham uma palavra que se referisse à cor azul. O oceano era descrito como rutilante, e tantas outras adjetivações. Uma pergunta que se impõe a mim é: sem a palavra azul, o que viam? Colli traz novas perguntas ao meu cotidiano, e com elas novas palavras e as questões propostas se tornam inevitáveis. A contemporaneidade se revela com suas urgentes questões. A clínica e os conceitos relativos a ela se movem, e simultaneamente sou assolado por memórias que compartilho. Meu comentário privilegiará essa movimentação permanente entre o conhecimento e suas obscuridades.

Inicio com a metapsicologia. Desde os primórdios da obra freudiana, vemos traços do que se explicitará na obra O ego e o id, de 1923, na qual fica definido um inconsciente amplo e infinito que vai além do inconsciente equacionado com a ideia do recalcado. Além desse, define o enorme território do inconsciente por construir, que espera uma figuração, de modo que possa ser recalcado. O psiquismo é o tempo todo assolado por estimulações que se originam no corpo e no mundo. Essa estimulação nos suscitará ideias ao redor do que Freud nomeia como neurose atual, ou, mais adiante, como traumático.

Lembro que o excesso que caracteriza esses estados não se refere a algo energético que apenas é, como sempre em nossos conceitos, uma metáfora para exprimir o caráter carente de materialidade do inconsciente e do nosso aparelho conceitual. As metaforizações serão sempre provisórias e momentâneas. Lembro também que o atual passará inevitavelmente como que por um filtro dado por organizações anteriores e muito precoces. Talvez o atual não tenha mais remédio do que passar pelas organizações e marcas mnêmicas do passado. O trabalho do inconsciente por construir passará inevitavelmente pelos filtros das memórias que constituem o ego recalcado. De qualquer modo lembro que o traumático, para Freud, vem de uma estimulação que não encontra uma representação. A própria história do conceito de ansiedade, na obra freudiana, não corresponde ao trajeto linear que iria da ansiedade como excesso para uma suposta teoria mais atualizada da ansiedade como alerta de um perigo interno. A dubiedade teórica se manterá por todo o trajeto de sua obra.

Sempre me refiro inicialmente a Freud por supor que sua obra configure não somente um aspecto fundador, mas também um suposto território comum a todos nós. Faço, no entanto uma ressalva: lemos Freud matizado e filtrado por nossas leituras atuais. O pensamento acerca do inconsciente não recalcado esperou até a década de 1960 para ser mais amplamente desenvolvido. O pensamento kleiniano se deteve na onipresença da fantasia inconsciente e em seu corolário da ansiedade e da defesa que a acompanham. Acredito que a grande contribuição kleiniana tenha sido no desenvolvimento das ideias freudianas acerca do superego, bem como acerca da precocidade e da importância da sexualidade infantil. Mais tarde seu pensamento se desenvolve em direção a estruturas mais abstratas definidoras de um agregado de fantasmas e defesas que se apresentam principalmente como a teoria das diferentes posições e da identificação projetiva. A teoria busca o universal e o pensamento cotidiano, ou a clínica trafegará em busca da singularidade.

O pensamento da escola francesa acentuou o equacionamento do inconsciente com a linguagem, ou seja, um inconsciente com figurações de memórias recalcadas. Com o progressivo desenvolvimento da reflexão acerca do mundo exterior, criou-se artificialmente uma dicotomia entre teoria objetal e teoria pulsional. Talvez isso tenha sido parcialmente corrigido no pensamento de Winnicott, quando este diz que não existe o bebê, e, sim, o bebê em conjunto com a mãe; e no de Bion, quando diz que a unidade é o par.

O pensamento de Colli amplia esse universo em direção à cultura. Podemos formulá-lo na pergunta: quem é o continente do continente? A escola francesa se debruçou sobre o papel paterno na introdução da cultura, mas o próprio Freud, após os anos 1920, escreveu eloquentemente acerca da cultura. Assim, posso pensar que o continente do continente, ou o amparo mais amplamente constituído, fará parte das disciplinas da cultura. Como seria possível ignorar nossas origens na cultura e, dialeticamente, a influência do pensamento analítico retornando à cultura e trazendo-lhe novos desafios? Lembro que em nosso meio houve pouca influência do pensamento norte-americano.

Pedro Colli articula magnificamente esses conceitos ao lembrar como autores contemporâneos como Bion - e lembro também André Green - se detiveram no trajeto que vai dos estímulos vindos do território do pulsional e do exterior até se tornarem diferentes formas do psiquismo. Colli nos lembra o desenvolvimento que parte dos elementos beta até o pensamento complexo têm em Bion, no seu famoso trabalho "A grade". Lembraria que André Green, nas Conferências brasileiras, em Metapsicologia dos estados limites e em outras obras, propõe, em outra rede conceitual, esse mesmo trajeto. Define diferentes termos para definir camadas espaciais e temporais acerca de formas de representação.

O território do inconsciente por construir, a partir da década de 1960, torna-se marca da psicanálise contemporânea. Podemos pensar que, a partir da construção de sonhos, organiza-se o que Bion chamará de barreira de contato, e assim se organizará o território do consciente e do inconsciente recalcados. A tarefa analítica se amplia: para além de interpretar sonhos, hoje somos chamados a construir sonhos onde estes ainda não existiam. Talvez possamos dizer: onde havia ação, possa haver pensamento. O pensamento psicanalítico caminhou pelo que era chamado de estados borderline ou patologias limítrofes e pousou na construção das estruturas do aparelho psíquico (outro termo metafórico). Didier Anzieu publica, nessa mesma época, seu texto imprescindível: O eu-pele. Assim, o psiquismo se formará de pulsões que vêm do corpo, de memórias que se acumulam e do encontro sempre renovado com a realidade que nos desafia.

Laplanche dirá que o traumático funcionará como pseudopulsão. Buscará as formas que lhe darão a possibilidade de pensamento. Insisto no fato de que aquilo que ainda não está disponível para a representação inevitavelmente passará pelo território do recalcado como um filtro e como um pressuposto, bem como pelas memórias do desenvolvimento pessoal e cultural. Passará pelo recalcado e pela ideologia. O desafio imposto pelas mudanças do mundo entra em nosso cotidiano.

Um tanto desafiado por Colli, meu pensamento trafega também em outra dimensão: talvez o grande desencontro das escolas psicanalíticas não recaia sobre as descrições clínicas, mas sobre premissas epistemológicas. Estas remontam aos gregos: buscamos sempre a identidade do conceito e a coisa a ser descrita, o famoso dito de inspiração aristotélica formulado por São Tomás de Aquino: veritas est adaequatio rei et intellectus, fórmula que entranhará as futuras pretensões positivistas que assolam a psicanálise.

Em seu texto de 1923, Freud se pergunta como tornamos o inconsciente conhecido: o inconsciente aflora na superfície ou o consciente mergulha nas profundezas? As duas hipóteses são negadas e contraditadas com a afirmativa de que formulamos imagens de estrutura que correspondem ao inconsciente. Teríamos, em relação ao nosso objeto, um conhecimento de tradição platônica. A realidade é conhecida através de suas sombras. Nisso estamos nos contrapondo à apreensão da totalidade e assim o humano é um infinito como nos desafia. Levinas complementa essa ideia dizendo que, ao conhecer, não obturamos obscuridades, mas ganhamos altura. Essa submissão ao infinito do humano define a ética da psicanálise.

Também Adorno desafia o conhecimento dado pela pretensão positivista e propõe uma dialética na qual o trabalho do negativo é tarefa do observador. Menos ainda a fenomenologia ou a intuição nos levarão ao desvelamento do ser. O ato de conhecer acentua a potência do sujeito do conhecimento, e a interrogação dá a palavra ao objeto em questão. Essa dialética é permanente: ocorre em nossa prática clínica e em nossa construção conceitual. Inevitavelmente trafegaremos por dar primazia ao objeto, e nosso conhecimento recorrerá a figuras da poesia provisória que necessitam permanente reformulação. Caminharemos sempre entre vaga-lumes que refulgem na sua busca amorosa efemeramente. Goethe já dizia que quanto mais intensa a luz, mais escura se revelará a sombra. Assim, a grande contradição atual da psicanálise refere-se à sedução do positivismo Este, emoldurado pelo enorme desenvolvimento da técnica, obscurece as grandes questões humanas relativas ao amor e à destruição. Em nosso meio, é comum a afirmativa acerca da possibilidade de assombro do analista ao enfrentar o traumático de um renovado encontro. Penso que isto acontece sempre: o corpo e o mundo se movem e nosso espírito os persegue sem nunca poder realmente alcançá-los.

Com essas premissas, volto a Pedro Colli, que desenvolve o pensamento acerca da atual possibilidade da técnica e da inundação informativa que a acompanha. Posso dizer que pensa acerca do continente do continente. Pensa a cultura que entranha nosso cotidiano, a partir do desenvolvimento da internet como uma arma de guerra. A internet adentra nosso cotidiano, e a velocidade de transformações que propõe se acentua dramaticamente. Paradoxalmente retorna em outra forma de organização e se torna mais uma vez uma arma de guerra: a informação também será uma forma de agressão nas diferentes formas de luta por hegemonia.

Percebo que cotidianos por refletir se apresentaram para mim por toda a minha vida, inclusive como analista. Enumero alguns exemplos sumariamente: minha prática ocorreu durante a ditadura militar em um país de 90 milhões de habitantes, com metade deles vivendo no campo; atravessou a entrada do capital no campo; e continuou em meio à enorme migração da população rural para as periferias urbanas. Somos hoje 220 milhões, e talvez menos de 15% vivam no campo.

Passei também pelo fim da Guerra Fria e das utopias sociais; ironicamente, a ideia de fim da história também desaparece. Vivemos uma enorme concentração de capital em que fusões e aquisições mimetizam, na economia, as guerras por hegemonia que são, em sua base, formas de busca de poder econômico. Um país pode se apropriar do trigo de outro apenas comprando companhias e monopolizando sementes, adubos e inseticidas.

Um conhecido relata ter comprado cinco robôs que vão ordenhar mais de 500 vacas. Penso se não teremos um desemprego de robôs que se tornarem anacrônicos. Introduzo uma pequena ironia, mas a tecnologia adentra o nosso cotidiano até mesmo na reprodução humana. Os robôs desempregados irão para empresas retardatárias e menos poderosas. A disputa e a concorrência adentram o mercado de trabalho, cada vez mais concorrido e disputado. Não basta ter universidade: temos hoje, inclusive, desemprego de mbas. O grupo social que não passa para a precarização do trabalho e que portanto é considerado privilegiado tem jornadas extensas e um lazer peculiar: em seu tempo livre, passou a fazer a corrida cooper, que se torna prática de maratona, e se a pessoa for expedita, irá até o triatlo.

Passo por essas transformações do mundo e pelas transformações do corpo, envelheço, e tudo isso sempre me desafiará por novas representações. O traumático se introduz por comparação, as crianças já nascem neste mundo que nos desafia: para elas, é assim, simplesmente. Para elas, seria surpreendente que uma carta saísse de um telefone, fato que muito me surpreendeu há algumas décadas e que se tornou profundamente anacrônico como modo de comunicação.

A velocidade das transformações torna-se avassaladora. Desaparece a expressão mudança geracional, pois somos desafiados no percurso de uma única geração. Ao mesmo tempo, a técnica introduz enorme ampliação das forças produtivas. Por exemplo, amplia de modo eloquente nosso tempo de vida. Por outro lado, a expectativa de vida em nosso ambiente é 15 anos maior que a de um habitante da periferia de nossas cidades. Obviamente esse é apenas um comentário, e poderia ser amplamente aprofundado. Talvez um nome de síntese seja neoliberalismo, mas isso requer um espaço e um tempo mais generosos para esse simples comentário estimulado por Pedro Colli.

Lembro que vivi acompanhado pela ideia dos direitos humanos, que ingenuamente me pareceria universal. Apenas como um aceno, lembro que a Declaração universal dos direitos humanos data de 1948, na ressaca da segunda guerra mundial. Todas as guerras pretenderam ser a batalha definitiva e tiveram justificativas nobres. Vale lembrar a resposta de Freud a Einstein e seu ceticismo acerca de uma humanidade isenta de guerras: por mais que a psicanálise necessite de liberdade para o seu desenvolvimento ela sempre se posicionará do lado da civilização em sua prática e seu pensamento.

Contudo, lembremos também que Freud se entusiasmou com o esforço bélico do império austro-húngaro no início da primeira guerra mundial e subestimou seu risco na segunda guerra. Além da precarização do trabalho, da falácia sedutora do empreendedorismo, da meritocracia e da radicalização e do fracasso do sonho americano, temos um aumento assombroso da riqueza material e a desproporção de sua distribuição. Hoje posso dizer que minha memória e minha enciclopédia me acompanham no bolso do meu jeans.

Minha prática clínica também se transforma: os conceitos exigem permanente releitura e novas reflexões. As clássicas histéricas do tempo de Charcot e Freud vi apenas no pronto-socorro do Hospital das Clínicas, e em camadas despossuídas culturalmente. Na década de 1990, a clínica passa a ser cada vez mais assolada por patologias com pobreza construtiva; começamos a ter uma epidemia dos chamados distúrbios alimentares, patologias narcísicas, pânicos, estados borderline etc. A morfologia e a organização psíquica, inevitavelmente, serão influenciadas pelo Zeitgeist, o espírito da época.

Pedro Colli destaca a exaustão, preocupação esta que compartilho. Tenho visto cada vez mais situações que apelido de hamsteria de conversão. Trata-se de situações em que uma atividade ininterrupta mascara desamparos precoces ou formas primitivas da sexualidade. Lembram-me o comportamento insano dos hámsteres, em sua inútil atividade nas rodas de uma gaiola. Nossa base conceitual permanecerá, mas é chamada a novas figurações. Corremos atrás do atual, sempre estamos atrasados e nosso acervo reflexivo é desafiado a reencontrar nos clássicos a centelha que nos orienta e a reavaliarmos, a partir deles, a realidade dos desafios que enfrentamos.

Temos diante de nós o excesso não apenas comunicativo, mas também de manipulação comunicativa. O trabalho se torna excessivo: se há algum tempo a juventude tinha o apelo de ser um executivo bem-sucedido, hoje a sedução tem seu trajeto na criação de startups. São modos de escravidão bem-remunerados, e generosos bônus asseguram sua fidelização. No entanto, não houve sempre na história servos e escravos privilegiados? Mais uma vez, a luz do enorme progresso técnico nos desafia com sua sombra.

Gostaria também de fazer uma reflexão acerca da nossa capacidade crítica. Inevitavelmente comparamos o atual com as memórias que nos são familiares, e nossa memória tende a deformações. Por exemplo, sei que tive uma dor de dente, mas não recupero o sentimento de dor que a acompanhava. Do mesmo modo, a memória passa por uma espécie de filtro quando é construída, e novo filtro ocorre quando é recuperada.

Uma criança que se desenvolve hoje não terá os mesmos pressupostos de alguém mais velho; aliás, é visível como procuram companhia correspondente à sua idade. Assim, a tecnologia simplesmente faz parte de sua ecologia, e o desenvolvimento do conhecimento, da sociedade, da política futuros é amplamente imprevisível. Seu desconforto e crítica versará sobre novos pontos. Meus netos conseguem acompanhar as aulas ao mesmo tempo que socializam nos aplicativos. Desisti de pedir que desliguem seus aparelhos quando me visitam.

Segundo Thomas Mann, em Montanha mágica, o que melhor mimetiza o tempo humano é a ampulheta. O relógio comum nos traz a ideia do eterno retorno: de novo será meio-dia. Ainda não havia o relógio digital, mas este nos traz implícita a ideia de um tempo que não termina, um tempo infinito. Talvez um tempo isento da castração com o qual a tecnologia seduz. Thomas Mann descreve a ampulheta como contendo na sua parte superior o acervo de tempo de vida e na sua porção inferior o acervo de experiência acumulada. Desse modo, no início da vida, vemos que o acervo de tempo quase não se move, enquanto a experiência se acumula de forma muito intensa. Ao final, quase não notamos o acúmulo na parte inferior, enquanto o tempo possível se esgota como num turbilhão. Apesar de a areia escorrer de forma constante, nossa experiência emocional não confirma esse fato e, assim, merece que sempre se considere a posição do observador crítico.

Didi-Huberman, um autor familiarizado com a psicanálise, é explícito em sua crítica a um tempo linear e, mais ainda, a um tempo teleológico com alguma destinação prévia. Temos todas as idades, em suas diferenças e simultaneidades, em suas sincronias e diacronias. A metáfora que usa é a de um micélio, com suas múltiplas raízes que se misturam de forma horizontal e vertical.

Neste momento, recorro à Pré-História, à Praça da Matriz e ao tempo antes da televisão. Minha localização na ampulheta é visível também nesse comentário. Uma amiga recorda duas tias que, numa pequena cidade do interior paulista, punham almofadas na janela e assistiam ao movimento das pessoas. Um momento privilegiado era a movimentação da praça após a missa. Quem é mais velho lembra que os meninos faziam sua circunvolução numa direção, e as meninas, de braço dado, passeavam pela direção oposta. Nesse antecessor das redes sociais, falava-se de fofocas, acessavam-se relacionamentos, e a vida privada era amplamente tornada pública. O que era adequado socialmente era patrocinado, e as diferenças eram exiladas. Um amplo círculo de censura e encorajamento assim se constituía, assim se induziam valores e sexualidades.

Havia também o cinema, e um sobrinho de Freud induz, na década de 1940, nos eua, o desenvolvimento do marketing e da propaganda. Em episódio conhecido, coloca lindas mulheres na frente de uma manifestação feminista elegantemente fumando cigarros, as quais teriam seu gesto imitado até no interior de São Paulo, na Praça da matriz.

A tecnologia muda o mundo com o motor a combustão, a eletricidade, a televisão etc. Não nos ocorrerá compararmos o atual com mundos em que não vivemos: podemos ver e admirar móveis finamente marchetados, mas não nos ocorre que foram feitos com a mão humana, no tempo em que a iluminação vinha dos lampiões e a vida transcorria em outras formas de temporalidade. Comparo o atual com o mundo escolhido e possível da memória de meu passado. Acredito que Colli e eu estejamos em pontos diversos do percurso de nossas ampulhetas, o que nos faz ter pontos de observação diversos; mas, se não somos afeitos ao Mesmo, o diálogo será inspirador.

O que atravessa minha individualidade é uma espécie de coletivo inconsciente que as disciplinas sociológicas e políticas vão colocar no amplo mundo do conceito de ideologia. Torcemos com justiça contra a Alemanha da segunda guerra, mas não lembramos o bombardeio de Dresden, nem as bombas atômicas de Hiroshima e Nagasaki. Também não nos questionamos sobre quem recebeu criminosos de guerra por serem úteis na próxima guerra. A história é matizada pelo inconsciente ideológico. O Brasil já foi "o país do futuro e uma democracia racial", e tantas outras representações.

Hoje sabemos mais acerca do nosso racismo. Não apenas não vemos negros às mesas em nossos restaurantes, como estes tomam o cuidado de não afrontar nossa cultura racista ao não vermos negros também como garçons. Se os vemos, é porque o restaurante vai apresentar música ao vivo. Escondidos estarão na cozinha ou na limpeza. Nosso apartheid é tamanho que não necessita arame farpado. De repente, porém, acordamos; será por empatia ou por piedade? Ficamos isentos do racismo ou desfilamos nossa bondade, correção e grandeza? Sabemos e podemos ser empáticos com quem vive com salário mínimo? Quais são seus desafios? Como os pensa e soluciona? E se podemos, até onde? Talvez nos seja familiar o desamparo, mas com quem essa população se identifica e compete? Quais são seus objetos de identificação e quais são seus projetos? Qual a ideologia que a movimenta? Como a tecnologia a afeta?

Antes da repulsa ao nazismo, todas as universidades na Europa e nos Estados Unidos tinham cadeiras de estudos raciais. O Brasil desenvolvia uma política explícita de branqueamento da raça, e o governo Vargas tinha orientação para evitar emigração semita. Hoje não temos ideologias que nos enganam? Apenas a tecnologia veicula essas crenças inconscientes? As ideologias se infiltram atravessando revoluções tecnológicas, como foi com a eletricidade, o cinema, os jornais e a revolução tecnológica, que não cessa de nos assombrar.

Uma paciente me explicita: só vejo sites de notícias com as quais concordo. Ela fala de sites que eu identifico com gabinetes de ódio e com fake news. Não me é tão difícil tentar ampliar sua visão, pois relata conflitos familiares imensos em torno de como colocar a mesa num churrasco, bem como o caráter dogmático com que se relaciona comigo. Outro paciente aplaude sistematicamente qualquer que seja a intervenção que eu faça. Diz que é considerado socialmente uma pessoa de bem com a vida e muito simpática. Trafegamos na análise através de sua recusa da agressividade por meio de controles anal ou da oralidade canibalística que se apresenta na virtualidade de nossos encontros. Tento evitar a abordagem ideológica para me deter no acervo ideológico precoce que lhes tolhe o viver atual. Como sempre, o antagonismo da ideologia com o que seria a verdade ou a realidade nos desafia, mas isso necessitaria toda uma reflexão, que fica para outro momento. Talvez a verdade seja apenas procurar a verdade.

Outro aspecto da exaustão a que Colli se refere é o isolamento e a solidão que as novas tecnologias propõem e que se infiltram insidiosamente em nosso viver. Mais uma vez, a alteridade nos desafia a pensar. A dicotomia entre o Mesmo e o Outro tem novas formas de apresentação. Ideologias ligadas às ideias de empreendedorismo, meritocracia etc. acentuam o isolamento do indivíduo, sacramentando a ausência de solidariedade e de bandeiras comuns. A busca da identidade própria se acentua, e as bandeiras políticas se fragmentam numa miríade de identidades. Temos classificações de gênero que nada ficam a dever a manuais diagnósticos psiquiátricos, que já enumeram várias centenas de patologias. Quantos são os gêneros? Faz sentido construir cidadelas críticas circunscritas por tantas identidades? A Organização Mundial da Saúde (oms) nos diz que dois terços da população mundial sofrerão, em algum momento, de distúrbios mentais. No entanto, se tantas são as portas de entrada dadas pelos diagnósticos, as portas de saída se resumem nos antidepressivos, ansiolíticos, moderadores de humor e antipsicóticos. Há como que uma psiquiatrização do mundo. Creio que as múltiplas bandeiras identitárias impeçam o desenvolvimento de opções políticas em comum, trazendo, além disso, uma descrença na política. Mais uma vez, a dialética entre o idêntico e o não idêntico se paralisa, a tecnologia fornece certezas e somos assolados por movimentos na direção da descrença no conhecimento e na ciência, ao mesmo tempo que se multiplicam as certezas. O indivíduo e seus aplicativos se bastam.

Colli nos desafia amplamente a pensarmos como as novas tecnologias, em seu excesso e sua manipulação, colonizam nosso inconsciente. Como pensar as mudanças com as quais nos deparamos tanto em nosso cotidiano quanto em nossa prática? Para ficar apenas no desafio imediato que a tecnologia nos traz, quase unanimemente, com o isolamento de uma inesperada pandemia, recorremos ao encontro virtual. Eu era completamente contra e, de início, pensei que minha prática sucumbiria. Para minha surpresa, o trabalho continuou, e situações férteis se apresentaram. No início, eu me vi diante de uma quantidade surpreendente de sonhos, como se estivéssemos todos estimulados a reavivar o trabalho onírico. Assim foi com a clínica, as aulas e palestras, a administração etc. A tecnologia, no entanto, revelou-se útil. Uma das reflexões que se impuseram a mim foi a de que, em comparação com as amizades, as situações clínicas tiveram surpreendente resistência. Como dizem as crianças: "Gosto de você até o céu e volta", a transferência vai até o satélite e volta. Como ocorre com qualquer realidade ou conceito, penso em novas associações.

Um desafio era o cronômetro no aplicativo que evocava uma pontualidade milimétrica, causando novas formas de ansiedade e exaustão. A tecnologia que deveria trazer recursos e conforto contém também novos desconfortos. Ao mesmo tempo que permitia algum trabalho analítico "nos tempos do cólera", o afastamento da materialidade dos corpos e da presença pulsional aquietava angústias e protegia de um aprofundamento maior da análise. Agora, já de volta ao meu consultório, vejo que não voltaremos no tempo: mais uma vez a situação é nova, e mais uma vez o confronto entre a memória e o traumático, entre a alteridade e o mesmo, entre o narcisismo e a sociabilidade se apresenta.

A tecnologia nos invade, e a aproximação da realidade sofre, como nos alerta Colli. Contudo, lembro que a cada época enfrentávamos essa realidade obscurecida pelas religiões, pelas ideologias e pelas tecnologias. Li na tradução de Frederico Lourenço a tradução do Evangelho segundo São Mateus na sua primeira versão grega e lá vi que a Virgem, após o nascimento de Cristo, passou a viver maritalmente com José. Alguém já viu uma pintura renascentista na qual os dois estão ao menos de mãos dadas? Até as Escrituras, em suas traduções, sofrem os matizes de sua época.

À leitura do Velho Testamento e à Torá acrescem-se múltiplos volumes de comentários posteriores, que configuram outro objeto de estudo: o Talmud. Os clássicos permanecem, mas as traduções sofrem as injunções dos tempos e precisam ser sempre renovadas.

Lembro também que, quando eu era criança, o cinema ia ao delírio quando chegava a cavalaria e matava uma infinidade de índios ou de mexicanos. Hoje já nos indignamos com Hiroshima, Nagasaki, Dresden e tantos outros episódios. Há pouco tempo, tínhamos apenas visões heroicas da segunda guerra. No entanto, podemos compartilhar da visão realista de Freud ante a impossibilidade de que a contribuição analítica faça uma contraposição à busca de hegemonia, e portanto da guerra. Assim foi com toda fonte informativa, desde sempre. Walter Benjamim falava de uma história escrita pelos vitoriosos e se perguntava como seria a história contada pelos vencidos. Colli nos recorda o poder da Cambridge Analytica nas eleições. Será que apenas eles fazem uso bélico da tecnologia? Como agem contemporaneamente os serviços de informação por toda parte? Serão coincidência os distúrbios de 2013 e 2014 no Brasil, nas diferentes primaveras árabes e na Ucrânia? Como podemos ver, hoje quem tem a primazia da tecnologia tem a primazia do poder, e assim foi sempre, mas poderia também ser ao revés: quem tem o poder terá a tecnologia.

Termino me desculpando pela impossibilidade de aprofundar algumas questões levantadas pela riqueza do tema ao qual Colli tão amplamente se referiu. Apenas para finalizar, lembro que a internet nasce da guerra e a ela retorna inevitavelmente. A guerra é uma extensão da política e se faz por meio das bombas, mas também é feita com a economia, por meio de sanções e bloqueios; e, como disse anteriormente, por meio de prosaicas fusões e aquisições. Cada vez mais, a informação se torna poderosa arma da busca da hegemonia.

Não somos manipulados apenas nas eleições: a disputa é permanente. Com o fim das utopias do século XX, aliada a esse enorme desenvolvimento técnico, a superficialidade informativa nos bombardeia, trazendo uma paradoxal ausência de pensamento e reflexão. Suspeito, porém, dessa minha afirmativa, pois ela não vem de uma percepção apenas, mas de uma comparação que talvez em nada se diferencie da realizada pelas gerações que me precederam e que, ao ver os penteados dos Beatles, murmuravam que "o mundo está perdido". Revistas sérias abordavam o tema, como a Revista Civilização Brasileira, que discorria, em artigo de fundo, acerca da influência alienadora que as bandas de rock exerceriam sobre a juventude. Lembro o grande artista que é Gilberto Gil desfilando em protesto às guitarras elétricas na música brasileira. Ao mesmo tempo que procuro pensar acerca da reflexão de Pedro Colli, é inevitável introduzir em minha reflexão a suspeita sobre minhas possibilidades e o horizonte que alcanço.

Lembro aqui o realismo de Freud, que afirmava com toda a radicalidade que todo desenvolvimento vai entranhar a contradição entre Eros e Tanatos, e nós, psicanalistas, podemos apenas nos posicionar e contribuir para que o pensamento ganhe asas e, ganhando altura em seu percurso, contribua com a civilização humana. É pouco e, no entanto, também é muito.

Agradeço ao Jornal de Psicanálise esta oportunidade de manifestação e me desculpo por este escrito tão carregado de memórias. Todavia, espero que Colli, assim como esta editoria, continuem nos desafiando a realizar novos trajetos de pensamento.

 

Referências

Adorno, T. W. (2009). Dialética negativa (M. A. Casanova, Trad.). Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1966)        [ Links ]

Anzieu, D. (1985). O eu-pele. Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Benjamim, W. (2020). Teses sobre a História. https://www.alamedaeditorial.com.br/historia/sobre-o-conceito-de-historia-de-walter-benjamin (Trabalho original publicado em 1940)        [ Links ]

Bion, W. R. (1989). Two Papers: The Grid and Caesura. Routledge.         [ Links ]

Didi-Huberman, G. (2013). A imagem sobrevivente. Contraponto. (Trabalho original publicado em 2002)        [ Links ]

Green, A. (1990). Conferências Brasileiras de André Green: metapsicologia dos limites. Imago.         [ Links ]

Laplanche, J. (1998). Problemáticas I: a angústia (3.ª ed.). Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1980)        [ Links ]

Lévinas, E. (1961). Totalité et infini. Essai sur l'extériorité. M. Nijhoff.         [ Links ]

Mann, T. (2016). A montanha mágica. Companhia das Letras (Trabalho original publicado em 1924)        [ Links ]

 

 

Recebido em: 20/3/2022
Aceito em: 10/4/2022

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