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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.55 no.102 São Paulo jan./jun. 2022

 

HISTÓRIA DA PSICANÁLISE

 

Uma nota de rodapé para: "análise fragmentária de uma histeria" de Freud1

 

 

Felix Deutsch

Psicanalista vienense e médico pessoal de Freud (n.t.)

 

 

Na sua biografia de Freud, Ernest Jones se refere ao conhecido caso Dora (Freud, 1905[1901]/2016) e aos seus diversos sintomas - somáticos e mentais - histéricos. Depois de afirmar que ela nunca retomou sua análise que durou apenas onze semanas, menciona que ela "morreu há alguns anos atrás em Nova York" (Jones, 1955, p. 289).

Esse fato despertou meu interesse por algumas razões. Do que ela morreu? Poderiam a intuição de Freud e a interpretação penetrante de apenas dois sonhos realmente ter trazido à luz a estrutura da personalidade dessa garota infeliz? Se ele estava certo, o curso ulterior da vida de Dora não deveria confirmar as opiniões de Freud a respeito dos diversos motivos para a subsistência dos seus sintomas conversivos? E, last but not least, quanto avançou até hoje a nossa compreensão a respeito do "salto do mental para o fisiológico"?

Desde o início minha curiosidade particular pela vida ulterior de Dora teria encontrado na discrição de Freud um obstáculo intransponível durante sua vida. Ele escreveu:

Após o final do tratamento, esperei ainda quatro anos para a publicação, até que uma mudança na vida da paciente me fez supor que o seu próprio interesse nos eventos e processos psíquicos aqui narrados já teria esvaecido. Evidentemente, não se conservou nenhum nome que pudesse fornecer uma pista ao leitor de fora dos círculos médicos; de resto, a publicação numa revista especializada, rigorosamente científica, deverá servir como proteção frente a leitores indevidos. Naturalmente não posso impedir que a paciente mesma tenha uma impressão penosa, se o acaso lhe puser nas mãos a sua própria história clínica. Mas nada aprenderá que já não saiba, e perguntará a si mesma que outra pessoa poderá descobrir que se trata dela. (Freud, 1905[1901]/2016, pp. 177-178)2

Vinte e quatro anos depois do tratamento de Dora por Freud ocorreu um evento que dissipou o anonimato desse caso para outro analista sem o conhecimento de Freud.

Em uma nota de rodapé acrescentada em 1923 à Análise fragmentária de uma histeria, Freud escreveu:

O problema da discrição médica, que me ocupou nesse prólogo, está fora de consideração no que toca às outras histórias clínicas deste volume, pois três delas foram publicadas com o assentimento formal dos envolvidos - com o do pai, no caso do pequeno Hans -, e num dos casos (Schreber) o objeto da análise não é propriamente uma pessoa, mas um livro por ela deixado. No caso Dora o segredo foi conservado até este ano. Soube recentemente que ela, de quem há muito não ouvia falar, adoeceu novamente por outras causas e revelou a seu médico que quando jovem fora objeto de minha análise, e com tal comunicação foi fácil, para meu bem informado colega, reconhecer nela a Dora de 1899.3 O fato de que os três meses de tratamento lograram apenas resolver o conflito de então, e de que não puderam constituir salvaguarda contra adoecimentos posteriores, não será visto como objeção à terapia analítica por alguém que raciocine com justeza. (Freud, 1905[1901]/2016, pp. 182-183)

Em consonância com o médico que a consultou, Freud omitiu o seu nome, uma vez que poderia ter levado à divulgação da identidade da paciente. Agora que Dora não está mais viva, pode ser revelado, sem transgredir a discrição que protegeu seu anonimato, o porquê de a nota no livro de Jones sobre a morte de Dora ter despertado um interesse especial em mim. A razão é que eu sou o médico que contou para Freud em 1922 do meu encontro com Dora. Aconteceu logo após a apresentação do meu artigo, "Algumas reflexões sobre a formação do sintoma conversivo", no vii Congresso Psicanalítico Internacional em Berlim, em setembro de 1922, que foi o último congresso em que Freud participou. Referi-me a alguns pontos de vista mencionados nesse artigo e ao misterioso "salto da mente para o soma" quando contei a Freud como se passou meu encontro com Dora e como nolens volens [quer queira, quer não] eu partilhava do segredo.

No final do outono de 1922, um otorrinolaringologista perguntou a minha opinião a respeito de uma paciente sua, uma mulher casada, de 42 anos, que por um tempo esteve acamada com sintomas característicos da síndrome de Ménière: zumbido, diminuição da audição no ouvido direito, tontura e sonolência devido a contínuos ruídos no ouvido. Como o exame do ouvido interno, do sistema nervoso e do sistema vascular não evidenciou nenhuma patologia, ele perguntou se um estudo psiquiátrico da paciente, que se comportava muito "nervosamente", poderia talvez explicar sua condição.

A entrevista teve início na presença do seu médico. Seu marido saiu da sala logo após ter escutado suas queixas, e não retornou. Ela começou com uma descrição detalhada dos ruídos insuportáveis no seu ouvido direito e da tontura quando movia a cabeça. Ela sempre tinha sofrido de ataques periódicos de enxaqueca no lado direito da cabeça. A paciente então começou a reclamar [tirade] da indiferença do marido em relação ao seu sofrimento e de como sua vida conjugal tinha sido infeliz. Agora, seu único filho também tinha começado a negligenciá-la. Ele tinha recentemente terminado a faculdade e tinha que decidir se continuaria os estudos. Contudo, frequentemente ficava fora até tarde, e ela suspeitava que ele estava interessado nas garotas. Ela sempre aguardava, escutando, até que ele chegasse em casa. Isso a levou a falar sobre sua própria vida amorosa frustrada e sua frigidez. Outra gravidez lhe tinha parecido impossível porque ela não conseguiria suportar as dores do parto.

Ressentida, expressou a convicção de que o marido tinha sido infiel, que ela tinha considerado o divórcio, mas não conseguia decidir o que fazer. Aos prantos, denunciou os homens de modo geral por serem egoístas, exigentes e inflexíveis. Isso a trouxe de volta ao passado. Ela se lembrou com carinho [withgreat feeling] de como sempre tinha sido próxima do irmão, que tinha se tornado o líder de um partido político, e que ainda o visitava sempre que precisava dele - ao contrário do pai, que era infiel até mesmo com a mãe dela. Ela condenou o pai por ter tido uma vez um caso com uma jovem mulher casada com quem a paciente fizera amizade, e cujos filhos estiveram sob seus cuidados por algum tempo quando era uma garota pequena. Ela então rejeitara os avanços sexuais que o marido dessa mulher lhe fizera.

Essa história me pareceu familiar. Minha suspeita a respeito da identidade da paciente foi logo confirmada. Nesse meio-tempo, o otologista tinha saído do quarto. A paciente então começou a conversar de maneira sedutora, interrogando se eu era analista e se eu conheci o Professor Freud. Então, eu a perguntei se ela o conheceu e se ele tinha alguma vez a tratado. Como se estivesse esperando a deixa, rapidamente respondeu que ela era a "Dora", adicionando que desde o tratamento com Freud não havia visto mais nenhum psiquiatra. Minha familiaridade com os escritos de Freud certamente criou uma situação transferencial muito favorável.

Ela se esqueceu de falar sobre sua doença, demonstrando muito orgulho de terem a descrito como um caso famoso na literatura psiquiátrica. Depois falou da deterioração da saúde do pai que agora frequentemente parecia caduco [out of his mind]. Sua mãe tinha sido recentemente admitida num sanatório para ser tratada de tuberculose. Ela suspeitava que a mãe talvez tivesse adquirido a tuberculose do pai dela, que, como ela lembrou, tinha essa doença desde a infância. Ela aparentemente esqueceu do histórico sifilítico do pai, mencionado por Freud, considerado por ele geralmente uma predisposição constitucional e que "deve ser levada em conta na etiologia da constituição neuropática dos filhos" (Freud, 1905[1901]/2016, p. 191). Ela também expressou preocupação com os seus resfriados ocasionais e dificuldades de respirar, e com seus acessos de tosse pelas manhãs, que ela pensou que deviam ser atribuídos ao fumo excessivo durante os últimos anos. Como se tentasse fazer disso algo mais aceitável, disse que o irmão também tinha o mesmo hábito.

Quando lhe pedi para sair da cama e andar pelo quarto, ela andou mancando um pouco na perna direita. Não conseguiu dar nenhuma explicação quando questionada sobre a claudicação. Ela o tinha desde a infância, mas não foi sempre perceptível. Em seguida, discutiu as interpretações de Freud dos dois sonhos e perguntou minha opinião a respeito. Quando me aventurei a relacionar a síndrome de Ménière ao relacionamento com seu filho e com sua constante escuta de suas excursões noturnas, ela pareceu pronta para aceitá-lo e pediu outra consulta comigo.

A próxima vez que eu a vi, ela estava fora da cama e declarou que seus "ataques" tinham acabado. Os sintomas da Ménière tinham desaparecido. Novamente descarregou um forte sentimento hostil contra o marido, especialmente nojo da vida conjugal. Ela descreveu as dores pré-menstruais e uma descarga vaginal depois da menstruação. Em seguida, falou principalmente da relação com a mãe, da infância infeliz pelo exagero da mãe na limpeza, da sua compulsão de lavagem irritante e de sua falta de afeto por ela. A única preocupação da mãe tinha sido a própria constipação, da qual a paciente agora sofria. Finalmente, ela falou com orgulho da carreira do irmão, mas ela tinha pouca esperança de que o filho viesse a seguir seus passos. Quando a deixei, me agradeceu eloquentemente e prometeu me chamar se sentisse necessidade. Nunca mais ouvi dela novamente. Seu irmão me ligou algumas vezes pouco depois do meu contato com sua irmã, expressando sua satisfação com sua recuperação rápida. Ele estava muito preocupado com o seu contínuo sofrimento e sua discórdia com a mãe e o marido. Ele admitiu que era difícil conviver com ela porque ela desconfiava das pessoas e tentava jogar uma contra as outras. Ele quis me ver no meu consultório, mas eu não concordei tendo em vista a melhora de Dora.

Pode-se entender facilmente por que essa experiência me fez querer comparar a apresentação clínica da paciente com aquela descrita por Freud na sua breve análise 24 anos antes, quando ela tinha 18 anos de idade. É impactante que o destino de Dora tomou o caminho previsto por Freud. Ele admitiu que: "esse tratamento - e, portanto, minha compreensão dos encadeamentos da história clínica - permaneceu fragmentário. Logo, não posso dar esclarecimento sobre vários pontos, ou tenho de me limitar a indicações e suposições" (Freud, 1905[1901]/2016, p. 194). Essas considerações, contudo, não alteraram sua concepção básica de que "a maioria dos sintomas histéricos, quando atingem seu pleno desenvolvimento, representam4 [darstellen] uma situação fantasiada da vida sexual" (Freud, 1905[1901]/2016, p. 296). É inequívoco que a atitude de Dora frente à vida conjugal, sua frigidez e seu nojo da heterossexualidade confirmaram o conceito de Freud de deslocamento, que ele descreveu nos seguintes termos: "A sensação de nojo parece ser, originalmente, a reação ao cheiro (depois também à vista) dos excrementos. Mas os genitais - em especial o membro masculino - podem lembrar as funções excrementícias" (Freud, 1905[1901]/2016, p. 204, grifo de Deutsch).

Freud corroborou esse conceito mais tarde nas suas Observações sobre um caso de neurose obsessiva, referindo-se ao paciente como um "cheirador", tendo um olfato mais sensível do que a maioria das pessoas. Freud adiciona sobre o paciente em uma nota de rodapé que "fortes tendências coprofílicas vigoraram durante a sua infância. Ver, a respeito disso, o já mencionado erotismo anal" (Freud, 1909/2013, p. 110, grifo de Deutsch).

Podemos perguntar, para além das sensações do olfato, paladar e visão, se outras tendências para o uso de percepção sensória estavam envolvidas no processo conversivo de Dora. Certamente, o aparelho auditivo cumpriu um papel importante na síndrome de Ménière. De fato, Freud remete a dispneia de Dora como aparentemente condicionada pelos ruídos que a criança escutava do quarto dos pais que na época era contíguo ao seu. Esse "escutar" foi repetido na vigilância com o ruído dos passos do filho quando retornava para casa à noite, depois de ela suspeitar que ele estava interessado nas garotas.

Em relação ao sentido do tato, ela tinha mostrado sua repressão no contato com o Senhor k. quando ele a abraçou, e quando ela se comportou como se não tivesse notado o contato com os seus genitais. Ela não pôde recusar o contato dos seus lábios com os do Senhor k. quando a beijou, mas ela se defendeu do efeito do seu beijo ao recusar a sua própria excitação sexual e o conhecimento [awareness] dos genitais do Senhor k., que rejeitou enojada.

Precisamos lembrar que em 1894, Freud propôs o termo "conversão" como uma defesa, quando chegou ao conceito de que: "Na histeria, a maneira de tornar inócua a representação incompatível é transpor para o corporal a soma de excitação" (Freud, 1894, p. 63). Mesmo antes, em colaboração com Breuer, ele escreveu:

O aumento da soma de excitação ocorre por vias sensoriais, a diminuição por vias motoras. Pode-se então dizer que, se algo acontece a alguém, sua reação é motora ... Há, assim, junto a uma reação adequada, uma menos adequada. Se a reação ao trauma psíquico está totalmente não realizada, então sua memória conserva o afeto que originalmente tinha. (Freud, 1893, pp. 192-193)

Isso permanece correto até hoje.

Muitos anos se passaram durante os quais o ego de Dora continuou em extrema necessidade de afastar os seus sentimentos de culpa. Aprendemos que ela tentava alcançá-lo através de uma identificação com a mãe que sofria de uma "psicose de dona de casa" (Freud, 1905[1901]/2016, p. 190), consistindo em lavagem obsessiva e em outros tipos excessivos de limpeza. Dora se parecia com ela não somente fisicamente, mas também por esse aspecto. Ela e a mãe viam a sujeira não só nos arredores, mas também nelas e dentro delas. Ambas sofriam de descargas genitais no momento em que Freud tratou Dora, assim como quando eu a vi.

É impactante que o arrastar do pé, que Freud observou quando a paciente era uma garota de dezoito, tenha persistido por 25 anos. Freud afirmou que: "É possível ter esses sintomas - é minha convicção - apenas quando há um modelo infantil para eles" (Freud, 1905[1901]/2016, p. 296, grifo de Freud). Dora uma vez torceu esse pé quando era criança ao escorregar5 em um degrau quando estava descendo as escadas. O pé inchou, foi enfaixado, e ela ficou acamada por algumas semanas. Aparentemente, um sintoma como esse pode persistir por toda a vida sempre que há a necessidade de usá-lo para expressar somaticamente o desprazer. Freud sempre aderiu ao "conceito das regras biológicas"6 e considerava o desprazer "como estando armazenado para a proteção daquelas [das regras biológicas]. A complacência somática, predeterminada organicamente, abre o caminho para a descarga de uma excitação inconsciente".7

Não há como enfatizar o suficiente a verdade dessa afirmação de Freud: "Muito mais fácil do que criar uma nova conversão parece ser produzir relações associativas entre um pensamento que necessita descarga e o velho, que já não tem tal necessidade" (Freud, 1905[1901]/2016, p. 233). A conclusão um tanto fatalista que se pode tirar da personalidade de Dora, que 25 anos mais tarde se manifestou tal como Freud tinha visto e previsto, é de que ela não pôde escapar do seu destino. Contudo, essa afirmação exige um esclarecimento. O próprio Freud (1905[1901]/2016, p. 311) afirma muito claramente que não publicou o caso para "realçar o valor da terapia psicanalítica" e que a brevidade do tratamento (que mal durou três meses) foi apenas uma das razões que preveniu uma melhora mais duradoura da condição de Dora. Apesar de naquele momento Freud já ter feito suas descobertas a respeito da neurose de transferência e a perlaboração [working through], Dora não podia ter se beneficiado delas porque rompeu o tratamento de maneira inesperada como "um inconfundível ato de vingança ... Também sua tendência a prejudicar a si mesma lucrou com esse ato" (Freud, 1905[1901]/2016, p. 304).

Mais de trinta anos se passaram desde que eu visitei Dora no seu leito. Eu não teria sabido de mais nada se não fosse pela nota do Dr. Jones sobre a sua morte em Nova York, que me ajudou a obter mais informações com relação à sua vida ulterior. Do meu informante soube dos fatos adicionais pertinentes sobre o destino de Dora e da sua família que registrei aqui.

Seu filho a trouxe da França para os Estados Unidos. Ao contrário das suas expectativas, ele sucedeu na vida como um renomado músico. Ela se apegou a ele com as mesmas demandas repreensivas que ela fazia ao marido, que morreu de doença coronária - desprezado e torturado pelo seu comportamento quase paranoide. Por mais estranho que pareça, segundo meu informante ele preferiu morrer a se divorciar dela. Sem dúvida, somente um homem desse tipo poderia ter sido escolhido por Dora como marido. No momento do tratamento analítico, ela afirmou convicta: "Os homens são todos tão detestáveis que eu preferia não me casar. Essa é a minha vingança". Logo, seu casamento só tinha servido para encobrir seu desgosto pelos homens.

Tanto ela como o marido foram forçados a sair de Viena durante a segunda guerra mundial e inicialmente emigraram para a França. Antes disso ela tinha sido repetidamente tratada pelos seus conhecidos ataques de enxaqueca hemicraniana, ataques de tosse e rouquidão, que Freud tinha interpretado analiticamente quando ela tinha 18 anos de idade.

No começo dos anos 1930, depois do falecimento do pai dela, ela começou a sofrer de palpitações no coração, que se pensou que eram provocadas pelo excesso de fumo. Ela reagia a essas sensações com ataques de ansiedade e medo da morte. Essa enfermidade deixava todos no ambiente continuamente alarmados, e ela usava isso para jogar os amigos e parentes uns contra os outros. Seu irmão, outra chaminé [chain smoker], morreu muito mais tarde de doença coronária em Paris, onde ele tinha escapado sob as circunstâncias mais aventurosas. Ele foi enterrado lá, com as maiores honrarias.

A mãe de Dora morreu de tuberculose num sanatório. Eu soube pelo meu informante que ela tinha a doença desde jovem. Ela morreu de excesso de trabalho [worked herself to death] com sua interminável compulsão diária de limpeza - uma tarefa que ninguém mais conseguia cumprir para sua satisfação.8 Dora seguiu os seus passos, mas direcionou a compulsão principalmente para o próprio corpo. Como suas descargas vaginais persistiram, ela teve algumas pequenas operações ginecológicas. A inabilidade de "limpar os intestinos" - sua constipação - continuou um problema até o fim da sua vida. Acostumada com o problema no intestino, ela aparentemente o tratava como um sintoma familiar, até que se tornou mais que um sintoma conversivo. Sua morte de câncer no colo, que foi diagnosticado muito tardiamente para uma operação bem-sucedida, pareceu uma bênção para aqueles próximos dela. Ela tinha sido, nas palavras do meu informante, "uma das histéricas mais repulsivas" que ele já tinha conhecido.

Os fatos adicionais sobre Dora apresentados aqui não são mais que uma nota de rodapé para o pós-escrito de Freud. Eu espero que apresentá-los agora possa estimular a reavaliação e a discussão sobre até que ponto o conceito do processo de conversão, no sentido que Freud o empregava, é ainda válido, ou em quais sentidos divergiria da compreensão que temos dele hoje.9

 

Referências

Freud, S. (1893). [Vortrag:] Über den psychischen Mechanismus hysterischer Phänomene. Gesammelte Werke: Texte aus den Jahren 1885 bis 1938, 181-195.         [ Links ]

Freud, S. (1894). Die Abwehr-Neuropsychosen. Gesammelte Werke i, 59-74.         [ Links ]

Freud, S. (2003). Projeto de uma psicologia. In O. F. Gabbi Jr. (Trad.), Notas a projeto de uma psicologia: as origens utilitaristas da psicanálise. Imago. (Trabalho original publicado em 1950[1895]         [ Links ])

Freud, S. (2012). Contribuição à história do movimento psicanalítico. In S. Freud, Obras completas (P. C. Souza, Trad., Vol. 11, pp. 245-327). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1914)        [ Links ]

Freud, S. (2013). Observações sobre um caso de neurose obsessiva. In S. Freud, Obras completas (P. C. Souza, Trad., Vol. 9, pp. 13-112). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1909)        [ Links ]

Freud, S. (2016). Análise fragmentária de uma histeria. In S. Freud, Obras completas (P. C. Souza, Trad., Vol. 6, pp. 173-320). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1905[1901]         [ Links ])

Jones, E. (1953). The life and work of Sigmund Freud (Vol. 1). Basic Books.         [ Links ]

Jones, E. (1955). The life and work of Sigmund Freud (Vol. 2). The Hogarth Press.         [ Links ]

Masson, J. (Ed.) (1985). The complete letters of Sigmund Freud to Wilhelm Fliess (1887-1904) (J. Masson, Trad.). Harvard University Press.         [ Links ]

 

 

Tradução de Eduardo Zaidan e Luiz Moreno Guimarães Reino
1Trabalho original publicado em 1957: Psychoanalytic Quarterly, 26, 159-167. Cedido por Taylor & Francis Group para publicação no Jornal de Psicanálise.
2 Utilizaremos a tradução da Companhia das Letras para as passagens citadas de Freud. No caso das edições que ainda não foram lançadas, traduziremos as passagens direto do alemão. Agradecemos a Lucas Hangai Signorini pelas sugestões em relação à tradução do alemão (n.t.).
3 Sabe-se que a análise de Dora ocorreu entre 14 de outubro e 31 de dezembro de 1900. Nessa nota de rodapé, duas vezes Freud comete o lapso de recuar a análise de Dora para 1899. Ele também comete esse lapso em Contribuição à história do movimento psicanalítico (Freud, 1914/2012, p. 250). Sabe-se pela carta de 25 de janeiro de 1901 para Fliess que Freud considerava Sonhos e histeria (o nome que pretendia inicialmente dar para o caso Dora) uma continuação do "livro do sonho" (Masson, 1985, p. 433). Apesar de A interpretação dos sonhos ter sido publicada em 04 de novembro de 1899, o editor escolheu imprimir na primeira página a data "1900" (Jones, 1953, pp. 350-364). Ou seja, tal como a análise de Dora foi recuada em um ano, A interpretação dos sonhos foi adiantada em um ano (n.t.).
4 Preferimos, no lugar de "representam", "figuram" para traduzir darstellen (n.t.).
5 Freud diz que ela deu um "mau passo" [Fehltritt] (Freud, 1905[1901]/2016, p. 296) (n.t.).
6 Provavelmente uma referência ao Projeto (Freud, 1950[1895]/2003, pp. 244-255), que foi publicado pela primeira vez pouco antes desse artigo, em 1950, em Aus den Anfängen der Psychoanalyse (n.t.).
7 Não conseguimos localizar essa citação em Freud. Acreditamos que pode ser uma citação do próprio Felix Deutsch (n.t.).
8 O original tem uma ambiguidade que mantivemos em português: "a task which nobody else could fulfil to her satisfaction" (n.t.).
9 Um estudo compreensivo do processo conversivo por membros da Sociedade e do Instituto Psicanalítico de Boston, em um Workshop sobre Problemas Psicossomáticos na Análise, está em preparação para publicação.

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