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Jornal de Psicanálise

versión impresa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.55 no.102 São Paulo ene./jun. 2022

 

RESENHA

 

Análise, teimosia do sintoma e migração

 

 

Magda Guimarães Khouri

Psicanalista, membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. São Paulo / magdakhouri@uol.com.br

 

 

 

Autor: Daniel Delouya
Editora: Blucher, São Paulo, 2021, 344 p.
Resenhado por: Magda Guimarães Khouri, São Paulo

Sofro da palavra
e isso me leva a escrever

(Daniel Delouya, 2021)

A série Escrita Psicanalítica tem como proposta contar a história da SBPSP por meio da produção dos pioneiros e das gerações posteriores. Idealizado por Marina Massi, o projeto tem promovido a circulação de ideias e teorias psicanalíticas, cumprindo uma dupla função: o registro da memória e, ao mesmo tempo, uma valiosa fonte de estudo e pesquisa dos pensamentos de diversos membros da SBPSP, desde a sua fundação.

Daniel Delouya é um dos autores escolhidos para compor essa coletânea, com seu pensamento consistente e encarnado. Selecionou para o livro textos que desenham sua trajetória, marcada por um intenso mergulho no trabalho clínico que se enreda nas transferências próprias do analista durante a sua escuta.

Os dezesseis trabalhos e a introdução, escritos ao longo dos anos, têm vida própria e podem ser explorados separadamente. No entanto, se o leitor se aventurar a seguir, de ponta a ponta, a sequência de textos apresentados nesta edição, terá a chance de testemunhar a fina curadoria realizada e a movimentação de um pensamento que não perde de vista as metas e os alcances da psicanálise na clínica e na cultura.

"Cair-se para dentro da cena da lembrança". Cair dentro do vivido e se abrir para ele, que se engendra a partir da associação livre e da atenção flutuante do analista, é o processo que permeia tanto os relatos clínicos quanto as apreensões teóricas desenvolvidas pelo autor.

Com maior ênfase no primeiro e último capítulo, se evidencia como o analista, a partir das cenas que atravessa, cai para dentro das próprias lembranças. Em "O menino, meu amor", entrelaçam-se as dificuldades de escuta de uma paciente e a elaboração do luto do autor pelo seu pai. Sobre a sua vida de imigrante, retoma as complexas dores do luto nesse fluxo geográfico e cultural. E o leitor, ao se ver diante da forma implicada e poética que Delouya apresenta as situações analíticas, é bem provável que sofra uma queda nas suas próprias cenas!

Nessa perspectiva, o autor considera o trabalho de luto como eixo central da prática psicanalítica, que visa a uma recuperação da libido, do corpo, do amor, e, sob o regime da falta, o nascimento da palavra e, por sua vez, a aquisição da linguagem.

Assim, ao centrar sua reflexão nas várias dimensões do luto, em "A Palavra e seus poderes", retoma a ideia de Freud sobre devolver às palavras o seu poder originário de feitiço e magia. Refere-se a André Green, que 100 anos depois, propõe trazer de volta o aspecto libidinal do sentido que a palavra tem, ou seja: desenlutá-la.

O desenlutar das palavras se dá na experiência corpo a corpo e do dia a dia da análise. Sabemos que na escuta o silêncio representa "um tesouro inesgotável da linguagem" (p. 82). Nesse exercício de desenlutar as palavras, com muita sensibilidade Delouya escreve, em seu artigo "Entre obediência e orgulho": "O acervo do silêncio abriga talvez todos os sons e melodias possíveis do mundo, maiores em número que todas as espécies e formas biológicas que a biosfera criou ou que ainda criará." (p. 82).

Qual seria o substrato das palavras, coisas e imagens de movimento? Pergunta reeditada nos diferentes artigos, ampliando e revendo, a cada vez, a complexa trajetória da constituição das representações. Partindo de Freud, em "Projeto de uma psicologia", o autor acentua que a matéria prima das palavras "são as urgências vitais e a sua pulsação, gerando dor pela ligação que têm com o corpo." (p. 144).

É no lugar que o adulto oferece ao bebê, o acolhe, na sua função especular e reflexiva, que os movimentos se imprimem na psique como "imagens de movimento" para que as alcance como "notícias de si". Desse momento de fusão narcísica, entre a criança e o adulto, é preciso se separar, para que se possa investir em outros objetos externos, preparando terreno para no futuro criar os seus próprios modos de viver. Caminhos que se configuram como um convite do adulto ao bebê para adentrar na cultura.

Durante as nossas vidas, a luta para os movimentos se tornarem "notícias de si" são recriados diariamente com os outros e na relação com o mundo. Na análise pode ser examinado na singularidade de cada trajetória.

Delouya descreve tais efeitos de contágio da palavra no encontro com o corpo e com o outro, por meio de um conhecido fragmento clínico. O paciente entra na sala e alguns sinais, como sua respiração e expressão facial, nos fazem suspeitar de uma angústia.

Ao deitar, perguntamos: "Angustiado?". Uma só palavra, que traz alívio e desperta a fala. A angústia, bem como a fonte de dor, é desprovida de tempo, ou este é parado ou infinito. Ao fornecermos uma imagem, um sentido, o tempo volta a escoar, ligando a palavra às coisas...Um sentido na imagem que traz à tona o tempo, as "notícias de si" (Freud, 1895/1995). (p. 146)

É via o sintoma que o autor navega por temas, tais como, liberdade e cura psicanalítica. No título do livro anuncia a teimosia do sintoma. Uma maneira original de traduzir essa indomável e insubordinada manifestação inconsciente, que teima em permanecer. Com a introdução da pulsão de morte, na segunda tópica freudiana, a partir de seus achados técnicos, o sintoma deixa de ser considerado como algo de que se livrar. Nesse sentido, Delouya insiste que o sintoma não é para dissolver; é sim para reconhecer-se nele: "A cura no processo de análise visa assumi-lo dentro do eu, publicamente, para o próprio uso e cuidado de si" (p. 253).

Essa é a guinada de Freud ao nos advertir sobre os limites de nossa ação. Chegamos em um dos pontos centrais da ética desse ofício, formulada da seguinte maneira em "O caos, arte e o mundo": "Melhor permitir as reações patológicas do que comprometer a liberdade do sujeito, pela qual a psicanálise se caracteriza e deve velar" (p. 290).

O denso artigo "Metapsicologia" exigiria uma outra resenha. À construção incessante da metapsicologia, me remeto à uma epígrafe do antropólogo americano Franz Boas: "Diz-se-ia que os universos mitológicos são destinados a ser pulverizados mal acabam de se formar, para que novos universos nasçam de seus fragmentos" (Laraia, 2006, p. 167). Então, se por um lado a metapsicologia se funda a serviço da clínica, dos seus fragmentos e está sempre em vias de transformação, por outro, como uma espiral, a experiência se banha da teoria que a permeia. A partir desse eixo da espiral, o autor insiste no trabalho psíquico après-coup, já que a metapsicologia requer tempo, o depois como condição de percepção da cena psíquica traumática.

São apenas algumas pitadas de um trabalho arduamente realizado por Daniel Delouya, pois, como escreve Mara Selaibe na orelha do livro, a escuta psicanalítica está longe de ser ingênua, trata-se de um saber rigoroso, com toda a exigência metapsicológica construída ao longo de tantos anos pelo autor.

Todo esse percurso desemboca nas suas experiências de migração, em que mais explicitamente desenvolve os entrelaçamentos da psicanálise com a cultura. Tais experiências de deslocamento foram capturadas no prefácio literário de Rodrigo Lage. O comentário consegue traduzir a alma do pensamento do autor:

Há algo ao mesmo tempo vívido e sutil na viagem a que somos conduzidos por Daniel, enquanto retoma seus caminhos de Marrakesh à Marseille, da França a Israel, e finalmente de lá a esta "Terra Brasilis". É neste trânsito, que se dá em uma espécie de ponte móvel de referências, anseios e frustrações, que a originalidade de seu pensamento se constrói. (p. 16)

O livro faz o leitor trabalhar, convoca ao estudo e, por meio de sua singularidade estética, Delouya nos desloca a um certo lugar de estrangeiro, mais próximo às vicissitudes da errância e do nomadismo do desejo.

 

Referências

Delouya, D. (2021). Comunicação verbal. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ja2AfI-y-A8. Acesso em 17/6/2021.         [ Links ]

Laraia, R. B. (2006). Claude Lévi-Strauss, quatro décadas depois: As mitológicas. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 21(60),167-169. Disponível em: http://www.scielo.br. Acesso em 29/1/2022.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 15/3/2022
Aceito em: 15/3/2022

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