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Revista Psicopedagogia

Print version ISSN 0103-8486

Rev. psicopedag. vol.23 no.70 São Paulo  2006

 

ARTIGO ESPECIAL

 

Trauma e filiação em Ferenczi: efeitos na relação professor-aluno*

 

Trauma and filiation in Ferenczi: effects in the teacher/student relationship

 

 

Leda Maria Codeço Barone

Doutora em Psicologia (USP); Psicanalista; membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e do Instituto de Psicanálise de SBP-SP; Conselheira Vitalícia da ABPp e Professora do Centro Universitário Fieo - Osasco, SP

Correspondência

 

 


RESUMO

Ferenczi fornece elementos para tecer uma teoria de filiação, apontando uma equação entre os pares: professor-aluno, adulto-criança e psicanalista-paciente. Uma equação desses pares é possível porque neles há assimetria entre seus membros em relação à quantidade de experiência; ao grau de integração do ego e ao tipo de linguagem. Uma vez que não são claros os limites entre estes membros, os efeitos, de um sobre o outro, tornam-se desconhecidos e complexos, abrindo espaço à dimensão de trauma. Neste trabalho, proponho analogia entre a teoria da filiação psicanalítica sugerida por Ferenczi - compreendida como fenômeno traumático - e a relação professor-aluno em situação de aprendizagem formal. Comparando os pares: adulto-criança, professor-aluno e psicanalista-paciente, destaco duas possibilidades: uma relação baseada na passividade, num tipo de identificação submissa com o pai, professor, analista, e outra baseada na atividade, quando a criança, o aluno ou o paciente supera os eventos traumáticos envolvidos na relação, conseguindo autonomia.

Unitermos: Trauma emocional. Relação professor-aluno. Autonomia (personalidade).


SUMMARY

Ferenczi gives some elements to build a filiation theory pointing at an equivalence between pair such as teacher/student, adult/child and psychoanalyst/patient. It is possible to formulate such equivalence because there is asymmetry between its members regarding the amount of experience, the degree of ego integration and the sort of language. Since the limits between these members are not clear, effects of one upon the other become both unknown and complex and end up by leading to trauma. In the present paper, I propose that there is analogy between Ferenczi's psychoanalytic filiation theory - understood as a traumatic phenomenon - and the teacher/student relationship in a formal learning situation. Comparing the pairs adult/child, teacher/student and psychoanalyst/patient, I will point at two possibilities: a relationship based on passivity, on a sort of compliant identification with the father, teacher, analyst and another one based on the activity when the child, the student or the patient surmounts the traumatic events involved in this relationship and acquires autonomy.

Key Words: Emotional trauma. Teacher student relation. Autonomy (personality).


 

 

Ferenczi foi um dos mais importantes discípulos e colaboradores de Freud, embora tenha permanecido muito tempo esquecido. Não sendo meu objetivo aqui analisar os motivos que o levaram ao ostracismo, não posso deixar de regozijar-me pela iniciativa do grupo de tradutores do Coq-Héron em organizar a tradução de sua obra para o francês, dando início à recuperação deste autor tão importante para a psicanálise e à reparação de um grave mal-entendido. Sabourin2 cita trabalho realizado por Johannes Cremerius, em que ele relaciona uma série de autores cujos escritos devem muito a Ferenczi. Entre eles destaca: Winnicott, Mahler, Little, Masud Khan, Spitz, Natch, Kohut, Searles, Sullivan, Fromm, Reichmann, Rosen, Moreno, Fairbairn e Gunthrip. Segundo Cremerius, "Ferenczi tornou-se para muitos a pedreira donde eles extraem o material para seus 'novos' edifícios, muitas vezes sem indicar onde fizeram suas descobertas" (Cremerius, citado por Sabourin2).

De fato, Ferenczi desenvolveu um pensamento eminentemente vigoroso, cheio de questionamentos e de impasses e, por isso,de difícil assimilação à sua época pelo caráter de ruptura e de incômodo que trazia à ordem estabelecida. Porém, não foi assim desde o início, quando o trabalho de Freud lhe servia de base, para o desenvolvimento tanto de seu pensamento quanto de sua prática, os quais, de certa maneira, corroboravam, esclareciam ou, no máximo, desenvolviam o que já existia na obra do mestre. Dessa forma, esclarece Schneider3, Ferenczi respondia a um dos apelos de Freud, a saber: "... o fantasma do Autor único que se perpetua, imutável, nos descendentes que exploram a herança".

Porém, aos poucos, os impasses da clínica (sua e de Freud, naturalmente, pois Ferenczi sofreu na pele a clínica do mestre) o levaram a caminhos diferentes, elaborando teoria e prática que em muito divergiram da obra manifesta de Freud.

Schneider3 reconhece uma "filiação paradoxal" de Ferenczi a Freud, quando aquele reivindica, ao mesmo tempo, o lugar de discípulo fiel e a liberdade para apropriação do texto do mestre. A autora propõe ainda que a "alteração surge a partir do momento em que se perfilar junto aos temas freudianos se dá não no espírito de uma obediência, mas num impulso de apropriação jubilatória".

Examinando os textos de Ferenczi, ao longo dos quais ele fornece elementos para se tecer uma teoria de filiação, percebemos que o autor - além de fazer uma equação entre os pares professor-aluno, adulto-criança e psicanalista-paciente - procura compreender a dinâmica intersubjetiva entre os elementos envolvidos, e ressalta o caráter traumático do encontro da criança com o adulto.

Vejamos alguns exemplos onde esta equação aparece. Em seu artigo de 19314, "Análise de crianças com adultos", Ferenczi nos diz: "Se consegui comunicar-lhes o meu sentimento de que temos, de fato, muito a aprender com os nossos doentes, os nossos alunos e, também, evidentemente, com as crianças, dar-me-ei por satisfeito". Ou, então, ainda no mesmo texto: "No momento, sentia-me ferido pela pretensão do paciente, ou do aluno, de saber as coisas melhor do que eu próprio; mas, felizmente, logo me acudiu o pensamento de que, afinal de contas, ele devia efetivamente saber mais sobre si mesmo do que eu poderia adivinhar"4. Ou ainda, no texto de 19335, "Confusão de línguas entre os adultos e a criança", podemos encontrar estas três citações: 1-"Se ajudarmos a criança, o paciente ou o aluno a abandonar essa identificação e a defender-se dessa transferência tirânica, pode-se dizer que fomos bem sucedidos em promover o acesso da personalidade a um nível mais elevado"; 2-"Os pais e os adultos deveriam aprender a reconhecer, como nós, analistas, por trás do amor de transferência, submissão, ou adoração de nossos filhos, pacientes e alunos, o desejo nostálgico de libertação desse amor opressivo"; e 3- "Ficaria feliz se pudessem dar-se ao trabalho de verificar tudo isso no plano de sua prática e da sua reflexão; e se pudessem seguir o meu conselho de atribuir, doravante, mais importância à maneira de pensar e de falar de seus filhos, pacientes e alunos, por trás da qual escondem-se críticas, e dessa forma soltar-lhes a língua e ter a ocasião de aprender uma porção de coisas"5.

Parece-me que uma equação desses pares, nos textos ferenczianos, é possível porque todos se referem a uma relação entre duas pessoas, entre as quais existem diferenças fundamentais na quantidade de experiência, no grau de integração egóica e no tipo de linguagem, implicando, portanto, uma assimetria entre os membros do par. Uma vez que não são claros nem fixos os limites entre esses mesmos membros, parece que os efeitos - positivos ou negativos - de um sobre o outro se tornam, em grande parte, desconhecidos e tremendamente complexos, abrindo espaço ao trauma.

Isso porque o foco sob o qual, na obra de Ferenczi, se pode apreender uma teoria da filiação é o do encontro da criança com o adulto, e este encontro assume em seus textos a dimensão de trauma. Ferenczi reconhece o poder que o adulto tem sobre a criança, tão facilmente influenciável e propensa a apoiar-se nele em momentos de aflição. Ele chega a conceber um "elemento de hipnose" na relação da criança com o adulto e sugerir que, muitas vezes, este poder é usado para impingir regras rígidas e desmedidas à criança.

Schneider3, a respeito do encontro da criança com o adulto na obra de Ferenczi, assim se pronuncia: "... é muito mais próximo do choque do que da passagem ritualizada de um bem ou de um objeto: a cena é de um impacto violento entre o adulto e a criança, não a de uma entrega tranqüila em que o primeiro oferece à segunda uma terceira coisa, justamente a herança". E, continuando, destaca ainda não ser casual a relação entre filiação e trauma na obra ferencziana, mas, ao contrário, ser próprio ao encontro de uma geração à outra o caráter traumático. Assim, "as metáforas correspondentes não podem ser, portanto, as do sepultamento que preserva a relíquia. A criança traumatizada não guarda dentro de si, imutável, a recordação das experiências traumáticas, como se fosse o pivô em torno do qual organizaria seu sistema de lembranças e de defesas. Não há aqui 'corpo estranho' no centro do novelo subjetivo, porque a violência é de outra ordem. Não apenas a 'coisa' transmitida se vê destruída, mas ainda a destruição alcança a própria psique infantil: a criança não conserva tanto dentro de si algo destrutivo e persecutório, mas o próprio esconderijo no qual este algo poderia ser conservado é descrito como tendo sido destroçado"3.

É a partir da clínica que Ferenczi vai esclarecer melhor o caráter traumático da relação da criança com o adulto, o que expõe nos seus textos "Confusão de línguas entre os adultos e a criança" e "Análise de crianças com adultos", principalmente. Ele nos diz que muitas vezes, em análise, o paciente revive a raiva impotente e a paralisia próprias à situação de frustração e se o analista for capaz de agir com tato e compreensão poderá saber que a criança se sente abandonada e que perdeu todo o interesse e prazer em viver, voltando sua agressão para si mesma. Porém, "As falas apaziguadoras e cheias de tato, eventualmente reforçadas por uma pressão encorajadora da mão e, quando isso se mostra insuficiente, uma carícia amistosa na cabeça, reduzem a reação a um nível em que o paciente volta a ser acessível"4. Daí em diante, o paciente relata o tratamento inadequado recebido de adultos em sua infância, diante de suas reações a choques e traumatismos sofridos. O adulto, muitas vezes diante do relato da criança do trauma sofrido, nega o ocorrido, afirmando que "não houve nada" ou ainda castigando ou espancando a criança. Ferenczi afirma que é sobretudo a negação do trauma por parte do adulto que torna o traumatismo patogênico, pois "o comportamento do adulto em relação à criança que sofreu traumatismo faz parte do modo de ação psíquica do trauma"6. Ele nos diz: "Tem-se mesmo a impressão de que esses choques graves são superados, sem amnésia nem seqüelas neuróticas, se a mãe estiver presente, com toda a sua compreensão, sua ternura e, o que é mais raro, uma total sinceridade"6. Assim, para que um acontecimento tenha valor de trauma, é necessário primeiro que a criança tenha estabelecido uma relação de confiança - o que já está na disposição dela frente ao adulto, segundo a concepção do autor - com o adulto que lhe infringe o dano. E esse dano - normalmente relacionado ao amor forçado, aos maus-tratos ou ao terrorismo do sofrimento - vai se tornar patogênico pelo desmentido e pela frieza do adulto, figura da confiança e do amor da criança.

Diante do trauma, a criança reage pela paralisia de sua espontaneidade e do pensamento. Ferenczi observa que "a personalidade ainda fracamente desenvolvida reage ao brusco desprazer, não pela defesa, mas pela identificação ansiosa e a introjeção daquele que a ameaça ou a agride"5. Porém, a mudança mais significativa vai se dar pela identificação com o sentimento de culpa inconsciente do adulto agressor, fazendo com que ela fique dividida, "ao mesmo tempo culpada e inocente", enquanto perde a confiança no testemunho de seus próprios sentidos.

Schneider3 vai chamar a atenção para o uso de metáforas que aludem à amputação e à mutilação, utilizadas por Ferenczi para falar das reações da criança diante do trauma. Por exemplo, Ferenczi propõe processos como a autoclivagem narcísica, que consiste numa "clivagem da pessoa numa parte sensível, brutalmente destruída, e uma outra que, de certo modo, sabe tudo, mas não sente nada" 3. Ele nos relata que este processo pode ser inferido a partir dos sonhos e fantasias "em que a cabeça, ou seja, o órgão do pensamento, separada do resto do corpo, caminha com seus próprios pés, ou só está ligada ao resto do corpo por um fio"... Fala, ainda, da autotomia, termo retirado da zoologia, significando a amputação que certos animais fazem a si próprios, para evitar o sofrimento, e que acredita presente em todo ser vivo, servindo de "modelo biológico do recalcamento" e expresso na fuga psíquica diante do sofrimento7. E ainda da fragmentação, que é um processo mais contundente e dilacerador, e é o efeito "imediato do traumatismo que não pode ser superado de imediato"8.

Ferenczi pergunta-se se a fragmentação é apenas a conseqüência mecânica do trauma ou se pode ser também considerada como uma forma de adaptação. Levanta algumas vantagens da fragmentação frente ao trauma como, por exemplo: a) o estabelecimento de área maior de contato com o mundo externo, o que propiciará maiores condições de descarga afetiva; b) a possibilidade do abandono da percepção unificada, o que irá permitir a cada fragmento sofrer por si mesmo, eliminando a somatória insuportável das qualidades e quantidades de sofrimento; e c) a ausência de integração, que levará cada fragmento a uma adaptabilidade maior. Ele ressalta ainda que, pelo choque, energias que até então se encontravam em repouso ou investidas em objetos serão mobilizadas agora para toda sorte de cuidados e preocupações narcísicas.

É a partir disso - dos mecanismos de defesa autodilaceradores e das tentativas de adaptação - que Schneider3 vai dizer que há, em Ferenczi, duas versões diferentes como reação ao trauma. Uma representada pela passividade da criança, pela anestesia emocional, e a outra relativa ao aspecto ativo da criança. Explica, então, a autora: a criança "...não é apenas alguém que se identifica ao modelo, recebendo passivamente o que ele lhe oferece: impõe-se a noção de uma criança que decifra, que quer adivinhar os sentidos dos menores desejos do adulto, que interpreta e busca exercer o papel de receptora diante dos enigmas que o adulto propõe. Sabemos que Ferenczi chamou a atenção para a capacidade dos pacientes de perceberem os desejos e aflições de seus terapeutas, e isto pode ser colocado em paralelo com a função que atribui à criança diante do adulto. A criança se transforma em pai dos pais, em analista do analista"3.

A clínica psicopedagógica está repleta de crianças que não conseguem aprender, apesar de submetidas ao processo formal de educação. Também é alarmante o número, nas escolas, de multirrepetentes, assim como a evasão escolar ainda nas primeiras séries do primeiro grau. E, mesmo entre aqueles que permanecem na escola, constatamos que muitos chegam à faculdade apenas semi-alfabetizados, como se pode verificar pelos relatos de professores de graduação e também através de depoimentos divulgados pela mídia a respeito das redações de vestibulandos, candidatos à universidade.

É claro que só numa visão simplista se poderia atribuir este caos a um único fator. Na verdade, eles são múltiplos e complexos e merecem uma atenção maior (o que não é o objetivo deste pequeno trabalho), para esclarecimento dos mecanismos seletivos da própria escola enquanto representante do saber instituído. No entanto, isso não impede que pensemos aqui na relação professor-aluno como um dos elos desta complicada rede, propondo questões como: o que realmente o professor transmite enquanto se relaciona com seus alunos? Que impacto tem sua personalidade, seus desejos inconscientes, suas defesas, suas insatisfações, sobre sua ação de ensinar? O professor se identifica com seu saber? Como? Percebendo-se como mediador entre o aluno e as produções culturais ou como possuidor de um "bem" (como um fetiche) a ser transmitido, imposto, barganhado, negado? E como se relaciona com a instituição que representa? E como percebe seu aluno? O que, de suas vivências anteriores, transfere para sua relação com o aluno? Mesmo sem poder responder a todas estas questões, creio que vale a pena a reflexão que farei a seguir.

Voltemos a uma das citações de Ferenczi apontadas há pouco neste texto e à teoria de filiação sugerida em sua obra como nota Schneider3, fazendo os desdobramentos necessários, as combinações possíveis e uma análise de seus diferentes elementos para pensar questões da relação professor-aluno.

"Os pais e os adultos deveriam aprender a reconhecer, como nós, analistas, por trás do amor de transferência, submissão, ou adoração de nossos filhos, pacientes e alunos, o desejo nostálgico de libertação desse amor opressivo".

Na citação acima, está implícita uma relação de desigualdade: de um lado os pais, os adultos e os analistas, e do outro os alunos, os pacientes e as crianças. Lembremos, ainda, que a relação da criança com o adulto, na concepção de Ferenczi, assume freqüentemente a dimensão de trauma, e isto, podemos inferir, é resultado da incompreensão ou da impossibilidade de compreensão da desigualdade.

A relação professor-aluno demarca, portanto, uma diferença de experiência nos elementos do par e, por isso, pode ser da ordem do trauma ou da revivência de relações anteriores traumáticas, na medida em que serve de disparador - como os restos diurnos servem ao desejo inconsciente na elaboração onírica - para a transferência, quase sempre atuada, de antigos traumas.

Assim, é necessário ao professor um mínimo de conhecimento de seus desejos e um mínimo de integração egóica, capazes de levá-lo a agir com tato e empatia com a criança, facilitando a compreensão de sua linguagem. Também este conhecimento pessoal é importante ao professor para que, ao perceber-se, possa se posicionar como mediador entre a criança e as produções culturais. Caso contrário, ele vai confundir-se com o saber que porta e tornar-se autoritário e dogmático, não aceitando a forma de ver de seus alunos quando diferente da sua.

Outras vezes, o professor forja uma igualdade mentirosa, negando a diferença - atitude tão perniciosa quanto a substantivação da diferença - porque incentiva o uso disfarçado da autoridade. Esta atitude é freqüentemente encontrada em relações caracterizadas pelo laissez-faire, nas quais o professor se coloca como um igual. A nocividade desta situação, pensamos, se aproxima da "hipocrisia profissional" (o que veio mais tarde a se denominar "mensagem de duplo vínculo"), concepção elaborada por Ferenczi para referir-se à atitude do adulto diante da criança favorecendo atitude perversa. A criança percebe a diferença, mas o adulto, o professor, tenta negá-la, desmentindo a própria percepção da criança. Estas atitudes colaboram para traumatizar ou retraumatizar a criança.

Acreditamos ser possível reconhecer, ainda na mesma citação, duas versões da filiação encontradas na obra de Ferenczi: uma da ordem da identificação passiva, e a outra de um desejo (atividade) da criança no sentido de autonomia.

Penso que a aprendizagem passa por uma fase de identificação, mas deve ir além. Negar o primeiro modo é quase tão nocivo quanto não permitir o segundo. Observamos que, no discurso escolar, o professor tende a só suportar o primeiro modo, o da identificação, rejeitando o modo seguinte, que remeteria à autonomia. Pois, o aluno, ao tomar o professor como modelo, gratifica-lhe os desejos narcísicos, ao passo que o movimento de autonomia pode ser percebido pelo professor como um ataque ou desautorização de seu papel ou de sua auto-imagem.

Outras vezes, o professor, sadicamente, aproveita do poder que seu lugar lhe confere para submeter o aluno a mais indigna situação de mediocridade intelectual, dificultando ou não permitindo a autonomia de seu pensamento. E isso é possível, a partir dos ensinamentos de Ferenczi, porque uma forma da criança lidar com o agressor é identificar-se com ele, mas identificar-se de forma melancólica, não permitindo que faça o luto necessário para atingir a autonomia. O desejo, então, é nostálgico.

É possível depreender um outro aspecto importante da mesma citação. Ela aponta para a uma relação de desigualdade - existente entre os pares professor-aluno, adulto-criança e psicanalista-paciente - em que os limites entre os elementos dos pares não são rígidos. Ao mesmo tempo em que ela alude à atividade do adulto que deve reconhecer algo nas atitudes da criança, ela alude também a sinais que a criança deve emitir para se comunicar. Creio poder pensar aqui no valor do tato e da empatia do adulto, no sentido de facilitar "algo" que a criança quer expressar. Dito de outra forma, trata-se da importância de ouvir a criança, "soltar-lhe a língua" e poder aprender com ela. Tomando estas colocações como paradigma, podemos pensar na valorização da experiência versus o discurso do professor.

A mesma citação abre espaço para pensar sobre a formação do professor, e sobre as contribuições que a psicanálise pode oferecer para esta tarefa. Consideramos relevante levar em conta a transferência na relação de aprendizagem. Em outro trabalho9, defendi a importância de pensar a transferência na relação de aprendizagem, sugerindo que o professor pudesse reconhecer como ela se manifesta na relação com ele e que procurasse estabelecer quais as possibilidades e limites de seu manejo. Se o professor puder lidar com a transferência do aluno, sem perder de vista a especificidade de seu papel de professor, facilitará o processo de autonomia do aluno, desistindo de mantê-lo atado ao modelo do mestre.

 

REFERÊNCIAS

1. Barone LMC. Da transmissão do saber: uma inspiração ferencziana. IDE 1995;25:56-64.         [ Links ]

2. Sabourin P. Perdão mútuo. Sucesso final - Posfácio. In: Ferenczi S. Diário clínico. São Paulo:Martins Fontes;1990. p.265-73.         [ Links ]

3. Schneider M. Trauma e filiação em Freud e em Ferenczi. Percurso - Rev Psicanálise 1993;10:31-9.         [ Links ]

4. Ferenczi S. Análise de crianças com adultos. In: Ferenczi S. Obras completas. Psicanálise IV. São Paulo:Martins Fontes;1992. p.69-83. (Texto original publicado em 1931).         [ Links ]

5. Ferenczi S. Confusão de línguas entre os adultos e a criança. In: Ferenczi S. Obras completas. Psicanálise IV. São Paulo: Martins Fontes;1992. p.97-106. (Texto original publicado em 1933).         [ Links ]

6. Ferenczi S. Reflexões sobre o trauma. In: Ferenczi S. Obras completas. Psicanálise IV. São Paulo: Martins Fontes;1992. p.109-17. (Texto original publicado em 1932).         [ Links ]

7. Ferenczi S. Thalassa, ensaio sobre a teoria da genitalidade. In: Ferenczi S. Obras completas. Psicanálise III. São Paulo:Martins Fontes; 1993. p.255-325. (Texto original publicado em 1924).         [ Links ]

8. Ferenczi S. Princípio de relaxamento e neocatarse. In: Ferenczi S. Obras completas. Psicanálise IV. São Paulo:Martins Fontes; 1992. p.53-68. (Texto original publicado em 1930).         [ Links ]

9. Barone LMC. Desejo e aprendizagem: a transferência na relação psicopedagógica. In: Sargo C, org. A práxis psicopedagógica brasileira. São Paulo:Editora ABPp;1992. p.183-92.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Leda Maria Codeço Barone
Rua Atlântica, 776 - Jardim América
São Paulo - SP - Brasil - 01440-000
Tel: (11) 3082-4986
E-mail: ledabarone@uol.com.br

Artigo recebido: 20/01/2006
Aprovado: 15/03/2006

 

 

* Este trabalho é uma versão modificada do trabalho "Da transmissão do saber: uma inspiração ferencziana" publicado na revista IDE. (Barone, L.M.C., IDE, São Paulo, (25): 56-64, 1995.1)
Trabalho realizado no Instituto de Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, SP.

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