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Revista Psicopedagogia

versão impressa ISSN 0103-8486

Rev. psicopedag. vol.23 no.71 São Paulo  2006

 

ARTIGO ORIGINAL

 

Análise da representação da imagem e esquema corporal em crianças com problemas de aprendizagem

 

Analysis of representation of body image and scheme in children with learning disorders

 

 

Juliana Christina Rezende de Souza

Psicopedagoga do Novo Espaço Assessoria Multidisciplinar/ Ribeirão Preto, SP

Correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho apresenta uma pesquisa que teve por objetivo verificar a representação da imagem e esquema corporal em crianças com problemas de aprendizagem, propondo, assim, uma reflexão sobre as relações entre o corpo e o aprender. Foi realizada uma análise da produção de desenhos de crianças entre 7 e 9 anos, atendidas no Núcleo de Apoio Psicopedagógico do CUML - Centro Universitário Moura Lacerda, a partir da solicitação para desenharem uma pessoa aprendendo, acompanhada de perguntas ao entrevistado sobre a sua produção. Para analisar os desenhos foram utilizados estudos da gênese da representação da figura humana, bem como análise da projeção do sujeito, no contexto de aprendizagem, das representações que ele possui deste processo e, principalmente, de si mesmo como aprendente. Os resultados indicaram que o desenho da figura humana no contexto da Situação da Pessoa Aprendendo forneceu dados que demonstraram uma relação do sujeito com o objeto de conhecimento e com seu próprio corpo no aprender. Para aprender, o sujeito precisa de um corpo que interage com o objeto de conhecimento por meio da ação e da relação com o outro. Se é através do outro que o sujeito se reconhece enquanto tal, que forma sua imagem corporal, é imprescindível que haja uma alternância de posições na relação ensinante-aprendente, permitindo que o sujeito se reconheça como aprendente, ensinante e autor em seu processo de aprendizagem, sendo capaz de desenvolver-se de uma relação em que necessita do outro para coordenar suas ações para uma posição em que seja capaz de assumir seu próprio pensar.

Unitermos: Aprendizagem. Imagem corporal. Percepção. Transtornos de aprendizagem. Desenhos.


SUMMARY

This work presents a search that objectified verify the representation of body image and scheme in children with learning disorders, proposing a reflection about the relationship between the body and learn. An analysis of the production of children's drawing between 7 and 9 years, attended in the Nucleus of Psychopedagogic Support of CUML - Centro Universitário Moura Lacerda, from the solicitation to draw a person learning, followed by questions about the production was realized. To analysis the drawings were realized studies of the genesis of representation of human figure and the analysis of projection of the subject, in context of learning, about the representations that he has about this process and, mainly, about himself like an apprentice. The results indicated that the drawing of human figure in the context of Situation of Person Learning provided data that demonstrated a relationship between subject and object of knowledge e between his own body in learning. To learn, the subject needs a body that interact with the object of knowledge by action and relation with other. If is trough the other that the subject recognizes himself as such, that forms his body image, it's essential that exists an alternation of position in the relation instructor and learner, allowing that the subject recognizes himself like learner, instructor and author in his learning process, being able to develop himself in a relation that needs the other to coordinate his actions to a position in which be able to assume his own thought.

Key words: Learning. Body image. Perception. Learning disorders. Drawings.


 

 

"A aprendizagem é um processo cuja matriz é vincular e lúdica e sua raiz corporal: seu desdobramento criativo põe-se em jogo através da articulação inteligência-desejo e do equilíbrio assimilação-acomodação"

(Alicia Fernández)

 

INTRODUÇÃO

No campo da psicopedagogia, o dualismo que separou corpo e mente se transforma. A inteligência, explicada do ponto de vista piagetiano, refere-se a uma estrutura lógica, na qual o conhecimento se constrói a partir da ação do sujeito sobre o objeto, conhecimento este que pode ser ensinado, mas que necessita de estruturas cognitivas adequadas ao nível de compreensão requerido e de um vínculo que possibilite representar esse conhecimento. A partir das ações do sujeito sobre os objetos, a experiência de tocar, mover-se, pegar, traz a possibilidade de uma organização do pensamento, da construção de esquemas e de estruturas cognitivas cada vez mais elaboradas. Se o sujeito não vivencia estas experiências com os objetos, isto é, com o meio físico, pode encontrar dificuldades na organização de sua inteligência1,2.

Ao considerar-se, então, que o sujeito aprende, constrói um conhecimento a partir de sua ação sobre o objeto, sobre o meio, o que implica que a inteligência (estruturas cognitivas) mostra-se em um corpo, que aprende, pensa, sofre e age, um corpo que interfere na aprendizagem, um corpo que não se confunde com organismo; o organismo, constituído pelos sistemas respiratório, nervoso, digestivo, etc., é a base neurofisiológica das coordenações possíveis, enquanto o corpo é construído pelas experiências do sujeito.

É a partir da aprendizagem que o ser humano torna-se humano, sendo que o ensinante é quem indicará, inicialmente, o significado a um dado conhecimento, quem representará este conhecimento a ser apropriado pelo aprendente. Assim, pode-se dizer que é na relação com o meio social e físico que o sujeito construirá sua modalidade de aprendizagem, isto é, seu esquema de operar utilizado nas diferentes situações de aprendizagem.

Investigar as significações dadas ao corpo na ação de aprender traz a possibilidade de se refletir sobre as relações entre ensinante e aprendente e entre o sujeito e o objeto de conhecimento, considerando-se não apenas um corpo estético, mas um corpo construído a partir das experiências deste sujeito que age e interage com o meio, com o outro; um corpo capaz de perceber a realidade externa e transformar a realidade interna, provocando o desenvolvimento de estruturas sejam elas afetivas, cognitivas ou motoras.

O presente trabalho teve por objetivo, então, investigar a representação da imagem e esquema corporal em crianças com problemas de aprendizagem, propondo, assim, uma reflexão sobre as relações entre o corpo e o aprender. Partindo deste pressuposto, o trabalho pretendeu, ainda, analisar como o sujeito com dificuldade de aprendizagem percebe a si mesmo no ato de aprender, considerando que a formação da imagem e do esquema corporal possibilita a ele próprio a consciência de si, elemento que apóia as operações, o controle e a intencionalidade sobre as ações, bem como o auxilia a situar-se no tempo e no espaço.

Alicia Fernández3 conta a história de uma menina que sonhou que ela e seus colegas tinham que tomar um líquido para diminuir seus corpos, pois eram muito grandes para entrar nas aulas e, então, ficavam achatados como cadernos. Nesse momento, uma reflexão pode ser feita sobre como um sujeito pode perceber-se enquanto aprendente: será que a imagem que ela trouxe de si própria no ato de aprender é a de um caderno gigante onde um outro (ensinante) escreve? E "como" escreve?

 

MÉTODO

Tendo como referencial teórico principal os estudos de Alicia Fernández, a metodologia deste trabalho se apoiou na análise da produção de desenhos de crianças entre 7 e 9 anos, atendidas no Núcleo de Apoio Psicopedagógico do Centro Universitário Moura Lacerda, a partir da solicitação da "Situação da Pessoa Aprendendo". Este instrumento constitui um estudo coordenado por Alicia Fernández4, para investigar algumas das significações inconscientes atribuídas ao aprender e constitui-se também numa alternativa para levantar a hipótese diagnóstica no atendimento psicopedagógico. Nesta técnica, uma consigna é dada ao entrevistado: "desenhe uma pessoa aprendendo" ou "desenhe uma pessoa que está aprendendo". Após a conclusão deste, pergunta-se que nome daria àquele desenho, e pede para contar aquela história. Em seguida, indaga-se: se não fosse uma pessoa aprendendo, o que seria? Com essa atividade, desencadeia-se a situação na qual o sujeito pode "projetar (se)" no contexto de aprendizagem, isto é, expressar por meio do desenho as representações que possui desse processo e, principalmente, de si mesmo como aprendente.

Para analisar os desenhos da figura humana representados na "Situação da Pessoa Aprendendo" foram utilizadas duas categorias: esquema corporal e imagem corporal, seguidas de algumas considerações utilizando dados do discurso do sujeito sobre seu desenho. Na primeira categoria, incluem-se estudos da gênese da representação da figura humana5 e, na segunda, a imagem do corpo trazida no contexto do aprender, além das significações atribuídas a este processo4.

 

RESULTADOS

Foram utilizadas, como já citado anteriormente, as produções de desenhos de quatro crianças (Figuras 1 a 4), cujos nomes apresentados são fictícios, entre 7 e 9 anos com dificuldade de aprendizagem, tendo como contexto a "Situação da Pessoa Aprendendo". A partir dos dados levantados, foi feita uma análise "entrecruzando" os dados fornecidos pela situação projetiva citada acima e o estudo da gênese da representação da figura humana através do desenho. Os desenhos mostram representados corpos rígidos marcados pela ausência da representação das articulações, sendo que em dois deles (Jonas e William) a pessoa que está aprendendo aparece sentada em uma carteira escolar, e são atribuídos pelas crianças como significados para o aprender as ações de escrever, fazer lição. Larissa também afirma, em seu discurso sobre o desenho que produziu, a intenção de desenhar uma menina sentada, mas não o fez porque não sabia desenhá-la nessa posição. O desenho de João oferece informações também interessantes, sendo o único que não relacionou o ato de aprender ao contexto escolar, mas sim, ao "aprender a jogar futebol". Neste desenho, as pernas e pés mostram uma desproporção dos membros, pois as pernas se afinam próximas ao quadril e se alargam próximas aos pés e ao chão, parecendo um "tronco enraizado", demonstrando um corpo imóvel, fixo ao chão. Em três desenhos, o esquema corporal representado é bastante simples, lembrando o corpo de um "boneco" com cabeça, retas representando braços e pernas, olhos, boca e nariz com traços "simples". No desenho de William, não estão representados detalhes da face, como olhos, boca, nariz, orelha, não sendo possível identificar um rosto, uma pessoa, algo que a diferencie de outros. Em todos os desenhos, a característica que marca uma imagem corporal que se aproxima dos sujeitos é o gênero sexual: João, Jonas e William representaram nos desenhos, e afirmaram nos seus discursos, um menino, e Larissa representou uma menina.

 

 

 

 

 

 

 

 

DISCUSSÃO

A seguir, algumas considerações sobre a produção de cada sujeito e o discurso sobre o desenho produzido:

Sujeito 1 (Figura 1): João disse que "o menino" representado "não está aprendendo nada", em seguida, desenhou alguns "bonecos" (que parecem identificar-se com meninos) "jogando futebol" e disse que "o menino está no campo olhando os outros (que estão jogando futebol)", afirmando que "ele tá olhando para aprender". Afirmou, também, que "aprendeu a jogar futebol e andar de bicicleta olhando os outros" e que na escola ele "copia a lição da lousa", mas não sabe "se aprende". Uma característica interessante é que a cena em que está inserida "a pessoa aprendendo" não representa uma sala de aula ou algum outro espaço escolar, mas sim um campo, onde é possível fazer o que se gosta: jogar futebol e as pessoas "ensinantes", isto é, os outros que estão jogando bola e parecem identificar-se com meninos de sua idade.

Partindo do pressuposto de que a "Situação da Pessoa Aprendendo" procura investigar as significações atribuídas ao aprender, analisando o desenho de João e o seu discurso, pode-se inferir que a ação de aprender está relacionada a "olhar alguém fazer". Possivelmente, a relação que ele estabelece com o objeto de conhecimento e com os sujeitos ensinantes é passiva, hiperacomodativa no termo de Fernández4, na qual se necessita "copiar" um modelo para aprender.

Sujeito 2 (Figura 2): Jonas representou, em seu desenho, um cachorro, e antecipou verbalmente que o faria: uma observação que podemos assinalar, apesar de não ter sido explicitada no discurso da criança sobre seu desenho, é que os cachorros são "treinados" para executar algumas tarefas, então "aprender pode estar relacionado a treinamento". Em seguida, desenhou uma pessoa sentada numa carteira escolar, copiando exatamente o que está na escrito na lousa, como é possível observar em sua produção. A significação atribuída ao aprender foi "aprender matemática", e se não fosse isso seria "aprender português", sendo que para isto a pessoa "tinha que ler, escrever, fazer resposta e ver no livro". Neste desenho, não aparece a figura de alguém que ensina (ensinante), o que parece significar que o que se ensina e aprende (o conteúdo) é mais importante do que a relação ensinante e aprendente. O processo de aprender parece tornar-se, então, solitário, sem o contato com o outro, o que pode tornar distante do sujeito que aprende esse "conteúdo" pretendido pelo ensinante.

Sujeito 3 (Figura 3): no discurso sobre sua produção, Larissa disse que a menina "está fazendo o 'cabeçário'", como conteúdo da aprendizagem, e isto está representado na lousa que desenhou (o cabeçalho foi tarjado para preservar a identidade da escola que Larissa estuda). Disse que "esqueceu de fazer a professora", que é "ela quem ensina": para aprender "pergunta para a professora". Quando lhe é perguntado o que está sendo ensinado, sua resposta é "a lê", e que se não fosse aprender a ler seria "aprender a escrever". Isso mostra que as significações atribuídas ao aprender estão sempre relacionadas ao contexto escolar, e que embora a professora não tenha sido desenhada, em seu discurso, Larissa referiu-se a ela como ensinante. Aparece, então, um conteúdo de aprendizagem (que é escolar) e uma relação unilateral entre quem ensina e quem aprende: a professora ensina e a menina aprende.

Sujeito 4 (Figura 4): no desenho de William, aparece uma cena que remete ao contexto escolar, um corpo sentado, aparentemente imobilizado por esta posição, um corpo que parece "não poder participar do processo", que "não se identifica" entre outros (ausência de elementos da face que "diferencie" uma pessoa).

Ao falar sobre o desenho, William atribuiu como conteúdo do aprender "fazer lição", e se não fosse um menino aprendendo a fazer lição seria aprendendo a "escrever". Nota-se que não aparece a figura de um ensinante, nem no desenho tampouco no discurso sobre este. As significações do aprender que aparecem estão relacionadas ao contexto e ao conteúdo escolar, com um foco no processo de aprender, como se ele pudesse acontecer "sozinho", sem um "outro" para se relacionar.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O desenho da figura humana no contexto da "Situação da Pessoa Aprendendo" demonstra uma possível relação do sujeito com o objeto de conhecimento e com seu próprio corpo na ação de aprender, pois aparecem nos desenhos das crianças características que marcam a imagem do corpo, como "o braço da mão que escreve" representado em tamanho maior que o próprio corpo, ou, em outro desenho, as pernas e pés rígidos e presos ao chão, como também, corpos sem mobilidade, sentados em carteiras escolares. Esta relação com o conhecimento é também corporal, pois para aprender o sujeito precisa de um corpo "presente", e não negado, que interaja com o objeto de conhecimento por meio da ação e da relação com o outro.

A partir dessas considerações, podemos pensar em algumas implicações:

  • Como estas crianças percebem o aprender, mostrando-o como algo "rígido", como se para aprender tivesse como condição "estar estático", sentado, o que nos remete ao modelo educacional atual, contrariando os "discursos modernos" sobre educação, no qual os grupos pouco interagem, pouco se movimentam em busca do conhecimento e, na maior parte do tempo, são "ouvintes".
  • Nas relações entre ensinante e aprendente, sendo que em três dos desenhos analisados não aparece a figura de "alguém que ensina" e sim, apenas "do que se ensina", dado este que pode denotar a importância que se dá ao conteúdo e não às relações, à forma de "aprendensinar".

Se, é através do outro que nos reconhecemos enquanto indivíduos e que formamos nossa imagem corporal, é imprescindível que realmente haja uma troca de posições na relação ensinante - aprendente, na qual ambos os sujeitos podem ensinar e aprender, permitindo, também no contexto escolar, que o sujeito se reconheça como aprendente, ensinante e autor de sua "história escolar", de seu processo de aprendizagem, sendo capaz de desenvolver-se de uma relação em que necessita do outro para "coordenar" suas ações para uma posição em que seja capaz de assumir seu "pensar próprio".

 

REFERÊNCIAS

1. Piaget J, Inhelder B. A Psicologia da criança. 9ª ed. São Paulo:Difel;1986. 135p.         [ Links ]

2. Piaget J. Seis estudos de psicologia. 24ª ed. Rio de Janeiro:Forense Universitária;2002. 136p        [ Links ]

3. Fernández A. A inteligência aprisionada. Porto Alegre:Artmed Editora;1991. 261p.         [ Links ]

4. Fernández A. Os idiomas do aprendente. Porto Alegre:Artmed Editora;2001. 223p.         [ Links ]

5. Paín S. O desenho da figura humana: a prova de Goodenough. In: Psicometria genética. São Paulo:Casa do Psicólogo;1992. p.103-18.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Juliana Christina Rezende de Souza
Rua Arnaldo Vitaliano, 1800 - Ap. 53 - Ed. Sevilha Iguatemi
Ribeirão Preto - SP - 14091-220
Tel.: (16) 9776-2086
E-mail: jurezendes@bol.com.br

Artigo recebido: 12/03/2006
Aprovado: 01/05/2006

 

 

Este trabalho representa parte de monografia apresentada para conclusão do curso de Pós- Graduação em Psicopedagogia do Centro Universitário Moura Lacerda e orientada pela Profa. Dra. Marlene Fagundes Carvalho Gonçalves.

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