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Revista Psicopedagogia

versão impressa ISSN 0103-8486

Rev. psicopedag. vol.23 no.71 São Paulo  2006

 

ARTIGO ESPECIAL

 

O estalo de Vieira à espera da leitura

 

The Vieira's insight in waiting for reading

 

 

Clélia Argolo Estill

Fonoaudióloga e Psicopedagoga; Presidente em exercício da AND - Associação Nacional de Dislexia; Membro Titular da ABPp - Nacional

Correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo visa levantar pontos de reflexão sobre a importância do diagnóstico e intervenção precoce nos transtornos de leitura que se manifestam a partir do período de alfabetização até a 2ª série escolar. Ainda se fala em aguardar o "estalo da leitura" de cada criança, sem acelerar o seu tempo natural. Procuramos destacar, nesta apresentação, as diferenças existentes entre crianças que não obtêm sucesso na aquisição inicial da leitura por causas emocionais e socioculturais de outras crianças, que só irão evidenciar suas dificuldades no momento da aprendizagem da leitura-escrita. Destacamos a importância do diagnóstico diferencial entre dificuldades e transtornos de aprendizagem da leitura, porque a cada um destes aspectos corresponde uma abordagem terapêutica diferente, em forma, tempo, objetivos e diretrizes de trabalho. A leitura é o elo entre linguagem e aprendizagem, só podemos esperar que o "estalo da leitura" aconteça espontaneamente quando temos certeza de que o pequeno leitor possui as necessárias estruturas cognitivas.

Unitermos: Dislexia, prevenção & controle. Leitura. Transtornos de aprendizagem.


SUMMARY

This article intends to stimulate reflection about the importance of early diagnosis and intervention on reading disorders that appear during reading instruction time from kindergarten up to the second grade. Some people still claim we should wait for the "awakening of reading skills" in each child, without accelerating his/her natural rhythm. We tried to emphasize here the differences between children who do not succeed in their initial process of acquiring reading and writing skills due to emotional and socio-cultural causes from other children who will only show their learning difficulties at the moment of learning how to read and write. We highlight the importance of a differentiated diagnosis between reading difficulties and reading disorders, because each of these aspects corresponds to a different therapeutic approach, concerning form, time, goals and working procedures. Reading is the link between language and learning, and we can only expect spontaneous "awakening of reading skills" when we are sure that the young reader has the necessary cognitive structures.

Key words: Dyslexia, prevention & control. Reading. Learning disorders.


 

 

Quem de nós já não ouviu falar no famoso "estalo"? Quase todos, apenas alguns não sabiam que tal estalo se referia ao "Estalo do Padre António Vieira".

Todos já ouvimos esta expressão, sempre ligada às facilidades ou dificuldades da aprendizagem de leitura. Muitos se alegraram com a chegada do "estalo", outros ficaram esperando, em vão, enquanto o tempo passava. E como dizia Cazuza, o tempo não pára!

- É uma questão de tempo, não se preocupe, de repente dá o "estalo", diz o pediatra à mãe preocupada com seu filho de 7 anos, que ainda não lê com desenvoltura.

- Seu filho está demorando a ter o "estalo", diz a professora de primeira série, aos pais de uma criança, recomendando aulas de apoio, já que o "estalo" ainda não aconteceu.

- Na nossa família é assim mesmo, nosso filho saiu ao pai, com ele o "estalo" também demorou a acontecer, ele só foi ler depois dos 8 anos, verdade que até hoje não gosta de ler, responde a mãe, já conformada. Como se não gostar de ler fosse coisa do destino!

De tanto ouvir esta expressão, "estalo", à guisa de consolo ou como palavras de otimismo, oferecida por educadores e terapeutas às famílias preocupadas com a demora da aprendizagem da leitura, fui procurar a sua origem. Qual não foi o meu espanto quando encontrei a resposta. Ouvindo a palestra de uma professora à moda antiga, percebi que ela se referia às dificuldades de leitura e escrita usando esta expressão de forma mais completa:

- Estas crianças não podem ser apressadas no seu processo de aprendizagem. Todos têm seu tempo próprio para aprender, é preciso aguardar que cada um tenha o seu "estalo de Vieira".

Acontece que o Vieira mencionado não era outro senão que o próprio Padre António Vieira, padre jesuíta, o grande educador e autor de Os sermões.

Lembremos esta história, que encontrei lendo a História de António Vieira, biografia escrita por J. Lúcio Azevedo e editada em Lisboa, no ano de 1931, pela Livraria Clássica Editora1.

O menino António Vieira, nascido em Lisboa, 1608, era filho de mãe mestiça e pai de origem de "sangue infecto", que queria dizer cristão novo, judeu convertido ao cristianismo, para se defender da morte, pelo Santo Ofício, nos tempos da Inquisição.

Seu pai, Cristóvam Ravasco, partira para o Brasil, em 1609, só retornando para buscar a família em 1614, quando o menino António Vieira já completara seis anos.

Sua mãe, Maria de Azevedo, durante este tempo, "vivia muito recolhida, saindo raras vezes a não ser para a missa, toda consagrada ao filho, de quem foi a mestra de ler e escrever".

Chegando à Bahia, a família encontrou um único colégio, o Colégio dos Jesuítas.

Ali, o menino António recebeu o ensino das primeiras letras.

Mas os ensinos "Teológicos e das Artes" eram destinados aos alunos de "vocação, talento, fortuna ou posição social". Inacessível, portanto, ao filho de mãe mestiça e pai cristão novo. Acontece que António Vieira, nos seus primeiros anos de estudante, não era um aluno brilhante. Tinha muitas dificuldades, "compreendia mal, decorava a custo, fazia com dificuldades as composições".

Ainda assim não desistia nem dos estudos, nem de si.

Um dia, já com quinze anos, o jovem António Vieira fugiu de casa e veio bater às portas da Companhia de Jesus, sendo bem recebido apenas para o noviciado. Ele não fazia parte das elites da época.

Os alunos, a caminho do Pátio dos Estudos, tinham que passar diariamente por um lance de sete altares da Virgem, e fazer uma prece especial à Nossa Senhora das Maravilhas.

Sofrendo muito com os comentários maldosos de seus colegas e professores, sentia-se envergonhado e aflito, pouco se atrevia a participar nas aulas. Seus colegas e professores desconheciam a sua voz. Mas, tanta aflição só podia ser fruto de um intenso desejo de aprender, não fosse assim, seria apenas mais um aluno desinteressado entre tantos outros.

E, sempre que passava em frente à Virgem das Maravilhas, orava pedindo que lhe ajudasse a ser um aluno melhor - este era o seu desejo. Até que um dia, em meio às suas preces "sentiu como estalar qualquer cousa no cérebro, como uma dor vivíssima, e pensou que morria; logo o que parecia obscuro e inacessível à memória, na lição que ia dar, se lhe volveu lúcido e fixo na retentiva. Dera-se lhe na mente uma transformação de que tinha consciência. Chegado às classes pediu para argumentar, e com pasmo do mestre venceu a todos os condiscípulos".

Este fato foi descrito por uma testemunha e passado à história por tradição oral. O autor desta biografia escrita em 1918, J. Lúcio de Azevedo, não se abstém de comentar que seria interessante, já naqueles tempos, procurar uma explicação na fisiologia.

Partindo deste último comentário, feito em 1918, chega-se aos dias de hoje, quando já podemos entender o "estalo de Vieira" não somente como uma prece atendida pela Virgem das Maravilhas, mas também à luz dos conhecimentos atuais, psicopedagógicos, psicológicos, sociais e neurocientíficos.

Uma das ferramentas da psicopedagogia é a arte de perguntar. A pergunta oportuna desperta curiosidades e ativa os conhecimentos prévios. São estratégias para alcançar metas psicopedagógicas, a construção do conhecimento pelo ser cognoscente2.

Por isto, convido aos colegas a construirmos juntos algumas explicações para "o estalo de Vieira" e de tantas outras crianças que não recebem a graça esperada - o estalo. Será apenas conseqüência dos milagres da Virgem, atendidos ou não, ou também decorrência dos processamentos cognitivos, estes sim, acontecendo no tempo de cada um?

Considerando os dados desta biografia de Padre António Vieira, podemos levantar algumas hipóteses, para poder diferenciar as dificuldades de aprendizagem dos transtornos de aprendizagem da leitura3.

  • Como foi a iniciação de leitura e escrita do menino António?
  • Como e o que lia a sua amorosa ensinante, para compartilhar com o seu aprendente? Que conhecimento de mundo possuía para despertar a curiosidade e o desejo de aprender em seu aluno, além do calor do afeto que unia mãe e filho?
  • Os conhecimentos de mundo do menino António permitiam-lhe estabelecer vínculos com o novo universo cultural para onde fora transportado ao deixar sua aldeia natal, facilitando-lhe a compreensão daquela nova linguagem?
  • Como foi recebido neste novo universo?
  • Que oportunidades ele encontrou, na família e na escola, para exercitar a comunicação verbal-oral?
  • Com quem ele podia conversar? Ele podia conversar?

Estas questões nos remetem aos aspectos afetivos e socioculturais da aprendizagem. Certamente, explicam parcialmente os motivos que levaram nosso magistral educador, Padre António Vieira, a sofrer dificuldades em sua comunicação oral e aquisições iniciais da leitura e escrita, apesar do seu intenso desejo de aprender e alta capacidade cognitiva, mas se deparando com obstáculos externos, como as discriminações socioculturais vividas. Possivelmente, o menino António Vieira ao se ouvir falando com a Virgem percebeu-se capaz de falar com quem mais se defrontasse. Deu-se o direito a ser autor de si mesmo.

Mas, o que pensar sobre crianças letradas, aparentemente aptas para a aquisição da escrita, investindo sua inteligência e desejo nesta aprendizagem e "o estalo" não acontece?

É grande a incidência de crianças frustradas em seu processo inicial de construção da leitura. Não atingindo os objetivos da alfabetização, ao final do C.A., são alçadas à primeira série em nome do argumento de que "o estalo chega no tempo de cada um e é preciso não ferir a sua auto-estima".

Algumas recebem a "bênção do estalo" um pouco mais tarde, mas nem todas. O que acontece com as crianças que chegam até a segunda série escolar, ainda sem domínio da leitura e prosseguem tropeçando nas palavras ao longo de sua vida acadêmica?

Jorge Gonçalves da Cruz4 se refere aos erros e distorções iatrogênicas, quando técnicas psicométricas são utilizadas com a finalidade de buscar objetividade e infalibilidade, nas investigações psicopedagógicas suprimindo a escuta do sujeito, levando-nos a "rotular o testado".

Emilio Sánchez Miguel5 justifica a necessidade de avaliações objetivas quando não encontramos uma explicação para dificuldades inesperadas no processo de aprendizagem da leitura - "explicar um transtorno não é rotular uma pessoa, mas sim classificar uma dificuldade para compreendê-la e assim melhor ajudar a pessoa".

Uma tese não exclui a outra, se complementam. Sabemos que a linguagem escrita é uma aquisição cultural cujo código necessita ser aprendido, diferente da linguagem oral que se desenvolve naturalmente, bastando para isto que a criança esteja inserida num mundo falante, com todo o seu aparato lingüístico central e periférico em atividade normal6.

A aprendizagem da leitura é mais complexa por depender de processos de transdecodificação, dependendo, portanto, das condições individuais, cognitivas, afetivas e culturais. O funcionamento cognitivo, tal como o Saber, é pessoal e intransferível, ambos são resultantes das representações mentais que o sujeito faz do mundo que o envolve. Assim, não basta ao futuro leitor estar fortemente abraçado por um mundo letrado e desejoso de fazer parte deste universo - é preciso que ele perceba as relações existentes entre a forma e o som destes signos, os constituintes da escrita e sua relação com a linguagem oral. A capacidade cognitiva do leitor iniciante para representação mental do som, forma e relação com as palavras escutadas, é que deslanchará o processo de conversão da escrita, a grande descoberta, o tal "estalo" esperado.

Daí para frente nunca mais conseguirá não ler as marcas gráficas que vê.

"Leio porque são letras, fossem imagens, via, não lia" (www.euleitor.blogspot.com)7. Neste blog, que menciona Alberto Manguel e seu extraordinário A história da leitura8, o autor aprofunda a percepção do escritor argentino sobre a aquisição da leitura como a de mais um sentido - audição, olfato, tato, gosto, visão e leitura.

Porém, nem todas as pessoas nascem com aparato neurológico disponível para o processamento fonológico da escrita - são essas pessoas que irão se frustrar quando não conseguirem aprender a ler como todo mundo, ao final do C.A., surpreendendo seus pais e professores.

- O que estará acontecendo com ele, se nunca teve nenhuma dificuldade até agora? Perguntam-se perplexos, pais e professores.

A própria criança passa a se sentir diferente - pode perceber que, no nível cognitivo, os outros não são "mais espertos" que ela. Mas pode, no nível emocional, sentir que tem uma deficiência intelectual. "Não sou como você", é como ela se sente, e começa a viver em mundos paralelos, conforme a narrativa de Robert Frank, em A vida secreta de uma criança com dislexia9.

Pais e professores encontram muitas explicações possíveis, mas enquanto seguem tateando em busca de um caminho que leve esta criança à leitura, o tempo vai passando e ela permanece como leitor iniciante, decodificando palavra por palavra, apesar de já estar na 1ª/2ª série escolar. A esta altura, sua mochila repleta de desejo de ler já se esvaziou, resta agora uma criança triste e cabisbaixa, silenciosa e amedrontada.

Estamos em tempo de encontrar respostas científicas para compreender as dificuldades inesperadas de leitura. O que antes tentávamos resolver por suposições, tentativas de ensaio e erros, perdendo um tempo precioso da infância, já pode ser mais bem entendido e, portanto, ser cuidado de forma mais eficaz. Estas dificuldades iniciais na aquisição da leitura são sinais de alerta. Podem, ou não, representar um quadro de dislexia, por isto é necessário buscar um cuidadoso diagnóstico diferencial para o entendimento e acompanhamento destas "surpresas inesperadas".

A leitura, nos dias de hoje, é também entendida como ciência.

A neurocientista Paula Tallal10, em seu artigo "A Ciência da Leitura: do laboratório à sala de aula", afirma a importância destas evidências:

"Descobrir porque Johnny não pode ler, com o agravante de suas dificuldades nos relacionamentos sociais, vem sendo um foco de pesquisas científicas. Embora as pesquisas iniciais pertençam ao domínio do campo educacional, atualmente há um interesse crescente na base neurobiológica das mais altas funções corticais, especialmente nas áreas de linguagem e leitura (e dos sistemas sensórios, perceptivos e cognitivos nos quais se apóiam essas funções), por parte dos neurocientistas".

A neurocientista Sally Schaywitz et al.11, do Centro de Pesquisas de Yale sobre Aprendizagem e Atenção da Universidade de Yale, vêm pesquisando estas alterações por meio de imagens de ressonância funcional do cérebro, e relatam seus achados no artigo "A ruptura funcional na organização do cérebro para a leitura - dislexia":

"Aprender a ler necessita do conhecimento de que palavras faladas podem ser decompostas em constituintes fonológicos representados por caracteres alfabéticos. Tal conhecimento fonológico é caracteristicamente o que falta para os leitores disléxicos, que têm dificuldade em mapear os caracteres alfabéticos nas palavras faladas. Para achar o lugar e a extensão do rompimento funcional em sistemas neurais que sustentam este prejuízo, usamos imagens de ressonância magnética para comparar a ativação destes sistemas, comparando o modelo disléxico com o de pessoas que não são prejudicadas, enquanto executavam tarefas com maiores demandas em análises fonológicas. Estes resultados apóiam a conclusão de que a dificuldade em dislexia é de natureza fonológica e que os modelos de subativação destes cérebros podem justificar a razão deste prejuízo".

O avanço dos estudos neurocognitivos sobre a linguagem, mais especificamente sobre a leitura, aponta competências cognitivas especificamente lingüísticas como aspectos essenciais para a aprendizagem da leitura, ativadoras dos sistemas de processamento lingüístico - fluência verbal, nomeação rápida, memória de trabalho e consciência fonológica.

Contudo, entender e tratar a dislexia ainda é um desafio. Por um lado, só podemos classificar um transtorno de leitura como dislexia, quando uma criança, após dois anos de aprendizagem formal de leitura, não obtém o sucesso esperado, apesar de possuir as demais condições necessárias para esta aprendizagem. Por outro lado, temos alguém vivendo uma real frustração, chegando ao final do C.A. não sabendo ler. O que podemos fazer? Esperar que o tempo lhe entregue de presente as habilidades específicas para o ato de ler, ou intervir clinicamente, mediando a aprendizagem e poupando-a de sofrimentos futuros?

Os profissionais que trabalham com aprendizagem, professores, psicopedagogos e fonoaudiólogos já sabem que as funções cognitivas acima mencionadas são pré-requisitos essenciais para a aquisição inicial da leitura, o processo de decodificação. Às vezes, encontramos uma criança perplexa e assustada frente a uma palavra escrita, tal qual o passante aventureiro frente à esfinge. Decifra-me ou devoro-te - dizia ela ao amedrontado caminhante. Quem a decifrasse recebia o direito de ingressar no Mundo das Maravilhas. Assim se sente esta criança que descobre o segredo da palavra escrita, o "estalo de Vieira", o reconhecimento da palavra escrita. O "estalo", então, nada mais é do que a descoberta de que a cada letra corresponde um som e vice-versa. Simples assim? Então, por que nem todos aprendem a ler naturalmente?

Possivelmente, porque algumas pessoas nascem disléxicas, não se tornam disléxicas. Nascem com alterações, genéticas ou hereditárias, que respondem pelos distúrbios de leitura.

A história familiar é um dos mais significativos fatores de risco; 23% a 65% das crianças, cujos pais relatam também terem se defrontado com dificuldades de leitura, apresentam dificuldades semelhantes às vividas por seus familiares. Os estudos genéticos determinam os cromossomas 6 e 15 como os loci dos distúrbios de leitura e escrita12. Estes distúrbios de leitura e escrita são alterações funcionais que interferem no processamento fonológico das palavras, mas que só irão ser evidenciadas no momento em que a criança confronta-se com a aprendizagem da leitura.

Um transtorno de leitura é uma situação diferente de uma dificuldade de aprendizagem3. As dificuldades de aprendizagem são manifestações dos fantasmas que alguém coloca no vínculo estabelecido com a aprendizagem - medos, ansiedades, dúvidas sobre si e sobre o que lhe cerca. Podem ser emoções reativas ao mundo externo13.

Os transtornos de leitura, mais especificamente a dislexia, são decorrentes de déficits cognitivos fonológicos14, portanto, decorrências de alterações endógenas, localizadas nas estruturas funcionais do sujeito.

E então? Deixamos os nossos perplexos e assustados pré-leitores e leitores não proficientes confrontarem-se sozinhos com a esfinge, sem terem condições de construir a resposta que abre as portas da leitura? Ou, lhes damos a mão e caminhamos junto com eles ao encontro desta chave?

O momento-chave da aprendizagem da leitura é quando o pré-leitor percebe a relação intrínseca entre letras e sons. É quando percebe que esses sons representam e constituem a palavra falada, "este é o insight alfabético que subjaz às capacidades de decodificar foneticamente as palavras e dominar o princípio alfabético da escrita"12.

Este é o momento do deslumbramento, é quando as crianças não vêem mais letras, lêem palavras.

É o verdadeiro e esperado "estalo da leitura".

A neurociência explica, parcialmente, porque a descoberta espontânea da leitura não está ao alcance de todos e porque alguns esperam um "estalo da leitura" que não lhes chega por milagre, como chegou ao Padre António Vieira.

Este milagre, não mais da Virgem dos Milagres, mas da Ciência da Leitura, está ao alcance de nossos pequenos pré-leitores e leitores iniciantes. Os profissionais que trabalham com a aprendizagem da leitura e escrita, conscientes da possibilidade de detecção dos sinais preditivos de dislexia e conseqüente e adequada intervenção precoce, poderão evitar as fraturas nos futuros vínculos com a aprendizagem destas crianças. Na educação infantil, estes aspectos preditivos se manifestam. Já na pré-escola, é preciso prestar atenção à fala das crianças, como usam o vocabulário e brincam com o som das palavras. Se elas lembram das letras dos versinhos e melodia das músicas, como interagem com as deliciosas histórias narradas pela professora, se prestam atenção nas palavras ou apenas nas figuras. Se elas têm sempre as palavras na "ponta da língua" ou, ainda que de forma muito inteligente, necessitam descrever o objeto, ao qual querem se referir porque esqueceram o nome, mesmo que lhes seja um objeto muito familiar.

Enfim, as capacidades prévias, especificamente lingüísticas, para a aquisição da leitura, são funções cognitivas determinantes para as habilidades de processamento da linguagem oral em seu processo de conversão à linguagem escrita. Estes recentes conhecimentos que a neurociência vem acrescentando ao nosso fazer psicopedagógico e fonoaudiológico nos permitem não ter mais que esperar que a dislexia se deflagre, após dois anos de insucesso escolar, criando danos secundários à formação psíquica destas crianças, para só então intervir clínica e educacionalmente. Prever para prover, é o que nos ensina a sabedoria popular. Quanto mais precoce for a estimulação destas funções cognitivas, mais possibilidades de construção de seu próprio Saber terão estas crianças, que nasceram com dislexia. A percepção precoce dos aspectos preditivos de dislexia facilita o diagnóstico diferencial entre dificuldades emocionais e de aprendizagem. Um diagnóstico adequado pode mudar, para melhor, o rumo da vida de muitas crianças. Lembro, com especial emoção, um momento compartilhado com uma menina de 9 anos. Até seus 8 anos, ela não lia nem escrevia, apesar de ser uma falante e brilhante interlocutora. Considerada uma menina com baixa auto-estima por ser adotada, por dois anos recebeu tratamento psicológico, mas permanecia sem saber ler. A avaliação específica da leitura desvelou um quadro grave de dislexia. A terapia com ênfase nas atividades fonológicas, apoiada na visão construtivista das Competências Relacionais como mobilização de recursos do aprendente15,16, trouxe bons resultados.

Um dia, ela chegou ao nosso consultório com olheiras profundas.

- O que aconteceu, perguntei. - Tive insônia, disse ela.

- Chamou sua mãe? perguntei. - Não precisei, eu li! respondeu ela, com segurança absoluta.

A chave que abre as portas da leitura, como foi mencionada anteriormente, é a descoberta de que tudo o que falamos pode ser representado por escrito, o grande e infinito jogo das palavras.

Este jogo é atraente e desejável para todos que nascemos equipados cognitivamente para participar. Mas, é importante lembrar, não se fica disléxico, se nasce disléxico, por isto o "estalo" não chega. Ficarão fora do jogo da leitura aqueles que não conseguirem encontrar a chave por si mesmos, e sozinhos com suas dificuldades, não receberem a ajuda indispensável, na hora certa. Para essas crianças, talvez falte que os profissionais que lidam com elas tenham seu próprio "estalo" e encontrem a forma correta de "estalarem" as pequenas e poderosas mentes disléxicas.

 

REFERÊNCIAS

1. Azevedo JL. História de António Vieira. Lisboa:Livraria Clássica Editora;1931.         [ Links ]

2. Almeida e Silva MC. Psicopedagogia: em busca de uma fundamentação teórica. Rio de Janeiro:Editora Nova Fronteira;1998.         [ Links ]

3. Moojen SMP. Caracterizando os transtornos de aprendizagem. In: Bassols MAS, Santis MFB, Sukiennik PB, Cristóvão PW, Fortes SD, eds. Saúde mental da escola. Porto Alegre:Editora Mediação;2003.         [ Links ]

4. Cruz JG. In: Fernández A. A inteligência aprisionada. Porto Alegre:Editora Artes Médicas;1990.         [ Links ]

5. Miguel ES. Compreensão e redação de textos: dificuldades e ajudas. Porto Alegre: Artmed;1998.         [ Links ]

6. Morais J. A arte de ler. São Paulo:Editora UNESP;1994.         [ Links ]

7. Estill D. Acesso em: 05/2006. Disponível em: www.euleitor.blogspot.com        [ Links ]

8. Manguel A. Uma história da leitura. São Paulo:Editora Companhia das Letras;1997.         [ Links ]

9. Frank R, Livingstone KE. A vida secreta de uma criança com dislexia. Editora M. Books;2003.         [ Links ]

10. Tallal P. A ciência da leitura: do laboratório à sala de aula. Disponível em: www.scientific-learning.com        [ Links ]

11. Schaywitz S. A ruptura funcional na organização do cérebro para a leitura - dislexia. Publicação do Centro de Pesquisas de Yale sobre aprendizagem e atenção;1998.         [ Links ]

12. Santos MMT, Navas Ana LGP. Distúrbios de leitura e escrita - teoria e prática. São Paulo:Editora Manole;2004.         [ Links ]

13. Rivière PE. Teoria do vínculo. São Paulo:Editora Martins Fontes;1986.         [ Links ]

14. Snowling MJ. Dislexia. São Paulo:Livraria Santos, 2004.         [ Links ]

15. Macedo L. Ensaios construtivistas. São Paulo:Casa do Psicólogo;1994.         [ Links ]

16. Macedo L. Os jogos e a construção das competências. São Paulo: Instituto de Psicologia da USP - II Jornada do LAPP; apud Oliveira LL. In: Uma possibilidade de intervenção psicopedagógica; Distúrbios de leitura e escrita. São Paulo:Editora Manole;2004.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Clélia Argolo Estill
Rua Leblon, 16 - Leblon
Rio de Janeiro - RJ - 22441- 020
Tel.: (21) 2259-9959
E-mail: cestill@terra.com.br
Site da AND: www.andislexia.org.br

Artigo recebido: 18/7/2006
Aprovado: 30/07/2006

 

 

Trabalho realizado na Associação Nacional de Dislexia, Rio de Janeiro, RJ.

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