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Revista Psicopedagogia

versão impressa ISSN 0103-8486

Rev. psicopedag. vol.24 no.73 São Paulo  2007

 

RELATO DE EXPERIÊNCIA

 

Dificuldades de aprendizagem e atrasos maturativos - atenção aos aspectos neuropsicomotores na avaliação e terapia psicopedagógicas

 

Learning difficulties and maturative delay - attention to the neuropsychomotor aspects in psychopedagogical evalution and treatment

 

 

Helena Vellinho Corso

Psicopedagoga; Associada Titular da Associação Brasileira de Psicopedagogia; Professora universitária; Mestrado em Psicologia da Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Correspondência

 

 


RESUMO

O trabalho aborda as relações entre as dificuldades de aprendizagem e os atrasos maturativos. A revisão teórica procura explorar a natureza desta relação, ao mesmo tempo em que tenta estabelecer uma noção atualizada de maturação, que inclui em seu conceito o fator ambiental. Partindo de evidências clínicas, o estudo apresenta a evolução de três pacientes de psicopedagogia com perfil imaturo mediante o atendimento psicopedagógico. De um lado, a presença de um quadro de imaturidade inicial, nestes casos, ilustra e parece confirmar a relação entre a dificuldade de aprendizagem e atrasos maturativos. De outro lado, verifica-se, pela comparação dos gráficos que traçam o perfil neurológico do paciente antes e depois do atendimento psicopedagógico, o quanto uma terapia de aprendizagem integradora permite, concomitantemente com progressos na aprendizagem, a superação desses atrasos maturativos. O estudo busca a complementaridade da presente abordagem - que considera os aspectos neuropsicomotores da aprendizagem - com as que enfatizam, por exemplo, os aspectos vinculares e relacionais presentes no processo de aprender.

Unitermos: Aprendizagem. Transtornos de aprendizagem. Desenvolvimento infantil.


SUMMARY

This article presents the relationship between learning difficulties and maturative delays. The literature review explores the nature of this relationship and also tries to establish a current view of the concept of maturation that includes the ambiental factor notion. Considering clinical evidences, the work shows the evolution of three patients, undergoing psychopedagogical treatment, with immature profile. From one side, the presence of an initial immaturity pattern, in these cases, illustrates and seems to confirm the relationship between learning difficulty and maturative delays. From the other side, it is possible to verify, through the comparison of graphics that draw the neurological profile of patients before and after psychopedagogical intervention, how an integrating learning therapy allows not only learning progress, but also the overcoming of these maturative delays. The study searches for the complementation of the present approach - considering the neuropsychomotor aspects of learning - with other approaches that emphasize emotional and relational aspects that are present in the learning process.

Key words: Learning. Learning disorders. Child development.


 

 

INTRODUÇÃO

A freqüência com que quadros de imaturidade neuropsicológica são diagnosticados em pacientes com dificuldade de aprendizagem suscita a questão das relações entre as dificuldades de aprendizagem e os atrasos maturativos. Qual seria a natureza desta relação? E com que conceito de maturação se está trabalhando? A revisão teórica desta questão, abordada em uma primeira parte deste trabalho, revela uma variedade de teorias que explicam as dificuldades de aprendizagem em função daqueles atrasos maturativos. Tais teorias utilizam conceitos diversos de 'maturação'. Em algumas, a maturação inclui conotações deterministas e essencialmente biológicas, sendo o desenvolvimento compreendido como decorrente de fatores exclusivamente internos, genéticos. Em outras teorias, a maturação tem um significado mais aberto, de modo que o desenvolvimento é visto como um processo resultante tanto de processos internos quanto de fatores externos à pessoa, como a experiência e a aprendizagem.

A discussão crítica das teorias que atribuem as dificuldades de aprendizagem a atrasos maturativos leva à reflexão sobre os diferentes aspectos envolvidos no processo de aprendizagem e na dificuldade de aprender - o que torna necessária uma variedade de aportes teóricos na prática clínica psicopedagógica. De um lado, propõe-se que na compreensão desta dificuldade é possível integrar à consideração da questão maturativa outras abordagens em Psicopedagogia que apontam, por exemplo, para questões vinculares e relacionais como fatores decisivos na conformação tanto de uma aprendizagem saudável como de uma dificuldade neste terreno. De outro lado, considera-se que os aspectos orgânicos e corporais vêm sendo pouco enfocados e/ou explicitados nas produções teóricas em psicopedagogia, e, talvez, também na abordagem psicopedagógica clínica das dificuldades de aprendizagem.

Partindo, então, das relações entre as dificuldades de aprendizagem e os atrasos maturativos, o trabalho procura enfatizar os aspectos neuropsicomotores presentes em todo processo de aprendizagem, o que vai ser exemplificado no caso da aprendizagem da escrita. É em função da requerida atenção a esses aspectos neuropsicomotores que se argumenta no sentido da necessária complementaridade entre a avaliação psicopedagógica e a avaliação neuropediátrica.

A apresentação, na parte final do trabalho, da evolução de três pacientes de psicopedagogia com perfil imaturo mediante o atendimento psicopedagógico permite ilustrar as relações entre as dificuldades de aprendizagem e os atrasos maturativos e, conseqüentemente, reafirmar a complementaridade das avaliações referidas acima.

Busca-se, ao longo do texto, remeter a consideração dos aspectos neuropsicomotores na clínica psicopedagógica a uma questão de fundo, mais ampla, qual seja a das relações entre a aprendizagem e o próprio processo de desenvolvimento. Ao se levar em conta a globalidade deste processo, em que diferentes aspectos - orgânicos, motores, cognitivos, emocionais, sociais - encontram-se integrados e evoluem de forma interdependente, pode-se compreender a indispensabilidade de dados neurológicos na avaliação da dificuldade de aprender. Ao mesmo tempo, pode-se compreender como uma terapia psicopedagógica que situa a dificuldade de aprender no contexto deste desenvolvimento, abrangendo-o, é capaz de reverter quadros de imaturidade neuropsicológica juntamente com a reversão da própria dificuldade de aprender. É o que a evolução satisfatória dos casos clínicos apresentados permite comprovar.

 

DIFICULDADES DE APRENDIZAGEM E ATRASOS MATURATIVOS

Utiliza-se, nesta seção, a revisão de Romero¹ sobre as teorias que atribuem as dificuldades de aprendizagem a atrasos maturativos. Iniciando por situar tais abordagens no conjunto total de teorias sobre dificuldades de aprendizagem, o autor postula que suas causas têm sido atribuídas ou às condições intrínsecas da pessoa que apresenta a dificuldade (herança genética, atrasos maturativos), ou a circunstâncias ambientais (características da família e da escola), ou, ainda, a uma combinação desses dois fatores, em que as condições pessoais são influenciadas, positiva ou negativamente, pelo meio. Segundo Romero1, esta última seria a perspectiva adotada pelas teorias que relacionam dificuldades de aprendizagem com atrasos maturativos.

As definições atuais de 'maturação' permitem a compreensão do 'peso' das condições ambientais e sua interferência nos aspectos neurológicos e/ou psicológicos, no sentido de determinar a aparição de uma dificuldade de aprendizagem. De fato, a retrospectiva histórica do conceito de maturação permite constatar as transformações pelas quais tem passado esta noção na psicologia da educação. Se num primeiro momento tal conceito assumia uma conotação biológica e determinista (desenvolvimento regulado por fatores puramente genéticos), ele evoluiu para significados mais abertos, em que o fator ambiental teria um papel importante no desenvolvimento. Em algumas abordagens, a maturação é equiparada à aquisição de "disposições" ou "disponibilidades": as mudanças fisiológicas ou internas seriam completadas por fatores externos à pessoa, como a experiência ou a aprendizagem.

Romero1 destaca que a preponderância dos fatores genéticos ou das influências ambientais no desenvolvimento varia conforme a seqüência evolutiva ou a conduta de que se trate. Assim, a aparição e o desenvolvimento de condutas filogenéticas - isto é, destrezas e capacidades características da espécie humana, como o acesso à postura bípede, por exemplo - dependeriam quase que exclusivamente de fatores genéticos. Já nas condutas de caráter psicossocial, os fatores externos, como a experiência e a aprendizagem, terão um papel preponderante em relação aos fatores genéticos. Em relação a estas condutas, a maturação seria entendida como uma disposição, referindo-se à interação da própria maturação biológica com aprendizagens e experiências específicas. Tal concepção, portanto, restringe o âmbito do maturativo-biológico às condutas filogenéticas e aos momentos iniciais de sua aparição, e concede um papel de importância ao ambiente no desenvolvimento. Em resumo, a maturação é considerada como "uma condição dinâmica que depende das características neurológicas, neuropsicológicas e psicológicas da pessoa e, em menor medida, mas de forma importante, também depende do ambiente (familiar, escolar) em que ocorre o desenvolvimento"1.

O mesmo autor divide em dois grupos as teorias sobre atrasos maturativos: 1) o que considera os atrasos na maturação neurológica e neuropsicológica e 2) o que fala em atrasos na maturação de funções psicológicas, embora não haja total clareza sobre a independência do segundo em relação ao primeiro.

Entre as teorias do primeiro grupo, há desde as que defendem o atraso estrutural-neurológico como causa das dificuldades de aprendizagem (a maioria em desuso) às que falam em atrasos evolutivo-funcionais do hemisfério cerebral direito ou do esquerdo. Apesar das diferenças entre as abordagens, seria possível identificar idéias centrais comuns às teorias que explicam as dificuldades de aprendizagem a partir de atrasos na maturação neurológica, tais como:

  • A estrutura e funcionamento cerebral desempenham papel fundamental em qualquer processo de aprendizagem;
  • Os atrasos referem-se a alterações que afetam a estrutura central ou seu funcionamento, nos dois casos, havendo conseqüências sobre o desenvolvimento;
  • As dificuldades de aprendizagem são causadas por deficiências em processos psicobiológicos básicos que, embora não tendo sérias conseqüências cognitivas, interferem nas aprendizagens escolares;
  • Tais deficiências nos processos psicobiológicos resultam de atrasos maturativos neurológicos que afetam, estrutural e/ou funcionalmente, áreas específicas do cérebro responsáveis por aqueles processos;
  • A interação entre as características específicas da criança e de seu ambiente (principalmente a família, mas também a escola em alguns aspectos), influi na importância, duração e, mesmo, no próprio surgimento da dificuldade de aprendizagem.

As diferentes teorias do segundo grupo, que se referem a atrasos maturativos psicológicos como explicação das dificuldades de aprendizagem, apresentam postulados comuns:

  • Certas funções psicológicas desenvolvem-se em um determinado ritmo, e estas progressões são relativamente espontâneas e invariáveis, não geradas nem determinadas pelo ambiente, embora este possa modular e modificar tais progressões;
  • O desenvolvimento é mais lento em algumas crianças, e isto se deve, nas teorias maturativistas mais rígidas, a causas genéticas, enquanto que as teorias mais flexíveis que utilizam o conceito de "disposição" afirmam que situações ambientais críticas, durante os primeiros anos de vida, afetam o desenvolvimento;
  • A natureza das dificuldades de aprendizagem é cognitiva e evolutiva, sendo que os atrasos no desenvolvimento estão presentes mesmo antes que a criança seja submetida a um processo sistemático de ensino e aprendizagem;
  • Em testes psicométricos, as pessoas com dificuldades de aprendizagem não obtêm pontuações significativamente mais baixas do que as pessoas sem dificuldades, e quando elas recebem atenções psicopedagógicas adequadas, as dificuldades desaparecem.

Romero1 destaca que as funções psicológicas em atraso podem dizer respeito ao desenvolvimento perceptivo e psicomotor, ao desenvolvimento de processos psicolingüísticos, ao desenvolvimento da atenção, ao desenvolvimento funcional da memória - havendo sempre uma incidência negativa sobre as aprendizagens escolares. Por exemplo, os atrasos no desenvolvimento perceptivo e psicomotor afetam funções como percepções e discriminações espaciais, coordenação (tanto a dinâmica geral, quanto a visomotora), motricidades ampla, fina, bucofacial e ocular - o que incide diretamente sobre a aprendizagem da leitura e da escrita, não deixando de afetar outras aprendizagens, como a da matemática. Da mesma forma, a atenção é requisito imprescindível para aprender.

 

APORTES TEÓRICOS E PRÁTICA CLÍNICA NO ATENDIMENTO DAS DIFICULDADES DE APRENDIZAGEM

São várias as críticas às teorias que atribuem as dificuldades de aprendizagem a atrasos maturativos. Aponta-se, por exemplo, a dificuldade de atribuir fundamentalmente à maturação o desenvolvimento de processos psicológicos complexos, que seriam mediados por variáveis de outra natureza, inclusive as ambientais. O fato é que, como o exame de Romero1 permite concluir, quanto mais flexível e aberto for o conceito de maturação utilizado pela teoria, mais espaço é concedido às condições ambientais na determinação do atraso no desenvolvimento e da dificuldade de aprendizagem.

A própria psicologia evolutiva, em suas abordagens e modelos contemporâneos², entende que as mudanças psicológicas observadas ao longo da vida humana seguem uma trajetória fixa e previsível apenas no começo do desenvolvimento, já que aí elas dependem da maturação. Entretanto, quanto mais distante o sujeito estiver do princípio do ciclo vital individual, menos imposições a maturação fará ao desenvolvimento psicológico. À medida que nos distanciamos dos primeiros anos de vida, as mudanças decorrem predominantemente de influências ambientais, sendo que a maturação limita-se a abrir possibilidades de desenvolvimento sobre as quais a cultura vai introduzindo múltiplas influências. O entorno do sujeito se configura em contextos, tanto amplos (cultura, momento histórico, grupo social), como restritos (família), que exercerão múltiplas influências sobre o desenvolvimento psicológico humano.

Não é o caso de fazermos uma eleição por uma ou outra teoria explicativa da dificuldade de aprendizagem. Penso, isto sim, que diferentes explicações (ou explicações com enfoques diferenciados) para a dificuldade de aprender podem ser bastante complementares - e não excludentes - considerando a complexidade do fenômeno em questão. De fato, um conceito aberto de maturação permite integrar outras abordagens em Psicopedagogia que apontam, por exemplo, para questões vinculares e relacionais como fatores decisivos para o desenvolvimento e a aprendizagem - aspectos que configuram, justamente, o ambiente em que se desenvolve o sujeito.

O que parece ser impossível é a compreensão do processo de aprendizagem desvinculado do desenvolvimento. Desenvolvimento e aprendizagem são processos interdependentes, afirmação que não torna obrigatória a discussão sobre a precedência de um sobre o outro (evitando-se, desta forma, o debate entre as posições teóricas de Piaget³ e Vygotsky4 ). A consideração da aprendizagem e do desenvolvimento como processos integrados e interdependentes configura, parece-me, um verdadeiro marco epistemológico que norteia a prática clínica psicopedagógica, guiando a investigação da dificuldade de aprender e orientando, também, a própria terapia. Ao mesmo tempo, é necessário levar em conta a globalidade deste processo de desenvolvimento, em que seus diferentes aspectos encontram-se integrados e evoluem de forma interdependente.

Assim, a verificação de diferentes aspectos do desenvolvimento, incluindo aspectos maturativos orgânicos, é muito relevante num processo avaliativo em Psicopedagogia, assim como é relevante enfocar o próprio processo de desenvolvimento global - junto com a aprendizagem - na terapia psicopedagógica.

Esta argumentação vai no sentido de que a prática clínica psicopedagógica requer aportes teóricos variados. Uma "eleição" teórica quando se trata de entender a dificuldade de aprendizagem pode se configurar em uma restrição importante na visão do psicopedagogo sobre seu paciente e sobre sua dificuldade de aprender, o que torna também restritas as possibilidades terapêuticas de seu trabalho clínico. Caso a noção de dificuldade de aprendizagem que o terapeuta possui se prenda exclusivamente aos aspectos vinculares e relacionais da vida do sujeito (em uma abordagem mais psicanalítica), ou aos aspectos cognitivos (em uma abordagem mais piagetiana), então outros aspectos do desenvolvimento do sujeito também implicados nos processos de aprendizagem poderão ficar de fora de sua investigação no momento da avaliação, também deixando de ser abordados na terapia. É nesse sentido que a consideração das relações entre as dificuldades de aprendizagem e os atrasos maturativos, bem como a verificação de possíveis atrasos maturativos pelo médico neuropediatra, instrumentaliza a prática clínica psicopedagógica.

 

ASPECTOS MATURATIVOS, DESENVOLVIMENTO PSICOMOTOR E APRENDIZAGEM

Já parece ser consenso na literatura psicopedagógica o fato de que múltiplos aspectos estão envolvidos na aprendizagem humana, e, como conseqüência, na dificuldade de aprender. Há muito se superou a idéia de que apenas processos cognitivos estão aí envolvidos. Por exemplo, a reconhecida noção de que o processo de aprendizagem supõe uma interação contínua entre, de um lado, processos cognitivos e, de outro, processos da ordem do subjetivo, do desejo, da emoção, determinou a incorporação da psicanálise no corpo teórico da psicopedagogia5 .

O fato de que o organismo biológico é a infra-estrutura em que se assentam todos os processos psíquicos, incluindo a aprendizagem, torna necessária a consideração do desenvolvimento físico e psicomotor (e dos aspectos neurológicos aí implicados) quando se abordam, quer a nível teórico, quer a nível prático (exame da dificuldade de aprendizagem de um paciente), questões de aprendizagem e de dificuldade de aprendizagem.

Entretanto, embora a assertiva que destaca o papel do organismo e do corpo junto com a cognição e a emoção no processo de aprender seja facilmente aceita entre os psicopedagogos, a dimensão orgânica e corporal parece ser ainda pouco enfocada. Conforme ponderei em trabalho anterior6 , o exame do desenvolvimento psicomotor em suas relações com a aprendizagem vem sendo pouco enfatizado nas últimas produções teóricas no campo da Psicopedagogia e da Psicologia da Educação, que vêm privilegiando, em suas análises, outros aspectos que incidem sobre a aprendizagem, tais como, por exemplo, fatores psicogenéticos, lingüísticos, sociais e escolares. Não menos importante, entretanto, é a consideração dos impactos do desenvolvimento psicomotor sobre a aprendizagem, sendo aquele desenvolvimento considerado como resultado tanto da maturação orgânica, que abre a porta para cada nova aquisição, quanto das circunstâncias ambientais da criança7 .

Ao se considerar a aprendizagem como um processo totalmente imbricado no desenvolvimento psicomotor (que responde a fatores maturativos orgânicos, como o crescimento e mudanças do cérebro, tanto quanto à experiência da criança em seu ambiente), ganha todo sentido e importância teórica a análise das relações entre dificuldades de aprendizagem e atrasos maturativos. Da mesma forma, ganha todo sentido e importância prática, para efeitos de avaliação e terapia, a consideração deste aspecto da realidade do paciente da clínica psicopedagógica.

A ênfase que faço nos aspectos neuropsicomotores para a correta abordagem psicopedagógica da dificuldade de aprendizagem não corresponde a uma visão que reduz tal dificuldade àqueles aspectos. A própria neuropediatria, em suas abordagens atuais, considera a importância da observação de outros aspectos, além dos neurológicos, na avaliação das dificuldades de aprendizagem. Rotta8 explica que, em que pese o fato inquestionável de que a aprendizagem se passa no sistema nervoso central, muitas são as situações extra-SNC que interferem nela, de modo que "um cérebro com estrutura normal, com condições funcionais e neuroquímicas corretas e com um elenco genético adequado, não significa 100% de garantia de aprendizado normal". Segundo a autora, em uma situação de fracasso escolar há que se considerar os fatores relacionados com a família, com a escola e com a criança (sendo que os problemas neurológicos não esgotam este tipo de fator).

 

ASPECTOS MATURATIVOS, DESENVOLVIMENTO PSICOMOTOR E APRENDIZAGEM - O EXEMPLO DA ESCRITA

O desenvolvimento psicomotor está imbricado em todos os processos de aprendizagem. Tomar uma aprendizagem específica para análise pode auxiliar na compreensão do quanto os aspectos psicomotores estão aí implicados, servindo-lhe de suporte. Proponho que pensemos na aprendizagem da escrita. Tal escolha acontece, em primeiro lugar, porque a escrita se constitui em ferramenta de integração social e cultural, e configura um pré-requisito para o avanço escolar. Em segundo lugar, porque nos casos clínicos apresentados a seguir a escrita era o aspecto predominantemente comprometido.

Ora, a escrita depende de certas destrezas instrumentais incontestáveis, cujo exame tem sido relegado a um segundo plano. Sem proceder à redução de um fenômeno complexo e multifacetado como a escrita (cuja aprendizagem envolve condições intelectuais, lingüísticas, emocionais e sociais) à questão do controle do movimento, há que se considerar a presença de um componente de controle motor de primeira magnitude nesta tarefa gráfica. Os aspectos motores que são acionados quando a criança escreve têm relação com inúmeras funções psicomotoras7 . Destrezas motoras globais, que afetam a motricidade grossa ou ampla e o controle postural, bem como destrezas segmentadas, que afetam a motricidade fina e o controle óculo-manual ou viso-manual, estão diretamente ligadas à possibilidade de escrever de modo eficiente.

Todo um progresso psicomotor, que acontece em estreita relação com o desenvolvimento físico e com mudanças cerebrais, permite o desenvolvimento do controle do próprio corpo e destas destrezas amplas e segmentadas. Ao longo deste desenvolvimento, os movimentos crescem em independência e coordenação: ao mesmo tempo em que é capaz de controlar separadamente cada segmento motor, a criança torna-se aos poucos capaz de coordenar estes movimentos independentes, formando movimentos complexos. Além disto, a criança torna-se capaz de automatizar a seqüência que forma estes movimentos complexos, sem precisar prestar atenção neles enquanto os executa.

Todos esses progressos motores que podem ser observados nas ações da criança, incluindo aí o gesto gráfico que envolve a escrita, estão em relação com uma "psicomotricidade invisível", isto é, com aspectos menos visíveis, ou difíceis de serem observados à primeira vista7. Estes aspectos têm, todos eles, incidência direta sobre diferentes aprendizagens escolares, inclusive a aprendizagem da escrita. Entre eles estão a estruturação do espaço (relacionada com a consciência das coordenadas nas quais nosso corpo se move e nas quais transcorre nossa ação), a tonicidade muscular (o tônus repercute no controle postural e também se relaciona com a manutenção da atenção, além de ter estreita relação com as emoções e a personalidade) e o equilíbrio (condição de todo movimento e de toda ação).

O domínio progressivo do gesto gráfico, do qual depende a escrita, está em íntima relação com todo este desenvolvimento psicomotor. A clínica psicopedagógica é rica em exemplos do quanto um desenvolvimento psicomotor falho ou defasado afeta a aprendizagem da escrita. Fenômenos como dor, suor, desconforto ao escrever, lentidão, caligrafia torpe - que, diga-se de passagem, são normalmente menosprezados por muitos pais e, inclusive, professores - afetam toda a possibilidade de escrever. Graças ao desenvolvimento, por Leonhardt9 , de um instrumento diagnóstico específico, o "mapeamento da dor gráfica", temos hoje mais e melhores condições de diagnosticar e tratar tais disgrafias, ou "dispraxias ligadas ao ato gráfico". Esta dificuldade, como a experiência clínica revela e a literatura consultada destaca, não fica circunscrita ao aspecto motor, ampliando-se e determinando o que a mesma autora denomina de "patogenia do ciclo de inibições nas disgrafias", posto que, sobre um fundo dispráxico, instaura-se sofrimento, inibição e fragilidade nas relações de aprendizado, trabalho e convívio social.

 

COMPLEMENTARIDADE ENTRE AVALIAÇÕES PSICOPEDAGÓGICA E NEUROPEDIÁTRICA

A incidência direta de funções neuropsicológicas em todo processo de aprendizagem - como buscamos analisar de forma um pouco mais detida no caso específico da escrita - requer seu exame num processo avaliativo da dificuldade de aprendizagem, o que é feito pelo médico neuropediatra. A abordagem do paciente neuropediátrico, como esclarecem Rotta et al.1 0, envolve anamnese, exame físico, exame neurológico (abrangendo psiquismo, linguagem, atitudes, fácies, equilíbrio, motricidade, função sensitiva e nervos cranianos), e o exame neurológico evolutivo. Na criança acima de 7 anos, faz-se o exame das funções corticais superiores, com provas que avaliam orientação, memória, desenho da figura humana, gnosias, praxias, linguagem e cálculo.

O Exame Neurológico Evolutivo atende, segundo os mesmos autores, à necessidade de uma semiologia neurológica própria para a criança, posto que o exame desta "mostra o desempenho de um momento de um ser em pleno processo de desenvolvimento neuropsicomotor; portanto, capaz de sofrer alterações dependentes da função de estruturas que estão, também, em ativa evolução". Tal exame evolutivo, abrangendo linguagem, lateralidade, equilíbrio estático, equilíbrio dinâmico, coordenação apendicular, coordenação tronco-membros, persistência motora, sincinesias, tono muscular, reflexos e sensibilidades, permite traçar "um perfil dessas crianças em relação a essas funções, que, com freqüência, quando imaturas, apresentam um perfil neurológico discrepante". Deve-se a Rotta a aplicação pioneira do exame neurológico evolutivo no estudo das dificuldades para a aprendizagem, em tese (defendida em 1975) que concluiu pelo valor diagnóstico e prognóstico do exame.

Minha prática clínica só faz confirmar a importância deste exame na avaliação da dificuldade de aprendizagem, razão pela qual enfatizamos a complementaridade entre as avaliações psicopedagógica e neuropediátrica. De posse do perfil neurológico do paciente, o psicopedagogo pode:

  • Compreender o grau de comprometimento das funções neuropsicomotoras no quadro total da dificuldade de aprendizagem do paciente, colocando tais dados em relação com outros aspectos (cognitivos, gráfico-plásticos, projetivos, escolares, familiares) também aferidos na avaliação psicopedagógica;
  • Obter e oferecer à família, a partir daquela compreensão, alguma noção quanto ao tempo da atenção psicopedagógica necessária (quanto maior a imaturidade diagnosticada, maior, possivelmente, o tempo de atendimento psicopedagógico demandado);
  • Enfocar no contexto da terapia os aspectos mais comprometidos;
  • Acompanhar os resultados da terapia mediante reavaliações neuropediátricas que traçam novos perfis;
  • Fazer os redirecionamentos cabíveis nos recursos e estratégias terapêuticas, em função dos achados das reavaliações neuropediátricas e psicopedagógicas.

Por todos estes aspectos, a avaliação neuropediátrica e, especificamente, o exame neurológico evolutivo, têm um caráter instrumentalizador da prática do psicopedagogo.

Três casos clínicos

Passo agora a relatar três casos clínicos, nos aspectos que se relacionam ao tema enfocado no presente estudo. Nos três casos, uma avaliação neuropediátrica foi solicitada como complemento à avaliação psicopedagógica. Nos três casos, um perfil de imaturidade foi diagnosticado, em quadros coerentes com as dificuldades de aprendizagem apresentadas. Para o acompanhamento do quadro de imaturidade inicial, bem como das modificações positivas constatadas com a atenção médica e psicopedagógica dispensada aos pacientes, utilizo os dados fornecidos pela médica neuropediatra, relativamente ao exame neurológico evolutivo.

Caso 1 - Raul, 7 anos e 7 meses, segunda série do ensino fundamental. Muito inteligente, suas dificuldades centram-se na escrita, especialmente em seus aspectos motores: apresenta preensão atípica, traçado torpe, macrografismo, lentidão, além de manifestações de dor e cansaço nas tarefas gráficas. A avaliação neuropediátrica aponta para um perfil neurológico imaturo, com defasagens no desenvolvimento da coordenação fina e do equilíbrio estático, quadro este relacionado com hipotonia muscular, maior de mãos e de pernas. Na Figura 1, a coluna cinza mostra os atrasos maturativos verificados em janeiro de 2001. A distância entre a idade cronológica e o desenvolvimento alcançado pode ser verificada em coordenação apendicular (defasagem de um ano) e em equilíbrio estático (defasagem de dois anos). A coluna preta dá conta do importante progresso verificado na avaliação médica realizada um ano depois, em janeiro de 2002, quando as imaturidades constatadas anteriormente são superadas. Nesta última avaliação, a médica atesta, também, a quase normalidade da tonicidade das mãos e o progresso, também significativo, na tonicidade de pernas. Ao mesmo tempo, as reavaliações realizadas na terapia psicopedagógica, ao longo do mesmo período, revelam os progressos notáveis na situação de aprendizagem de Raul. A disgrafia é progressivamente superada, e ele alcança um controle significativamente superior do traço, logrando uma caligrafia harmoniosa e suficientemente veloz.

 

 

Caso 2 - Bernardo, 8 anos e 10 meses, terceira série do ensino fundamental. Trazido para avaliação psicopedagógica em função do baixo rendimento escolar, sua dificuldade de aprendizagem envolvia leitura, escrita e operações matemáticas, ainda que o aspecto da escrita fosse o mais comprometido. A avaliação neuropediátrica, realizada na seqüência da psicopedagógica (também em maio de 1999) revelou um quadro de significativa imaturidade psiconeurológica. Na Figura 2, a coluna cinza mostra defasagens importantes no desenvolvimento de cinco dos seis aspectos examinados, chegando a uma defasagem de mais de 3 anos e meio nas funções equilíbrio estático e persistência motora, enquanto que nas funções de equilíbrio dinâmico e coordenação apendicular a defasagem é de dois anos e meio, e, em coordenação tronco-membros, a imaturidade é de um ano e meio. Após cinco meses e meio de atendimento, aliado ao tratamento com a medicação estimulante da atenção prescrita, o exame das funções neurológicas já atesta uma importante melhora, como se vê, na mesma figura, na coluna preta, que corresponde à avaliação de novembro de 1999. Nesta data, quando Bernardo contava com 9 anos e 4 meses, a defasagem em coordenação de mãos e coordenação tronco-membros é superada; por outro lado, as funções equilíbrio estático e persistência motora têm, nestes meses, um desenvolvimento equivalente a três anos, enquanto que em equilíbrio dinâmico a progressão corresponde a dois anos. Passados mais 11 meses, quando Bernardo já contava com 10 anos e 3 meses, a avaliação médica mostra um perfil neurológico normal. A esta altura, as condições de aprendizagem do menino já eram bastante superiores, tendo a escrita evoluído consideravelmente. Ainda assim, o atendimento psicopedagógico se fez necessário por mais um período de tempo, já que as conquistas na aprendizagem não alcançaram - na mesma época - a mesma estabilidade verificada no quadro do desenvolvimento neurológico.

 

 

Caso 3 - Alberto, 9 anos e 1 mês, quarta série do ensino fundamental. A dificuldade do paciente centrava-se na escrita. Um traçado significativamente lento convivia com fenômenos de dor e suor, dificultando o acompanhamento das atividades escolares, apesar de tratar-se de um menino muito inteligente. A avaliação neurológica inicial mostra um quadro de imaturidade neuropsicológica compatível com uma hipotonia muscular, resultando em defasagens no desenvolvimento de funções como coordenação apendicular (defasagem de dois anos), equilíbrio estático e dinâmico (defasagem de um ano) e persistência motora (defasagem de um ano), o que pode ser verificado acompanhando-se a coluna cinza (Figura 3). Neste caso, apenas o atendimento psicopedagógico foi indicado e, um ano depois, o perfil neurológico de Alberto já apresenta progressos significativos (coluna preta), revelando apenas uma defasagem, menor, em persistência motora. Também na escrita os progressos ficam evidenciados e, embora não tendo recebido alta psicopedagógica nesta mesma época, o acompanhamento e rendimento escolar de Alberto já são bastante superiores.

 

 

DESENVOLVIMENTO E APRENDIZAGEM EM TERAPIA PSICOPEDAGÓGICA

Viu-se como, nos três casos citados, as dificuldades de aprendizagem encontravam correspondência com um quadro de imaturidade psiconeurológica, ao mesmo tempo que, com a evolução da terapia psicopedagógica, e os progressos no terreno da aprendizagem, novas avaliações neuropediátricas apontaram para a superação de atrasos maturativos antes verificados.

A evolução significativa dos sujeitos, para além do foco específico deste estudo, levanta inevitavelmente a questão do trabalho realizado na clínica psicopedagógica, ou, mais especificamente, da linha terapêutica seguida. Cabe fazer algumas considerações a este respeito, antes que uma conclusão apressada do leitor faça supor que o trabalho com estas crianças privilegiou de alguma maneira a aquisição, por meio de algum trabalho mecânico e fragmentado, das "habilidades" defasadas segundo o exame médico.

A ênfase dada neste trabalho aos aspectos neurológicos, neuropsicológicos e psicomotores presentes nas dificuldades de aprendizagem não significa que o atendimento psicopedagógico realizado deva priorizar estes aspectos sobre outros, em uma espécie de reeducação motora mecânica. A abordagem dos atrasos maturativos e suas relações com as dificuldades de aprendizagem, ou a ênfase nos aspectos psicomotores presentes naquelas dificuldades, resulta tão somente de um foco específico que se tomou para exame, e não da crença em uma definição daquelas dificuldades, de uma forma restritiva e exclusiva (ou excludente) ao redor destes aspectos neuropsicológicos e psicomotores.

Assim, se marco a importância de que tais aspectos sejam abordados no processo terapêutico, isto não significa que esta deva ser uma abordagem descontextualizada de outros aspectos do desenvolvimento e da personalidade do sujeito, que estão em relação com sua aprendizagem. Pelo contrário, tenho elegido como estratégias terapêuticas propostas que evidenciam a atividade criadora do paciente. Tais propostas se aproximam de uma atividade mais espontânea e prazerosa. Além disso, configuram uma expressão simbólica que resulta de processos simultaneamente intelectuais, motores e afetivos - sendo, por isso, estratégias tão integradoras1 1. Produções plásticas livres, construções diversas ou simples brincadeiras podem ser tomadas como ponto de partida para atividades progressivamente organizadas, ou dirigidas, ou específicas, a depender da necessidade do paciente e do ponto de evolução da terapia.

Para ilustrar tal abordagem terapêutica, retomo o caso de Bernardo, especificamente o processo clínico que se desenrolou nos cinco meses transcorridos entre a primeira avaliação neuropediátrica (maio/1999) e a segunda (outubro/1999). Neste intervalo de tempo, durante as sessões, Bernado trabalhou numa maquete projetada por ele. Realizou uma construção repleta de cenas, ricamente elaboradas, que apresentava seres humanos e animais em diferentes situações, todos os elementos integrados por um tema comum. Os aspectos de equilíbrio, coordenação e persistência motora, tão defasados, puderam ser contemplados num contexto prazeroso, cheio de significado para o menino. Como explica Leonhardt1 2, a estratégia da construtividade permite "a construção de contextos individuais de alta significação, que propiciam conhecimentos e aprendizagem". A construção se refere, portanto, a idéias e também a sentimentos, alcançando "um patamar de expressão simbólica da realidade interna que a linguagem discursiva não consegue atingir". A construção de maquete corresponderia a um tipo de estratégia terapêutica mais recentemente denominada pela mesma autora9 como "CITIS - ciclos de transformação e integração simbólica": "situações de significado, para o paciente, fornecem as chaves que desenvolvem uma rede de apoio para a ação em torno de um tema selecionado, em que ele retoma os passos característicos da escala evolutiva", quais sejam: sentir, pensar, agir, representar a ação por vias simbólicas diversas. Envolvendo o paciente por inteiro, isto é, acionando todos os aspectos de seu desenvolvimento no contexto de sua personalidade, a maquete, como Leonhardt permite compreender, configura um "recurso contextual", para "desarmonias contextuais" (expressões que remetem ao caráter sistêmico do tratamento requerido por desarmonias e sofrimentos também sistêmicos apresentados pelos pacientes).

Tenho comprovado, em minha experiência clínica, a riqueza e eficiência desta estratégia, que encontra fundamentação teórica em diferentes áreas do conhecimento, como a Epistemologia Genética, a psicanálise de Winnicott, a filosofia, a antropologia e até a história das ciências1 3. Verdadeira mola propulsora de diferentes desenvolvimentos, a maquete permite a melhora das condições de aprendizagem do sujeito, o que fica evidenciado no exemplo clínico citado, em que a superação de grande parte dos aspectos defasados foi possível num espaço curto de tempo.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Quanto aos casos clínicos citados, é possível concluir, inicialmente, que a compreensão das dificuldades manifestadas pelos três sujeitos em questão só poderia ser completa, e correta, com o conhecimento de seu desenvolvimento neurológico. A condução do atendimento talvez não fosse a mesma sem esta compreensão, e, como conseqüência, também os resultados talvez não tivessem alcançado a mesma eficácia. É fundamental compreender a aprendizagem, e as dificuldades de aprendizagem, no quadro maior do desenvolvimento infantil, em todas as suas dimensões - inclusive orgânica. Daí a referida complementaridade entre a avaliação psicopedagógica e a avaliação neuropediátrica.

Em segundo lugar, e ainda relativamente aos casos apresentados, destaquei a coincidência entre o quadro inicial de imaturidade verificado na avaliação neuropediátrica e o quadro inicial de dificuldade de aprendizagem verificado na avaliação psicopedagógica: as funções neuropsicomotoras em atraso incidiam negativamente sobre as aprendizagens escolares. Ao mesmo tempo, com a devida atenção psicopedagógica e médica, foi possível verificar, nos três casos examinados, uma melhora integrada nos aspectos de desenvolvimento e aprendizagem, o que só faz confirmar a relação existente entre os aspectos maturativos e a aprendizagem, relação sobre a qual nos debruçamos neste estudo.

Um terceiro aspecto a ser destacado é, justamente, a possibilidade de reversão dos quadros imaturos e das próprias dificuldades de aprendizagem, sempre que cuidados psicopedagógicos e médicos adequados são dispensados nestes casos. É aí que o tema da abordagem terapêutica em psicopedagogia ganha importância. Argumentou-se no sentido de que a intervenção psicopedagógica oportuna e eficaz é aquela que toma como marco epistemológico a necessária relação entre desenvolvimento e aprendizagem, considerando que comprometimentos ou atrasos no desenvolvimento - este entendido de forma global e integrada - concorrem para a configuração das dificuldades de aprendizagem.

Além de tomar a aprendizagem como um aspecto contextualizado num desenvolvimento global, considera-se que a abordagem terapêutica adequada é aquela que, como se buscou demonstrar, vale-se de diferentes estratégias que garantem a expressão subjetiva do paciente. Tais estratégias permitem o desenvolvimento de aspectos prejudicados por meio de produções variadas, chegando a resultados ao mesmo tempo eficientes e integradores - o que pode ser sintetizado na denominação "tratamento sistêmico", de Leonhardt.

Ainda em relação à possibilidade de reversão do quadro de imaturidade e da própria dificuldade de aprender, cabe salientar que a evolução do quadro clínico pode não coincidir com uma melhora escolar imediata, aspecto confirmado em minha experiência clínica, e destacado na literatura. Romero cita a teoria de Ross, segundo a qual as dificuldades de aprendizagem ligadas a atrasos no desenvolvimento da atenção dificultam os processos de registro sensorial, memória e organização do conhecimento, de modo que mesmo amadurecendo posteriormente, tais crianças continuarão tendo problemas escolares "porque não terão aprendido ou consolidado aquisições anteriores mais simples, das quais depende a passagem de uma etapa de aprendizagem de nível inferior para outra de nível superior". A defasagem de habilidades ou mecanismos ou conteúdos não aprendidos e/ou não consolidados é que justifica, na maioria das vezes, que o tratamento psicopedagógico se prolongue para além da alta neuropediátrica.

Finalmente, retomando a primeira parte teórica do trabalho, o reconhecimento cada vez maior dos fatores ambientais na configuração de quadros de imaturidade e de dificuldades nos processos de desenvolvimento e aprendizagem, faz-me pensar na importância de medidas preventivas. Tais medidas preventivas devem referir-se tanto à conformação de ambientes familiares e escolares que garantam um desenvolvimento saudável à criança, como à detecção precoce de determinadas dificuldades, considerando que antes de ser submetida a situações de aprendizagem mais formais e sistemáticas (séries iniciais do ensino fundamental), a criança, muitas vezes, já apresenta elementos que permitem antever um futuro de possíveis dificuldades de aprendizagem1 4.

 

REFERÊNCIAS

1. Romero J. Atrasos maturativos e dificuldades na aprendizagem. In: Desenvolvimento psicológico e educação 3. Transtornos do desenvolvimento e necessidades educativas especiais. Porto Alegre:Artmed;2004.         [ Links ]

2. Palacios J. Psicologia evolutiva: conceito, enfoques, controvérsias e métodos. In: Coll C, Marchesi A, Palacios J, org. Desenvolvimento psicológico e educação 1. - Psicologia evolutiva. Porto Alegre:Artmed;2004.         [ Links ]

3. Piaget J. Problemas de psicologia genética. 5ª ed. Lisboa:Publicações Dom Quixote; 1983.         [ Links ]

4. Vygotsky LS. A formação social da mente. 6ª ed. São Paulo:Martins Fontes;1998.         [ Links ]

5. Fernández A. A inteligência aprisionada - abordagem psicopedagógica da criança e sua família. Porto Alegre:Artes Médicas; 1990.         [ Links ]

6. Corso H. Desenvolvimento psicomotor e aprendizagem - aspectos evolutivos e ambientais. Palestra proferida no Segundo Encontro de Psicomotricidade. FIEP (Fédération Internationale de Education Physique) - RS. Bagé;2005.         [ Links ]

7. Palácios J, Cubero R, Luque A, Mora J. Desenvolvimento físico e psicomotor depois dos dois anos. In: Coll C, Marchesi A, Palacios J, org. Desenvolvimento psicológico e educação - Psicologia evolutiva. Porto Alegre:Artmed;2004.         [ Links ]

8. Rotta N. Dificuldades para a aprendizagem. In: Rotta N, Ohlweiler L, Riesgo R. Transtornos da aprendizagem - Abordagem neurobiológica e multidisciplinar. Porto Alegre:Artmed;2006.         [ Links ]

9. Leonhardt DR. Avaliação e clínica das praxias e dispraxias na aprendizagem: mapeamento da dor gráfica. In: Rotta N, Ohlweiler L, Riesgo R. Transtornos da aprendizagem - Abordagem neurobiológica e multidisciplinar. Porto Alegre: Artmed;2006.         [ Links ]

10. Rotta N, Riesgo R, Ohlweiler L. Semiologia neuropediátrica. In: Rotta N, Ohlweiler L, Riesgo R. Transtornos da aprendizagem - Abordagem neurobiológica e multidisciplinar. Porto Alegre:Artmed;2006.         [ Links ]

11. Corso HV. A construção simbólica no atendimento psicopedagógico. Centro de Atendimento Psicanalítico. Texto utilizado como apoio à oficina "A construção simbólica no atendimento psicopedagógico". Porto Alegre;2001.         [ Links ]

12. Leonhardt DR. As janelas do sonho: construtividade e estética em terapia de aprendizagem. Rev Psiquiatr. 1994;6(1):55-65.         [ Links ]

13. Leonhardt D, Corso H. Janelas da alma - maquetes como construção sensível da realidade. Material de curso. Porto Alegre; 2004.         [ Links ]

14. Corso HV. A importância ambiental na detecção das dificuldades de aprendizagem. Universidade da Região da Campanha. Palestra proferida no encontro "A Psicopedagogia na Contemporaneidade". Bagé; 2004.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Helena Vellinho Corso
Rua Carlos Mangabeira, 199, apto. 1002 - Centro
Bagé - RS - 96400-490
Tel: 0xx53 3242-6465

Artigo recebido: 26/11/2006
Aprovado: 28/03/2007

 

 

Trabalho realizado na Universidade Estadual do Rio Grande do Sul - UERGS, Porto Alegre, RS.

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