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Revista Psicopedagogia

versão impressa ISSN 0103-8486

Rev. psicopedag. vol.24 no.74 São Paulo  2007

 

ARTIGO ESPECIAL

 

Literatura e construção da identidade

 

Literature and the development of identity

 

 

Leda Maria Codeço Barone

Psicanalista do Instituto de Psicanálise da SBP-SP. Doutora em Psicologia Escolar pelo IPUSP. Professora do Centro Universitário FIEO

Correspondência

 

 


RESUMO

Muitas são as funções da literatura. Lemos para nos deleitar, para nos informar, para nos distrair. Lemos também para nos instruir, para ampliar nossos horizontes, para mitigar nossos medos, para nos comunicar com o outro. A partir da experiência pessoal com a literatura, e apoiada em algumas idéias de Walter Benjamin, Umberto Eco e Antonio Cândido, a autora defende o valor da literatura na construção e reconstrução da identidade e na criação do mundo do leitor.

Unitermos: Literatura. Identidade. Terapêutica. Leitura.


SUMMARY

Literature has many functions. We read in order to enjoy ourselves, to be informed, to keep our mind off things. We also read to be instructed, to magnify our horizons, to mitigate our fears and to communicate with others. From her personal experiences with literature and based on some ideas of Walter Benjamin, Umberto Eco and Antonio Cândido, the author discusses the importance of literature for the development of identity and the creation of the reader's world.

Key words: Literature. Identity. Therapeutics. Reading.


 

 

Creio que cada um de nós traz na memória lembranças de experiências muito antigas de nossos primeiros contatos com o livro. Das minhas experiências infantis, três foram, sem dúvida, fundamentais na constituição de minha identidade e, por isso mesmo, no meu gosto pela leitura. A primeira e a mais remota foi ouvir, junto com meus irmãos na voz de meu pai, histórias maravilhosas antes de dormir. Ainda hoje, se fecho os olhos, sou capaz de ouvir ao longe aquela voz tão familiar e, ao mesmo tempo, tão misteriosa. A segunda foi a observação que fazia de meu pai lendo. A mim parecia um momento mágico tal a reverência e prazer que adivinhava por sua atitude diante do livro que lia. Meu pai com um livro nas mãos me dava a impressão de que não lhe faltava nada. O mundo do cotidiano desaparecia à sua volta e eu intuía que ele acedia a um mundo mágico, repleto de coisas belas e enigmáticas. A terceira foi minha tentativa de conhecer o mundo mágico de meu pai. Assim, sempre que podia, entrava sorrateiro em sua biblioteca para bisbilhotar seus livros. A princípio, embora não soubesse ler, já conhecia os livros por sua cor, tamanho, tomo. Poucos eram ilustrados, mas lembro de um em especial, cujas ilustrações não cansei de observar. Depois de um tempo, podia ler seus títulos: "Jacques o fatalista"; "A Divina Comédia"; "Dom Quixote", "Dom Casmurro", "Os miseráveis", "O vermelho e o negro", e tantos outros. Dos livros de meu pai, o primeiro que li, mas ainda menina, foi "Jacques o fatalista". Dele tenho pouca lembrança, talvez até porque não tivesse condições para compreendê-lo na época. Mas o segundo, "Crime e castigo", este até hoje não me sai da memória. O impacto da leitura foi de tal natureza que o devorei em apenas dois dias, apesar de suas quase quinhentas páginas. Assim, desde muito cedo, desenvolvi certo respeito aos livros e à idéia de que eles se constituem fonte, raiz, origem de um modo particular de ser e de olhar o mundo.

Mais tarde, quando terminava meu curso de Pedagogia, surgiu a oportunidade de assumir uma classe de alfabetização. Fui convidada a substituir uma professora que resolvera mudar-se, repentinamente, para outro país. Depois dos acertos necessários com a direção e coordenação da escola e feita a apresentação devida aos alunos, fui deixada a sós com eles. Mal começara a lhes falar, surgiu um burburinho que foi crescendo e tomando conta da sala. Aos poucos, as crianças começaram a subir nas mesas, a atirar objetos, enlouquecidas. Quase entrei em pânico. Pensei em chamar a diretora, a coordenadora, alguém que pudesse acalmar aqueles pequenos selvagens descontentes. Mas não chamei ninguém. Com voz firme, porém enternecida pela angústia das crianças, perguntei se elas conheciam a história "O macaco que perdeu o rabo" *. Fez-se um silêncio na sala. Ninguém conhecia a história. Notei uma curiosidade no rosto de cada criança. Pedi, então, que elas se sentassem no chão, onde também me sentei, e contei a história que fora tantas vezes ouvida de meu pai quando criança.

Confesso que na ocasião não tivera a mínima idéia de porque sugerira contar uma história e menos ainda porque escolhera essa história entre tantas outras de minha infância. Talvez soubesse por experiência própria que ouvir história acalmava, permitia lidar com os medos, com a angústia, com a insatisfação. Mas o certo é que, sem saber, falei também para meus alunos sobre coisas importantes que a psicanálise nos ensina. Entre elas destaco a dificuldade, já apontada por Freud1, de nos desligarmos de nossos objetos de amor. Destaco também a raiva impotente com que reagimos diante da perda desses objetos. Assim, ao propor a história "O macaco que perdeu o rabo", sem saber interpretei, revelando a meus pequeninos alunos o campo de insatisfação em que estavam presos, o campo da impossibilidade de suportar a perda da professora querida. A história porém apontava para a possibilidade de substituição e de, mesmo assim, tocar a vida para frente. Aliás, esta é outra necessária aprendizagem da vida: nossos objetos de amor são objetos substitutos, pois o primeiro objeto é perdido para sempre. Reconhecer esta verdade permite que nos lancemos à vida em busca de nossos desejos.

Dessa maneira, creio poder dizer que esta história me salvara. Por ela pude assumir a tão sonhada condição de professora. A história foi uma espécie de rito de passagem: entrava finalmente na comunidade adulta.

Alguns anos depois, já no mestrado, escolhi como objeto de minha dissertação estudar as relações entre o leitor e o texto literário. Tinha como hipótese que o texto exercia alguma influência sobre o leitor.

Mas o trabalho que realmente teve efeito na posição em que me encontro agora foi o doutoramento. Naquela ocasião, além de minha atividade docente junto à disciplina "Psicologia escolar e problemas de aprendizagem" na graduação de Psicologia, fiz especialização em Psicopedagogia e iniciei atendimento clínico. Embora pretendesse no doutoramento continuar minha pesquisa da relação leitor e texto literário, as vicissitudes da clínica me impuseram outro caminho. Atendia um menino de sete anos que inventou uma escrita que imitava os ideogramas japoneses. A necessidade de mudar minha prática psicopedagógica, de maneira a atender este garoto, levou-me à psicanálise e à decisão de utilizar em meu doutoramento o estudo deste caso2, que, de cabo a rabo, foi perpassado por histórias que lia para ele.

A clínica psicopedagógica com crianças com dificuldades de aprendizagem da leitura e da escrita também foi um excelente campo de estudo para mim. A observação que fazia da linguagem dessas crianças - deixando de lado os problemas referentes à sintaxe, ao vocabulário e à articulação - me levou a considerar dois pontos importantes: o primeiro, em relação à submissão da fala dessas crianças à demanda social, pois elas eram capazes de repetir a queixa da escola ou de seus pais a respeito de suas dificuldades. No entanto, elas eram incapazes de falar mais livremente, de expressar um ponto de vista, um pensamento ou um sentimento mais pessoal. O segundo, em relação a uma fabulação excessiva, que mais se assemelhava à defesa que propriamente ao uso criativo da linguagem. Tal observação levou-me a desenvolver com essas crianças algo que chamei na época de investimento na linguagem. Consistia em propor-lhes que narrassem suas experiências, que falassem livremente a respeito delas e de suas observações sobre o mundo. Aos poucos, eu mesma comecei a introduzir a leitura, feita por mim, de textos ora escolhidos por elas, ora por mim mesma, quando imaginava que o texto pudesse dizer alguma coisa àquela criança em especial. Depois desse tempo de investimento, a alfabetização vinha por acréscimo. Conclui que esta atividade despertava nas crianças o desejo de ler.

Assim, muito cedo compreendi que a leitura, sua aprendizagem e mesmo suas dificuldades, não poderiam ser dissociadas do sujeito, isto é: das experiências, da história de vida, do gosto e do desejo do leitor. Compreendi também que as histórias, as lendas, as fábulas, os contos, enfim, que a literatura tem efeitos importantes na construção e reconstrução da identidade e realidade do sujeito.

Encontrei no texto "A leitura em espaço em crise", de Michèle Petit3, algumas indagações muito próximas das observadas por mim. Neste texto, a autora se pergunta o que a leitura pode fazer em tempos de desamparo e, se esta experiência é capaz de sustentar as forças da vida. Impressionaram-me, sobremaneira, duas experiências citadas por ela. Uma delas vivida por Mira Rothenberg, uma jovem que se encontrava na situação de lecionar para 32 crianças judias, com idade entre 11 e 13 anos. Muitas dessas crianças nasceram em campos de concentração e haviam vivido toda sorte de desventura, perdendo a casa, a pátria e os pais. Como observa Petit: "São crianças com olhar de pedra, que construíram fortalezas para se proteger dos horrores que atravessaram; estão em carne viva, sentem-se aterrorizadas; violentas, não têm confiança em ninguém, e repetem dia após dia que querem voltar, reencontrar sua terra de origem"3.

Logo após a guerra, estas crianças foram recolhidas e enviadas para os Estados Unidos, onde deveriam ser educadas e viver. Petit cita, então, Mira Rothenberg:

"Devia civilizá-las, torná-las aceitáveis aos olhos da América. Era uma brincadeira amarga e cruel. Elas não aprendiam nada. Então, um dia, aproveitando de uma acalmia em seus repentes de raiva, contei-lhes sobre os índios americanos. Contei-lhes como os homens a quem este país pertencia haviam se tornado refugiados em suas próprias terras, das quais tinham sido expropriados. Encontrei um livro de poesias indígenas - falavam da terra que eles amavam, dos animais com os quais conviviam, de sua força, de seu amor, de sua raiva e de seu orgulhos.

E de sua liberdade". (Rothenberg, apud Petit, 2006, p.151)

Depois dessa experiência, as crianças reagiram, demonstrando que algo havia mudado nelas e, aos poucos, começaram a desfazer suas carapaças.

A história contada e as poesias lidas tiveram o poder de tocar partes da alma, feridas pelos traumas vividos, oferecendo palavras ali onde não havia. Estas crianças depois dessa experiência puderam falar dos índios, aprender a tecer e a fazer cerâmica, a ler e a escrever outros poemas. Também puderam estudar a história e a cultura dos índios, comparando-as às de sua terra natal.

A outra experiência (citada por Petit), na Colômbia, ocorrida após cinqüenta anos dessa primeira, quem conta é Beatriz Helena Robledo. Ela também leu histórias para adolescentes em um programa chamado: "Eu escolho a palavra"**. Os jovens desse projeto são adolescentes que participaram do conflito armado, do lado da guerrilha ou dos para-militares. São jovens que depois de capturados foram abandonados porque estavam feridos e doentes. Recolhidos em um alojamento, profissionais diversos ofereciam sua ajuda com intuito de levá-los a reencontrar a infância perdida, condição necessária para que pudessem projetar um futuro.

Nos conta, então, Beatriz Robledo:

"Nós contávamos mitos e lendas diante de um mapa da Colômbia, onde estavam situados os diferentes grupos indígenas que povoavam o país. Nunca havíamos imaginado que um mapa pudesse significar tanto... O fato de ele estar ali, presente, visível, enquanto eles escutavam contos e lendas, permitiu-lhes não só elaborar suas próprias histórias, mas também suas geografias. À medida que íamos lendo e assinalando as origens do mito ou da lenda, eles iam se lembrando de lugares, de rios, de vilarejos por onde haviam passado."

"De repente, como por um passe de mágica, ao falar das lendas da 'Llorona', da 'Madremonte', do 'Mohán', a palavra destes jovens, reprimida durante tantos anos pela guerra, substituída pelo barulho dos fuzis, começa a surgir e eles começaram a narrar, a contar..." (...) "Para uma população marginalizada, uma biblioteca, uma coleção de livros, cumpre um papel essencial (...) Isto vai além do papel informativo ou de educação formal. Para cidadãos que vivem em condições normais de desenvolvimento, um livro é uma porta a mais que se abre; para aqueles aos quais foram negados os direitos fundamentais, ou que vivem em condições subumanas, talvez um livro seja a única porta que lhes permitiria ultrapassar o limiar e saltar do outro lado." (Robledo, apud Petit, 2006, p. 151-2)

A autora conta, ainda, que, depois desta experiência com as lendas e mitos, Júlio, um dos adolescentes que antes permanecia em silêncio, pediu a palavra e, apontando com o dedo o mapa da região que percorrera, falou como nunca havia feito antes: contou as histórias que havia escutado em sua infância, depois a sua própria história, encontrando ligação no mais profundo de si mesmo.

Petit, com uma longa trajetória em pesquisas dessa natureza, levanta algumas hipóteses, ou como ela fala, linhas de pesquisa, no que se refere à contribuição da leitura nos espaços de crise. São elas:

1. A primeira refere-se ao fato de que tais experiências partem de situações de intersubjetividade que a escola, a biblioteca, ou o centro cultural, social, ou ainda uma associação, tornam possíveis; tudo parte de encontros personalizados, de uma qualidade de acolhimento, de hospitalidade.

2. As leituras abrem para um outro espaço e tempo de sonho, de fantasia, que permitem construir um "país interno", um espaço psíquico e sustentar um processo de autonomia e a constituição de uma posição de sujeito. A leitura também torna possível uma narrativa interna.

3. Ler permite desencadear uma atividade narrativa e estabelecer ligações entre os acontecimentos de uma história, entre universos culturais, entre aqueles que compõe um grupo. Principalmente quando a leitura propicia também não uma cópia da experiência de cada um, mas sim a criação de metáforas, onde o corpo também é tocado.

Petit ainda afirma que distingue estas três hipóteses, somente com a finalidade de análise, pois compreende que na leitura elas estão entrelaçadas, formando uma experiência única.

Agora gostaria de tratar da experiência da leitura do texto literário, a partir de autores ligados à crítica literária e recolher neles elementos que possam fundamentar minha hipótese de que a literatura é instrumento de construção e reconstrução de identidade.

Antes preciso dizer como entendo aqui a identidade. Estou chamando de identidade a representação que temos de nós mesmos, que garante sentimento de coesão e de existência. Nicole Berry4 nos diz que a origem deste sentimento deve ser buscada no processo de individuação-separação da criança de sua mãe e é ele que permite a distinção entre mim e o outro. Nele estão presentes o reconhecimento do "si-mesmo" e o desejo de ser reconhecido pelo outro. Ele é uma conquista e não um dado primário e, ao longo da vida, é modificado pelas experiências. Segundo Herrmann5, este sentimento se refere à construção de um "rosto", e "adquirir um rosto significa, antes de mais nada, reconhecer-me agradecidamente habitado pela história humana". Neste mesmo texto, o autor nos diz:

"a aquisição de um rosto implica haver renunciado a três coisas. Renunciado a ter outro rosto qualquer: para o que é preciso pôr freio tanto à voracidade identificatória, como ao superego que exige um rosto mais perfeito. Renunciado à fantasia de ser concretamente inteiro, eterno e imutável, já que o rosto é apenas o limite indicado pelo conjunto das mutações acessíveis a um dado sujeito: para o que deve ter sido domesticado o próprio ego-ideal primitivo. Renunciado à posse de um objeto primário, porquanto o rosto é a forma que resta quando este se esfumou, levando consigo a fantasia de completude: para tanto, o narcisismo deve ser atenuado, até aceitar que o desejo questione o mundo à procura de um espelho adequado e objetos substitutivos." (Herrmann, 1992:83)

Entre os autores ligados à crítica literária, gostaria de ressaltar algumas de suas contribuições na medida em que elas podem sustentar a hipótese defendida aqui a respeito do valor da literatura na construção e reconstrução da identidade e do mundo do leitor.

Conta Walter Benjamin6 uma parábola lida em seu livro de leitura em que um velho, às vésperas da morte, reúne seus filhos e conta que mantém um tesouro enterrado em seus vinhedos. Os filhos vão à procura, cavam a terra, mas não encontram nada. Pouco tempo depois chega o outono, as vinhas produzem como nunca. Só então os filhos compreenderam que o pai havia transmitido uma certa "experiência", que poderia ser assim enunciada: "a felicidade não está no ouro, mas no trabalho".

Esta parábola serve a Benjamin para fazer uma crítica ao desaparecimento da capacidade de narrar a experiência. Ele relaciona essa baixa na capacidade de narrar às experiências traumáticas. Referindo-se à guerra de 1914-1918, comenta que os combatentes voltavam silenciosos do campo de batalha. "Mais pobres em experiências comunicáveis, e não mais ricos". Pergunta-se então: "Qual o valor de todo nosso patrimônio cultural, se a experiência não mais o vincula a nós?". Confessa, então, que essa pobreza de experiência é de toda humanidade, dando lugar ao surgimento de uma nova barbárie.

Um outro autor importante para nossa discussão é Umberto Eco7, que reconhece várias funções da literatura, tais como: manter em exercício a língua como patrimônio coletivo; criar identidade e comunidade, bem como manter em exercício nossa língua individual.

Porém, Eco vai destacar entre estas funções da literatura uma outra que me parece essencial para a discussão que pretendo aqui. Para este autor: "A leitura das obras literárias nos obriga a um exercício de fidelidade e de respeito na liberdade de interpretação." Com isso, nos coloca diante da verdade de um texto, da intenção do texto. Diz ele ainda:

"A dolorosa maravilha que nos proporciona cada releitura dos grandes trágicos é que seus heróis, que poderiam fugir de um fado atroz, por debilidade ou cegueira, não compreendem ao encontro do que estão indo, e precipitam-se no abismo que cavaram com as próprias mãos." (...) A função dos contos 'imodificáveis' é precisamente esta: contra qualquer desejo de mudar o destino, eles nos fazem tocar com os dedos a impossibilidade de mudá-lo. E assim fazendo, qualquer que seja a história que estejam contando, contam também a nossa, e por isso nós os lemos e os amamos. (...) Creio que esta educação ao Fado e à morte é uma das funções principais da literatura." (Eco, 2003)

Creio que esta última função apontada por Eco ressalta o papel estruturante da obra literária. O texto nos coloca na ordem simbólica, permitindo a construção de um rosto, de nossa identidade.

Uma outra contribuição importante vem de Antonio Cândido8. Defende este autor a literatura como um legítimo direito do homem. Reconhece que ela é um bem incompressível, isto é, bem cuja necessidade não pode deixar de ser satisfeita sob o risco de desorganização pessoal ou no mínimo frustração mutiladora. Diz, então, o autor:

"Não há povo e não há homem que possa viver sem ela, isto é, sem a possibilidade de entrar em contato com alguma espécie de fabulação. Assim como todos sonham todas as noites, ninguém é capaz de passar as vinte quatro horas do dia sem alguns momentos de entrega ao universo fabulado. O sonho assegura durante o sono a presença indispensável deste universo, independentemente de nossa vontade. E, durante a vigília, a criação ficcional ou poética, que é a mola da literatura em todos os seus níveis e modalidades, está presente em cada um de nós, analfabeto ou erudito, como anedota, causo, história em quadrinho, noticiário policial, canção popular, moda de viola, samba carnavalesco. (...) Portanto, assim como não é possível haver equilíbrio psíquico sem o sonho durante o sono, talvez não haja equilíbrio social sem a literatura. Deste modo, ela é fator indispensável de humanização e, sendo assim, confirma o homem na sua humanidade, inclusive porque atua em grande parte no subconsciente e no inconsciente". (Cândido, 2004, p. 174-5)

Por humanização, entende Cândido, o processo que permite desenvolver os traços essenciais do homem, como a inteligência, o desenvolvimento das emoções e do senso de beleza, o humor, a boa disposição para com o outro e a capacidade de perceber a complexidade do mundo.

Reconhecendo que a função humanizadora da literatura deve-se à complexidade de sua natureza, Cândido vai distinguir três de suas faces: "1- ela é uma construção de objetos autônomos com estrutura e significado; 2- ela é uma forma de expressão, isto é, manifesta emoções e a visão do mundo dos indivíduos e dos grupos; 3- ela é uma forma de conhecimento, inclusive como incorporação difusa e inconsciente". (Cândido, 2004, p.176)

Nos diz ainda Candido que, embora pensemos que a literatura atue sobre o leitor principalmente pelo terceiro aspecto - o de transmissão de conhecimento - não é bem este o caso. Para o autor, o efeito da literatura deve-se à atuação simultânea dos três aspectos, embora vá colocar em relevo o aspecto estruturante do texto, ou seja, sendo uma obra literária um objeto construído, com certa estrutura, ela nos propõe um modelo de coerência gerado pela força da palavra organizada. "A organização da palavra comunica-se ao nosso espírito e o leva, primeiro a se organizar; em seguida, a organizar o mundo". (Cândido, 2004, p. 177)

Para finalizar, recolho algumas idéias dos autores tratados na medida em que elas corroboram a idéia da relação entre leitura e construção da identidade. De Eco, a idéia de que a literatura é uma educação ao Fado e à morte. De Cândido, retomo a idéia de um direito inalienável de todos à literatura, bem como sua afirmação de que a literatura é um processo de humanização. E, finalmente, recolho de Benjamin a idéia da função terapêutica da narrativa, na medida em que narrar permite a transmissão de "experiências" humanas e ao narrar é possível organizar experiências traumáticas, caóticas, díspares, abrindo espaço para a construção ou reconstrução da identidade e do mundo do leitor.

 

REFERÊNCIAS

1. Freud S. Escritores criativos e devaneios. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol. IX. Rio de Janeiro:Imago;1985. p.149-58. (Trabalho publicado originalmente em 1908).         [ Links ]

2. Barone LMC. De ler o desejo ao desejo de ler. 5ª ed. Petrópolis:Vozes;2005.         [ Links ]

3. Petit M. A leitura em espaço em crise. Rev Bras Psicanál. 2006;40(3):149-67.         [ Links ]

4. Berry N. O sentimento de identidade. São Paulo:Escuta;1991.         [ Links ]

5. Herrmann F. A rani de Chittor - O rosto. In: O divã a passeio. São Paulo: Brasiliense;1992.         [ Links ]

6. Benjamin W. Experiência e pobreza. In: Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política. São Paulo:Brasiliense;1996. (Trabalho publicado originalmente em 1933).         [ Links ]

7. Eco U. Sobre algumas funções da literatura. In: Sobre a literatura. Rio de Janeiro:Record; 2003. p.9-21.         [ Links ]

8. Cândido A. O direito à literatura. In: Vários escritos. São Paulo:Duas Cidades/Ouro sobre Azul;2004. p.169-91 (Trabalho publicado originalmente em 1988).         [ Links ]

 

 

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Artigo recebido: 22/02/2007
Aprovado: 04/06/2007

 

 

Conferência proferida no VII Congresso Brasileiro de Psicopedagogia, em 2006, São Paulo, SP.
* Trata-se de uma lenda do folclore brasileiro, que narra as aventuras de um macaco que sofre variadas perdas e sucessivas substituições e que, mesmo assim, vai levando a sua vida.
** Escojo la palabra. (Escolho a palavra): Dirigido por meninos e meninas, jovens desvinculados do conflito armado na Colômbia, Centro regional de fomento do livro e da leitura na América Latina e no Caribe. Coordenado por Marina Valencia.

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