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Revista Psicopedagogia

versão impressa ISSN 0103-8486

Rev. psicopedag. vol.24 no.74 São Paulo  2007

 

ARTIGO ESPECIAL

 

Produção de sentidos, ensino e aprendizagem

 

Sense conveying, teaching and learning

 

 

Beatriz Scoz

Psicopedagoga, professora titular do Programa de Psicologia Educacional - pós-graduação stricto sensu - do Centro Universitário FIEO/SP (UNIFIEO), membro do conselho nato, sócia fundadora e ex-presidente da Associação Brasileira de Psicopedagogia

Correspondência

 

 


RESUMO

Este estudo apresenta o conceito de produção de sentidos como uma possibilidade para compreender a construção da subjetividade de psicopedagogos e educadores nos processos de aprender e de ensinar. A categoria sentido é compreendida a partir do conceito de configuração de sentidos, que implica uma concepção de sistema integrador, dinâmico e processual, ou seja, os sentidos como formações psíquicas e dinâmicas do sujeito em constante desenvolvimento, em suas diferentes práticas sociais. Nessa perspectiva, considera-se a produção de sentidos a partir da dialética entre o momento social e o individual, pensamento e emoção, consciência e inconsciente. Trata-se pois de sugerir uma abordagem complexa de sujeito e subjetividade na perspectiva de compreensão da construção da subjetividade de educadores e psicopedagogos.

Unitermos: Ensino. Aprendizagem.


SUMMARY

This paper presents the concept of production of meaning as a possible path to understand the construction of subjectivity by psychopedagogues and educators, in their processes of learning and teaching. Meaning is understood within the concept of meaning-configuration, which implies the notion of a dynamic, integrating, in-process system; in this view, meaning is a subject's psychic dynamic construction in constant development within his or her diverse social practices. The production of meaning is then understood in the dialectic between social and individual moment, thinking and feeling, consciousness and the unconscious. A complex approach of subject and subjectivity is thus proposed, in order to better understand the process subjectivity construction of psychopedagogues and educators.

Key words: Teaching. Learning.


 

 

INTRODUÇÃO

O sujeitos produzem sentidos em suas trajetórias de vida e, ao mesmo tempo, em suas diferentes atividades e formas de relação. Como resultado da confrontação de sentidos, a subjetividade se constitui. González Rey1 assim explicita essa idéia: "As criações humanas são produtoras de sentido que expressam de forma singular complexos processos da realidade. Esses processos são criações humanas que integram diferentes aspectos do mundo em que o sujeito vive, aparecendo em cada sujeito ou espaço social de forma única, organizados em seu caráter subjetivo pela história de seus protagonistas".

A partir dessa perspectiva, pode se considerar que qualquer experiência humana é constituída por diferentes elementos de sentido que, procedentes de diferentes esferas da experiência, determinam em sua integração o sentido subjetivo da atividade atual desenvolvida pelo sujeito.

Essa maneira de conceber a produção de sentidos concretiza no campo da Psicologia a visão de complexidade defendida por Edgar Morin2, ou seja, trata-se de considerar as ligações, as articulações, ou aquilo que é tecido em conjunto.

No presente estudo, privilegiei a produção de sentidos nos processos de aprender e de ensinar de educadores e psicopedagogos. Esses processos são compreendidos como unidade indissociável, que pode ser definida como um sistema dialógico e dialético, ao mesmo tempo constituinte e constituído. Essa idéia é condizente com dois princípios do pensamento da complexidade sugeridos por Morin3, o princípio dialógico, unindo duas noções antagônicas que aparentemente deveriam se repelir, mas que são indissociáveis e indispensáveis para a compreensão de uma mesma realidade; e o princípio da recursão organizacional, representado por um círculo gerador, no qual os produtos e os efeitos são eles próprios produtores e causadores daquilo que os produz.

Para explicitar com mais clareza a dimensão de integração contida no conceito de sentido, tomo o conceito configuração de sentidos explicitado por González Rey1. Para esse autor, o conceito de configuração de sentidos representa "as formações psíquicas dinâmicas e em constante desenvolvimento dentro das diferentes práticas sociais dos sujeitos estudados". Com esse conceito, González Rey reforça a idéia de que, na qualidade do subjetivo, aparecem, dentro da mesma configuração, elementos de sentido gerados em tempos e espaços diferentes da vida da pessoa. Além disso, os elementos de sentido procedentes de outras zonas ou espaços da vida social afetam os sujeitos que habitam cada agência social, os quais, por sua vez, empreendem novos caminhos. Esses caminhos acabam sendo elementos de transformação do status que os engrendou.

Para dar força a essas idéias, González Rey1 toma a concepção de sistema dinâmico de sentido de Vygotsky, com base na qual ele produziu muitas construções relevantes. Com essa concepção, Vygotsky rompeu com a lógica da fragmentação elementar e com os princípios universais para definir a organização geral da psique. De acordo com o autor russo, essa organização transcende a dicotomia do externo e interno, oferecendo uma nova definição ontológica da psique, de caráter sistêmico e processual, que se mostra, de forma simultânea, como organização e processo. O conceito de zona de desenvolvimento próximo que ele propôs é um exemplo disso: recorrendo-se a esse conceito, pode-se dar conta de funções do sujeito que estão em vias de se desenvolver, ou seja, idéias e sentimentos incipientes podem ser organizados, sistematizados e objetivados. Para isso, ocorre uma ligação entre os estímulos externos e as respostas internas: a interação e a comunicação do sujeito nos contextos sociais em que ele vive são fatos que o incitam a explicitar suas intenções.

Assim, fica cada vez mais claro que, a partir da confluência entre o social e sua própria constituição subjetiva, o sujeito gera novos sentidos que vão modificando a si mesmo e às suas práticas. Sobre isso diz González Rey1: "a categoria de sujeito implica necessariamente a de participação, pois ele está situado em uma região de prática social (...) O sujeito é o indivíduo comprometido de forma permanente em uma prática social complexa que o transcende e, diante disso, tem de organizar sua expressão pessoal, o que implica a construção de opções pelas quais mantenha seu desenvolvimento e seus espaços pessoais dentro do contexto dessas práticas. As opções feitas pelo sujeito não são simplesmente opções cognitivas dentro do sistema mais imediato de contingências de sua ação pessoal, mas verdadeiros caminhos de sentido que influenciam a própria subjetividade de que as assume e que geram novos espaços sociais que supõem novas relações e novos sistemas de valores".

Há, portanto, um modo de conceber o sujeito que, em sua produção de sentidos, demonstra uma capacidade de permanente tensão com o estabelecido, capaz de representar inúmeras alternativas de ruptura. Esse modo de ver o sujeito é uma posição que tem inclusive implicações políticas, pois não há projetos sociais progressistas, de mudança, sem a participação de sujeitos críticos que exercitem seu pensamento e, a partir da confrontação, gerem novos sentidos que contribuam para modificações nos espaços sociais dentro dos quais atuam. Ou seja, sem manter a capacidade geradora de sujeitos críticos que facilitem a tensão vital e criativa dentro de um espaço social, os projetos sociais tornam-se conservadores e, o que é ainda pior, levam ao enquadramento de tudo que surpreende, enfim, ao bloqueio dos processos de singularização.

 

O PENSAMENTO E AS EMOÇÕES

Segundo González Rey1, reconhecer um sujeito ativo é reconhecer sua capacidade pensante, reflexiva. O sujeito aparece nos momentos de sentido em que pensa, e sua capacidade geradora de sentidos por meio do pensamento é um dos elementos centrais no desenvolvimento de sua capacidade para produzir rupturas. Ou seja, os sujeitos críticos que exercitam e confrontam seus pensamentos podem gerar novos sentidos, que contribuem para modificações neles mesmos e nos espaços sociais onde atuam. A reflexividade é uma característica do indivíduo, comprometida com a produção de sentidos subjetivos em todas as esferas de sua vida. É a reflexividade que mobiliza a consciência de si e engaja o indivíduo em uma reorganização crítica de seu conhecimento, ou mesmo na interrogação dos seus pontos de vista fundamentais. Essa situação pode levar o sujeito a reassumir posições e a definir constantemente novas posições dentro dos contextos sociais em que se desenvolve.

De acordo com González Rey1, o reconhecimento da capacidade pensante do sujeito tem implicações na sociedade atual. As formas de totalitarismo dominantes e o poder manipulador dos meios de comunicação dificultam a participação do sujeito como protagonista de seus pensamentos, impedindo-o de produzir novas opções para viabilizar projetos sociais de mudanças. Eu acrescentaria: também na escola, quando os educadores não são reconhecidos como sujeitos pensantes, eles tendem a repetir modelos padronizados e preestabelecidos, tornando os projetos pedagógicos conservadores, limitando, ao mesmo tempo, sua capacidade para construir conhecimentos. Disso, advém algo mais grave: os educadores agindo assim dificilmente reconhecerão os alunos como sujeitos pensantes.

Outro aspecto essencial na produção de sentidos são as emoções do sujeito. Segundo González Rey1, as emoções são fenômenos complexos que abrangem múltiplas dimensões e que, portanto, não aparecem somente como momentos de expressão da pessoa ante estados biológicos, mas também associadas a estados subjetivos. Essa idéia evidencia-se nas seguintes palavras do autor: "As emoções representam um momento essencial na definição dos sentidos subjetivos dos processos e relações do sujeito. Uma experiência ou ação só tem sentido quando é portadora de uma carga emocional".

Esse autor ressalta que as emoções são uma expressão inconsciente da síntese das histórias pessoais, constituídas nas configurações subjetivas do sujeito, e expressam a síntese complexa de um conjunto de estados sobre os quais o sujeito pode ou não ter consciência. De toda forma, tais estados são essencialmente afetivos e podem ser definidos por categorias como auto-estima, segurança, interesse, autonomia, etc. Esses estados é que definem o tipo de emoção que caracteriza o sujeito para o desenvolvimento de uma atividade e, desses estados vai depender a qualidade da realização do sujeito nessa atividade. Assim, González Rey1 destaca que a emoção é um dos aspectos mais desafiantes do sujeito e um dos que mais conseqüências provoca na organização de suas diferentes práticas sociais e profissionais.

As relações entre pensamento e emoção na produção de sentidos subjetivos também são enfatizadas por González Rey, superando a forma fragmentada e analítica em que historicamente apareciam. Para expressar essa idéia, mais uma vez ele se apóia em Vygotsky4, segundo o qual o que ocorre durante o desenvolvimento do sujeito é que "mudam não só as funções psicológicas por si mesmas, mas em primeiro lugar variam os nexos interfuncionais e as relações entre os diferentes processos, em particular, entre o intelecto e o afeto".

 

A CONSCIÊNCIA E O INCONSCIENTE

A consideração do pensamento e das emoções na produção de sentidos subjetivos remete-nos também à relação entre a consciência e o inconsciente, presente na construção da subjetividade. A esse respeito, González Rey1 aponta que, embora as configurações de sentidos estejam constituídas por elementos inconscientes, como por exemplo as emoções, a consciência representa um momento de intencionalidade, reflexividade e vivência do sujeito em relação a seu complexo mundo psicológico. Assim, a consciência é um momento essencial na definição do sujeito, pois ela representa a organização processual da qual ele participa intencionalmente nos processos de sua vida, de suas crenças, etc.

Dessa maneira, as relações entre consciência e inconsciente não podem ser compreendidas como um conjunto de elementos acabados, mas em uma dimensão de complexidade que participa na organização da psique humana. Referindo-se a essa idéia, González Rey1 mostra como a separação do consciente e do inconsciente pode ser comparada a uma dicotomia similar à estabelecida entre o social e o individual; ele a expressa da seguinte maneira: "Se bem que o homem não seja consciente dos elementos de sentido sobre os quais se configura sua expressão, sua produção pessoal se expressa por sentidos subjetivos, que se organizam no marco de sua ação, na qual intervêm outros sentidos suscetíveis de uma reconstrução consciente, ou seja, um mesmo sentido transita por momentos conscientes e inconscientes, até mesmo de forma contraditória".

 

O SENTIDO E O SIGNIFICADO

Além da questão sobre o relacionamento entre consciência e inconsciente, há um aspecto central na construção teórica de González Rey1, que é o das relações entre sentido e significado. Segundo esse autor, o sentido está presente em processos de significação, mas não está definido por esses processos. Ele chama a atenção para esse fato porque, como ele mesmo diz: "a categoria sentido tem tentado se integrar historicamente à linguagem e ao significado". Como exemplo, toma a perspectiva sociocultural, em que o indivíduo aparece como agente da ação e como uma "voz" do discurso. Portanto, o indivíduo sempre está "encaixado" em uma produção cultural em que ele não aparece como produtor em sua produção individual. Assim, segundo González Rey1, mais do que resolver a dicotomia indivíduo-sociedade, a perspectiva sociocultural subordina o indivíduo à cultura, compreendida como processo de significação. Além disso, para ele, quando se fala na superação das dicotomias entre pensamento e linguagem, parece que elas se superam porque a linguagem, em seu caráter mediador e macro-social, substitui o pensamento. O indivíduo se expressa por "vozes" e passa simplesmente a ser um momento de confluência das vozes que circulam no contexto em que atua.

Para compreender o sentido como uma expressão particular de uma ontologia da psique, que não se reduz aos processos de linguagem nem às instâncias discursivas em que o psíquico também se apresenta, González Rey1 toma mais uma vez as idéias de Vygotsky. Ele assim se expressa em relação ao sentido e ao significado: "O sentido de uma palavra é um agregado de todos os fatores psicológicos que surgem em nossa consciência como resultado da palavra. O sentido é uma formação dinâmica, fluida e complexa, que tem inúmeras zonas de sentido, que variam em sua instabilidade. O significado é apenas uma dessas zonas de sentido que a palavra adquire no contexto da fala".

Desse modo, também para González Rey1, o sentido e o significado devem ser tomados como uma unidade e não separados. Assim, evita-se um caminho que já foi transitado por outras correntes de pensamento, as quais mostraram a insuficiência da unilateralidade de qualquer categoria, sobretudo na explicação de fenômenos complexos, como é o caso da subjetividade. Tomando-se o sentido e o significado como unidade, chega-se à conclusão de que, na organização subjetiva, integram-se o pensamento do sujeito, as emoções, as situações vividas por ele, as quais aparecem numa multiplicidade de sentidos subjetivos, processos que, para González Rey1, não podem reduzir-se a linguagens nem a discursos.

Neste estudo, venho enfatizando a definição de sujeito e subjetividade como um sistema complexo e dinâmico, em que, simultaneamente, vários elementos entram em contradição, gerando um caminho de tensões múltiplas, dentro do qual um elemento nunca se reduz ao outro. Entretanto, é importante lembrar que as contradições nem sempre podem ser ultrapassadas, pois, como diz Morin5, embora reconhecendo a possibilidade de ultrapassar as contradições, há a possibilidade de um trabalho em suas fronteiras e de superação das carências e dos limites pelo recurso a um sistema mais rico e mais complexo.

Assim, ao transitar pelas fronteiras, pelas "frestas", pelos "espaços entre" sociedade/indivíduo, consciente/inconsciente, pensamento/emoção, sentido/significado, talvez possamos dar um passo além para tentar compreender a subjetividade de educadores e psicopedagogos.

Alguns autores, partindo de enfoques diferentes, têm demonstrado que é nas fronteiras ou nos "espaços" intermediários que existem possibilidades de transformação.

Morin3 explicita o que ocorre no campo da Física ao referir-se à partícula do átomo não só como um objeto que se manifesta ora como onda, ora como corpúsculo, mas também como uma entidade cintilante, uma espécie de microburaco negro, uma "fronteira" (um espaço intermediário) entre o percebido e o não-percebido, o detectado e o não-detectado, a realidade tridimensional e a realidade quântica. Para ele, não se trata somente de associar duas verdades contrárias para chegar a uma verdade mais completa; trata-se também de ver que a verdade pode se encontrar no vazio, insondável, na brecha lógica que abre uma contradição "forte", lembrando, como foi mencionado anteriormente, que há contradições que se podem superar e ultrapassar e aquelas que é preciso salvaguardar. A própria vida está entre o sólido e o líquido e é inteiramente um e outro, nem um nem outro.

É importante lembrar que Niels Bohr, físico dinamarquês, foi quem aceitou pela primeira vez o acoplamento das noções contrárias de onda e de corpúsculo, declarando-os complementares. Assim, deu um primeiro passo de uma formidável revolução epistêmica: a aceitação de uma contradição pela racionalidade científica. Ao mesmo tempo, ele havia genialmente compreendido que a contradição entre os termos complementares de onda e de corpúsculo eram apenas contradições ou antinomias do mesmo tipo já encontradas noutro lugar da aventura do mesmo conhecimento, que tinham sido esquivadas privilegiando um dos dois termos opostos: contínuo/descontínuo; espécie/indivíduo; sociedade/indivíduo.

Outro passo para a compreensão da existência de espaços intermediários como espaços de criação é a noção de espaço potencial, que marca a mais original contribuição da obra de Winnicott6. Em seus estudos sobre o desenvolvimento infantil, ele considerou a existência desse espaço como algo que transcende as fronteiras entre o "eu" e o "não eu". Trata-se, como diz, de um espaço intermediário entre a incapacidade e a progressiva capacidade da criança para reconhecer e elaborar a realidade. Para ele, o espaço potencial vai além dessas fronteiras, porque nele as pessoas não estão nem no mundo da fantasia, nem no mundo da realidade dos outros, mas em um terceiro e paradoxal lugar que contém os dois mundos ao mesmo tempo. Essa idéia de que algo toma existência a partir da saída para além das fronteiras é assim explicitada por Alicia Fernández7, em uma analogia com o processo de nascimento: "Por algum motivo, existir é derivado de sair, nascer, aparecer".

Vygotsky8, ao apresentar o conceito de zona de desenvolvimento proximal anteriormente referido, também remete à existência de um espaço intermediário entre o mundo interno e o mundo externo no processo de desenvolvimento da criança, o qual define aquelas funções que estão presentes em estado embrionário ou em vias de se desenvolver. Esse espaço intermediário ajuda a compreender como ocorrem processos de criação e de transformação, enfim, o próprio processo de aprendizagem da criança, uma vez que, como afirma o autor, ele as incita a "organizar, sistematizar e objetivar sentimentos incipientes, explicitando suas intenções e significados". Vygotsky8 evidencia a importância de se transitar por esses espaços intermediários - pelas "frestas", pelos "espaços entre" - ao referir-se às funções que ainda estão em estado embrionário como "brotos" ou "flores", ou seja, como algo que posteriormente se transformará em frutos do desenvolvimento.

Dessa maneira, podemos dizer que o próprio referencial teórico que norteia este trabalho também é complexo e, portanto, por sua própria natureza, não nos dá um conjunto de regras de aplicação imediata. Ele apenas marca um caminho que nos dá segurança para transitar pelas "fronteiras" para tentar compreender a produção de sentidos nos processos de aprender e de ensinar. Para explicitar essa idéia, nada melhor que as palavras do próprio González Rey1: "A teoria aparece não como um esquema geral dentro do qual tem de ser localizada toda a informação encontrada, mas como um telão de fundo dentro do qual se produz o complexo diálogo com o real, diálogo a partir do qual novas zonas do real entram no espaço de inteligibilidade da teoria e outras zonas desafiam e são elementos de ruptura e desenvolvimento da própria teoria".

 

A PRODUÇÃO DE SENTIDOS E A CONSTRUÇÃO DA SUBJETIVIDADE: PREOCUPAÇÕES NO ÂMBITO DO ENSINO E DA FORMAÇÃO DE PROFESSORES E PSICOPEDAGOGOS

A natureza complexa do sujeito e da subjetividade tem sido pouco considerada na educação. Algumas análises sobre formação de professores continuada ou em serviço (Gatti9), que visam à mudança em cognições e práticas, têm demonstrado um fato preciso: em geral, os mentores e implementadores desses cursos de formação têm a concepção de que, oferecendo informações, conteúdos, ou trabalhando apenas a racionalidade dos profissionais, produzirão, a partir do domínio de novos conhecimentos, mudanças em suas posturas e formas de agir. Essa ação, essencialmente intelectual, não dá conta de perceber que os professores são sujeitos que vão produzindo sentidos em seus processos de aprender e de ensinar, nos quais se integram suas condições sociais e afetivas, seus pensamentos e suas emoções. Essa pode ser uma das razões pelas quais tantos programas que visam mudanças cognitivas, de práticas e de posturas, mostram-se ineficazes. De fato, resultados de alguns programas de formação de professores (Placco & Silva10) apontam que são poucos os aspectos trabalhados que têm se traduzido em ações diferenciadas ou transformadoras em sala de aula.

Talvez, por detrás dessas concepções, esteja presente a dificuldade do sistema educativo em reconhecer, tratar e pensar a complexidade do ser/existir humano. Um exemplo disso é a fragmentação das disciplinas, reduzidas a conteúdos isolados, quebrando a sistemicidade (a relação de uma parte com o todo) e a multidimensionalidade dos fenômenos. Desse modo, isolando e/ou fragmentando seus objetos, esse mundo de conhecimentos acaba por eliminar não somente seu contexto, mas, também sua singularidade, sua localidade, seu ser, sua existência. É o que Morin11 quer dizer quando afirma que "um pensamento unidimensional desemboca num homem unidimensional".

Há ainda outro fator presente na sociedade e, com freqüência, também nas escolas: a ênfase no produto em detrimento do processo. Tal convicção tem levado a uma percepção dos professores como elementos padronizados, eliminando sua condição singular de sujeitos.

Algumas alternativas têm sido apontadas para ampliar a compreensão da formação de professores. Uma delas refere-se ao estudo e à investigação do modo como os professores aprendem (Placco & Silva10). A Proposta de diretrizes para a formação inicial de professores da educação básica (Conselho Nacional de Educação)12 expressa uma idéia semelhante, ao criar o conceito de "simetria invertida", para ressaltar o fato de que a experiência do professor como aluno, não apenas nos cursos de formação docente, mas ao longo de toda a trajetória escolar, define o papel que futuramente exercerá como docente.

Penso que essas idéias podem ser enriquecidas se os processos de aprendizagem e de ensino forem considerados, não da maneira mais freqüente, como algo que está "fora" dos professores, educadores em geral e também dos psicopedagogos, mas como um momento constitutivo essencial, definido pelo sentido que esses processos têm para eles, dentro da condição singular em que se encontram, ou seja, inserindo-se os processos de aprendizagem e de ensino em suas trajetórias de vida. Dessa maneira, as relações entre aprendizagem e ensino poderão ser percebidas com mais clareza, pois, como diz González Rey1, "dentro de uma mesma configuração de sentidos aparecem elementos de sentido gerados em tempos e espaços diferentes da vida da pessoa".

Considerando-se os sentidos que os educadores e psicopedagogos produzem em seus processos de aprender e de ensinar, também podemos ter acesso à maneira como eles se situam como sujeitos pensantes, bem como às emoções produzidas em diferentes situações de ensino e aprendizagem em diferentes momentos e espaços de suas vidas. Essas situações e esses momentos podem definir-se como segurança ou insegurança, interesse ou desinteresse, entusiasmo ou desilusão, etc. Um quadro afetivo que não pode ser ignorado, pois interfere na atuação desses profissionais.

Na perspectiva teórica de González Rey, como resultado da confrontação de sentidos também surgem momentos em que os sujeitos - neste estudo, os educadores e psicopedagogos - se reconhecem a si mesmos. Essa experiência os leva a delimitar seus espaços, ou seja, os espaços em que encontram a congruência consigo mesmos na situação que estão enfrentando. Como resultado, temos um momento fundamental desses profissionais, em que eles se defrontam com suas subjetividades e que, portanto, podem reconhecer suas próprias crenças, expectativas, valores e atitudes, refletindo sobre elas. Ao mesmo tempo, poderão entrar em contato com os estados afetivos que permeiam seus processos de aprender e de ensinar, reposicionando-se diante de suas práticas profissionais.

Cabe aqui um comentário: há urgência na superação das dicotomias e dos preconceitos quanto às referências ao afetivo na formação de educadores e psicopedagogos. Suas atuações profissionais implicam em envolvimento com colegas de trabalho, com alunos ou com clientes, com as dificuldades dos alunos e clientes e com suas próprias dificuldades, enfim com as relações e com as solicitações afetivas que permeiam essas relações. Negar esse quadro afetivo significaria, a meu ver, virar as costas para qualquer possibilidade de transformação das ações psicopedagógicas e educativas.

O momento reflexivo provocado pela produção de sentidos também é importante, pois pode levar os educadores e psicopedagogos a superar a alienação, que é um forte componente, principalmente no cotidiano das escolas. Como diz Agnes Heller13, a vida cotidiana de todas as esferas da humanidade é a que mais se presta à alienação. Nela, ação e pensamento tendem a ser econômicos e funcionam na exata medida para garantir a continuidade da cotidianidade. Além disso, o predomínio da ritualização de comportamentos cristalizados e acríticos nas escolas faz com que os educadores também tenham poucas possibilidades de reposicionarem-se diante de seus processos de aprender e de ensinar.

Não podemos esquecer de um fator presente na escola que pode atuar como um empecilho para o confronto dos educadores com eles mesmos e, portanto, sendo elemento de constituição de suas subjetividades: uma forte tendência ao enquadramento, ou como diz González Rey1, "à supressão da singularização". A eliminação da singularização acaba fazendo com que os educadores e alunos sejam percebidos como elementos padronizados e, conseqüentemente, tudo que surpreende, ainda que de maneira leve, termina por ser classificado em alguma zona de enquadramento de referência.

Há, por vezes, resistência por parte dos próprios formadores de educadores e psicopedagogos a aceitar uma produção original, que escapa às delimitações impostas por tendências dominantes do pensamento pedagógico. Agindo dessa maneira, não abrem espaços para perguntas, ou seja, deixam de lado o elemento surpresa, fundamental para que ocorram aprendizagens significativas, uma vez que pode provocar novas e cada vez mais ricas interrogações. Como propõe Jerome Bruner14, "a surpresa (...) nos permite refletir acerca do que damos por certo, por óbvio, por evidente: surpresa é uma reação ante a transgressão de uma certeza". Há ainda, por parte dos professores em geral, o temor ao confronto, por julgá-lo agressivo, ou pela dificuldade de entrar em contato com a própria ignorância de uma maneira positiva, ou, segundo Pain15, "como algo que determina o lugar do enigma onde o conhecimento deve chegar". Dessa maneira, os professores não reconhecem suas capacidades pensantes, limitando suas ações educativas e suas possibilidades de transformação.

Assim, torna-se urgente um envolvimento direto, também, dos formadores de educadores (muitas vezes, psicopedagogos) no repensar seus modos de ser e sua condição de estar numa dada sociedade - o que implica um trabalho com suas produções de sentidos nos processos de aprender e de ensinar e, conseqüentemente, com a construção de sua subjetividade nesses processos. Sem isso, como diz Gatti16, as alternativas possíveis, na direção de uma melhor qualidade da educação e do ensino, "não se transformarão em possibilidades concretas de mudança...".

Enfrentar esses desafios exige a busca de caminhos teóricos e metodológicos que permitam lidar com a complexidade contida na produção de sentidos e na construção da subjetividade nos processos de aprender e de ensinar. Não se trata de uma tarefa fácil, pois, como foi mencionado anteriormente, a produção de sentidos implica uma dimensão de complexidade na qual estão em jogo configurações de sentidos produzidos nas trajetórias de vida dos sujeitos. Entretanto, como diz Jung17, "O homem possui uma consciência que não apenas percebe, reage e experimenta, mas que é capaz também de voltar ao vivido e percebido, dar-se conta do que está experimentando. Ele tem a faculdade da reflexão (do latim reflectere - dobrar-se para trás) e compreensão e, através do mundo exterior e interior, de auto-ampliação, de autotransformação".

 

REFERÊNCIAS

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16. Gatti B. Os professores e suas identidades: o desvelamento da heterogeneidade. Cad Pesqui. 1986;98:85-90.         [ Links ]

17. Jung CG. In: Jaffé A. O mito do significado na obra de C G Jung. São Paulo: Cultrix;1995.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Rua Evezú, 22
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Tel: (11) 3812-7919
E-mail: beatrizscoz@uol.com.br

Artigo recebido: 16/06/2007
Aprovado: 15/07/2007

 

 

Trabalho realizado no Centro Universitário FIEO -UNIFIEO, São Paulo, SP.

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