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Revista Psicopedagogia

versão impressa ISSN 0103-8486

Rev. psicopedag. vol.25 no.77 São Paulo  2008

 

ARTIGO ORIGINAL

 

Por que ensinar as relações grafema-fonema?

 

Why teaching the relations between graphemes and phonemes?

 

 

Dalva Godoy

Profª Drª da Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC; Depto de Artes Cênicas e Faculdade de Educação; Doutor em Lingüística (Universidade Federal de Santa Catarina - 2005)

Correspondência

 

 


RESUMO

Este estudo objetivou observar se o ensino das correspondências grafofonológicas favorece diferenças no desenvolvimento da consciência fonológica em pré-escolares. Questiona-se em que medida o método de alfabetização pode beneficiar o desenvolvimento da consciência fonológica, uma habilidade estreitamente relacionada ao sucesso na aprendizagem da leitura e da escrita alfabética. Dois grupos de crianças, com idade média inicial de 5 anos e 9 meses, expostos a dois métodos diferentes de ensino, foram avaliados durante um período de um ano por meio de tarefas de consciência fonológica aos níveis silábico e fonêmico. Os resultados mostraram evolução de ambas as habilidades entre os dois momentos de avaliação, para os dois grupos, mas o crescimento das habilidades de consciência fonêmica foi mais acentuado. Foram observadas, no entanto, diferenças significativas na evolução desse crescimento entre os dois grupos. O grupo que recebeu ensino das correspondências grafofonológicas apresentou maior evolução nos desempenhos em tarefas fonêmicas.

Unitermos: Educação. Aprendizagem. Avaliação. Desenvolvimento infantil.


SUMMARY

This study aimed to observe if the teaching of grapheme-phoneme correspondence favors differences at the development of phonological awareness at pre-school classes. It is questioned to what extent the literacy method can benefit the development of phonological awareness, an ability narrowly related to a successful learning of reading and alphabetical writing. Two groups of children, with average initial age of 5 years and 9 months, exposed to two different teaching methods, were evaluated during one year through tasks of phonological awareness at syllabic and phonemic levels. Results showed evolution of both abilities between the two moments of evaluation, in both groups, but the phonemic awareness abilities presented a bigger growth. It was observed, however, significant differences at this growing evolution between the two groups. The group who received grapheme-phoneme correspondence teaching presented more evolution at phonemic tasks performances.

Key words: Education. Learning. Evaluation. Child development.


 

 

INTRODUÇÃO

A aprendizagem da linguagem escrita

Desde a década de 80, as concepções a respeito de como a criança aprende a ler e a escrever sofreram transformações. Na América Latina, os trabalhos de Ferreiro e Teberosky1 trouxeram uma nova abordagem para a compreensão dos processos envolvidos na aprendizagem da leitura e da escrita. Uma mudança fundamental promovida por esses trabalhos foi a de colocar o sujeito no centro do processo de aprendizagem. Dessa forma, a criança, do ponto de vista teórico, passou a ser o agente do seu conhecimento e a não mais depender da ação exclusiva da escola para aprender a ler e a escrever. As pesquisas de Ferreiro e Teberosky demonstraram que muito tempo antes de entrar na escola a criança já apresenta idéias e hipóteses sobre o mundo da escrita. Para o construtivismo, o ponto de partida de toda aprendizagem é o sujeito, que por meio de interações sucessivas com o objeto - a escrita - transforma-o, e ao fazer uso de esquemas internos de assimilação e de acomodação percorre momentos de equilíbrio e de desequilíbrio que marcam, efetivamente, diferentes estágios de aquisição.

Ferreiro e Teberosky1 propuseram cinco estágios de aquisição da escrita que descrevem diferentes níveis de representação da criança frente a esse objeto do conhecimento. Desde os estágios iniciais de aquisição, os primeiros grafismos, a atividade escrita torna-se uma representação simbólica e, apesar de a criança, inicialmente, perceber que a escrita representa algo, ela ainda não percebe que a escrita representa, de alguma forma, a cadeia sonora da fala. É quando a criança alcança o estágio silábico que, pela primeira vez, trabalha com a hipótese de que a escrita representa partes sonoras da fala. Nesse estágio, a criança utiliza uma letra para representar cada uma das sílabas de uma palavra, o que significa dizer que ela se torna capaz de recortar a fala através da atividade metacognitiva e representá-la por meio de um objeto, as letras. Segundo a concepção construtivista, é o contato com as formas convencionais da escrita que levará a criança a entrar em conflito com essa representação silábica e a buscar novas hipóteses, alcançando assim o estágio alfabético em que as letras representam fonemas. Sob a ótica construtivista, para que a criança chegue ao estágio alfabético, não é necessário ensinar-lhe, sistematicamente, as correspondências grafofonológicas. A escola deve permitir à criança explorar distintos tipos de materiais escritos, levando-a a ler diferentes tipos de registros e a escrever com diferentes propósitos, a fim de que a aprendizagem da língua escrita não esteja restrita a um processo de codificação e decodificação de letras e sons. Assim, a criança é incentivada a utilizar inteligentemente as informações contextuais de maneira a antecipar o conteúdo escrito2.

Do ponto de vista das teorias lingüísticas, Cagliari3 questiona a validade desses estágios de desenvolvimento propostos por Ferreiro e Teberosky1. Segundo ele, a caracterização, por exemplo, do estágio silábico pode refletir a representação que a criança faz daquilo que lhe parece mais saliente do ponto de vista auditivo ou articulatório, no caso das vogais ou consoantes representando as sílabas. Ao representarem "aou" para a palavra "cachorro", por exemplo, as crianças estão, segundo Cagliari3, transferindo para a escrita suas observações fonéticas e não atribuindo a cada uma das letras que escrevem o valor de uma sílaba, como interpreta Ferreiro e Teberosky1.

Um outro ponto discutido por Cagliari3 é o de que a escrita alfabética, o último estágio de aquisição proposto por Ferreiro e Teberosky1, é apenas o ponto de partida do sistema de escrita alfabético. Como acentua o autor, a escrita que utilizamos não é alfabética, e sim ortográfica; não basta dominar o princípio alfabético, é preciso dominar o princípio ortográfico, que tem como pressuposto o conhecimento das regras e convenções que dirigem a escrita.

Do ponto de vista do desenvolvimento lingüístico infantil, observa-se que o pré-escolar, freqüentemente, apresenta bom domínio de sua língua materna, ainda que algumas aquisições mais complexas como o entendimento de orações adjetivas encaixadas ou orações na voz passiva possam não estar completamente sedimentadas4. Além disso, a criança por volta dos 5 ou 6 anos, quando entra para a pré-escola, traz consigo alguns conhecimentos sobre a linguagem escrita, frutos de sua interação social com esse objeto. Nesse sentido, alguns trabalhos têm evidenciado o letramento emergente em crianças em idade precoce5.

O conhecimento que o pré-escolar possui da linguagem oral serve-lhe de suporte para construir o conhecimento a respeito da escrita. O conhecimento fonológico, lexical, sintático, semântico e pragmático que a criança utiliza para falar será igualmente utilizado na linguagem escrita para compreender um texto ou produzi-lo. No entanto, indiscutivelmente, para aprender a ler e a escrever, é necessário que a criança transforme a informação visual em uma informação lingüística; em última instância, é preciso transformar os signos gráficos em uma representação fonológica capaz de acessar os processos lingüísticos. Em um sistema alfabético de escrita, no entanto, em que os grafemas representam a menor unidade sonora distintiva da língua, o fonema, é preciso que o conhecimento fonológico da criança seja a tal ponto analítico que possa descobrir os fonemas na cadeia sonora da fala. Esse conhecimento, denominado consciência fonológica, tem sido evidenciado como uma habilidade indispensável para a aprendizagem alfabética.

 

CONSCIÊNCIA FONOLÓGICA E APRENDIZAGEM ALFABÉTICA

A consciência fonológica foi definida por Gombert6 como o conhecimento explícito da estrutura fonológica interna das palavras e pelas habilidades de manipular intencionalmente as unidades sublexicais que as constituem. A consciência da estrutura fonológica pode se dar em três diferentes níveis: a consciência de unidades silábicas, intra-silábicas e fonêmicas. A consciência silábica é a habilidade de detectar e manipular as sílabas de uma palavra, enquanto a consciência intra-silábica é a habilidade de detectar e manipular o onset e a rima das sílabas. Já a consciência fonêmica é a habilidade para detectar e manipular os fonemas. Assim, a consciência fonológica, em cada nível correspondente, engloba um conjunto de habilidades que pode ser exemplificado pela identificação e produção de rimas e pela identificação, análise e síntese dos segmentos ao nível silábico e ao nível fonêmico. Ao nível silábico e fonêmico, tais habilidades são requeridas, fundamentalmente, por tarefas de contagem, adição, substituição, subtração e inversão de segmentos.

A consciência fonológica é uma habilidade observada em crianças à idade de, aproximadamente, 4 anos. Algumas habilidades como a sensibilidade em detectar rimas podem ser observadas em crianças de 3 anos, e a habilidade de segmentar uma palavra em sílabas, à idade de 4 anos7. As habilidades presentes antes de se iniciar o processo de alfabetização, como a percepção e a produção de rimas, estão estreitamente correlacionadas ao sucesso posterior em leitura, conforme mostrou o trabalho de Bradley e Bryant8. O trabalho de Lundberg et al.9 demonstrou que o treinamento de habilidades fonológicas em pré-escolares, por meio de jogos lingüísticos, conduz essas crianças a bons desempenhos em leitura. Nesse sentido, algumas habilidades de consciência fonológica configuram-se como precursoras das habilidades de leitura.

O trabalho de Liberman et al.10, no entanto, constatou que as habilidades de perceber e produzir rimas, bem como as habilidades de contar o número de sílabas de uma palavra, estão presentes em crianças por volta dos 4 anos de idade. Mas a capacidade de contar o número de fonemas de uma palavra apresentada oralmente, ou seja, a consciência fonêmica, só é observada à idade de 6 anos, quando se inicia o processo de alfabetização.

Os trabalhos de Morais et al.11,12 concluíram, de maneira inequívoca, que a consciência fonológica, ao nível fonêmico, só é observada em sujeitos alfabetizados. Nesses estudos, os iletrados apresentavam apenas habilidades fonológicas ao nível silábico.

Tais pesquisas vieram demonstrar que algumas habilidades fonológicas desenvolvem-se de forma espontânea, através da experiência lingüística, enquanto outras habilidades decorrem da aprendizagem de um sistema alfabético de escrita. As habilidades de analisar as palavras ao nível da sílaba, ou da unidade subssilábica, se desenvolvem antes de a criança iniciar a escolarização e decorrem da experiência lingüística, ao passo que as habilidades de analisar as palavras ao nível fonêmico dependem do aprendizado de um sistema alfabético13-15. As habilidades fonológicas de nível fonêmico são as últimas a se desenvolverem e são consideradas o nível mais alto de consciência fonológica16.

Vale acentuar que esses diferentes níveis de consciência fonológica se relacionam de forma distinta com a aprendizagem da leitura e da escrita. Durante os últimos 30 anos, o desenvolvimento das habilidades de consciência fonológica tem sido amplamente estudado em função da estreita relação dessas habilidades com a aprendizagem da leitura e da escrita. Diversos trabalhos têm indicado uma correlação positiva entre as habilidades de consciência fonológica e as habilidades de leitura e escrita e ressaltado a habilidade de consciência fonêmica como fator preditivo dos desempenhos em leitura e em escrita. Tais trabalhos demonstraram que bons níveis de consciência fonêmica, ao início da escolarização, são capazes de predizer o sucesso na aprendizagem da leitura e da escrita em um estágio posterior. De maneira consensual, a consciência fonêmica é apontada como uma habilidade essencial para aprender a ler e escrever em um sistema alfabético8,9,17-22.

Por outro lado, um conjunto de experimentos relatados por Byrne23 constatou que não só a consciência fonológica é importante para a aprendizagem da leitura e da escrita. Após a realização de diversos experimentos, Byrne23 concluiu que crianças não alfabetizadas são incapazes de descobrir o princípio alfabético sem instrução explícita das correspondências grafema-fonema. Para o autor, o conhecimento dessas correspondências e a consciência fonêmica atuam de maneira complementar no processo de aquisição do princípio alfabético. Para a aprendizagem da leitura e da escrita, a consciência fonêmica, embora seja uma competência fundamental e um fator preditivo de sucesso, ou fracasso, não é a única habilidade necessária. Para dominar os princípios do sistema alfabético, o conhecimento, em paralelo, das correspondências grafema-fonema se faz também necessário.

Considerando o corpo dessas pesquisas, o presente trabalho* entende que a relação entre consciência fonológica e aprendizagem da linguagem escrita é de causalidade recíproca. De acordo com Alegria et al.24, a consciência fonológica e a leitura são compostas por um conjunto de subhabilidades que se relacionam entre si e possuem mútua causalidade. Assim, as habilidades fonológicas presentes em pré-escolares predizem e favorecem a habilidade de leitura inicial, enquanto o desenvolvimento da atividade de leitura favorece a análise ao nível fonêmico, que, por sua vez, permite bons progressos na leitura. Além disso, considera-se aqui que, apesar de a consciência fonológica, e principalmente a consciência fonêmica, ser apontada como fator preditivo de sucesso dessa aprendizagem, o ensino das correspondências grafema-fonema é, também, fator fundamental para o progresso nessa aprendizagem. Por isso, o presente estudo se propõe a investigar em que medida a aprendizagem das correspondências grafofonológicas pode suscitar diferenças no desenvolvimento da consciência fonológica em pré-escolares.

Parece claro que o conhecimento lingüístico que as crianças possuem ao entrarem na pré-escola, referente à consciência fonológica, como discutido anteriormente, deve servir de suporte para construir o conhecimento sobre a escrita. Mas é possível também que o ensino explícito das correspondências grafofonológicas possa favorecer o desenvolvimento das habilidades fonológicas, principalmente ao nível fonêmico. Além disso, considera-se que a concepção construtivista, apesar de não priorizar o ensino das correspondências grafofonológicas, ao propiciar uma rica experiência dos alunos com a língua escrita, conseqüentemente os faz descobrir, e progredir, com relação ao sistema de escrita. Uma outra questão a que se propõe este estudo é observar se, como de fato algumas pesquisas indicam, o desenvolvimento da consciência fonêmica decorre da aprendizagem alfabética ou se está associado ao ensino das correspondências grafofonológicas.

Considerando tais aspectos, observou-se o desenvolvimento das habilidades fonológicas de dois grupos de pré-escolares que iniciavam um período de pré-alfabetização. Um dos grupos foi exposto ao ensino sob a concepção construtivista, ou seja, não houve instrução sobre as correspondências grafofonológicas. O outro grupo foi exposto a um ensino que tinha como meta o ensino das correspondências grafema-fonema, mesmo nesse período de pré-alfabetização. Dessa forma, o presente estudo espera observar se a atividade escolar propiciada por duas concepções distintas de ensino pode favorecer diferenças significativas no desenvolvimento da consciência fonológica, ao nível silábico e fonêmico.

 

MÉTODO

Participaram do estudo 43 crianças**, com idade média inicial de 5 anos e 9 meses, de duas escolas da rede particular de ensino da cidade de Florianópolis, de equivalente nível socioeconômico. Uma das escolas, denominada Grupo A, aplicava os princípios construtivistas, e a outra escola, denominada Grupo B, enfocava o ensino das correspondências grafema-fonema. As crianças foram avaliadas durante o período de um ano, por meio das mesmas tarefas fonológicas, de subtração e inversão ao nível silábico e fonêmico, em dois momentos do ano escolar:

• T1 - ao início do ano escolar, antes de ser iniciada a pré-alfabetização;

• T2 - ao final do ano letivo, ao término da pré-escola***.

Os instrumentos utilizados para a avaliação da consciência fonológica foram retirados da bateria BELEC de Mousty et al.25 e adaptadas ao português por Godoy26. As provas foram realizadas individualmente e os estímulos foram pré-gravados e apresentados pelo examinador. As respostas foram gravadas. A avaliação constou de quatro provas:

1. Subtração silábica

A prova foi constituída de 10 itens com estrutura CVCV (consoante-vogal-consoante-vogal), todos pseudopalavras (palavras inventadas, sem significado, que seguem as mesmas regras fonotáticas da língua). A tarefa da criança consistia em dizer o que restava do estímulo ao ser subtraída a sílaba inicial. Foram apresentados 4 estímulos para treino. O escore máximo alcançado nesta prova foi de 10 pontos. Exemplo: "bazu" (estímulo/pseudopalavra) - "zu" - (resposta/pseudopalavra).

2. Inversão silábica

A prova foi constituída de 10 itens com estrutura CVCV. Os dois primeiros estímulos eram palavras e os demais pseudopalavras. A tarefa da criança consistia em dizer o que resultava da inversão das sílabas do estímulo apresentado. Foram apresentados 4 estímulos para treino. O escore máximo alcançado foi de 10 pontos. Exemplos: "boca" (estímulo/palavra) - "cabo" ou "cabô" (resposta/palavra); "zoma" (estímulo/pseudopalavra) - "mazô" ou "mazu" (resposta/pseudopalavra).

3. Subtração fonêmica

A prova foi constituída de 10 itens com estrutura CVC, todos pseudopalavras. A criança deveria subtrair, mentalmente, o fonema inicial de cada estímulo apresentado e dizer o que restava. Foram apresentados 4 estímulos para treino. O escore máximo obtido foi de 10 pontos. Exemplo: "pes" (estímulo/pseudopalavra) - "es" (resposta).

4. Inversão fonêmica

A prova foi constituída de 5 itens com estrutura CV e 5 itens com estrutura VC, todos pseudopalavras. A tarefa da criança consistia em inverter os fonemas mentalmente e dizer o que resultava. Foram apresentados 4 itens para treino. O escore máximo obtido foi de 10 pontos. Exemplo: "is" (estímulo/pseudopalavra) - "si" (resposta).

 

RESULTADOS

A Tabela 1 mostra os desempenhos médios dos dois grupos de crianças em cada uma das tarefas aplicadas, nos dois momentos de avaliação. Em T1, pode-se observar que as crianças, de ambos os grupos, apresentavam bons desempenhos em tarefas fonológicas ao nível silábico e baixos desempenhos em tarefas ao nível fonêmico. Em T2, no entanto, houve um crescimento desses desempenhos, para ambos os grupos, tanto ao nível silábico como ao nível fonêmico, mas é observado um desenvolvimento mais acentuado nos desempenhos ao nível fonêmico.

 

 

Com a finalidade de determinar se a evolução dessas habilidades, entre os dois momentos de avaliação, foi significativa, a média dos desempenhos alcançados no momento T2 foi subtraída da média dos desempenhos alcançados em T1 (T2 - T1), para cada um dos grupos. Essa média resultante, que representou, efetivamente, a evolução no desempenho das quatro tarefas fonológicas, foi transformada em porcentagem média de ganho e foi comparada, entre os dois grupos, por análise de variância.

Com relação às tarefas fonológicas ao nível silábico, a análise de variância (ANOVA) mostrou que a diferença com relação aos ganhos alcançados entre os dois grupos, no intervalo T2-T1, não foi significativa (p < 0.05), tanto para a tarefa de subtração como para a tarefa de inversão silábica. A Figura 1 ilustra a porcentagem média de ganho, para cada grupo, nessas tarefas.

 

 

 

Quanto às tarefas fonológicas ao nível fonêmico, houve um crescimento acentuado dessas habilidades, para ambos os grupos, como pôde ser observado na Tabela 1. Essa evolução, no entanto, foi diferente entre os dois grupos. A ANOVA mostrou que a diferença com relação aos ganhos alcançados entre os dois grupos, no intervalo T2-T1, foi significativa (p > 0.05), tanto para a tarefa de subtração como para a tarefa de inversão fonêmica. A Figura 2 ilustra a porcentagem média de ganho, para cada grupo, nessas tarefas.

 

 

Os resultados demonstraram que houve um crescimento das habilidades fonológicas, tanto ao nível silábico como ao nível fonêmico, para os dois grupos estudados, entre os dois momentos de avaliação. Entretanto, o crescimento das habilidades fonêmicas foi mais acentuado para o Grupo B comparativamente ao crescimento dessa habilidade para o Grupo A durante esse período.

 

DISCUSSÃO

O objetivo do presente estudo foi investigar se o ensino das correspondências grafofonológicas pode favorecer o desenvolvimento da consciência fonológica em pré-escolares. Uma outra questão foi observar se a consciência fonológica, ao nível fonêmico, se desenvolve como resultado da aprendizagem alfabética ou se esse desenvolvimento pode estar também associado ao ensino das correspondências grafofonológicas.

Considerando as habilidades fonológicas como um grupo de habilidades organizadas em diferentes níveis, os resultados quanto ao desenvolvimento da consciência fonológica, ao nível silábico, mostraram que, apesar de as crianças apresentarem bons níveis de desempenho antes do início da pré-alfabetização, essa habilidade continua a se desenvolver durante esse período, mas o crescimento observado não é significativo. Esse resultado pode ser explicado em função de as crianças, de ambos os grupos, já apresentarem, à entrada da pré-escola, níveis bem desenvolvidos de consciência silábica, ao redor de 75% de respostas corretas, o que implicou um crescimento pouco significativo dessa habilidade ao longo desse período. Esses resultados parecem refletir a facilidade com que as crianças brasileiras adquirem a consciência silábica a partir da experiência lingüística. Tal facilidade pode ser compreendida em função de a estrutura fonológica do português apresentar os limites silábicos bem definidos, um número pequeno de tipos de sílabas e a estrutura CV como a mais freqüente27. Segundo Câmara Junior28, a sílaba é a base para a aquisição e a estruturação fonológica da língua na mente infantil.

Ainda com relação ao desenvolvimento da consciência silábica, não houve diferenças entre os dois grupos quanto ao ganho obtido na realização dessas tarefas entre os dois momentos de avaliação. Esse resultado demonstra que essa habilidade continua a se desenvolver na pré-escola, mas esse crescimento não parece depender das características particulares do ensino alfabético proporcionado por cada um dos métodos de ensino aqui estudados. Parece que o período de pré-alfabetização, essencialmente com relação ao período a que se refere este trabalho, tem pouca influência sobre o desenvolvimento da consciência silábica, confirmando que essa habilidade se desenvolve independentemente da alfabetização.

Quanto ao desenvolvimento da consciência fonológica, ao nível fonêmico, à entrada da pré-escola os dois grupos exibiam baixos desempenhos em tarefas fonêmicas, confirmando assim que esta habilidade parece não se desenvolver através da maturação lingüística, corroborando as pesquisas na área. O progresso exibido pelos dois grupos, após poucos meses de pré-alfabetização, parece comprovar que o desenvolvimento da habilidade fonêmica está relacionado à aprendizagem alfabética: independentemente da abordagem de ensino, os dois grupos progrediram, sensivelmente, com relação ao desempenho das tarefas fonêmicas propostas durante o período investigado. Como discutido anteriormente, a consciência fonológica, ao nível fonêmico, parece depender da aprendizagem de um sistema de escrita alfabético e ser uma habilidade fortemente relacionada à aquisição da leitura e da escrita8-10,12,13,17,18,21,29.

Entretanto, ao comparar a evolução do desenvolvimento da consciência fonêmica entre os dois grupos, houve diferenças. Os resultados mostraram que o Grupo B apresentou crescimento significativamente maior do que o do Grupo A em tarefas fonêmicas. Esse resultado indica, por um lado, que a aprendizagem alfabética favorecida pela abordagem construtivista também desenvolve a consciência fonêmica, mas, por outro lado, mostra que o grupo de crianças estimulado pelo ensino das correspondências grafofonológicas desenvolveu de forma significativamente mais acentuada a consciência fonêmica.

Nesse sentido, convém ressaltar que no início desse estudo (T1) o Grupo A apresentava médias de desempenhos superiores aos do Grupo B com relação às tarefas de nível fonêmico (Tabela 1). Os desempenhos do Grupo A eram duas vezes maiores que os do Grupo B. Essa diferença, no entanto, não foi estatisticamente significativa (F < 1). No momento T2, é observada a evolução nos desempenhos dos dois grupos, mas o desenvolvimento do Grupo B supera, de forma significativa, o desenvolvimento do Grupo A. Esse resultado parece evidenciar a influência do ensino das correspondências grafofonológicas sobre o desenvolvimento da consciência fonêmica.

Corroborando essa hipótese, Byrne23 afirma que a consciência fonêmica e o conhecimento grafêmico são duas habilidades necessárias à aprendizagem da leitura e da escrita e Castles e Coltheart22, em um trabalho de revisão de estudos que investigavam a relação entre consciência fonológica e aprendizagem da leitura e da escrita, discutem a possibilidade de que a associação causal, observada nesses estudos, entre consciência fonológica e aprendizagem da leitura e da escrita seja o reflexo da participação do conhecimento ortográfico na execução das tarefas fonológicas. Os autores questionam a existência da consciência fonêmica como uma habilidade puramente de linguagem que possa estar separada do conhecimento grafêmico. A hipótese levantada por Castles e Coltheart22 é a de que talvez não seja possível adquirir consciência fonêmica sem instrução das relações grafofonológicas.

No presente estudo, foram observadas diferenças no desenvolvimento da consciência fonológica, ao nível fonêmico, entre os dois grupos de crianças expostos a diferentes abordagens de ensino. Os resultados indicaram que a aprendizagem da língua escrita determina o desenvolvimento da consciência fonêmica, entretanto, o ensino sistemático das correspondências grafofonológicas favorece o crescimento significativo dessa habilidade, o que denota a relação intrínseca entre consciência fonêmica e conhecimento grafêmico. O desenvolvimento da consciência fonêmica decorre da aprendizagem alfabética, mas, ao mesmo tempo, está associado ao ensino das correspondências grafema-fonema.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Aprender a ler e a escrever, longe de ser uma tarefa simples, envolve inúmeras habilidades e exige diferentes capacidades. Do ponto de vista cognitivo, tal atividade envolve percepção, memória, pensamento, inteligência e linguagem. Do ponto de vista lingüístico, a atividade de leitura e de escrita requer um conjunto de capacidades fonológicas, sintáticas, semânticas e pragmáticas que também fazem parte da linguagem oral. O conhecimento de mundo, a capacidade intelectual, o conhecimento enciclopédico ou a capacidade de fazer inferências contribuem, igualmente, para o processo de compreensão da linguagem escrita, e também da linguagem oral. Ler e escrever depende ainda de diversos fatores, tais como: a motivação e o interesse, a representação desse objeto como significativo, o contato e a exposição a essa linguagem e, sem dúvida, de uma explicitação do código escrito.

Uma importante contribuição das pesquisas na área de aquisição da linguagem escrita dos últimos trinta anos foi demonstrar, de forma inequívoca, que a consciência fonêmica está estreitamente relacionada ao sucesso da aprendizagem da leitura e da escrita alfabética. Essa habilidade, ainda que não seja um pré-requisito para a alfabetização, determina a formação de bons ou de maus leitores. Por isso, a habilidade de consciência fonêmica é um valioso instrumento que permite diminuir as dificuldades das crianças ao enfrentarem o grande desafio de aprender a ler e a escrever. Nesse sentido, o ensino, claro e sistemático, das correspondências grafema-fonema favorece o desenvolvimento da consciência fonêmica, fato que, independentemente do método de ensino, não pode ser desprezado. Para aqueles que estão envolvidos no processo de alfabetização, bem como àqueles que se dedicam ao trabalho clínico-terapêutico relacionado às dificuldades de aprendizagem, tais dados podem significar a diferença. Abstraindo-se das discussões a respeito dos métodos de ensino, por que não ensinar as relações grafema-fonema?

 

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Correspondência:
Dalva Godoy
Rua do Canto da Amizade - 107
Lagoa da Conceição - Florianópolis
SC - Brasil - CEP: 88062-518
Fone: (48) 3234-1340
E-mail: dalvagodoy@gmail.com

Artigo recebido: 12/04/2008
Aprovado: 15/05/2008

 

 

Este artigo apresenta parte dos dados da tese de doutorado da autora, aprovada em 2005 pelo programa de Pós-Graduação em Lingüística da Universidade Federal de Santa Catarina - Florianópolis (UFSC). A pesquisa foi realizada com duas escolas da rede particular de ensino da cidade de Florianópolis, SC.

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