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Revista Psicopedagogia

versão impressa ISSN 0103-8486

Rev. psicopedag. vol.25 no.77 São Paulo  2008

 

ARTIGO ESPECIAL

 

20 anos depois: uma pesquisa sobre problemas de aprendizagem na atualidade

 

20 years later: a review about apprenticeship problems nowadays

 

 

Michele Fabiane A. S. Garcia PaesI; Rosa Maria Junqueira ScicchitanoII

IPedagoga. psicopeddagoga. Especialista em Psicologia Aplicada à Educação. Profa. convidada do Curso de Especialização em psicopeddagogia da Universidade Estadual de Londrina
IIpsicopeddagoga. Doutora em Psicologia Escolar, Mestre em Educação Especial, Profa. da Universidade Estadual de Londrina. Membro do Conselho Nacional e da Diretoria Executiva da ABPp

Correspondência

 

 


RESUMO

Em 1988, um estudo sobre o perfil da clientela do Centro de Atendimento psicopeddagógico da Universidade Estadual de Londrina/PR (CAPp/UEL) mostrou que era constituída principalmente de meninos, de 7 a 11 anos, que freqüentavam escolas públicas e particulares, encaminhados por professoras, orientadoras educacionais e médicos (neurologistas, psiquiatras infantis e pediatras). Os principais motivos da procura de atendimento psicopeddagógico eram trocas de letras na escrita e problemas de ortografia. Vinte anos depois o estudo foi retomado, com base em dados documentais dos prontuários da clientela encaminhada ao CAPp/UEL, no período de 1989-2005. Dados referentes a idade, sexo, série escolar, natureza da escola, quem encaminha e motivo do encaminhamento foram analisados e discutidos. Assim, foi possível ter uma visão dos problemas de aprendizagem ao longo de um período de 20 anos: como têm sido vistos, reconhecidos e considerados. Nos primeiros anos do século XXI (2001-2005), foram encaminhados com mais freqüência: meninos, de 7 a 14 anos, 1ª a 8ª séries e, principalmente, de 5ª a 6ª séries, de escolas públicas estaduais; professoras, orientadoras educacionais, médicos neurologistas, fonoaudiólogos, psicólogos e psicopeddagogos foram os profissionais que mais encaminharam. Os principais motivos de encaminhamento foram problemas de aprendizagem, problema de atenção/concentração, hiperatividade/agitação, dificuldade em leitura, escrita e cálculo, reprovação, não estudar sozinho/não fazer sozinho as tarefas, dificuldades na alfabetização e baixo rendimento escolar/notas baixas. Não se observa, nos últimos 20 anos, mudança significativa na tendência de se culpabilizar a criança e sua família pelos problemas de aprendizagem. A persistência dos problemas de aprendizagem na alfabetização, no desenvolvimento da escrita e da leitura compreensiva aponta para a necessidade de se desenvolver ações preventivas como forma de enfrentamento do problema.

Unitermos: Transtornos de aprendizagem. psicopeddagogia.


SUMMARY

In 1988, a research about patients of the Centro de Atendimento psicopeddagógico da Universidade Estadual de Londrina/PR. (CAPp/UEL) showed the most patients were composed by boys from 7 to 11 years old who attended public and private schools and were oriented by teachers, educational supervisors and doctors (neurologists, child psychiatrists and pediatricians). The main reason for their searching for psychopedagogic treatment was misspelling. Twenty years later the review was retaken based on data from the reference books of the clients of CAPp/UEL from the period of 1989 to 2005. Data of age, sex, scholar period, nature of school and motives were analysed and debated. Therefore, it was possible to have a view of the learning problems of these past twenty years: the way they were seen, recognized and considered. In the first years of the XXI century (2001-2005) we could frequently see more boys from 7 to 14 years old, from 1st to 8th grade and mainly from 5th and 6th grade coming from public schools; teachers, educational supervisors, doctors (neurologists), phonoaudiologists, phychologists and psychopedagogue were the professionals who most oriented treatment for these children. The main motive were learning problems, lack of attention/concentration, hyperactivity agitation, reading problems, writing and calculus, school failing, not studying by himself/not accomplishing assignments by himself, difficulty to be made literate, low school marks. We haven't been seen, in the past 20 years, significant changes on tendency of culpability on child and his family for the learning problems. The persistence of learning difficulties being made literate, in the development on comprehensive writing and reading, points to the necessity to accomplish preventive actions targeting to face the problem.

Key words: Learning disorders. Psychopedagogy.


 

 

INTRODUÇÃO

Em 1988, um estudo sobre o perfil da clientela do Centro de Atendimento psicopeddagógico da Universidade Estadual de Londrina, PR, (CAPp/UEL) foi realizado, com base em dados dos prontuários das crianças e adolescentes atendidos de outubro de 19851 - época de sua criação - a maio de 1988.

Esse estudo foi apresentado no I Congresso de psicopeddagogos1.

Dados relativos a idade, sexo, escolaridade, relação idade-série, procedência do encaminhamento, tipo de escola e, sobretudo, motivo da procura do atendimento psicopeddagógico e dificuldades apresentadas foram analisados e discutidos.

O estudo mostrou que:

  • 65% da clientela atendida era constituída de meninos;
  • com idade entre 7 e 11 anos;
  • que freqüentavam de 1ª a 3ª série;
  • 54,7% freqüentavam escola pública e 45,3% freqüentavam escola particular;
  • quem encaminhava com mais freqüência eram professoras, orientadoras educacionais e médicos (neurologistas, psiquiatra infantil, pediatra).

Os motivos da procura de atendimento psicopeddagógico (Queixa Principal)2 eram:

  • troca de letras na escrita;
  • problemas de ortografia;
  • dificuldade de aprendizagem;
  • dificuldade de aprendizagem relacionada à motivação;
  • dificuldade de aprendizagem relacionada a problema emocional;
  • dificuldade de atenção;
  • dificuldade em leitura e escrita;
  • dificuldade na leitura;
  • dificuldade na escrita;
  • dificuldade em leitura, escrita e cálculo;
  • dificuldade em matemática;
  • problema de comportamento em sala de aula;
  • problema de coordenação motora.

 

20 ANOS DEPOIS

Vinte anos depois, em 2005, este estudo foi retomado, com base nos dados da Lista de Espera do CAPp/UEL.

Poucos estudos e pesquisas com base em dados documentais têm sido realizados no Brasil sobre encaminhamentos e motivos da procura de atendimento psicopeddagógico.

Muitas suposições são feitas, com base na experiência dos psicopeddagogos. Uma delas é a de que, atualmente, a principal "queixa" apresentada por quem encaminha ou por quem procura o atendimento psicopeddagógico é "problema de atenção e hiperatividade".

Um estudo recente realizado por Rossini e Santos2 utilizou, como fonte da pesquisa documental, dados de prontuários das crianças atendidas no Ambulatório de Distúrbios de Aprendizagem (ADA) do Hospital de Clínicas da Universidade de Campinas (HC/UNICAMP). É um estudo de grande relevância, não só por ser uma das poucas pesquisas sobre este tema, mas também porque a partir dos dados obtidos "tem-se o perfil da criança que não possui outra dificuldade senão para o aprendizado escolar"2.

O presente estudo utilizou como fonte de pesquisa dados relativos dos encaminhamentos ao CAPp/UEL, no período de 1989-2005, tal como constavam na lista de espera.

Dados referentes a idade, sexo, série escolar, reprovações, natureza da escola, quem encaminha e motivo do encaminhamento foram analisados e discutidos.

Os dados foram organizados fazendo-se um recorte no tempo:

  • de 1989 a 1995;
  • de 1996 a 2000;
  • de 2001 a 2005.

Assim, foi possível ter uma visão dos problemas de aprendizagem ao longo de

um período de 20 anos: como têm sido vistos, reconhecidos e considerados por professores, orientadoras educacionais, médicos, psicólogos, psicopeddagogos e outros profissionais.

1989 - 1995

Em 1989 (Tabela 1):

  • 72% das crianças encaminhadas eram meninos;
  • 58% tinham de 7 a 10 anos;
  • a maioria freqüentava de 1ª a 3ª séries (34% a 1ª série, 20,3% a 2ª série e 18,7% a 3ª série);
  • 39% eram alunos de escolas públicas estaduais, 26,5% eram alunos de escolas públicas municipais e 12,5% de escolas particulares;
  • quem mais encaminhava eram as professoras e as orientadoras educacionais.

Os principais motivos de encaminhamento eram:

  • problema de aprendizagem;
  • troca de letras na escrita;
  • falta de atenção/distração;
  • problema de comportamento em sala de aula;
  • hiperatividade;
  • problema de coordenação motora.

"Problema de aprendizagem" e "troca de letras na escrita" eram os principais motivos de encaminhamento, seguidos de "falta de atenção/distração" e "problemas de comportamento em sala de aula".

"Hiperatividade" aparece, pela primeira vez, claramente especificado, como um dos principais motivos de encaminhamento a atendimento psicopeddagógico.

De 1990 a 1995, eram encaminhadas com mais freqüência (Tabela 2):

  • crianças de 7 a 12 anos;
  • do sexo masculino;
  • que freqüentavam 1ª, 2ª, 3ª e 5ª séries;
  • de escolas públicas.

A maior porcentagem de encaminhamentos era de crianças de 1ª e 2ª séries.

Em 1993, o encaminhamento de crianças de 2ª série diminuiu (8,57%), voltou a aumentar em 1995 (25,35%).

Em 1990 e 1991, diminuíram acentuadamente os encaminhamentos de crianças de 3ª série (de 22,39% em 1989 diminuiu para 7,69% e 9,68%, respectivamente). Em 1992, voltou a aumentar para 18,42%. Em 1993, nenhuma criança de 3ª série foi encaminhada, mas em 1994 e 1995 voltaram a aumentar (14,08%).

Em 1989, eram encaminhados 5,97% de alunos de 4ª série e, em 1990, 3,85%. Essa porcentagem aumentou a partir de 1992 (10,52%) e foi ainda maior em 1993 (17,14%).

Também se observa um aumento significativo de encaminhamentos de crianças de 5ª série a partir de 1992 (13,16%, 20% em 1993, 18,31% em 1994 e 1995).

Em 1993, é significativa a porcentagem de alunos de 7ª e 8ª séries e do ensino supletivo (8,57%) encaminhados a atendimento psicopeddagógico.

É importante observar que os dados porcentuais são relativos ao número de encaminhamentos de cada ano.

No período de 1990 a 1995, quem mais encaminhou foi a professora e funcionários da UEL, mães de crianças já atendidas no CAPp/UEL e médicos do Hospital Universitário/ UEL (HU) (pediatras e neurologistas).

"Problema de aprendizagem" foi o principal motivo de encaminhamento (ou queixa) de 1990 a 1995 (69,67%), seguido de "problema de atenção" (18,48%) (Tabela 3).

"Reprovação", "baixo rendimento", começam a aparecer como motivo de encaminhamento a atendimento psicopeddagógico.

1996-2000

De 1996 a 2000 foram encaminhados com mais freqüência ao CAPp/UEL (Tabelas 4 e 5):

  • meninos (74%);
  • de 7 a 11 anos e, principalmente, de 8 a 9 anos;
  • da 1ª a 5ª série e, principalmente de 1ª e 2ª séries.

As reprovações no histórico escolar das crianças encaminhadas ocorreram mais na 1ª e 2ª séries. Muitas das crianças encaminhadas tinham duas ou três reprovações na mesma série.

As escolas públicas foram as que mais encaminharam (46% escolas estaduais, 26% escolas municipais), mas a porcentagem de encaminhamentos por escolas particulares foi significativa (25%). Escolas especiais também encaminharam crianças e adolescentes para atendimento psicopeddagógico.

Quem mais encaminhou foram professoras, supervisoras, orientadoras educacionais e coordenadoras pedagógicas, médicos (pediatras e neurologistas), fonoaudiólogos, psicopeddagogos, professores e funcionários da UEL, mães de crianças atendidas no CAPp/UEL.

Os principais motivos de encaminhamento são apresentados na Tabela 6.

"Problema de aprendizagem" foi o principal motivo de encaminhamento, seguido de "problema de atenção". Houve significativo aumento de encaminhamento a atendimento psicopeddagógico de crianças que "não acompanham" (a programação ou o ritmo de trabalho em sala de aula).

2001-2005

Nos primeiros anos do século XXI (20013 -2005), foram encaminhados com mais freqüência ao CAPp/UEL (Tabelas 7 e 8):

  • meninos de 7 a 14 anos;
  • de 1ª a 8ª série - principalmente de 1ª e 5ª séries (21% e 19% respectivamente).

As reprovações ocorreram com mais freqüência na 5ª série (14,2%, destes, 6,2% têm 2 reprovações na mesma série), na 1ª série (6,2%), na 6ª e 8ª séries e no 1º ano do ensino médio.

No período de 2001 a 2005, as escolas públicas estaduais foram as que mais encaminharam, chegando a 93,7% dos encaminhados em 2002.

Quem encaminhou com maior freqüência foram professores e orientadores educacionais, médicos neurologistas, psicólogos, fonoaudiólogos e psicopeddagogos.

Os principais motivos de encaminhamento estão apresentados na Tabela 9.

É importante assinalar que, em 2004, uma criança foi encaminhada com a seguinte "queixa": "apresenta dislexia, disgrafia e disfonia que dificulta a aprendizagem. Distúrbio de atenção e memória". Tratava-se de uma criança de 6 anos, da Educação Infantil, iniciando a aprendizagem formal da leitura e da escrita.

 

DISCUSSÃO

A partir dos dados deste estudo algumas constatações e reflexões podem ser feitas a respeito dos problemas de aprendizagem nos últimos vinte anos.

Um estudo retrospectivo a respeito de como o fracasso escolar foi pesquisado e considerado desde o início do século XX, realizado por Patto3, aponta uma tendência persistente de se culpabilizar a criança e sua família pelos problemas de aprendizagem.

Nos últimos 20 anos, não foram observadas mudanças significativas nessa tendência, como mostram as "queixas" que acompanham os encaminhamentos a atendimento psicopeddagógico.

Exemplo: problema de aprendizagem, dificuldade de aprendizagem, dificuldade para aprender a ler e a escrever, problema de atenção, hiperatividade e não faz as tarefas/atividades sozinha.

Padilha4 lembra que "essa centração do problema na criança revela a concepção mecanicista (o defeito está na máquina), bem como organicista (a imaturidade da criança, um problema no organismo)" e assinala que tais modelos não permitem interpretar adequadamente o fracasso escolar.

Ciasca (1994, in Rossini e Santos2) afirma que as professoras tendem a "diagnosticar" a criança que não aprende segundo o "padrão adequado" como portadora de problema neurológico ou mesmo como deficiente mental.

Não raro tem-se atribuído a causas orgânicas, dificuldades de aprendizagem que, por vezes, são devidas a outros fatores. É o que tem sido denominado de "patologização do ensino" ou "medicalização do ensino": a busca de soluções para os problemas de aprendizagem na área médica.

Rossini e Santos2 afirmam que é possível levantar questionamentos sobre os comportamentos e atitudes apresentados pelas crianças no seu cotidiano escolar que as levam a ser encaminhadas para análise médico-psicológica e para serviços de atendimento especializado em distúrbio de aprendizagem de hospital público. As autoras questionam também o porquê destas crianças serem consideradas portadoras de distúrbios orgânicos apenas quando entram na escola.

A escola tem sido o principal agente de encaminhamento a atendimento psicopeddagógico.

Mesmo considerando que é na escola que se dá a aprendizagem formal da leitura, escrita e cálculo e, portanto, é ali que se manifestam dificuldades e problemas de aprendizagem, é importante considerar que os dados desse estudo apontam a acentuada e persistente tendência da escola de considerar que as dificuldades e problemas de aprendizagem devem ser resolvidos fora dela.

Como assinala Padilha4, ao encaminhar a criança a um outro profissional a professora propõe uma intervenção fora da escola, dando a esta intervenção um caráter de tratamento de uma doença. Ao mesmo tempo, o encaminhamento pela professora expressa a solicitação de "um profissional competente" para atender à criança e se constitui como mais um dos inúmeros pedidos com o mesmo caráter, que têm ocorrido por parte da escola.

A escola costuma justificar os encaminhamentos pela formação insuficiente dos professores e pelo número exagerado de alunos por classe4.

Padilha4 afirma ainda que "a crença na necessidade de crianças sanarem suas dificuldades escolares em uma instituição fora da escola parte do pressuposto de que a escola consegue desempenhar seu papel de ensinar somente a quem 'pode' aprender, ou seja, a quem aprende sem dificuldade o que ela propõe, da forma como propõe".

É importante lembrar que algumas dificuldades relativamente comuns no processo de aprendizagem acabam se tornando problemas de aprendizagem por não haver, nesse processo, intervenções pedagógicas coerentes e eficazes por parte da escola.

Os dados a respeito dos encaminhamentos ao CAPp/UEL mostram que os médicos fazem encaminhamentos ao atendimento psicopeddagógico de crianças e adolescentes encaminhados a eles pela escola. Muito provavelmente, o fato de o atendimento psicopeddagógico na Universidade Estadual de Londrina ter sido realizado no Hospital Universitário durante muitos anos é uma das principais razões destes encaminhamentos.

Tal como em outros estudos, também no CAPp/UEL o número de encaminhamentos de meninos é maior do que o de meninas.

Explicações de ordem cultural social têm sido utilizadas para justificar essa diferença. Pouco se fala na quase ausência de professores homens nas séries iniciais do ensino fundamental, ou mesmo, no quanto o ambiente escolar se constitui como um "ambiente feminino", com exigências que podem ser mais difíceis para os meninos do que para as meninas.

Observações com base no trabalho clínico psicopeddagógico têm apontado maior encaminhamento de meninas no início da adolescência e na adolescência. Uma hipótese fundamentada no conhecimento psicanalítico pode ser levantada: tornar-se mulher pode colocar às meninas questões difíceis que se manifestam também na aprendizagem escolar.

Dados relativos à idade e à série escolar em que ocorrem os encaminhamentos a atendimento psicopeddagógico no CAPp/UEL apontam que, nos últimos 20 anos, é possível observar uma persistência nos encaminhamentos de crianças das séries iniciais do ensino fundamental, sobretudo da 1ª e 2ª séries. Não obstante, observa-se também um aumento na idade e série escolar das crianças encaminhadas. Nos anos 80, predominavam os encaminhamentos de crianças de 1ª, 2ª e 3ª séries, com idades de 7 a 10 anos. A partir dos primeiros anos da década de 90, são encaminhadas, em grande número, crianças de 7 a 12 anos, de 1ª a 5ª séries. É notável o aumento nos encaminhamentos de alunos de 15-16 anos, de 5ª, 7ª, 8ª séries e 1º ano do ensino médio. No início do século XXI (2001-2005), continua significativa a porcentagem de encaminhamentos de alunos de 7 a 14 anos, de 1ª a 8ª série.

Rossini e Santos2 também constataram maior porcentagem de encaminhamentos de crianças de 7 a 10 anos. Smolka5 assinala que a maioria dessas crianças é considerada normal até os 7 anos, quando entra na escola e começa e enfrentar as exigências escolares.

Muito provavelmente, é por isso que Abaurre6 afirma que o psicopeddagogo - que atua diretamente com o educando que apresenta "problemas" de aprendizagem e como mediador entre a escola e a família - lida com perplexidades:

  • a perplexidade da escola, que não consegue entender porque certas crianças não aprendem a ler e a escrever;
  • a perplexidade das famílias que, até enviarem os filhos para a escola, não haviam identificado, no comportamento habitual dessas crianças, nenhum sintoma preocupante, mas que assumem os "distúrbios" atribuídos às crianças, a partir do diagnóstico "patologizante" da escola;
  • a perplexidade das próprias crianças, que muitas vezes não entendem a escola, o seu discurso e as atividades que ali são chamadas a desempenhar. Perplexas com o tratamento que passam a receber na escola e, conseqüentemente, em casa, acabam por incorporar o rótulo a elas atribuído e por comportar-se segundo expectativas geradas pelo próprio rótulo.

O aumento de encaminhamentos de alunos de 5ª e 6ª séries, nos primeiros anos do século XXI (2001 a 2005), parece confirmar dados de pesquisas como PISA, PROVA BRASIL, SAEB, realizadas nos últimos anos, que apontam a dificuldade de alunos de escolas brasileiras lerem com compreensão um texto simples, escreverem um texto simples (como um bilhete, por exemplo) com clareza e coerência e realizarem operações e cálculos matemáticos simples.

Um dado que parece bastante significativo é a porcentagem muito pequena de "Queixa"/motivo de encaminhamento referente a dificuldades na leitura. Tais queixas, na grande maioria das vezes, vêm associadas a problemas na escrita: "a criança apresenta dificuldade na leitura e na escrita". Isso parece ser reflexo e, ao mesmo tempo, "denunciar" o lugar pouco valorizado da leitura na escola.

Os professores parecem esperar e "cobrar" que os alunos "naturalmente" leiam e leiam bem. Estudos como os de Dorneles7 e Scicchitano8 mostram que a leitura ocupa um espaço pequeno e pouco valorizado em termos de tempo dedicado a ela na sala de aula: os alunos lêem apenas os enunciados dos exercícios ou a professora lê e explica os problemas e exercícios propostos.

Poucas vezes há, na sala de aula, um espaço e um tempo para que a leitura ocupe um lugar significativo na vida das crianças e dos adolescentes.

Apenas em 2002 aparece, pela primeira vez neste estudo, a queixa "dificuldade em leitura".

Em 2003, aparece "dificuldade na leitura e na interpretação de textos", como queixa específica.

As queixas de "troca de letras" na leitura e na escrita, "problema de ortografia", "dislexia", tão freqüentes nos encaminhamentos a atendimento psicopeddagógico nos anos 80, diminuem muito nos últimos 20 anos.

Podemos hipotetizar que as contribuições da Psicolingüística e da psicopeddagogia possibilitaram um novo olhar do professor para os "problemas de escrita", de tal modo que a escrita ortograficamente correta continua ainda a ser considerada importante, mas outras questões ligadas à construção do texto - como seqüenciação, coerência, coesão textual - são também consideradas, e agora passam a ser trabalhadas em sala de aula.

É notável, nesse estudo, o número de crianças de 1ª e 2ª séries encaminhadas a atendimento psicopeddagógico por "dificuldade para aprender a ler e a escrever".

Dispomos hoje de uma grande produção de conhecimento a respeito de como a criança aprende a ler e a escrever. No entanto, o processo de ensino-aprendizagem da leitura e da escrita parece ser, ainda, uma tarefa difícil para os professores das séries iniciais do ensino fundamental.

Pesquisa realizada, em 1991, por Scicchitano8 possibilitou constatar que diferenças no ritmo de aprendizagem da leitura e da escrita pelas crianças são, muitas vezes, consideradas pelos professores como dificuldades de aprendizagem. A compreensão das diferenças que as crianças apresentam no processo de construção da escrita, bem como o conhecimento do processo de construção da aprendizagem, poderia levar a uma importante mudança na atitude do professor frente às crianças que permanecem longos períodos de sua história escolar nos níveis iniciais de concepção sobre a escrita e, de modo especial, frente à criança que não mostra progressos de um nível ao seguinte.

Problemas de atenção - "falta de atenção", "desatenção" - estão entre os principais motivos de encaminhamento a atendimento psicopeddagógico, sobretudo a partir dos anos 90.

Observa-se, neste estudo, que nem sempre "problema de atenção" e "hiperatividade" estão associados na queixa de professores e orientadores educacionais.

Nos anos 80-90, era significativo o número de encaminhamentos ao CAPp/UEL com a queixa de "problemas de comportamento em sala de aula". Algumas dessas crianças apresentavam problema de aprendizagem, outras não. Estudos como o de Cypel9 assinalam que, nos anos 80 do século XX, alunos desatentos, indisciplinados e ou hiperativos eram rotulados ou diagnosticados como crianças com Disfunção Cerebral Mínima (DCM) e já era comum a prática de encaminhamento ao neurologista e de medicação.

"Hiperatividade" passa a ser um dos principais motivos de encaminhamento a atendimento psicopeddagógico a partir de 2000-2005.

Fernandez10 afirma que "a sociedade hipercinética e desatenta medica o que produz".

Cruz11 pergunta: "crianças desatentas ou desatendidas?" e assinala que a sociedade desatende a todos ou atende hipercineticamente e, contudo, coloca como doença o que as crianças podem denunciar com sua inquietude e falta de atenção.

Fernandez10 questiona: "o que ocorreu para que uma quantidade de mães de crianças aceitem e solicitem Ritalina para acalmar seus filhos ou para que sejam exitosos" e, mais: "o que ocorreu para que esses professores que têm 5 de seus alunos medicados (para que lhes dêem atenção) aceitem e busquem a justificativa do sintoma ADD ou ADHD? "

Fernandez10 assinala que experiências psicopeddagógicas demonstram que a modalidade de aprendizagem de um aluno, bem como seus modos de responder e estudar na escola, não são conseqüência de características de organismo, mas efeito de muitos fatores e, fundamentalmente, efeito da modalidade de ensino dos professores.

A experiência clínica em psicopeddagogia tem demonstrado que a grande maioria das crianças rotuladas como portadoras de DDA ou DDAH, com uma escuta e compreensão diferentes, pode conseguir aprender criativamente, sem necessidade de medicamentos.

Uma queixa, que também começa a aparecer no final dos anos 90, persiste no início do século XXI e pode expressar um "sintoma" importante na atualidade, tanto nas famílias como nas escolas é assim expressa: "não consegue fazer as atividades sozinho", "não consegue se organizar para estudar", "não faz tarefa sozinho". Uma questão que se levanta é que tais queixas podem expressar o sentimento de solidão das crianças e adolescentes na atualidade e o estado de abandono tanto pela família como pela professora.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Um dado muito significativo nesse estudo é que, ao longo dos 20 anos de abrangência da pesquisa, as professoras são as que mais encaminham crianças e adolescentes ao atendimento psicopeddagógico.

É importante considerar, também, que a persistência das dificuldades e problemas de aprendizagem na alfabetização inicial, na aprendizagem e no desenvolvimento da escrita e da leitura compreensiva, ao mesmo tempo que evidencia tratar-se de um problema complexo, aponta para a necessidade de se desenvolver ações preventivas como forma de enfrentar o problema. A primeira e mais evidente ação preventiva envolve a qualificação do professor para trabalhar em sala de aula.

Uma ação preventiva que pode ser desenvolvida está relacionada à atuação do psicopeddagogo nos cursos de formação de professores e na escola, junto ao professor, ajudando-o a conhecer e compreender melhor o processo de aprendizagem e de desenvolvimento da leitura e da escrita de modo a desenvolver estratégias de trabalho pedagógico em sala de aula em que "as situações e as atividades de leitura e escrita tenham uma função e um sentido reconhecido pelo aluno"8.

Há, hoje, o consenso entre pesquisadores, educadores e professores, de que não é possível ensinar a todos do mesmo modo. Ensinar diferente para alunos diferentes - esse é o desafio. E essa parece ser uma tarefa muito difícil para os professores.

 

REFERÊNCIAS

1. Scicchitano RMJ. Centro de Atendimento psicopeddagógico da Universidade Estadual de Londrina: caracterização da clientela. In: I Congresso Brasileiro de psicopeddagogos; São Paulo;1988. p.105.

2. Rossini SDR, Santos AAA. Fracasso escolar: estudo documental de encaminhamentos. In: Sisto FF e outros, org. Dificuldades de aprendizagem no contexto psicopeddagógico. Petrópolis:Vozes;2001.

3. Patto MHS. O fracasso escolar como objeto de estudo: anotações sobre as características de um discurso. Cad Pesqui. 1988;65:72-7.         [ Links ]

4. Padilha AML. Possibilidades de histórias ao contrário ou como desencaminhar o aluno da classe especial. São Paulo:Plexus;2001.         [ Links ]

5. Smolka AL. I Simpósio sobre Dificuldades e Distúrbios de Aprendizagem; Campinas: FCM/UNICAMP;1988.         [ Links ]

6. Abaurre MB. Lingüística e psicopeddagogia. In: Scoz BJL et al., orgs. psicopeddagogia: o caráter interdisciplinar na formação e atuação profissional. Porto Alegre:Artes Médicas;1987. p.186-216.

7. Dorneles BV. Mecanismos seletivos da escola pública: um estudo etnográfico. In: Scoz BJL et al, orgs. psicopeddagogia: o caráter interdisciplinar na formação e atuação profissional. Porto Alegre: Artes Médicas; 1987. p.251-74.

8. Scicchitano RMJ. Alfabetização escolar e fracasso: uma perspectiva construtivista - interacionista [Tese de Doutorado]. São Paulo:Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo;1991.         [ Links ]

9. Cypel S. Reflexões sobre alguns aspectos neurológicos do aprendizado escolar. In: Isto se aprende com o Ciclo Básico. São Paulo:Secretaria da Educação. Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas; 1986. p.147-53.         [ Links ]

10. Fernandez A. Os idiomas do aprendente: análise das modalidades ensinantes com famílias, escolas e meios de comunicação. Porto Alegre:Artmed;2001.         [ Links ]

11. Cruz JG. ADD: crianças e jovens com "déficit atencional": desatentos ou desatendidos? In: Fernandez A, ed. Os idiomas do aprendente: análise das modalidades ensinantes com famílias, escolas e meios de comunicação. Porto Alegre: Artmed; 2001.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Rosa Maria Junqueira Scicchitano
Rua Souza Naves, 2.651, Ap 31
Jd Caiçaras - Londrina - PR - CEP 86015-430
Tel: (43) 3324-8121
E-mail: rosamaria@uel.br

Artigo recebido: 02/03/2008
Aprovado: 07/06/2008

 

 

Trabalho realizado na Universidade Estadual de Londrina, Londrina, PR.

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