SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.26 número81A escola contemporânea diante do fracasso escolarAspectos psiquiátricos da criança escolar índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Revista Psicopedagogia

versão impressa ISSN 0103-8486

Rev. psicopedag. vol.26 no.81 São Paulo  2009

 

PONTO DE VISTA

 

O laço social e a aprendizagem: algumas breves considerações

 

The social bond and the learning: some brief thoughts

 

 

Morgana Martins Grudzinski

Pedagoga e Psicopedagoga Clínica, Especialista em Diagnóstico e Tratamento dos Transtornos do Desenvolvimento na Infância e Adolescência - no Centro de Estudos Dr. Paulo César Brandão - Centro Lydia Coriat de Porto Alegre. Atua como Professora de Educação Infantil desde 1999 e em Clínica Psicopedagógica com Crianças e Adolescentes desde 2003

Correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo visa algumas proposições acerca da Psicanálise e da Educação, a luz de conceitos como laço social e laço parental e o papel do Outro de Lacan, que constituem a base da subjetivação do indivíduo. A estrutura social da escola promove o conhecimento, mas a família é a responsável pela consolidação dos laços que possibilitam à criança se tornar desejante do saber e do conhecimento. As funções materna e paterna, ligadas à importância do Outro na constituição do sujeito, mostram àqueles educadores interessados na fundamentação psicanalítica um estudo de caso em que sujeito e desejo estão em embaraço, causando o não aprender nas séries iniciais da alfabetização.

Unitermos: Aprendizagem. Relações familiares. Relações interpessoais. Meio social. Psicologia social.


SUMMARY

This article aims some propositions about Psychoanalysis and Education, under the light of concepts such as social bond and parental bond and the role of Another of Lacan, which form the basis of subjectivity of the individual. The social structure of the school promotes the knowledge, but the family is the responsible for strengthening the bonds that enable the child become desirous of learning and knowledge. The maternal and paternal functions, related to the importance of the Other in the constitution of the subject, show those educators interested in the grounds of a psychoanalytic one study case in which subject and desire are in embarrassment, causing not learn in initial series of literacy.

Key words: Learning. Family relations. Interpersonal relations. Social environment. Psychology, social.


 

 

INTRODUÇÃO

Conceber a Psicanálise como ligada à Educação nos remete aos escritos de Freud, que embora não tenha ligado diretamente as duas áreas, deu vazão a interlocuções possíveis.

Sigmund Freud (1913) cita o interesse científico de outras áreas com relação à Psicanálise, quando afirma que a Educação "psicanaliticamente esclarecida" é entendida como importante na profilaxia das neuroses, tendo em vista que "quando os educadores se familiarizarem com as descobertas da Psicanálise, será mais fácil se reconciliarem com certas fases do desenvolvimento infantil e, entre outras coisas, não correrão o risco de superestimar a importância dos impulsos instintivos socialmente imprestáveis ou perversos que surgem nas crianças"1.

Creio que Freud1,2 se refere mais à educação de casa, onde os pais são responsáveis por "humanizar" as crianças, tornando-as pessoas inseridas na sociedade, com laços sociais consolidados. A instituição escola é o segundo lugar de acolhimento das crianças, é lá onde a socialização, a linguagem, os hábitos de vida e a aprendizagem aparecem de forma plena, entendendo que o comportamento do indivíduo mostrará como realmente ele é, onde professores com uma escuta sensível podem detectar possíveis fraturas na estruturação psíquica dos alunos.

Alguns autores mais contemporâneos têm dado contribuições interessantes acerca do pensar educação escolar e psicanálise.

Margareth Shäffer3 realiza uma análise da relação entre a Epistemologia Genética, tão amplamente usada nas escolas que se propõe a uma ação educativa construtivista, e a Psicanálise. Jean Piaget não considerou o sujeito inconsciente de Freud, em razão disso, muitos educadores buscam na Psicanálise o entendimento do não-aprender, expressão usada tanto no meio educacional quanto psicológico. A autora não vê a possibilidade concreta de intersecção entre Psicanálise e Psicologia Genética, entre sujeito de desejo e sujeito da Cognição "...dessas duas posições, apesar de suas divergências internas, só poderá advir um não-método. Da Psicologia Genética, porque ela se fundamenta na espontaneidade de construções dos sujeitos; e da Psicanálise, porque lida com o inconsciente, que escapa a qualquer tentativa de domínio, de aprisionamento que permita determinar os meios a empregar para atingir determinado objetivo - processo que se faz necessário quando se trabalha com a Educação. "Como nos coloca Millot, mesmo que as teorizações psicanalíticas forneçam subsídios para esclarecer os mecanismos psíquicos em que se funda o processo educacional da relação professor-aluno e da aprendizagem, tal esclarecimento não aumenta o domínio sobre esse processo. Assim, as esperanças de se aliarem tais abordagens, com a finalidade de unir uma metodologia construtivista de trabalho com uma pedagogia analítica de base psicanalítica frente ao educando, parecem estar fadadas ao fracasso. É como nos diz Millot: "não existe pedagogia analítica no sentido de que o educador poderia adotar uma posição analítica frente ao educando, de tal sorte que isto poderia evitar o recalque ou permitir sua suspensão". Assim, a antinomia "entre processo psicanalítico e educação tem como corolário a impossibilidade de ocupar, frente à mesma pessoa, o lugar de educador e de analista" (Millot apud Schäffer3)".

O objetivo desse artigo não é se deter na análise teórica da relação entre as duas vertentes, mas sim propor reflexões acerca da subjetivação promovida pelos pais, em relação à inserção social-educativa dos filhos e seu não aprender. Subjetividade e cognição estão em pauta nesse processo e podem, ao meu ver, serem alicerces para compreensão dos profissionais que se comprometem com ações concretas para um aprender saudável.

Lacan entende que a subjetividade de um indivíduo está ligada às figuras parentais que cumprem funções diferentes dentro da vida infantil. A criança se relaciona à mãe como um espelhamento, pois seu desejo é o desejo daquela que deseja por ela, num primeiro momento. A subjetivação perpassa questões intra e inter-relacionais. O ser humano adulto pode fazer surgir ou não o sujeito desejante naquele ser que nasce dependente do adulto. O desejo, cujo efeito principal é a possibilidade de individuação, aparece intensamente por meio da criação dos filhos. A mãe, exercendo sua função materna, pode subjetivar de um jeito ou de outro sua criança.

O primeiro momento psíquico do bebê é o espaço materno. É a mãe que proporciona para o bebê a quietude, o prazer ao adormecer e mamar. O bebê estabelecerá com a mãe uma relação de fusão. A mãe estruturará a vida psíquica no bebê, que nos primeiros meses depende dela para sobreviver.

A função paterna, exercida por aquele sujeito que se mostra um terceiro na relação entre a mãe e a criança, delimita uma lei, uma regra social que se encarrega dos valores culturais da sociedade em questão. A dependência da mãe, de seus cuidados maternais e acolhedores, cede espaço às proibições, o que se pode e não pode, os interditos são postos por essa figura que tem um papel também fundamental na estruturação do sujeito.

O desejo de incesto, tão apregoado pela Psicanálise, encontra neste terceiro uma interdição necessária que proporcionará a subjetivação necessária para a aprendizagem acontecer. Desde as brincadeiras de Fort-dá, que Freud descreve em "Além do princípio do prazer", torna o indivíduo um ser que joga. E espera o retorno da mãe, que deixou a lacuna da falta como marca subjetiva importante a esse sujeito.

Neste contexto, cabe indagar quem é o Outro de Lacan?

O Outro, segundo Chemama4,5; "...fundamentalmente constitui aquilo a partir do qual é ordenada a vida psíquica, isto é, o lugar onde insiste um discurso que é articulado, mesmo que nem sempre seja articulável".

O outro é visto também como a ordem da linguagem, e sabemos que em Psicanálise a linguagem é fundante do psiquismo do sujeito.

Um artigo extraído da Internet foi esclarecedor com relação ao conceito de Outro no Seminário XVI de Lacan (De um outro ao Outro). O autor, Luiz Eduardo Prado de Oliveira6; nos diz que, em 1966, Lacan definiu o Outro como sendo para o sujeito "...o lugar de onde pode ser colocado, para ele, a questão de sua existência", isto é: de sua sexualidade e de seu desejo, de sua procriação e de sua filiação, de sua existência e de sua morte, do destino que terá sido o seu, enfim. Outro, portanto: um lugar de questionamento do sujeito. Poderia ser uma versão lacaniana do conceito de Inconsciente. Outro é um lugar, um espaço, topológico, decerto. Intrapsíquico... Bastaria que deste lugar viesse o questionamento de cada um quanto à sua existência e seus principais eixos para que ele (o lugar) se constitua como o Outro. Logo poderá ser também: um Outro idioma, um Outro país, uma Outra prática social, sob a forma banal de uma Outra sociedade transformada pela revolução. Provavelmente, uma Outra pessoa. Em outro lugar, onde trata da Subversão do sujeito e dialética do desejo no Inconsciente freudiano, Lacan muda de registro: "Do qual se deduz que este Outro não é nada além do puro sujeito da moderna estratégia dos jogos, como tal perfeitamente acessível ao cálculo da conjectura, porquanto o sujeito real, para pautar o que lhe é devido, não se dará conta, aí, de nenhuma alienação dita subjetiva ao senso comum, quer dizer, psicológica, mas somente da inscrição de uma combinatória cuja exaustão é possível. Lacan passa, então, ao domínio do cálculo das probabilidades, à lógica das combinatórias"6.

O Outro passou de um lugar de questionamento para um lugar da inscrição da combinatória. Lacan articula o inconsciente com a lógica matemática das combinatórias: "A análise combinatória é um elemento da teoria dos conjuntos que trata da organização dos grupos de elementos ou da organização de uma série de números cujo último depende do primeiro. Ela desempenha um papel determinante na teoria dos jogos e da circulação da informação. De maneira surpreendente, no meio do mesmo artigo, Lacan dará um salto da matemática à linguística. Escreverá, então, que o Outro é "o lugar do tesouro do significante, o que não quer dizer do código"6. Portanto, o que isso não quer dizer? Que o Outro não seja o lugar do desdobramento de uma correspondência unívoca entre um significante e qualquer coisa, que o Outro não pode ser assimilado ao código de trânsito, ao código de boas maneiras, ao código telegráfico, ao código Morse, e que dele não emanará nenhum SOS, como também nenhum imperativo, nenhuma lei. E o que é "o lugar do tesouro do significante"? É "o lugar do ajuntamento sincrônico e enumerável, onde nenhum (significante) se sustenta senão pelo princípio de sua oposição a cada um dos outros." O significante é entendido, portanto, aqui, em termos de linguística"6.

É a relação com esse Outro e mesmo com as funções parentais, que muitas vezes falham na estruturação do sujeito, muito nos interessa ao pensarmos na criança que não aprende, na criança em que o desejo está remetido a outra ordem que não a das letras e dos números.

O laço social, onde a escola está inserida, surge a partir do laço parental. Mas como entender melhor esses 2 laços?

Molina7 explica que o laço parental é "o veículo da transmissão dos traços identificatórios aportados pela função materna e pela função paterna. A estruturação psíquica através destas operações possibilita a função perceptiva registrar o mundo, simultaneamente, desde a perspectiva de si e do outro, gerando as condições necessárias para nutrir a palavra da sua função evocativa, significante"7.

O laço social, por sua vez, é uma atadura humana "que vai sendo montada pela via do significante investido afetivamente e que se constitui por traços identificatórios, ordenados por um código moral, ético e estético"8.

A Psicopedagogia nessa concepção é vista como atravessada pelo saber da Psicanálise, que sugere ao psicanalista e - acrescento também àquele profissional atravessado pela Psicanálise - que o espaço da dúvida pode dar lugar ao surgimento do saber do mundo.

 

RELATO DE CASO

Cito a seguir o caso de K, 9 anos, que chega encaminhado pela Psicóloga do Posto e pela escola para uma avaliação na área da Psicopedagogia com queixas de problemas na Alfabetização. Vem oriundo de uma família em que a mãe mora em outra cidade e o visita eventualmente, em datas especiais ou em feriados prolongados, o pai numa terceira cidade, sem manter contatos com a mãe e sem visitas a ele. K. é cuidado e educado por uma tia que muitas vezes se refere como mãe e que o cria com ameaças de "voltar para a mãe - quando não se comporta bem e quando não estuda direito".

As funções materna e paterna, neste caso, são exercidas por outras pessoas, os cuidadores, a quem K. respeita como adultos que cuidam dele, mas que não são seus genitores.

 

CONSIDERAÇÕES ACERCA DO CASO K.

Temos claro que os pais são protagonistas nas inscrições inconscientes fundantes nos filhos, muito embora outras pessoas possam exercer funções complementares, como coadjuvantes à estruturação psíquica do sujeito.

K. sofreu abandono por parte da mãe, que o deixou aos cuidados da irmã mais velha, que da forma que consegue vem educando o menino. Com relação ao saber escolar, essa cuidadora procura significar conhecimento com vistas à aprendizagem, muito embora ela mesma não detenha os conhecimentos escolares. Os significantes para que ocorra o desejo por aprender já foram estruturados de forma desarmônica.

K. teve um saber lhe foi abstraído, que é o saber de si, de sua filiação, de quem o fez e que não o quer por perto.

Saber de si pode estruturar o saber do mundo, não querer saber do mundo pode ser um jeito de não pensar em sua problemática de filiação.

De acordo com Silvia Molina7; "Tudo o que não é colocado em palavras exerce um efeito inibidor, obstáculo para a ampliação da função simbólica".

Significantes que giram em torno do sentir-se abandonado podem interferir na não aprendizagem de K., que mostra em sintomas visíveis, como agitação, como não se interessar por leitura e escrita e não se inserir no mundo simbólico dos letrados.

O laço parental e social tem se constituído de forma a levar esse menino a resistir à aprendizagem do mundo. Aprender significa crescer, se independizar no mundo e isso pode ser perigoso num ambiente sentido como hostil e de tênues referências parentais.

A escola é uma das manifestações do Outro, promotora de linguagem e também de subjetivação. Adaptar-se ao meio social da escola é difícil, o menino sempre reclama de professoras ruins e que não gostam dele. Pequenas rupturas se dão por um sentimento de não pertencer a essa parcela da sociedade que tem como objetivo ensinar a aprender saberes de livros e de vida, ou seja, a comunidade escolar.

Saber da vida para K. talvez seja saber de um passado de abandono e de miséria de significantes de carinho, de aconchego e de amor.

O laço parental desde a tenra infância foi constituído de não aceitação, o que leva a um funcionamento de desprezo de si próprio, de quem não sabe, não faz nada direito. Dentro da escola essa postura leva a um não produzir, não se apropriar do que a escola tem de melhor, ou seja, a cultura, a escrita e a leitura de um mundo feito por outras pessoas, melhor inseridas no social.

Chemama5,6 fala da ruptura do laço social e analisa alguns sujeitos que, por meio de seu comportamento, não firmam parceiro que demanda do sujeito relacionamentos reais.

A escola, ao meu ver, impõe ao sujeito um relacionamento sólido com a instituição, a fim de se consolidar a aprendizagem. Estar com os laços com o mundo tênues ou até rompidos promove uma relação confusa e insuficiente, não atingindo assim o aprender.

As causas do não aprender podem se dar por razões das mais variadas, mas creio que entender como se dá o laço social do sujeito com o mundo pela via da Psicanálise pode ajudar os educadores e enxergarem mais o sujeito de desejo, neste caso impossibilitado de aprender e não somente como um aluno que faz parte de um sistema de imperativos educativos que se deve seguir à risca.

A pedagogia na maioria das vezes responde ao sujeito de forma uniforme e espera dele que se comporte e que se interesse pelos saberes arbitrariamente ensinados.

Freud cita de forma muito bonita que "somente aqueles que puderem sondar as mentes das crianças serão capazes de educá-las"1.

Creio que somente querendo muito promover o desejo de aprender, promovendo-o por meio de relações sólidas e permanentes com essas crianças, os educadores poderão ser esses "sondadores de mentes", conforme diz Freud1. Sondar suas próprias mentes por meio de seus processos de análise também são formas de adentrar no mundo de desejo infantil. O educador que se deixa atravessar por saberes da Psicanálise, em função de sua tarefa de educar, tem a coragem de permitir lembranças e vivências de sua infância, a fim poder promover um Outro que traga felicidade aos alunos.

 

REFERÊNCIAS

1. Freud S. Totem e tabu e outros trabalhos. In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud Volume XIII. Rio de Janeiro:Imago;1996.         [ Links ]

2. Freud S. Além do princípio do prazer. In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud Volume XIII. Rio de Janeiro:Imago;1996.         [ Links ]

3. Shäffer M. A educação e a falta: algumas questões sobre psicanálise, epistemologia e psicologia genética. Revista APPOA 1999;16:102-15. Disponível em: www.appoa.com.br        [ Links ]

4. Chemama R. Dicionário de psicanálise. Porto Alegre:Artmed;1995.         [ Links ]

5. Chemama R. Clínica e ruptura do laço social. Polígrafo Digitado.         [ Links ]

6. Oliveira LEP. O conceito de outro e a abordagem das psicoses. Controvérsias Psicanálise. 1999;1. Disponível em: http://www.pradodeoliveira.com/br/outro.html        [ Links ]

7. Molina S. A intervenção psicanalítica em crianças adotivas. Revista APPOA 2001;21:102-15.         [ Links ]

8. Molina S. Formações clínicas neuróticas em posição tangencial ao laço social. Polígrafo digitado 2. Porto Alegre:Centro Lydia Coriat.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Morgana Martins Grudzinski
Rua Felipe Néri, 320, conjs. 203 e 204
Bairro Auxiliadora - Porto Alegre, RS
CEP 90440-150
E-mail: morganamg@gmail.com

Artigo recebido: 11/8/2009
Aprovado: 15/10/2009

 

 

Trabalho realizado na Disciplina "Seminário em Lacan - de um Outro ao outro" do Programa de Pós Graduação em Educação na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS.

Creative Commons License