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Revista Psicopedagogia

Print version ISSN 0103-8486

Rev. psicopedag. vol.26 no.81 São Paulo  2009

 

ARTIGO DE REVISÃO

 

Dislexia e estresse: implicações neuropsicológicas e psicopedagógicas

 

Dyslexia and stress: neuropsychological and psychopedagogical implications

 

 

Maria Arminda S. Tutti Cabussú

Psicóloga, Especialista em Psicoterapia Junguiana, Psicopedagogia e Neuropsicologia. Docência e Coordenação em Curso de Psicopedagogia Junguiana

Correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo tem como objetivo principal relacionar dislexia e estresse e suas implicações neuropsicológicas e psicopedagógicas. Para tanto, será realizada uma revisão bibliográfica nos conceitos de dislexia, estresse, neuropsicologia e psicopedagogia. Em seguida, far-se-á uma discussão dos temas, buscando um novo olhar sobre o tratamento das crianças com dislexia, ressaltando como fatores estressantes e emocionais interferem nos tratamentos realizados e no processo acadêmico.

Unitermos: Dislexia. Estresse psicológico. Neuropsicologia. Psicopedagogia.


SUMMARY

The main goal of this article is to relate dislexia and stress, and its neuropsychological and psychopedagogical implications. In order to do that, a bibliographical revision in the dislexia, stress, neuropsychology and psychopedagogy concepts will be carried through. Following that, a discussion among the subjects will take place, searching for a new look upon the treatment of the children with dislexia, pointing out how stressing and emotional factors intervene with the treatments carried out and the academic process.

Key words: Dyslexia. Stress, psychological. Neuropsychology. Psychopedagogy.


 

 

INTRODUÇÃO

A proposta deste artigo é relacionar o transtorno de aprendizagem classificado como dislexia com situações de estresse, e suas implicações neuropsicológicas e psicopedagógicas.

A dislexia é um transtorno neurológico crônico, que afeta cerca de 15% da população, tendo o disléxico que conviver com os sintomas para o resto de sua vida. Muitas situações estressantes interferem na sua vida, influenciando no seu desempenho e futuro acadêmico e social.

Na primeira parte do artigo, será apresentada uma conceituação dos subtemas dislexia, estresse, neuropsicologia e psicopedagogia por meio de uma revisão bibliográfica. Na segunda parte, serão discutidas as implicações neuropsicológicas e psicopedagógicas do estresse no decorrer do tratamento de crianças disléxicas.

Este artigo se propõe a ajudar os profissionais que lidam com crianças disléxicas, levantando situações que interferem no processo de aprendizagem, buscando um novo entendimento no tratamento dessas crianças.

 

DISLEXIA

A dislexia é um distúrbio específico de aprendizagem que se caracteriza por uma demora na aquisição da leitura e da escrita. Segundo Ianhez e Nico1; é um distúrbio de origem neurológica, congênito e hereditário, sendo comum apresentar-se em parentes próximos, com maior incidência no sexo masculino, atingindo cerca de 15% da população. Não é uma doença e por isso não se pode falar em cura, seus sintomas são persistentes e acompanham o sujeito ao longo de sua vida, entretanto, com apoio e tratamento adequado, as dificuldades poderão ser contornadas.

A nova definição adotada pela Associação Brasileira de Dislexia2 (ABD) foi elaborada em 2003 pela International Dyslexia Association: "Dislexia é uma dificuldade de aprendizagem de origem neurológica. É caracterizada pela dificuldade com a fluência correta na leitura e por dificuldade na habilidade de decodificação e soletração. Essas dificuldades resultam tipicamente do déficit no componente fonológico da linguagem que é inesperado em relação a outras habilidades cognitivas consideradas na faixa etária".

A maioria dos especialistas na área concorda com a hipótese de que ocorre um déficit no processamento fonológico. Existem evidências também de problemas na memória verbal de curto prazo e algumas linhas de pesquisa atuais apontam para fatores visuais envolvidos na dislexia3.

Os sintomas mais frequentes da dislexia, de acordo com Ianhez & Nico1; Jardini4 e Frank5 são:

• Dificuldade e demora na aquisição da leitura e da escrita;

• Discrepância entre as realizações acadêmicas e seu potencial cognitivo;

• Dificuldade com os sons das palavras, principalmente com rimas, aliterações e soletração;

• Confusão entre letras, sílabas ou palavras com diferenças sutis de grafia, ou grafias similares;

• Inversões parciais ou totais de sílabas ou palavras;

• Substituições de palavras por outras de estrutura mais ou menos similar ou criação de palavras, porém com diferente significado;

• Dificuldade na identificação e conversão fonema-grafema;

• Dificuldade na escrita, com trocas, omissões, junções e aglutinações de fonemas;

• Lentidão nas tarefas de leitura e escrita, mas não nas orais;

• Dificuldade na organização sequencial, temporal e espacial;

• Dificuldade na orientação direita-esquerda;

• Dificuldade para nomear objetos, memorizar números, palavras e endereços;

• Dificuldade com cálculos matemáticos;

• Resistência ou relutância para escrever ou tomar notas;

• Persistência nos erros, apesar da ajuda profissional;

• Dificuldade com línguas estrangeiras;

• Baixa auto-estima afetiva e intelectual;

 

RELUTÂNCIA PARA IR À ESCOLA

Geralmente o professor percebe a dificuldade de leitura e escrita e faz o encaminhamento para o especialista. É necessário fazer avaliação com uma equipe multidisciplinar. Começa então uma peregrinação entre diversos profissionais, como médico, psicólogo, fonoaudiólogo e psicopedagogo, até que se chegue ao diagnóstico. O tratamento deverá ser sistemático e cumulativo, de preferência com a utilização de métodos multissensoriais.

A aquisição da leitura e da escrita de disléxicos não será feita na forma convencional como é feita nas escolas, o que provocará frustrações para o disléxico, pois sua aprendizagem não corresponderá às suas expectativas, nem de sua família. O fator emocional deverá ser considerado durante o tratamento, pois o processo é geralmente longo e demorado, com sentimentos de insegurança e ansiedade1.

Várias reações emocionais podem ocorrer nos disléxicos. Alguns têm atitudes depressivas diante de suas dificuldades de aprendizagem, recusando situações que exijam rendimento sistemático e ativo por temor de viver situações de fracasso. Outros apresentam atitude agressiva diante de seus superiores e iguais, com comportamento de hostilidade para com seus professores e colegas adiantados na escola. Podem também evitar e rejeitar qualquer situação que envolva leitura, retirando-se da aprendizagem e de competições, o que leva a uma diminuição da sua auto-estima.

A maioria dos disléxicos após técnicas terapêuticas chega a dominar as habilidades da leitura e escrita, sempre com um nível de esforço. Dificilmente eles serão leitores interessados em material de leitura recreativa. Suas habilidades de leitura geralmente têm fins práticos, mas poderão ler eventualmente assuntos de interesse como uma forma de lazer. Eles provavelmente terão dificuldade em dominar com eficácia a leitura e ortografia de uma segunda língua.

Segundo Frank5; a criança com dislexia geralmente vivencia uma "vida secreta", pois percebe que não é como as outras crianças e prefere manter segredo sobre seu transtorno. Isso acarreta enorme pressão sobre a criança, que vive secretamente com medo de ser descoberta e de não se adaptar às situações. "Acaba evitando situações desconfortáveis nas quais seu segredo" possa ser revelado. Esse sentimento de medo causa um estresse ao longo do tratamento, que interfere na aprendizagem, causando enorme sofrimento emocional.

Os disléxicos que não conseguem fazer tratamentos especializados bem sucedidos podem aumentar as fileiras dos analfabetos, ou podem ficar excluídos das profissões que requerem rendimento acadêmico.

 

ESTRESSE

Segundo Guimarães apud Lipp6; "o estresse é uma consequência inevitável do processo de viver, sem o qual não haveria a própria vida". Qualquer mudança ou situação na vida poderá provocar estresse, que é uma reação física e emocional às demandas adversas impostas a um organismo em condições difíceis. O que causa estresse a uma pessoa é a forma como ela reage às situações na vida.

Lipp6 chama de estresse "a um estado de tensão que causa uma ruptura no equilíbrio interno do organismo" causando um desequilíbrio, no qual automaticamente faz-se um esforço para restabelecer a homeostase interior. Quando se conseguem estratégias para enfrentar o que causou esse desequilíbrio, o estresse é eliminado e volta-se ao normal. Porém, em muitas situações, essa fonte de estresse pode ser grande e permanente, causando tensão emocional e problemas no corpo e na mente do sujeito. O que gera estresse é chamado de estressor, que poderá ter sua origem em fontes externas e internas. As fontes externas se referem a tudo que ocorre na vida e vem de fora do organismo. As fontes internas estão relacionadas a crenças, valores e modos de agir.

De acordo com Savoia7; qualquer mudança na vida gera certo nível de estresse, que poderá ser positivo ou negativo. O estresse positivo aumenta o desempenho e é chamado de "eutress". Já o estresse que ameaça a capacidade do sujeito é chamado de "distress". As pessoas têm níveis diferentes de tolerância a situações estressantes, entretanto, segundo McLean apud Savoia7; pequenos eventos do dia-a-dia podem agir de maneira cumulativa e transformarem-se em grandes fontes de estresse. Segundo Savoia7; chama-se coping às estratégias de enfrentamento desenvolvidas para dominar e se adaptar às situações de estresse, isto é, uma resposta ao estresse (comportamental ou cognitiva) com a finalidade de reduzir as suas qualidades aversivas: "A forma pela qual uma pessoa usa o coping está determinada, em parte, por seus recursos, os quais incluem saúde e energia, crenças existenciais, habilidades de solução de problemas, habilidades sociais, suporte social e recursos materiais. O coping é também determinado por variáveis que diminuem o uso dos recursos pessoais. Podem ser de natureza pessoal, incluindo valores e crenças culturais que prescrevem certas formas de déficits de comportamentos. Podem ser ambientais, incluindo demandas que competem com os recursos pessoais e/ou agências como instituições que impedem os esforços de coping".

Para Biaggio apud Lipp6; o estresse está relacionado a estados de ansiedade e medo, sendo a ansiedade um sentimento difuso de medo diante de algo que não sabemos exatamente o que é, cuja percepção é de uma ameaça. Geralmente está relacionada a uma expectativa de que algo ruim pode acontecer. O medo é específico a alguma coisa real com tendência a fuga ou evitação de confronto. Todo ser humano, inclusive as crianças, desenvolve ansiedade e estresse devido a fatores ambientais e predisposição genética. A ansiedade e o medo são reações fisiológicas que fazem o indivíduo fugir ou lutar diante de situações adversas. Ou seja, o estresse surge a partir de uma fonte estressora, que geralmente é uma situação na vida que ultrapassa a capacidade de adaptação do indivíduo ou da criança.

Segundo Bignotto apud Lipp6; o estresse pode ser criado pela própria criança, de acordo com sua maneira de perceber a si mesma e ao mundo a sua volta. Sua aprendizagem social e características pessoais são formadas por meio de ensinamentos recebidos direta ou indiretamente pelos adultos significativos com quem se relaciona (pais, professores, familiares, amigos, etc.). Pais excessivamente exigentes e/ou superprotetores podem gerar filhos perfeccionistas, ansiosos, inseguros e, consequentemente, estressados. Os sintomas físicos de estresse infantis mais frequentes nas crianças são: náuseas, dores de cabeça e barriga, diarréia, agitação motora, tensão muscular, gagueira, enurese noturna, ranger dentes e tique nervoso. Os sintomas psicológicos mais frequentes são: agressividade, medo e choro excessivos, pesadelos, ansiedade, insegurança, dificuldade de relacionamento, distúrbios de atenção e concentração, desobediência, irritabilidade, impaciência, mudanças constantes de humor, desânimo, terror noturno, impaciência, dificuldades escolares, dentre outros.

Nos adultos, o estresse pode causar doenças físicas, como úlcera e gastrite, hipertensão, crises de pânico, doenças dermatológicas, distúrbios do sono, depressão e ansiedade, dentre outros, com risco dos problemas se tornarem graves a ponto de desencadear infartos, derrames, etc6.

Em uma família em que um dos membros tem uma doença crônica, esta afeta a todos. Se a família souber lidar com o problema, reduzindo as situações de tensão emocional, o estresse diminui. No entanto, se os membros da família também forem ansiosos, o estresse será sentindo por todos. Segundo Lipp6; a família estressada necessita de cuidados especiais para poder sobreviver como uma unidade funcional, onde seus membros possam se adaptar aos estressores presentes. Um transtorno como a dislexia acaba causando estresse não só ao indivíduo, mas a toda sua família. No tratamento psicopedagógico de crianças/adolescentes, deve-se levar em consideração que o estresse interfere no processo terapêutico.

Para se tratar o estresse é necessário identificar os estressores internos e externos. As fontes de estresse externas são mais fáceis de identificar do que as internas, pois estas muitas vezes não são percebidas claramente pelo indivíduo, e envolvem crenças e valores. As estratégias de enfrentamento das situações que causam o estresse determinaram sua evolução positiva ou negativa.

Lipp6 propõe um tratamento para controle do estresse baseado em quatro pilares: (1) alimentação, para repor os nutrientes perdidos no período de estresse; (2) relaxamento, para diminuir a tensão mental e física; (3) exercícios físicos, para eliminar a prontidão gerada pelo estresse; e (4) reestruturação dos aspectos emocionais, para mudar o modo de pensar, sentir e agir.

 

PSICOPEDAGOGIA

A Psicopedagogia surgiu da necessidade de atendimento às crianças com problemas de aprendizagem, numa fronteira entre a psicologia e a pedagogia. A maioria dos autores concorda que é uma área que estuda a aprendizagem humana, numa abordagem preventiva e curativa.

Para Scoz apud Bossa8; "a Psicopedagogia estuda o processo de aprendizagem e suas dificuldades, e numa ação profissional deve englobar vários campos do conhecimento, integrando-os e sintetizando-os". Segundo Kiguel apud Bossa8; "o objeto central da Psicopedagogia está se estruturando em torno do processo de aprendizagem humana: seus padrões evolutivos normais e patológicos - bem como a influência do meio (família, escola, sociedade) no seu desenvolvimento".

A Psicopedagogia engloba conhecimentos específicos de diversas áreas, sendo as principais as seguintes8: psicanálise, psicologia social, psicologia genética, linguística, pedagogia e neuropsicologia.

A prática psicopedagógica ocorre num âmbito clínico ou institucional. Na prática clínica, o psicopedagogo busca o sentido particular da dificuldade de aprendizagem do sujeito ou do grupo, identificando as causas e os elementos que dificultam ou facilitam o processo de aprendizagem, observando e analisando o contexto da situação, numa atitude de investigação e intervenção. Na psicopedagogia institucional, o sujeito é a própria instituição, com sua rede de relações, sua filosofia, valores e ideologia. Segundo Fogali apud Bossa8; a Psicopedagogia institucional pode trabalhar no contexto escolar, empresarial, hospitalar e familiar, entre outros. Outro campo de atuação da psicopedagogia visa à criação de um corpo teórico por meio de estudos das questões educacionais e da saúde no que concerne ao processo de aprendizagem.

Um dos campos da Psicopedagogia, citado anteriormente, acontece no consultório clínico onde se fazem diagnósticos e intervenções em sujeitos com dificuldades de aprendizagem.

Dentre os distúrbios de aprendizagem, a dislexia ocupa um espaço particular, em função de sua complexidade, pois, em muitos casos, seu diagnóstico é tardio, e o impacto na vida do sujeito e de sua família é enorme, uma vez que não é doença, por isso não tem cura. A dislexia é uma dificuldade, não impossibilidade, mas pode causar profundos efeitos negativos ou positivos na personalidade do disléxico, que tem que aprender a conviver com esse problema para o resto de sua vida1.

O tratamento do disléxico geralmente envolve dois métodos de alfabetização, segundo a maioria dos especialistas: o método multissensorial e o método fônico. O método multissensorial envolve diferentes modalidades sensoriais, como aspectos visuais, auditivos e sinestésicos. Segundo Capovilla9; o método fônico desenvolve habilidades metafonológicas e ensina as correspondências grafo-fonêmicas. Vários profissionais podem tratar a dislexia, porém, segundo Garcia apud Jardini4; os profissionais mais habilitados na intervenção são os fonoaudiólogos e os psicopedagogos, pois possuem formação mais específica em relação à fundamentação teórica das dificuldades de aprendizagem.

Segundo Jardini4; normalmente a criança disléxica inicia o tratamento entre 7 e 10 anos, sendo a primeira etapa da intervenção a reconstituição do processo de leitura e escrita, o que corresponde à fase de 1ª à 4ª série do ensino fundamental. Na segunda fase da reabilitação, a criança encontra-se na fase da pré-adolescência, frequentando da 5ª à 8ª série, e a intervenção visa estruturar a linguagem escrita em todos os seus aspectos morfo-sintáticos e semânticos, propiciando ao disléxico uma produção de textos de boa qualidade, utilizando-se de todos os recursos disponíveis na língua portuguesa. A intervenção continua dando atenção à interpretação de textos, questões, linguagem figurativa, gráficos e outras formas de linguagem. Nos adultos, a reabilitação visa ao restabelecimento da autoconfiança em suas potencialidades e inteligência, sua auto-aceitação como ser pensante, pois geralmente envolve histórias de fracassos escolares e frustrações quanto ao seu desempenho. No entanto, o disléxico adulto também revela uma série de soluções desenvolvidas criativamente por ele próprio para vencer suas dificuldades de leitura e escrita.

Percebe-se que a intervenção psicopedagógica de um disléxico acaba se tornando um processo prolongado, muitas vezes durando anos. O sucesso do tratamento depende da atuação do profissional, da escola, da família e do próprio disléxico. Devido à sua complexidade faz-se necessário buscar referenciais de outras áreas para melhor compreensão, abordagem e tratamento. Dentre essas áreas, os conhecimentos da neuropsicologia têm uma importância especial, em função dos estudos e avanços mais recentes.

 

NEUROPSICOLOGIA

A neuropsicologia é um campo específico das neurociências que estuda as relações entre o cérebro e o comportamento (Bertolucci apud Andrade et al.10). Sua fundamentação teórica foi construída a partir da convergência de várias ciências, entre elas a medicina, fisiologia e psicologia, sofrendo influência da escola russa por meio de Vygotsky e Luria, que ressaltaram a importância dos fatores socioculturais na evolução do ser humano10.

De acordo com Luria11; os processos mentais humanos são sistemas funcionais complexos que ocorrem por meio da participação de grupos de estruturas cerebrais operando em concerto. Ele definiu três unidades cerebrais funcionais, necessárias para qualquer tipo de atividade humana: a primeira unidade funcional regula o tono e a vigília, a segunda recebe, processa e armazena as informações que chegam do mundo exterior e a terceira programa, regula e verifica a atividade mental. Além disso, cada unidade básica possui uma estrutura hierarquizada que consiste em pelo menos três áreas corticais construídas uma sobre as outras, as áreas primárias (de projeção), as secundárias (projeção e associação) e as terciárias (zonas de superposição). Para Luria11; as zonas terciárias são estruturas especificamente humanas, sendo a terceira unidade funcional representada pelo córtex pré-frontal, que desempenha um papel essencial na regulação de estados de atividade que constituem o pano de fundo do comportamento humano. Ou seja, os lobos frontais participam de todas as formas de atividade consciente: "Cada forma de atividade consciente é sempre um sistema funcional complexo e ocorre por meio do funcionamento combinado de todas as três unidades cerebrais, cada uma das quais oferece a sua contribuição própria"11.

Segundo Fonseca12; essa complexa atividade cortical atua nos movimentos voluntários, isto é, em funções psíquicas superiores e em processos mentais humanos, que são formados, elaborados e materializados com base na atividade da linguagem: "No início do desenvolvimento, a atividade da criança é regulada pela linguagem exterior do adulto; mais tarde, é a própria linguagem interiorizada que guia e organiza a sua atividade psíquica superior, isto é, a atividade do seu próprio cérebro".

Portanto, o ser humano nasce com um cérebro imaturo, e essa maturação depende da influência do meio envolvente, pois a criança só desenvolve as funções superiores por meio da mediação da linguagem.

No ser humano, a linguagem parte da ação, passa por ela, mas progressivamente vai se distanciando dela, passando da linguagem gestual para a linguagem falada e posteriormente para a linguagem escrita. Em função desse desenvolvimento social ocorre uma organização funcional do cérebro, onde "o cérebro humano transformou-se no próprio órgão da civilização"12.

De acordo com Tabaquim apud Ciasca13; disfunções em alguma das unidades cerebrais durante o desenvolvimento acarretam alterações percepto-motoras, que resultam em comprometimento da linguagem e da aprendizagem.

Segundo Ohlweiler et al.14; as unidades funcionais de Luria11 se referem às funções cognitivas, não se podendo esquecer da afetividade, que poderia ser incorporada a uma quarta unidade funcional, localizada no sistema límbico para selecionar os estímulos e a porção orbitária do lobo frontal, para planificar a conduta no aspecto afetivo.

O sistema límbico está implicado no controle dos processos emocionais e motivacionais, da memória e da aprendizagem, e ainda no controle do meio interno. Neste sistema estão incluídos o hipocampo (importante para a fixação da memória declarativa), a amígdala cerebral (responsável pelas emoções principalmente de ansiedade e medo) e o giro do cíngulo (envolvido nos processos da atenção, memória, motivação, emoção e função visceral). Segundo Cosenza apud Andrade et al.10; "em situações ameaçadoras, a amígdala é importante para o processamento do estado do medo, estando implicada tanto no desencadeamento de respostas viscerais e endócrinas como na aprendizagem e memória, que levem a uma melhor adaptação às situações semelhantes, eventualmente encontradas no futuro".

Para Servan-Schreiber15; o sistema límbico forma um cérebro emocional que permanece constantemente em guarda, e aciona um alarme quando percebe algum perigo ou ameaça. Já o cérebro cognitivo, formado pelo neocórtex, tem a habilidade de controlar as reações emocionais.

De acordo com Goleman16; a amígdala pode ser um repositório de impressões emocionais, podendo acionar uma resposta emocional em situações de emergência, que dispara a secreção de hormônios para lutar ou fugir, antes mesmo que o neocórtex processe a informação e emita uma resposta. Por isso, muitas vezes, a emoção pode esmagar a racionalidade. O hipocampo seria responsável por lembrar os fatos puros, enquanto a amígdala grava na memória a intensidade emocional do estímulo. A amígdala examina a experiência, comparando com alguma situação vivida no passado, por meio de associações com eventos anteriores, muitas vezes com vagas semelhanças. Essas reações foram importantes para a sobrevivência da espécie humana, em função da rapidez para fugir de situações de perigo. Entretanto, na vida emocional atual dos seres humanos, muitas vezes causam consequências desastrosas nas relações sociais.

As reações de sobrevivência acontecem cada vez que estamos em alguma situação de possível ameaça e são desencadeadas dentro do cérebro, como foi citado anteriormente. Isso provoca sentimentos de medo e ansiedade (sistema límbico), que deflagram o estresse. Então, o estresse é uma reação que começa no cérebro e se espalha por todo o organismo, causando reações emocionais, fisiológicas e comportamentais.

 

DISCUSSÃO

A dislexia, por ser um transtorno de origem neurológica, acompanha o sujeito ao longo de sua vida. Os sintomas geralmente aparecem na fase de alfabetização ou nos primeiros anos do ensino fundamental, quando a criança não acompanha o ritmo da sala, com dificuldades para aprender a ler e a escrever. A partir da indicação da escola, a família procura por atendimento especializado. Após muitas consultas com vários profissionais, o aluno inicia um acompanhamento psicopedagógico. A família e a criança passam por situações de estresse ao longo desse processo. Esses estressores têm origens internas e externas. Dentre os estressores de fontes externas pode-se citar o ambiente familiar, escolar, social e os atendimentos especializados. Em relação ao estressores internos podem-se citar ansiedades, medos, expectativas, as crenças em relação à própria dislexia, e valores da família e da criança.

A família da criança com dislexia vivencia uma série de emoções ao perceber que seu filho não é da forma como eles idealizaram. Os pais poderão até viver um processo de luto, como é descrito por Elisabeth Kubler-Ross apud Frank5;envolvendo os cinco estágios: negação, raiva, barganha, depressão e aceitação.

O ambiente escolar é um dos maiores estressores externos da criança disléxica, uma vez que ela se depara com outras crianças que não apresentam dificuldades na leitura e na escrita como ela. Segundo Frank5; a criança com dislexia muitas vezes decide manter segredo sobre seu problema porque se sente envergonhada, embaraçada ou "anormal". Isso acaba provocando uma pressão interna sobre a criança, que passa então a evitar situações nas quais ela possa ser "descoberta", gerando muitos medos, que podem não ser identificados pelos adultos. Além do medo, a criança disléxica vivencia sentimentos de frustração, por não conseguir realizar as tarefas escolares da mesma forma que as outras crianças. O aluno disléxico sente também medo, insegurança e ansiedade cada vez que muda de professor ou de escola, pois ele terá que enfrentar várias situações novas, que causarão sempre um impacto emocional no seu dia-a-dia.

Nos ambientes sociais, muitas vezes, a criança disléxica se depara com outras crianças e adultos que propõem brincadeiras que envolvem leitura ou escrita, o que também causa estresse. A criança disléxica então poderá desenvolver vários tipos de sentimentos, como raiva, inferioridade, inveja, vergonha e solidão5.

Uma criança disléxica geralmente passa por vários profissionais durante o processo de avaliação e tratamento de sua dificuldade, tais como médicos de várias especialidades, psicólogo, fonoaudiólogo e psicopedagogo. Isso acarreta vários sentimentos de medo, ansiedade e insegurança, pois ela percebe que tem alguma coisa diferente dos outros ao precisar consultar tantos profissionais diferentes. Cada profissional que a família consulta gera uma esperança de que a dificuldade vai ser superada, causando frustração quando percebe que não há uma solução mágica.

Esses vários contextos estressores (internos e externos) acabam muitas vezes comprometendo de forma negativa o desempenho escolar do disléxico, causando o estresse negativo chamado distresse.

Segundo a International Dyslexia Society apud Ohlweiler et al.14; na dislexia deve-se sempre observar "que as diferenças são pessoais, o diagnóstico é clínico, o entendimento é científico e o tratamento é educacional".

O diagnóstico é clínico porque busca identificar o problema a partir de seus sinais, sintomas ou evidências através de uma equipe profissional, com uso de instrumentos específicos para esse fim13.

O entendimento científico é fundamental, pois as dificuldades de leitura e de escrita das crianças com dislexia envolvem um funcionamento cerebral diferente, que precisa ser compreendido a partir de um enfoque neuropsicológico. Na dislexia precisa-se entender o funcionamento cerebral da criança, particularmente as áreas envolvidas na linguagem, como as áreas de Wernicke, Broca, e temporal esquerda, entre outras.

O tratamento é educacional, pois envolve uma equipe de apoio, que inclui família, escola, professores particulares e acompanhamento psicopedagógico. A dislexia, por ser um transtorno de aprendizagem complexo, exige todo esse suporte técnico ao redor do disléxico para que ele aprenda a lidar com sua dificuldade e receba o apoio específico para suas necessidades. O disléxico terá que aprender a conviver num ambiente social letrado, sabendo que não domina totalmente os instrumentos necessários (leitura e escrita) para ser bem sucedido nessa sociedade moderna.

No entanto, apesar de toda essa rede de apoio, existem diferenças pessoais significativas em relação às estratégias de enfrentamento desenvolvidas pelo disléxico, para se adaptar às situações difíceis ao longo de sua vida. A depender de como ele reaja às suas dificuldades de aprendizagem, seu estresse pode se tornar "eutress" ou "distress". Por isso, é fundamental levar em consideração o estado emocional do disléxico durante o tratamento psicopedagógico e sua inclusão no ambiente escolar.

 

CONCLUSÃO

A dislexia é um distúrbio de linguagem de origem neurológica e crônica, tendo o disléxico que aprender a conviver com os sintomas para o resto da vida. No entanto, para que possa se adaptar em uma sociedade letrada, que exige níveis de escolaridade cada vez mais altos, deverá aprender a lidar com suas dificuldades de leitura e escrita. Para melhorar seu desempenho faz-se necessária uma rede de apoio nos diversos ambientes onde circula.

A síndrome disléxica precisa ser compreendida sob a ótica de vários conhecimentos, entre eles o conhecimento da neuropsicologia, pois na dislexia há um funcionamento cerebral diferente no hemisfério esquerdo na área da linguagem. Por se tratar de uma dificuldade contínua, necessita também de acompanhamento psicopedagógico e desenvolvimento de estratégias educacionais nos ambientes familiar, escolar e social, para favorecerem sua adaptação nesses contextos.

Na prática o tratamento é prolongado, muitas vezes estressante, causando "distresse" e desconforto emocional cada vez que o disléxico se depara com uma situação nova que envolva atividades de leitura e escrita, como mudança de escola, de professor, de curso, atividades sociais e mesmo nos relacionamentos interpessoais. Devem-se tratar enfaticamente aspectos psicológicos para que os demais tratamentos possam ser bem sucedidos.

Existem muitos estudos relativos à dislexia que tratam de aspectos neurológicos e educacionais, no entanto pouco se investiga sobre os aspectos emocionais e estressantes vividos nos diversos ambientes por onde os disléxicos circulam, e como isso influencia nos tratamentos realizados.

 

REFERÊNCIAS

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Correspondência:
Maria Arminda Seixas Cabussú
Av. Paulo VI, 2331 apto 212
Condomínio Pedras do Nascente
Pituba - Salvador, BA, Brasil
CEP 41810-000
E-mail: tutticabussu@terra.com.br ; tutticabussu@gmail.com

Artigo recebido: 13/6/2009
Aprovado: 3/10/2009

 

 

Trabalho realizado para obtenção do título de Especialista em Neuropsicologia, pelo IBPEX - Instituto Brasileiro de Pós-Graduação e Extensão / FACINTER - Faculdade Internacional de Curitiba, Salvador, BA.

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