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Revista Psicopedagogia

versão impressa ISSN 0103-8486

Rev. psicopedag. vol.27 no.82 São Paulo  2010

 

ARTIGO ORIGINAL

 

Aspectos da avaliação neurológica em escolares disléxicos

 

Aspects of the neurological assessment in dislexic schoolchildren

 

 

Maria Imaculada Merlin de CarvalhoI; Vanda Maria Gimenes GonçalvesII; Carlos Eduardo de BarrosIII; Cíntia Alves SalgadoI; Simone Aparecida CapelliniIV; Sylvia Maria CiascaV

ICurso de Pós-graduação em Ciências Médicas, FCM/Universidade Estadual de Campinas
IIDepartamento de Neurologia e Centro de Investigação em Pediatria (CIPED), FCM/Universidade Estadual de Campinas
IIILaboratório de Psicologia Genética, FE/Universidade Estadual de Campinas
IVDepartamento de Fonoaudiologia, FFC/Universidade Estadual Paulista, Marília, SP
VDepartamento de Neurologia, FCM/Universidade Estadual de Campinas

Correspondência

 

 


RESUMO

OBJETIVO: O objetivo desse estudo foi propor semiologia neurológica detalhada em escolares portadores de dislexia do desenvolvimento, comparados ao grupo sem dificuldade escolar.
MÉTODO: O Grupo Disléxico foi constituído por 12 escolares, sendo apenas 1 do sexo feminino. Foram excluídos os alunos com dificuldade escolar, retardo mental, deficiência visual e auditiva. Pareados por sexo e idade com o Grupo Controle, recrutados em classes regulares, com leitura adequada para a série escolar. Utilizados Exame Neurológico Tradicional, Exame Neurológico Evolutivo e Quick Neurological Screening Test II (QNST II).
RESULTADOS: A pontuação total do QNST II identificou corretamente o Grupo Disléxico, com média de pontuação total significativamente maior. Alguns subtestes discriminaram os grupos, com média de pontuação significativamente maior no Grupo Disléxico nos subtestes: habilidade manual, reconhecimento e produção de figuras, reprodução de formas na palma da mão, padrões sonoros, movimentos manuais reversos, rápidos e repetitivos; extensão de braços e pernas; ficar em uma só perna; irregularidades comportamentais.

Unitermos: Transtornos de aprendizagem. Manifestações neurológicas. Dislexia.


SUMMARY

OBJECTIVE: The objective was to propose a detailed neurological semiology in schoolchildren that have developmental dyslexia, compared to a group without learning disabilities.
METHODS: A group of 12 students were identified as Dyslexic Group (1 girl and 11 boys). Those with learning disabilities, mental retardation, visual deficiency and hearing loss were excluded. They were matched on age and sex with the Control Group recruited in regular classroom placement, who were reading at grade level The Traditional Neurological Examination, Evolutive Neurological Examination and Quick Neurological Screening Test II (QNST II) were used.
RESULTS: QNST II total scores correctly identified the Dyslexic Group that showed significantly higher scores than the Control Group. Some subtests acted as a discriminator between the groups, with significantly higher scores in the Dyslexic Group in the subtests: Hand Skill, Figure Recognition and Production, Palm Form Recognition, Sound Patterns, Rapidly Reversing Repetitive Hand Movements, Arm and Leg Extension, Stand on One Leg, Behavioral Irregularities

Key words: Learning disorders. Neurologic manifestations. Dyslexia.


 

 

INTRODUÇÃO

Ao acompanhar os resultados das avaliações de desempenho dos escolares de nosso país, veiculados pela mídia, constata-se a denúncia de uma educação de baixa qualidade, apesar dos esforços no sentido da melhoria. Respostas conclusivas para o lamentável "diagnóstico" atual estão longe de serem encontradas, devido à complexidade dos problemas educacionais, sendo impossível destacar um único fator gerador. Este panorama geral tem influência na atuação de profissionais ligados ao ensino.

É comum que crianças com dificuldades para aprender sejam encaminhadas para especialistas, dentre eles o neurologista, provavelmente pela crença implícita, e até mesmo explícita, de que a não aprendizagem seja decorrente de "problemas na cabeça" que impedem e interferem em sua aquisição normal.

A família e a escola, ao solicitarem respostas para o não aprender, esperam que exames e medicamentos possam de alguma forma explicar e solucionar as dificuldades de aprendizagem. No entanto, os problemas são multifatoriais e multicausais, que necessitam de abordagem e de visão mais ampla, que considere os sintomas como rede de relações envolvendo vários protagonistas, destacando-se o papel da escola como o principal, visto que é nela que as soluções devem ser buscadas, sem desconsiderar o auxílio de profissionais de áreas afins.

Dentre os problemas de aprendizagem, a dislexia é um transtorno específico da aprendizagem da leitura, com prevalência de 5-10% das crianças em idade escolar1, mas tal índice está na dependência da escolha e da rigidez de critérios avaliativos, podendo variar de um país a outro.

A definição de dislexia é controvertida, mas a análise da literatura demonstra pontos convergentes, como: dificuldade de leitura apesar da capacidade intelectual adequada, boa oportunidade sociocultural, instrução convencional, motivação e acuidade sensorial2-6, na ausência de distúrbio emocional significativo7.

Snowling e Stackhouse8 enfatizaram a definição de discrepância, que consiste numa correlação entre a capacidade intelectual e desempenho na população normal. Nas crianças disléxicas, a discrepância estaria no desempenho baixo em leitura comparado à capacidade intelectual adequada. Tal proposta é aceita com reserva.

Por fim, encontra-se menção de que a dislexia é um distúrbio de origem neurobiológica e constitucional4, com relevante incidência familial9.

Um número considerável de características compõe os sintomas da dislexia. A mais citada e aceita é o déficit fonológico, evidenciado em inúmeras pesquisas com crianças durante o desenvolvimento da leitura6,10-13. Outras características são distúrbios de memória, memória para sequência, orientação direita-esquerda, orientação temporal, imagem corporal, escrita e soletração, distúrbio topográfico, distúrbio do padrão motor, sensorial e perceptivo7,14,15.

A hipótese de problemas neurobiológicos como causa da dislexia, foco de investigação do presente estudo, data de mais de um século, quando o neurologista francês Dejerine, em 1891 (citado por Lyon4), sugeriu que a porção posterior do hemisfério esquerdo era fundamental para a leitura. A partir daí até os tempos atuais, os estudos tentando correlacionar a função da leitura com regiões cerebrais aumentaram consideravelmente e, mais recentemente, a inestimável contribuição dos exames de imagem, principalmente os funcionais.

Carboni-Román et al.16, utilizando exames de neuroimagem, destacaram a participação da região perisilviana dominante e identificaram três circuitos envolvidos na leitura: o dorsal correspondendo à região têmporo-parietal, o ventral, à região têmporo-occipital, e o temporal-basal, à frontal-inferior.

Galaburda et al.17 foram os pioneiros a descrever anormalidades corticais em sujeitos com dislexia e, para tanto, utilizaram amostras do cérebro post mortem. Posteriormente, estudos de neuroimagem realizados com grupos disléxicos e leitores normais evidenciaram diferenças significativas nas regiões cerebrais. Lyon4 ressaltou que os exames de imagem funcionais do cérebro trazem muitas informações e estas parecem ser convergentes entre os pesquisadores. Além disso, são técnicas não invasivas, sendo indicadas para o estudo de pessoas, em especial crianças. Etchepareborda et al.18, em revisão sobre as técnicas de avaliação de neuroimagem funcional, não invasivas, dos transtornos do desenvolvimento incluindo a dislexia, correlacionaram topograficamente as funções pesquisadas (atenção, percepção, imaginação, linguagem, memória de trabalho, recuperação semântica, memória episódica e sua recuperação, priming e memória de procedimento) e os processos cerebrais básicos envolvidos em cada modelo.

No entanto, em nosso país, com recursos tecnológicos limitados, apenas pequena parcela das crianças teria condições de se submeter a tais exames. Mesmo com a possibilidade de realizar esses exames, permanece a questão: isso ajudaria o professor e a criança na relação ensinar-aprender? Não há respostas neste momento, mas a semiologia médica continua sendo uma área para atuação do neurologista.

No ano de 1975, o neuropediatra Antônio Branco Lefèvre e sua equipe lançaram um livro sobre "disfunção cerebral mínima" (DCM), um marco para a neuropediatria. Lefèvre e Miguel19 mencionaram o interesse de neuropediatras pela DCM por ser este o motivo mais frequente que levava uma criança aos consultórios. Ao traçar o percurso histórico deste conceito ressaltaram que as tentativas de correlação anátomo-clínica não conseguiram esclarecer pontos duvidosos; atribuíram ao fato dos neuropediatras estarem acostumados ao estudo das grandes encefalopatias e serem carentes de subsídios semiológicos que possibilitassem o exame objetivo de crianças portadoras de "distúrbios menores", levando a discordâncias entre o rigor (grifo nosso) da caracterização pedagógica e psicológica das crianças portadoras de DCM e a ambiguidade neurológica.

Diante das adversidades vivenciadas pelos neuropediatras, foram realizadas pesquisas utilizando duas técnicas diferentes de avaliação neurológica13,20,21, que possibilitou encontrar indicadores mais precisos para a avaliação e diagnóstico de crianças que apresentaram determinadas queixas, sendo uma das mais frequentes a queixa escolar.

No entanto, Gonçalves e Carvalho22 assinalam que a ausência de sinais neurológicos não implica na integridade do cérebro, da mesma forma que a presença desses sinais não permite estabelecer relação causal com o comportamento manifestado. Entretanto, os comportamentos são fruto de organização cerebral e a avaliação neurológica capacita o examinador a avaliar parte da integridade do cérebro.

Mais recentemente, Carvalho e Gonçalves23 reafirmaram a pertinência do exame neurológico, para identificar alteração no desenvolvimento da motricidade, das sensibilidades, do sistema nervoso periférico, com destaque às funções corticais gnósticas e práxicas. Além disso, observaram "sinais menores" em crianças com dificuldades escolares, caracterizados por disfunção nas áreas de coordenação motora, função sensorial integrativa e organização de tarefas complexas, na ausência de alteração neurológica focal.

Nos dias atuais, a avaliação realizada por um único profissional é limitada. As atuações buscam a interdisciplinaridade ao estudar o ser humano, mais especificamente a criança em desenvolvimento; não existe um único saber, mas sim saberes que são co-dependentes e inter-relacionados. Neste sentido, o exame neurológico não tem a função de "patologizar o aprender", mas ser uma avaliação auxiliar e de fundamental importância para a compreensão das queixas escolares num contexto mais abrangente de avaliação e diagnóstico.

Frente a essas considerações, a questão levantada nesse estudo foi de que a semiologia neurológica detalhada poderia identificar sinais neurológicos não detectados pelo Exame Neurológico Tradicional. A hipótese que norteou a investigação foi de que as crianças disléxicas podem demonstrar diferentes alterações neurológicas, de acordo com as técnicas semiológicas utilizadas. Se verdadeira, constituiria em mais um recurso na compreensão desta queixa escolar específica.

Assim, o presente estudo teve como objetivo propor uma semiologia neurológica detalhada em um grupo de escolares portadores de dislexia do desenvolvimento, comparados a um grupo sem dificuldade escolar.

 

MÉTODO

Participantes

Foram avaliados 24 escolares, de ambos os gêneros, sendo 2 do sexo feminino e 22 do sexo masculino, compondo dois grupos: Grupo Disléxico e Grupo Controle. Após aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da Instituição (Parecer nº 310/2003), os pais ou responsáveis assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

O Grupo Disléxico foi constituído por 12 alunos, 1 do sexo feminino e 11 do sexo masculino, cursando de 2º a 5º anos do Ensino Fundamental I, em escola pública estadual da cidade de Campinas, São Paulo, com diagnóstico de dislexia do desenvolvimento. Foram excluídos os que apresentaram dificuldade escolar, retardo mental, deficiência visual e auditiva, síndrome genética.

O Grupo Controle foi pareado por sexo e idade, tendo as mesmas características do Grupo Disléxico, exceto no que se refere ao ano escolar e à história de reprovação. Cursavam entre 2º e 7º anos do Ensino Fundamental I e II, sem reprovação escolar e sem queixas de dificuldades de aprendizagem.

Instrumentos

Foram utilizados o Exame Neurológico Tradicional (ENT)24, o Exame Neurológico Evolutivo (ENE)25 e o Quick Neurological Screening Test II (QNST II)26.

Procedimento

Estudo de corte transversal de caso-controle. O Grupo Disléxico foi encaminhado ao Ambulatório de Neuro-Dificuldades de Aprendizagem, do Hospital das Clínicas da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas - FCM/UNICAMP, com queixa de dificuldades de aprendizagem. Após avaliação neurológica, neuropsicológica, fonoaudiológica e psicogenética, tiveram o diagnóstico de dislexia do desenvolvimento confirmado. A grande maioria participava de um programa de remediação fonológica27.

A seleção dos escolares sem dificuldades ou distúrbios de aprendizagem foi realizada por professores de duas escolas públicas estaduais, a partir de indicações transformadas em listas de pré-seleção, sendo incluídos no Grupo Controle, os alunos que pareavam com o Grupo Disléxico por gênero e idade.

O ENT, segundo a técnica de exame da Clínica Neurológica da Universidade de São Paulo24, avaliou crânio, fala, força muscular, tono muscular, reflexos profundos e superficiais, equilíbrio estático e dinâmico, coordenação apendicular, coordenação tronco-membros, sensibilidade, nervos cranianos, sinais meníngeos e medidas do crânio proposta por Diament e Rodrigues28. A fala foi examinada sem qualquer formalidade, durante o tempo em que o escolar era observado.

As respostas foram consideradas como tendo padrão neurológico normal, quando não ocorreu anormalidade na execução das provas, e alterado, quando em qualquer das provas ocorreu anormalidade de resposta.

O ENE25, padronizado para o pré-escolar e escolar brasileiro, consistiu de provas específicas para as idades entre 3 e 7 anos. Avaliou os setores de fala, lateralidade da mão, olho e pé, equilíbrio estático, equilíbrio dinâmico, coordenação apendicular, coordenação tronco-membros, persistência motora, sensibilidade e gnosia, tono muscular, reflexos profundos. É um exame indicado para verificação de respostas esperadas para as idades correspondentes e, assim, é possível detectar atraso ou distúrbios na maturação e funções corticais superiores, fundamentados em Luria.

O ENE foi aplicado nos escolares deste estudo, todos com idade superior a 7 anos, para detectar atrasos em uma ou mais funções examinadas. As respostas foram classificadas como padrão normal, quando o escolar realizou as provas máximas em todos os setores do ENE, e padrão alterado, quando houve atraso de mais de um ano em pelo menos um dos setores.

O QNST II26 é um instrumento de triagem desenhado para avaliar áreas de integração neurológica relacionadas com a aprendizagem. Oferece um modelo rápido e acurado de detectar "sinais neurológicos menores", comumente associados às dificuldades de aprendizagem. Consiste de 15 tarefas breves, adaptadas de exames neurológicos infantis padronizados, escalas de desenvolvimento e testes neuropsicológicos. Por meio dessas tarefas pode-se observar: maturidade e desenvolvimento motor, habilidade de controlar movimentos dos músculos axiais e apendiculares, planejamento motor e sequenciação, sentido de velocidade e ritmo, organização espacial, habilidade perceptual auditiva e visual, equilíbrio e função vestibular, distúrbios de atenção.

Os subtestes que compõem o QNST II são: habilidade manual; reconhecimento e produção de figuras; reconhecimento de formas na palma da mão; seguimento visual; padrões sonoros; prova índex-nariz; oposição dedos-polegar; estimulação simultânea dupla da mão e bochecha; movimentos manuais reversos, rápidos e repetitivos; extensão de braços e pernas; marcha tandem; ficar em uma só perna; saltar; discriminação direita-esquerda; irregularidades comportamentais.

A pontuação geral foi obtida tabulando os escores dos 15 subtestes: pontuação 1 quando representava influência ambiental, do desenvolvimento ou fatores emocionais, denotando etiologia não-neurológica, ou 3 quando associado a grave dificuldade de aprendizagem, podendo estar relacionado à disfunção neurológica. A pontuação final foi categorizada como indicativa de discrepância grave (DG) da faixa de normalidade da função, discrepância moderada (DM), ou na faixa normal (NL) da função.

Os resultados foram organizados no banco de dados do Statistical Package for Social Sciences (SPSS, versão 13.0). A análise descritiva com apresentação de tabelas de frequências foi realizada para variáveis categóricas e medidas de posição e dispersão para variáveis contínuas. Para comparação de medidas contínuas entre os 2 grupos, utilizou-se o teste de Wilcoxon para amostras relacionadas e para verificar a concordância entre os três testes utilizou-se o teste Q de Cochran. O nível de significância foi 5%.

 

RESULTADOS

A idade cronológica variou entre 8 e 13 anos, com média de 10,79 ± 1,39 anos, no Grupo Controle, e de 10,72 ± 1,48 anos, no Grupo Disléxico. Não houve diferença significativa entre a média da idade dos grupos (p-valor=0,221).

A escolaridade do Grupo Controle variou entre 3º e 7º ano do Ensino Fundamental I e II, com média de estudo de 4,17 ± 1,27 anos; no Grupo Disléxico, variou entre 2º e 5º ano do Ensino Fundamental I, com média de estudo de 3,17 ± 0,94 anos, sendo observada diferença significativa entre os grupos (p-valor=0.015), com menor escolaridade no Grupo Disléxico.

O ENT24 foi normal em todos os escolares do Grupo Controle e em 3 do Grupo Disléxico. O perímetro craniano não mostrou diferença entre os grupos (p-valor= 0,552). As alterações observadas no Grupo Disléxico estão descritas nas Tabelas 1 e 2. A alteração neurológica mais frequente observada em 8 escolares foi a leve hipotonia muscular global ou localizada em membros superiores, como um achado isolado ou associado a outras alterações.

 

 

O ENE25 foi normal em todos os escolares do Grupo Controle e alterado em todos do Grupo Disléxico. Desses, 3 escolares apresentaram alteração detectada apenas no ENE e 9 apresentaram alterações em ambos os exames.

Considerando os setores do Exame Neurológico Evolutivo, verificou-se que o Equilíbrio Dinâmico não mostrou alterações e o setor de Persistência Motora foi alterado com maior frequência. As alterações detectadas no ENE foram heterogêneas, não constituindo um padrão ao exame (Tabelas 3 e 4).

O QNST II foi normal em todos os escolares do Grupo Controle e alterado em todos do Grupo Disléxico. Na Tabela 5, observou-se que o QNST II identificou o Grupo Disléxico, com média de pontuação Total significativamente maior que o Grupo Controle (p-valor=0,0005).

Alguns subtestes demonstraram média de pontuação significativamente maior no Grupo Disléxico: habilidade manual, reconhecimento e reprodução de figuras, reprodução de formas na palma da mão, padrões sonoros, movimentos manuais reversos rápidos e repetitivos; extensão de braços e pernas; ficar em uma só perna; irregularidades comportamentais.

Comparando os resultados encontrados no Grupo Disléxico, utilizando-se as três técnicas de avaliação neurológica, verificou-se que não houve concordância entre elas (p-valor=0,173, teste Q de Cochran).

 

DISCUSSÃO

O Exame Neurológico Tradicional, indicado para o diagnóstico topográfico de lesão no sistema nervoso, deveria ser uma avaliação ampla das funções neurais e, portanto, ser a mais completa possível. Deveria também ser fidedigno no sentido de ser replicável pelo mesmo e por diferentes examinadores e ser baseado em critérios objetivos29. Entretanto, esse é um exame que por sua natureza tem limitações, avaliando apenas parte do comportamento que cai dentro do escopo do exame em si (por exemplo, funções sensoriais e motoras, postura e motricidade, reações e respostas).

O ENT utiliza técnica semiológica voltada para detectar lesões específicas de núcleos, tratos ou nervos. São as anormalidades maiores (hard signs) ou síndromes neurológicas, que têm valor preditivo de localização30.

Na presente pesquisa, todos os participantes do Grupo Controle apresentaram ENT normal. Nos escolares disléxicos, as anormalidades observadas foram achados sem valor preditivo de localização e, possivelmente, associados à alteração difusa do sistema nervoso, não consistentes com síndromes neurológicas.

Foi pesquisada a dislalia de evolução, por troca e supressão de fonemas. A dislalia de evolução por troca de fonemas deve ser considerada fora do padrão normal desde a idade de três anos. A dislalia de evolução por supressão de fonemas não deve entrar no padrão normal de quatro anos em diante.

O atraso na aquisição da fala foi observado em 3 dos escolares disléxicos e em nenhum do Grupo Controle. Atraso na aquisição da fala foi observado em crianças com dificuldades escolares31,32 e em deficientes mentais33. Crianças sem dificuldade escolar não apresentaram alteração aos 7 anos, não havendo diferença nos resultados quanto ao sexo ou à proveniência escolar.

Gonçalves et al.20 avaliaram 124 alunos de classe comum de 1ª série do Ensino Fundamental utilizando o ENT. Foram encontradas anormalidades de respostas em pelo menos uma das provas em 29,83% das crianças, sendo que 5,6% apresentaram mais que uma anormalidade. Apenas em um escolar foi detectada síndrome específica de liberação piramidal bilateral em membros inferiores. Os achados mais frequentes foram leve hipotonia (12,09%), tremor leve de extremidades (9,67%), dislalia (5,64%) e macrocefalia (3,22%). Estes achados foram isolados, esporádicos, não sendo possível identificar síndromes neurológicas.

Diferentes autores nacionais têm observado hipotonia muscular numa frequência variando entre 3,5%34 e 22%31. Avaliando crianças com dificuldade escolar, Rotta31 referiu que o único aspecto do ENT que mostrou alteração foi o tono muscular, encontrando 42% de hipotônicos no grupo com dificuldade escolar. Embora estes achados tenham sido tão diferentes (22% no grupo sem dificuldade escolar), representando quase o dobro de hipotônicos, não houve diferença estatisticamente significativa, sendo inferido que tal fato não foi suficiente para distinguir os dois grupos.

Utilizando o Exame Neurológico Evolutivo, observou-se que as alterações detectadas no Grupo Disléxico foram variadas, heterogêneas, não constituindo um padrão típico.

Nenhum escolar dos dois grupos apresentou qualquer alteração nas provas do setor de Equilíbrio Dinâmico do ENE. Pode-se levantar a hipótese de que as crianças em sua evolução adquirem habilidades motoras mais precocemente no setor do equilíbrio dinâmico do que no do equilíbrio estático. Todas as provas de equilíbrio põem em jogo grupos musculares agonistas e antagonistas que funcionam de maneira harmônica, sendo capazes de corrigir eventuais roturas na sinergia destes grupos musculares.

A Persistência Motora foi o setor com maior frequência de alteração no ENE entre os escolares disléxicos. Isto poderia ser explicado por uma imaturidade nos sistemas tanto piramidal como tonigênico e da sinergia muscular, visto que a persistência requerida para a correta execução da prova necessita de sinergia que só é possível quando o tono muscular encontra-se harmonicamente distribuído nos músculos agonistas e antagonistas. Essas provas oportunizam a observação das clássicas manobras deficitárias da semiologia neurológica tradicional. Uma boa técnica semiológica deve permitir que seja examinada mais de uma função com uma simples manobra, economizando tempo e cansaço para examinando e examinador.

Capellini et al.13, na avaliação de escolares disléxicos utilizando o ENE, observaram alterações nos setores de equilíbrio estático, coordenação apendicular, persistência motora, sendo associado a anormalidades nos setores de equilíbrio dinâmico, coordenação tronco-membros e sensibilidade/gnosia. Capellini et al.9 referem alterações ao ENE como critério diagnóstico em situação de avaliação interdisciplinar.

O QNST II foi normal em todos os escolares do Grupo Controle e alterado em todos do Grupo Disléxico, identificado com pontuação total significativamente maior que o Grupo Controle. Assim, essa técnica de avaliação, voltada para a identificação de anormalidades de aprendizagem, possibilitou diferenciar os grupos.

Atribuiu-se que as alterações detectadas pelo QNST II caracterizaram-se como sinais menores (soft signs), os quais tanto poderiam ser sinais de imaturidade, isto é, sinais de desenvolvimento como sinais de comprometimento difuso do sistema nervoso. O uso desta técnica de avaliação neurológica acrescentou recursos no diagnóstico do Grupo Disléxico.

O resultado da pontuação total foi atribuído a alguns subtestes que mostraram média de pontuação significativamente maior no Grupo Disléxico: habilidade manual, reconhecimento e reprodução de figuras, reprodução de formas na palma da mão, padrões sonoros, movimentos manuais reversos, rápidos e repetitivos; extensão de braços e pernas; ficarem uma só perna; irregularidades comportamentais.

Concluindo, observou-se que não houve concordância utilizando as três técnicas de avaliação neurológica. Cada exame contribuiu dentro de seu escopo, acrescentando conhecimento sobre as manifestações neurológicas no Grupo Disléxico.

Entre as limitações do presente estudo tem-se o tamanho amostral. A continuidade desta pesquisa, através do aumento da casuística poderá confirmar esses primeiros achados.

A semiologia neurológica, tema central do presente estudo, demonstrou ser um método eficaz de avaliação. Associada a outras técnicas avaliativas multidisciplinares deve constituir método complementar, numa abordagem abrangente do escolar, cada qual com suas características e objetivos a serem atingido.

Entre as vantagens deste estudo, acredita-se que a semiologia neurológica traga importantes implicações educacionais. Uma delas é favorecer a elaboração de programas remediativos, ao destacar as habilidades do escolar que estão em processo de desenvolvimento e podem ser estimulados pelo professor no ambiente escolar. Entende-se que a interdisciplinaridade ocorra justamente nesta possibilidade de interlocução entre o clínico e o institucional com metas e objetivos comuns: o desenvolvimento saudável da criança.

 

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Correspondência:
Maria Imaculada Merlin de Carvalho
Departamento de Neurologia
Faculdade de Ciências Médicas
CP: 6111; Universidade Estadual de Campinas
Campinas, São Paulo, SP - CEP 13083-970
E-mail: imamerlin@uol.com.br

Artigo recebido: 28/11/2009
Aceito: 18/3/2010

 

 

Trabalho realizado no Hospital das Clínicas da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas - FCM/UNICAMP, Campinas, SP.

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