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Revista Psicopedagogia

versão impressa ISSN 0103-8486

Rev. psicopedag. vol.27 no.83 São Paulo  2010

 

RELATO DE EXPERIÊNCIA

 

Discurso paterno: sinais indicativos de disfunções relacionais

 

Paternal discourse: signs of relational dysfunctions

 

 

Olga Araújo PerazzoloI; Siloe PereiraI; Marcia M. Capellano dos SantosII

I Mestre em Psicologia, docente da Universidade de Caxias do Sul
II Doutora em Educação, docente da Universidade de Caxias do Sul

Correspondência

 

 


RESUMO

O trabalho apresenta considerações teóricas sobre elementos encontrados no discurso de pais de crianças do sexo masculino com problemas de aprendizagem e de comportamento. As reflexões são embasadas em contributivos teóricos da psicanálise, e na associação do fenômeno com referentes da organização da sociedade contemporânea, particularmente no que tange ao tripé de sustentação social (família, escola, instituições propagadoras de valores), e aos instrumentos que conectam os três eixos (leis/normas). Os elementos dos discursos se referem às ideações circulares que tendem a recolocar o pai no lugar central das narrativas; à tendência de designar o locutor como vítima principal do problema apresentado pela criança; à argumentação sobre práticas educativas adotadas por meio da lógica da submissão; à ausência de imagens de futuro do filho. A expectativa, após conclusão do estudo, é a de que a atenção aos aspectos referidos poderá, por meio de uma abordagem precoce, orientar estratégias que potencializem o êxito de intervenções terapêuticas.

Palavras-chave: Transtornos de aprendizagem. Narcisismo. Organização social. Relações pai-filho.


ABSTRACT

The assignment presents theoretical considerations about elements found in the speech of male children's parents with learning and behavior disabilities. The reflections are based in psychoanalysis theoretical contributories and in the association of the phenomenon with the modern society's organization referring, particularly, on what sounds the family's sustentation tripod (family, school, value propagators institutions), and the instruments that connect the three axles (laws/norms). The speech elements are referred to the circular thoughts that tend to reestablish the father as the center of the narratives; the tendency of designing the narrator as the main victim of the problem showed by the child; the argumentation about educational practices adopted throughout the submission logic; the child's future image absence. The expectation, after the conclusion of the study, is that the attention of the referred aspects might be, through a premature approach, guided strategies that boost the success of therapeutic interventions.

Keywords: Learning disorders. Narcissism. Social organization. Father-child relations.


 

 

INTRODUÇÃO

As relações familiares constituem, seguramente, um dos focos de estudo de significativa importância no processo potencialmente ampliador do arcabouço teórico necessário à criação de novas abordagens que maximizem intervenções favorecedoras do desenvolvimento dos sujeitos e minimizem os graves problemas de organização e controle das normas que regulam as relações humanas na sociedade contemporânea. Fala-se, portanto, de um cenário de crise que envolve desde a constituição mais singular dos sujeitos, até os sistemas sociais complexos, carregados de valor simbólico.

As evidências de que os meios que asseguravam os limites comportamentais da ordem social já não servem aos modos de vida da rede humana globalizada estão mais claramente expressas nos padrões de manifestação exacerbada da violência urbana, e nas diferentes formas de transgressão, para as quais os recursos repressivos e jurídicos não conseguem dar conta dos procedimentos de responsabilização.

A ideia de que o tripé de sustentação dos mecanismos de controle e manutenção das normas que viabilizam a convivência social seria constituído primariamente pela família, pela escola e pela igreja vem sendo difundida, há muito, sobretudo nos domínios dos discursos religiosos e sociais. Os elementos integrantes desse tripé, portanto, poderiam ser caracterizados pelo afeto (família), pelo conhecimento (escola) e pela transcendência/espiritualidade (igreja).

Esse modelo pode ser tomado como simplista se considerada a amplitude da engrenagem de autorregulação das sociedades, ou, ainda, ser concebido como expressão da força repressiva das relações sociais - entendimento que assume a complexidade devida com as contribuições de Foucault1; acerca da dinâmica social e da ideologia. Mas talvez esse modelo possa ser considerado como ferramenta interessante de reflexão se, ao invés da igreja como entidade exclusiva do terceiro eixo, forem abarcadas as instituições sociais guardiãs e/ou propagadoras de valores como terceiro elemento constitutivo do tripé. As leis e normas, de outra parte, cumpririam a função de ligar os eixos, como uma corda que amarra e mantêm a estrutura de sustentação.

Se adotado esse crivo para a leitura do contexto contemporâneo, ficam claros os sinais de deformidades presentes em cada um dos eixos de suporte social, favorecendo a emergência de ameaça à funcionalidade dos grupos, fragmentando a teia relacional, e destituindo a lei como alegoria da ordem que assegura a vida em sociedade.

No que tange às famílias, alguns marcos característicos da vida contemporânea, bastante difundidos nos campos sociológico e psicológico, permitem supor graus variados de comprometimento do desempenho do papel da família, enquanto fundadora de matrizes psico-afetivas primárias. A fragilidade do processo de constituição de vínculos autênticos e duradouros, tão bem apresentada por Bauman2; por meio da metáfora do amor líquido; as exigências atuais da subsistência, na rotina urbana do trabalho, que afastam pais e filhos por um tempo físico que coloca em questão a viabilidade de consolidação de um núcleo imaginário de grupo familiar, dentre tantos outros aspectos, podem estar na base das mudanças que provocam os desajustes de sustentação do tripé de autorregulação do sistema humano de convívio coletivo.

A escola, quer na condição de entidade privada submetida à lógica das relações comerciais, quer na condição de serviço público destituído, via de regra, da atenção política necessária, vem tendo dificuldades importantes em constituírem-se no espaço onde, por meio do aprendizado, encontra-se vigor, valor, caminhos e ferramentas para construir conhecimentos que devem nascer e circular na esfera individual e coletiva. Refém da violência e mantida numa relação com o aluno marcada pela autoridade invertida, a escola atua, não raras vezes, como instituição cuja função é permitir que a cultura emergente apresente seus produtos3; e que os alunos ensaiem jogos de poder, por meio de regras marcadas pela flacidez e pela perversão. A escola, nesse sentido, estaria contribuindo para o fortalecimento do individualismo e do consumismo como prática ativadora do delírio social compartilhado - cujo conteúdo pode ser sintetizado na expressão "é possível ter tudo". Esse processo, ao invés de educar, corromperia ou dificultaria a constituição dos sujeitos, anulando o sentido e a experiência de privação4; disso resultando uma caótica e primária fusão ser/ter.

No processo de anulação de seu papel, e sem condições e forças para a retomada de sua função, a escola acaba atuando como núcleo de fomento ao império do efêmero, à era do vazio, tomando por empréstimo as expressões e o sentido atribuído por Lepovetsky5,6; no que tange ao enfraquecimento, ou à puerilidade do coletivo, e à hipervalorização das demandas individuais, particularmente expressas pelo furor consumista contemporâneo.

Por fim, as instituições sociais, guardiãs, propagadoras e asseguradoras dos valores construídos no processo de culturalização, tais como as instituições políticas, religiosas, esportivas, dentre outras, integrariam o terceiro eixo do tripé de sustentação de autorregulação das sociedades. No âmbito de suas ações, essas atuam como a fonte necessária à transcendência constitutiva da subjetividade humana, e como amplificadora do discurso social, dando sentido aos elementos valorados e significados também pela família e pela escola. No entanto, o que se constata é que essas instituições desabam em avalanches de práticas ilícitas e de transgressões aos princípios que lhes são próprios e característicos.

Por fim, o descompasso no cumprimento das leis, assim como o desmoronamento de valores transcendentes e ideais e as concepções subjetivas de vida e futuro (substituídos por valores circunscritos a ganhos pessoais), comprometeriam a qualidade dos laços que amarram o tripé social.

De qualquer forma, independentemente de julgamentos sobre as bases político-econômicas e de outros fatores intervenientes na crise social do mundo globalizado, é necessário pensar o "vai e vem" dos discursos circulantes nas três dimensões, assim como na configuração dos discursos intradimensionais. Nesse processo, é necessário pensar a família, e a relação paterna em particular (considerando sua importância na constituição do psiquismo humano), tendo em conta a profunda interdependência com as demais instâncias sociais.

Mas, além disso, o cenário desenhado na introdução do presente artigo tem pertinência na medida em que os pais, cujos sinais no discurso foram associados a dificuldades encontradas em seus filhos, apresentam, justamente, os elementos que marcam, a cultura nessa nova era.

 

PAI: SIGNIFICADO, FUNÇÃO, COMPROMISSO

O conceito de pai e de paternidade vem sofrendo alterações importantes, sobretudo nos últimos cem anos, como consequência das efetivas transformações pelas qual o mundo, especialmente no campo político, econômico, científico e cultural, vem passando. Por centenas de anos, a cultura assentou um lugar paterno associado à função de prover a família de suas necessidades materiais, de assegurar a ordem no sistema microfamiliar - de acordo com os padrões ético-morais da cultura vigente, - e de definir a base religiosa norteadora e propagadora dos princípios a serem observados. A partir da revolução industrial, no entanto, um novo ritmo e uma nova dinâmica foram sendo estabelecidos no mundo das relações de produção, redimensionando os papéis do homem e da mulher, assim como as responsabilidades nos cuidados com os filhos7.

Com a mudança do cenário social e das relações, uma gama importante de novas configurações familiares passou a integrar a rotina social (famílias monoparentais, famílias homossexuais/homo-afetivas, famílias desfeitas, famílias reconstituídas, etc). Esta nova realidade passou a requerer olhares acurados por parte, especialmente, dos estudiosos das áreas humanas e sociais, exigindo reflexões que permitissem interpretar a lógica da unidade familiar, sua função para os sujeitos e para a sociedade.

No entanto, apesar da diversidade constitutiva de agrupamentos familiares, ainda não está desenhado um modelo consistente de desenvolvimento humano que permita excluir ou descaracterizar qualquer um dos três eixos da triangulação psíquica/familiar (pai, mãe, filho), no processo de constituição dos sujeitos e de sua identidade.

As publicações didáticas sobre o desenvolvimento humano tendem a apresentar as mudanças e as fases do ciclo vital de forma essencialmente descritiva, nem sempre assentada sobre escopos teóricos explicativos das origens dos fenômenos observados.

Mas dentre as escolas psicológicas contemporâneas, a psicanálise se destaca na apresentação de um expressivo conjunto de contributivos que abordam, direta e indiretamente, aspectos sobre a importância do pai, em diferentes momentos e publicações. Nessa perspectiva, a figura do pai tende a ser percebida como de importância indireta no início da vida. Nas etapas iniciais, é a mãe que se estabelece como soma que engloba o bebê e o mundo, fundando modelos relacionais decisivos na organização do pensamento, dos padrões de crescimento. A ideia de fusão psíquica é fortemente contemplada na obra freudiana, e retomada por inúmeros autores que, no conjunto de suas obras, desdobram o conceito de unidade fusional, como Margareth Malher, Donald Winnicott, John Bowlby, Melaine Klein, e, particularmente, Jacques Lacan, que reconstrói a leitura da fusão original enfatizando a condição do filho como expressão do desejo do falo, processo caudatário da inveja do pênis.

O conceito de complexo de Édipo precoce, apresentado por Melaine Klein8; por exemplo, explicita as razões pelas quais os primeiros indicadores factuais da existência do pai no universo mental da criança costumam surgir por volta dos seis a oito meses de vida, por meio de sinais de reconhecimento e de mudança. Com a inserção progressiva do pai em seu mundo, triangula-se um "corpo relacional", rompendo-se a unidade da ligação mãe-filho. Esta nova configuração permite multiplicar as perspectivas, as habilidades, as cognições, e os ensaios de independência constitutiva dos sujeitos.

Conforme a autora8; o pai se insere num cenário infantil marcado pela angústia e pela depressão, decorrente da traumática experiência de integração da figura materna, antes fragmentada e mobilizada por movimentos de introjeção e projeção de objetos "bons" e "maus". A origem da representação do pai estaria sustentada no suposto de um conhecimento inato dos genitais, e no deslocamento do objeto mau para o pênis, marcando o cunho persecutório da origem do complexo de castração da fase fálica na concepção freudiana.

Na obra freudiana9; por outro lado, a teorização sobre o lugar paterno é construída em alguns textos fundamentais. O primeiro refere-se ao caso do pequeno Hans (1909), marco no avanço de conhecimentos sobre o papel que o pai desempenha no processo de desenvolvimento humano. Ali já estão sedimentadas as bases do entendimento de que à paternidade está conferida a função de proibir, de ser o ganhador na disputa a ser travada com o filho, de ser indutor da transformação dos objetos de desejo. Posteriormente, em A Organização Genital Infantil10; se consolidou a estrutura de um dos mais importantes corpos teóricos sobre a linha do desenvolvimento psicossexual, no qual a fase fálica, o complexo de Édipo, e o complexo de castração compõem um núcleo marcado pela "presença" do pai como protagonista fundamental da história de vida de cada um. Outro texto a destacar é Totem e Tabu11; em que apresenta uma proposta de teorização sobre os mecanismos de estabelecimento da ordem social, inspirado nas rígidas práticas aborígines. Neste texto, a culpa e o remorso pelo assassinato e canibalização de um pai tirano e déspota conduzem à instituição simbólica da proibição do incesto.

Da releitura do texto freudiano, Lacan12 propõe que o simbólico paterno deriva da experiência original de interdição do incesto, sendo o porta voz "legítimo" do que não é possível, do que não se pode ter/fazer. Na metáfora paterna, Lacan dimensiona o pai como herdeiro e fiel depositário da lei, como um significante que substitui o desejo da mãe, barrando o gozo obsceno entre ela e o filho, viabilizando a estruturação do sujeito, na sua condição humana/social.

A função paterna, assim, remete a alguma forma de inauguração do sentido do limite, da experimentação intrínseca e genuína da finitude como cerne do nascimento da humanização. Desse processo resultam infinitas cadeias de sentidos/significados, e novas competências para a sobrevivência do corpo físico e de trajetórias para desejo. Não há, pois, constituição psíquica efetiva, nem humanização, sem a experiência de relação com um pai. Na ausência de um corpo paterno real, seu discurso deve que ser ouvido de algum lugar, e, na ordem dinâmica das teias sociais, há também que ser replicado e reconhecido na fala da família, da escola, e das instituições.

O arcabouço teórico acerca da origem do desejo de ser pai é restrito e, comumente, integra perifericamente estudos cuja tônica aborda outras temáticas. Mesmo na vertente lacaniana da psicanálise, que se excede na exposição da origem do desejo da mãe/maternidade, há destaque sobre a função do pai, mas não está clara a natureza, ou mesmo o suposto da existência, do desejo do homem de ser pai, para além da concepção de que o nascimento de um filho se dá sob a égide do narcisismo dos pais, e é a metáfora do casal.

Outras perspectivas da psicanálise, e o modelo sistêmico, abordam aspectos da dinâmica familiar como um todo, sem menções à distinção dos desejos. Para Eiguer13; por exemplo, os filhos integram projetos de futuro desenhados à luz do ideal de ego familiar. Já numa perspectiva evolucionista14; calcada em supostos darwinianos, a paternidade, ou a geração de descendentes com os genes do pai e a sobrevivência dos filhos, ocuparia posição prioritária na hierarquia das necessidades humanas, em situação de igualdade ou imediatamente após as necessidades de manutenção do próprio eu. Nesse sentido, o desejo de paternidade e os cuidados paternos seriam expressões da competência da espécie para manter-se, pois a precocidade humana não suportaria a vida sem vínculos capazes de assegurar proteção, processo acionado por afetos e ações imaginativas que, no conjunto, constituem a subjetividade, fundam o simbólico.

 

O MONÓLOGO NARCÍSICO DO DISCURSO PATERNO DISFUNCIONAL

A clínica psicanalítica vem sendo concebida como espaço privilegiado de investigação. Achados casuais da prática terapêutica permitem desencadear reflexões importantes e geradoras de hipóteses que, eventualmente, culminam na elaboração de produtos teóricos contributivos à compreensão da dinâmica mental.

É nesse contexto que está sendo proposta reflexão sobre elementos do discurso paterno, potencialmente indicadores de padrões característicos de disfunções relacionais associadas a dificuldades de aprendizagem e de comportamento de seus filhos.

Com base na análise de achados clínicos, em processo de sistematização, estão sendo construídas hipóteses de que em, pelo menos, quatro aspectos, há pontos comuns no discurso de pais proferido em situação de entrevista diagnóstica. As dificuldades apresentadas pelas crianças, foco da avaliação, estão relacionadas, mais comumente, ao controle dos impulsos; a práticas transgressoras, envolvendo acolhimento de normas legais/morais e disciplinares, assim como de rotinas; e à aprendizagem de conteúdos escolares.

Os aspectos comuns referem-se a: a) o encadeamento de ideações tende a ser circular, (re) colocando a figura do locutor (pai) no lugar central do conteúdo descritivo / narrativo / dissertativo-argumentativo; b) os componentes discursivos sobre o problema da criança indicam o locutor como principal sujeito vitimizado; c) a estrutura argumentativa das práticas educativas cotidianas assenta-se na lógica da submissão; d) as referências acerca de desejos, demandas, e projetos/imagens futuras de vida apresentam o locutor, e não a criança de quem se fala como sujeito.

O primeiro aspecto destaca a estruturação do discurso caracterizada pela tendência de adequar as temáticas abordadas na entrevista de modo a manter a figura do locutor (pai) como sujeito principal do conteúdo, apresentado quer sob forma de descrição, narração, ou argumento dissertativo. As estratégias cognitivas de organização do pensamento incluem desde a eleição formal da temática discursiva, até a perversão dos elos lógicos de ligação pergunta - resposta, deformando a relação locutor/enunciador - interlocutor/enunciatário por meio da constituição da relação interlocutor/enunciador, em que há um rompimento do processo interlocutório, e a criação de um novo enunciado. Num contexto de prática diagnóstica, esse fenômeno se expressa, por exemplo, quando em situações de questionamentos abertos, como "O que está acontecendo?". Nestes casos, as respostas tendem a ser já formuladas na primeira pessoa: Eu estou preocupado, e isso não me faz bem...; Preciso dar um jeito na minha vida...; Não vim antes porque precisava resolver outras coisas, mas agora quero resolver isso... Em outras situações, perguntas tais como: a) "Como descreveria seu filho?", ou b) "O que seu filho entende por 'comportamento correto'?", podem ser pervertidas na sua organização compreensiva - responsiva e originar pararespostas, ao mesmo tempo em que recolocam o falante no eixo do discurso. Assim, respostas como: a) Ele é um pouco como eu, mas nem sempre. Sou uma pessoa que...; Quando se descreve alguém tem que se levar em conta muitos aspectos. Eu, por exemplo, tenho que ser descrito como pai, profissional...; e b) Sempre expliquei o que é ser correto. Meus pais também sempre me ensinaram...; Eu sei que nem sempre há consenso sobre isso (...), todas as vezes que tive dúvidas procurei ver pelos dois lados...

O segundo aspecto refere o suposto de que o pai é percebido, por si próprio, como principal vítima do(s) problema(s) do filho, embora isso não exclua o reconhecimento de que outros membros, eventualmente a própria criança, possam também experienciar sofrimentos. Por meio de provocações indagativas, como "Porque vieram buscar ajuda?", o discurso do grupo dos pais sobre os quais se fala apresenta conteúdos descritivos ou narrativos indicadores de que a função precípua da intervenção diagnóstica é cessar a fonte dos problemas causados ao locutor. Os conteúdos exemplificativos de tais processos podem ser extraídos de expressões como: a) Porque tenho vergonha...; Porque eu não aguento mais essa história de ser chamado na escola...; Porque tudo isso acaba me deixando muito nervoso e nem trabalho direito...

O terceiro aspecto refere-se à estrutura argumentativa característica dos conteúdos relativos às práticas cotidianas de educação. No encadeamento ideativo do discurso desses pais, fica explicitado semanticamente que a submissão do filho deve ocorrer pela pertinência da obediência em si, sem qualquer elo com a situação específica, ou espaço para relativizações, ainda que a ideia da obediência pela obediência seja acompanhada por argumentos adicionais que remetam a supostos educativo-morais de qualquer ordem. Expressões tais como Eu deixei de castigo porque não me obedeceu... e se não obedece agora, depois será bem pior; Se uma criança não atende ordens é preciso fazer com que atenda ...; Toda vez que eu falo ele tem que respeitar, porque eu sou o pai dele. A importância da relação hierárquica, portanto, não está amparada no processo educativo, tampouco na pretensão de proteger, ou de fomentar compreensões sobre a lógica da ação-reação, ou de antecipar o reconhecimento de riscos para si e terceiros, dentre outros aspectos. A natureza do papel hierarquicamente elevado da paternidade está, nesse caso, enunciado de forma clara: "Quero ser obedecido.", ao invés de "É preciso que você entenda e respeite limites".

O último aspecto comum diz respeito a expressões que indicam processos de construções de planos, de imagens de futuro, do próprio pai, e ausência de referências de "sonhos" para o filho. Nas situações em que são provocados a falar sobre como vêem a criança no futuro, há ausência de especificidades e tendência a replicar com displicência os mesmos elementos que integram os "sonhos" do locutor. Esse aspecto pode ser exemplificado por meio de trechos extraídos de narrações, como: Eu pretendo ser dono de meu próprio negócio...; Se eu aprender inglês com rapidez poderei...; Tenho certeza que posso assumir a liderança...; Meu filho? Ele vai fazer as metas dele.; Há! Ele vai querer essas coisas também, como eu...

Um estudo sobre percepção de mães de crianças com problemas de aprendizagem15 apresentou resultados semelhantes, no que tange às práticas educativas e à construção imaginativa de futuro para os filhos. No entanto, o conteúdo do discurso materno se caracteriza pela natureza fusionada das relações, ao invés da base narcísica que marca o discurso dos pais.

Há um dado importante e curioso dos achados comuns encontrados nos discursos desse grupo de pais. Trata-se do fato de que não parece haver constância tipológica, do ponto de vista da estrutura constitucional, ou do funcionamento de base, de qualquer ordem ou vertente teórica. Tampouco parece que as marcas do discurso, identificadas nas falas que "envolvem" o filho, estejam presentes em falas que abordem outras relações. Esses pais parecem poder falar, por exemplo, da mulher, da família, e de amigos, como quem pode habitar o espaço empático que permite pensar e sentir o que o outro pensa e sente. No entanto, nestes casos, a natureza polifônica do discurso de sujeitos em adequadas condições funcionais, expressão da experiência genuína de tramas vinculativas e evidência do desdobramento da consciência em vozes que ecoam no universo histórico de cada um, parece alterar-se numa direção monofônica, onde apenas uma voz fala e é escutada, como narciso falando a si próprio.

O que há, então, na base de uma relação onde o outro é empurrado para a sombra, para fora do âmbito do olhar, mantendo-o encarcerado num espaço onde também outros não possam vê-lo e ouvi-lo?

Ao retirar o filho do centro de seu discurso, e ao inserir-se neste, recursivamente; ao se colocar no lugar de quem se fala, ocupando o lugar de quem é olhado; ao impor a submissão como prática em si; ao referir sonhos e planos pessoais, apresentando um conjunto vazio onde deveria haver elementos "sonhados" pelos pais, o sujeito que discursa parece explicitar o que "quer" e o que "pode" fazer. Esse processo pode ser entendido como um gozo gerado pela prática do poder sem restrições, marcado pela similaridade com a tirania e perversidade características do pai da horda primitiva, teoria darwiniana na qual Freud se apoia para teorizar acerca da constituição da lei e da fraternidade.

A origem da disfunção relacional pode ter elos em diferentes dimensões e processos da história singular e familiar, como, por exemplo, no conflito competitivo ativado por vivências edipianas; na submissão à demanda da família; no transbordamento de conteúdos delirantes persecutórios, dentre outros. No entanto, é pertinente ressaltar que o discurso desses pais reflete a situação de desalinhamento das estruturas de sustentação social. Se retomados os aspectos introdutórios apresentados, pode-se argumentar que a fragilidade dos vínculos familiares está, neste caso, dramaticamente exposta no discurso do pai, mas também no dos demais membros da família nuclear e estendida, na medida em que não constituem interlocuções de confronto que interfiram na prática perversa de exclusão do filho do universo de seus sonhos. A escola, da mesma forma, parece não conseguir lidar com as dificuldades que a priori lhe estariam afetas, devolvendo aos pais a tarefa exclusiva de conter, educar e ensinar o aluno. E, ainda, as instituições, que deveriam estar ecoando valores, fortalecendo e orientando os fazeres da família e da escola, não integram, em nenhum momento, o discurso parental.

 

CONCLUSÃO

A análise do discurso de um grupo de pais de crianças que apresentam problemas de comportamento e de aprendizagem, ainda em processo de sistematização, já oferece dados que permitem refletir sobre indicadores de disfunções relacionais potencialmente geradores de dificuldades para o desenvolvimento infantil.

Nessa direção, vem sendo observado que, independentemente do nível de adequação funcional, de constituição estrutural, ou de predominâncias caracterizais, o discurso desses pais tendem a apresentar: a) ideações circulares que recolocam o locutor (pai) no lugar central de temáticas e de materiais evocados de suas relações; b) persistente tendência de mencionar a si próprio como sujeito vitimado pelo desconforto causado pelo problema (vergonha, transtornos); c) referência a práticas de educação sustentadas em argumentos que expressam a lógica da submissão; d) ausência de elementos de imagens de futuro do filho, indicando que este não se constitui em veículo natural de realização de suas esperanças.

A atenção ao conjunto desses elementos no discurso paterno, se reconhecidos como sinais indicativos de transtornos relacionais que favorecem ao surgimento de dificuldades na infância, poderá, por meio de uma abordagem precoce, orientar estratégias que potencializem o êxito de intervenções terapêuticas.

Cabe ressaltar que as considerações apresentadas não devem ser tomadas como resultados conclusivos, e sim como meio de, através da socialização dos resultados parciais, buscarem interlocuções profícuas à análise dos dados.

 

REFERÊNCIAS

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15. Rigon; Perazzolo O. 2008 (n/p).         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Profa. Olga Araujo Perazzolo
Programa de graduação em Psicologia
Pós-graduação em Psicopedagogia
Rua Francisco Getúlio Vargas, 1130, Bloco E
Cidade Universitária - Caxias do Sul, RS
E-mail: oaperazz@ucs.br

Artigo recebido: 30/5/2010
Aprovado: 8/8/2010

 

 

Trabalho realizado na Universidade de Caxias do Sul (UCS), Caxias do Sul, RS.

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