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Revista Psicopedagogia

Print version ISSN 0103-8486

Rev. psicopedag. vol.28 no.86 São Paulo  2011

 

ARTIGO ORIGINAL

 

O emprego da literatura na educação infantil: a investigação e intervenção com professores de pré-escola

 

The use of literature in early childhood education: investigation and intervention with preschool teachers

 

 

Ana Claudia Bortolozzi MaiaI; Lucia Pereira LeiteI; Ari Fernando MaiaII

IProfessora do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-graduação em Psicologia do Desenvolvimento e da Aprendizagem - Faculdade de Ciências - Unesp - Bauru/SP
IIProfessor do Departamento de Psicologia - Faculdade de Ciências - Unesp - Bauru/SP

Correspondência

 

 


RESUMO

INTRODUÇÃO: As escolas infantis são espaços ampliados de educação e atenção à primeira infância. O papel do educador como mediador na aprendizagem é fundamental para o desenvolvimento infantil, sendo que o uso de livros infantis pode atuar como importante recurso didático-metodológico nesse processo.
MÉTODO: Este artigo relata uma intervenção psicoeducacional realizada junto aos educadores de uma pré-es cola pública com os objetivos de: (a) registrar o acervo de livros infantis da escola, (b) investigar sobre a aquisição e o uso de livros infantis pelas professoras e (c) oferecer uma intervenção às professoras em relação ao uso pedagógico dos livros infantis. Participaram sete educadoras que atuavam com crianças de 2 a 6 anos.
RESULTADOS: Os resultados indicam que entre os 315 livros na escola, a maioria versava sobre histórias de animais (75 livros), fantasias e mistérios (38), contos de fada e fábulas (34), aprendizagem formal (33), aprendizagem de regras (33) e natureza e meio ambiente (22). As educadoras relataram que a escolha dos livros era feita principalmente pela faixa etária à qual os livros eram destinados, como também a partir dos temas presentes nos textos e/ou ilustrações. Apesar das educadoras acreditarem que os livros podem estimular a leitura das crianças, elas não descrevem seu uso em atividades direcionadas e relatam falta de conhecimentos sobre a utilização deles.
CONCLUSÃO: A proposta de intervenção ofertada às professoras possibilitou a elas o repensar do uso dos livros na pré-escola, instruindo-as para a utilização dos livros visando estimular a fantasia, a criatividade e a capacidade crítica e reflexiva das crianças.

Unitermos: Educação infantil. Literatura infanto-juvenil. Educação continuada. Creches.


SUMMARY

INTRODUCTION: The children's schools are expanded spaces of education and care for infants. The educator's role as mediator in learning is crucial to child development, and the use of children's books can act as an important methodological and pedagogical resource in this process.
METHODS: This paper describes a psychoeducational intervention performed with the educators of a public pre-school with the following objectives: (a) register the collection of children's books of the school, (b) investigate the acquisition and use of children's books by the teachers and (c) offer an intervention to teachers regarding the educational use of children's books. The participants were seven educators who worked with children from 2 to 6 years old.
RESULTS: The results indicate that among the 315 books in the school, the majority was about animal stories (75 books), fantasy and mystery (38), fairy tales and fables (34), formal learning (33), learning rules (33) and about nature and environment (22). The educators reported that the choice of books was made mainly considering the age group to which the books were directed, and also from the themes found in texts and/ or illustrations. Although the teachers believe that the books can encourage reading among children, they don't describe their use in planned activities and they report lack of knowledge about their use.
CONCLUSION: The proposed intervention to the teachers allowed them to rethink the use of books in pre-school, instructing them to the utilization of the books aiming to stimulate the imagination and creativity, improving the critical and reflexive capability of the children.

Key words: Child rearing. Juvenile literature. Education, continuing. Child day care centers.


 

 

INTRODUÇÃO

As escolas de educação infantil são hoje consideradas espaços nos quais se visa a uma educação plena e não apenas o cuidado das crianças, de caráter puramente assistencialista1. Tal premissa é relativamente nova, pois a Educação Infantil no Brasil só foi reconhecida e institucionalizada a partir da Constituição Federal de 1988, do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em 1990, e da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), publicada em 1996.

Após a promulgação desses documentos, aconteceram várias mudanças no processo de ensino das crianças, desde o nascimento até a idade pré-escolar. Assim, a educação infantil passou a ser reconhecida legalmente como a educação básica que tem por "finalidade o desenvolvimento integral da criança até seis anos de idade, em seus aspectos físicos, psicológicos, intelectual e social, complementando a ação da família e da comunidade"2.

O Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (RCNEI), elaborado em 1998, é um documento oficial do Ministério da Educação3, que orienta a proposta pedagógica de unidades de ensino que atendessem esse público. Nesse documento, há indicativos para subsidiar o trabalho pedagógico realizado na Educação Infantil, com proposições, por exemplo, sobre procedimentos didático-metodológicos a serem adotados pelos professores. Além disso, em 2006, o Ministério da Educação, mais especificamente a Secretaria da Educação Básica4, divulgou os Parâmetros Nacionais de Qualidade para a Educação Infantil e, em 2009, outro importante material, os Indicadores da Qualidade na Educação Infantil5, que ajudaram traduzir e detalhar esses parâmetros de modo teórico-operacional, para ofertar instrumental de apoio ao trabalho dos educadores.

A psicologia histórico-cultural tem uma importante contribuição nas práticas educativas na pré-escola. Segundo essa abordagem teórica, o desenvolvimento mental infantil parte de três pressupostos básicos, de acordo com Leontiev6: 1) a criança se apropria do mundo dos objetos nas interações sociais que estabelece - a apropriação é concebida como característica típica do gênero humano, possibilitada por intermédio da sua participação nas atividades, por meio das relações práticas e verbais; 2) o ser humano desenvolve suas funções psicológicas superiores - linguagem, memória mediada, raciocínio lógico-matemático, entre outras - ao longo do seu desenvolvimento, formando sistemas cerebrais que permitem novas formações mentais; 3) a linguagem ocupa lugar de destaque nas formações mentais, pois possibilita à criança adquirir, acumular e repassar os conhecimentos já produzidos pela humanidade, em momentos históricos distintos, implicando na formação dos seus conceitos.

Nessa compreensão sobre aprendizagem, a atuação do professor é fundamental para o desenvolvimento da criança, uma vez que é no estabelecimento das interações sociais no âmbito do espaço escolar que se dá a mediação entre o universo de conhecimentos produzidos pelo mundo adulto e a formação de conceitos na infância. Para Vygotsky7, a mediação, no âmbito educacional, pode ser entendida como um processo interacional entre crianças e professores que leva à formação de conceitos acadêmicos por intermédio da linguagem, em particular, do uso e compartilhamento de diversos códigos linguísticos.

Na educação infantil, o hábito de contar histórias para crianças desde a tenra idade parece ocupar um papel de destaque nas ações educativas, e deve ser visto como uma estratégia pedagógica importante para a promoção da leitura e, consequentemente, no desenvolvimento educacional infantil8-11.

Constituída nas interações sociais, a narrativa aparece como necessidade individual ou coletiva de se registrar acontecimentos histórico-culturais, verdadeiros ou imaginários, permeados de emoções, medos e fantasias. Para Zilberman12, tais manifestações podem ser caracterizadas como formas de linguagens presentes nas modalidades orais e escritas, em diferentes gêneros linguísticos, que circulam nas interações sociais em sociedade.

Em particular ao universo da literatura infantil, as histórias surgem como possibilidades da criança vivenciar sensações de perda, de busca pelo desconhecido, de tristeza, de desconforto, de amor, raiva, dentre outras, levando-as a experimentar novas descobertas sobre o mundo e sobre elas mesmas. Em conformidade com esse posicionamento, entende-se que a criança que entra em contato com as histórias infantis desenvolve seu imaginário, tornando-se, pouco a pouco, um leitor em potencial. Nesse contexto, o mediador terá papel de destaque na promoção da leitura, pois nenhum conhecimento será construído sozinho13.

Cabe, então, aos professores propiciarem oportunidades no espaço escolar para que as crianças possam vivenciar os enredos, as tramas e as fábulas presentes nas produções literárias infantis, tão necessárias para a aquisição de elementos linguísticos que subsidiarão o desenvolvimento mental. Para que isso ocorra, Martins14 pontua a importância da ação docente nessa atividade, uma vez que é ele quem escolhe a narrativa e o modo como irá apresentá-la. Assim, deve atuar como mediador nesse processo ou, nas palavras da autora, "como sujeito ativo, que compartilha situações significativas de leitura".

A partir desses apontamentos, percebe-se que existe uma preocupação nas políticas públicas atuais em implementar propostas educacionais preocupadas com o desenvolvimento infantil de crianças com até seis anos de idade, por meio da atuação dos professores que precisam, então, considerar a criança como uma pessoa capaz de desenvolver e aprender em ambientes de estímulo e incentivo a essa interação. Um dos recursos importantes para realizar esse objetivo seria a utilização da leitura de livros infantis na pré-escola.

Pensando nessas proposições, elaborou-se um projeto de pesquisa e intervenção que pudesse instrumentalizar educadores de uma pré-escola para que eles analisassem de modo crítico os livros infantis disponíveis e se utilizassem desses materiais de maneira mais apropriada, como recursos didático-metodológicos importantes para o desenvolvimento cognitivo e emocional das crianças.

Este texto apresenta os resultados obtidos durante a realização do projeto de extensão universitária desenvolvido que objetivou:

a) Observar, no cotidiano da pré-escola investigada, como os livros disponíveis são utilizados pelas educadoras, abarcando os seguintes aspectos: escolha dos livros - se são escolhidos por tema, faixa etária, ilustrações, e se há um objetivo a ser alcançado com a escolha do livro; se as leituras realizadas dos livros são dirigidas ou livres, e qual a proposta com que cada leitura é feita. Além disso, foram observadas como são analisadas, nas atividades com os livros, as complexidades que as histórias trazem, desde questões de gênero, diversidade, até questões de conduta moral - identificando a exploração do livro a partir do gênero literário, das ilustrações, do título e outros aspectos de identificação;

b) Investigar com as educadoras como elas justificam a escolha e o uso de livros infantis, por meio da aplicação de questionários;

c) Oferecer formação continuada às professoras em relação ao uso psicopedagógico dos livros infantis. A partir dos dados coletados e da análise da literatura a respeito da temática, foram ofertadas estratégias para que as educadoras da pré-escola pudessem analisar de modo crítico os livros infantis disponíveis na escola e utilizá-los de maneira mais apropriada, ou seja, a sua utilização como recursos didáticos e metodológicos importantes para o desenvolvimento cognitivo e emocional das crianças.

 

MÉTODO

A realização deste projeto ocorreu em 2009 em uma escola de educação infantil, subsidiada por uma universidade pública estadual. O projeto foi realizado com anuência da coordenadora, subdivido em diferentes etapas: (1) observação sistemática sobre o uso dos livros infantis, além de um levantamento dos livros existentes e disponíveis na sala de aula; (2) aplicação de questionários com as professoras sobre a escolha e a utilização dos livros; e (3) proposta de formação continuada.

Participaram do estudo sete educadoras, com idade variando entre 26 e 38 anos, as quais tinham experiência no magistério em educação infantil variando entre um a 15 anos. Cada educadora era responsável por um grupo de crianças, distribuídas em idades diferentes, de quatro meses a seis anos, variando então do grupo do berçário até o grupo 6. A última etapa do projeto - formação continuada - contou também com a presença da coordenadora da pré-escola.

A observação foi realizada ao longo de três meses, alternando os períodos entre manhã e tarde e todos os grupos de crianças da escola foram observados. A observação ocorria por meio da presença das alunas bolsistas na escola, seja na sala das crianças ou durante as atividades realizadas no ambiente da escola, e o levantamento sobre o acervo dos livros ocorreu no mesmo período. A intenção era saber quais eram os livros existentes na escola, sua quantidade, disponibilidade e, em especial, quais eram as referências para a sua aquisição e como eram escolhidos e apresentados às crianças. Investigou-se ainda como os livros eram utilizados como um recurso didático-pedagógico durante o planejamento e execução das atividades com os pré-escolares.

Depois dessa observação, foram aplicados questionários com as professoras, com as seguintes questões abertas: (1) Quem escolhe a aquisição dos livros que tem na escola? Principalmente os da sua sala?; (2) Como se escolhem os livros que serão adquiridos? (Todo ano se compram livros? Quais livros? Quantos? Por que se compram os livros?); (3) Como costuma usar os livros infantis na escola com as crianças da sua sala?; (4) Você costuma planejar antes o uso de algum livro para um fim específico ou o livro é um recurso auxiliar para outras atividades?; (5) O que você prioriza na escolha do livro que usa com as crianças: história, figura, texto, função, outros aspectos?; (6) Em geral, você tem facilidade ou dificuldade em usar os livros com as crianças? Por que?; (7) Você recebeu formação para trabalhar com os livros infantis na graduação em pedagogia/magistério?; e (8) Gostaria de comentar alguma situação interessante que viveu com as crianças quando usava os livros infantis na escola?

Após uma avaliação dos dados de diagnóstico, foram planejadas e programadas as atividades com as educadoras, almejando, sobretudo, que elas pudessem refletir sobre a natureza dos livros utilizados, sua finalidade e seu uso com estratégias pedagógicas possíveis. As temáticas propostas para o curso de formação continuada foram elaboradas em dois eixos: moral e diversidade, incluindo temas como família, regras, sexualidade e gênero.

 

RESULTADOS

Observação sistemática da utilização dos livros e levantamento do acervo literário escolar

A observação geral em todos os grupos sinalizou que os livros ficavam dispostos em estantes nas respectivas salas de aula, ao alcance das crianças, e as instruções que se seguiam relativas ao uso era de manuseá-los somente com a permissão da professora. Em alguns momentos, as crianças manipulavam os livros para ver as figuras, ou ainda, quando as estagiárias manuseavam os livros, as crianças se mostravam curiosas a respeito das suas histórias. Na maioria das vezes, o manuseio espontâneo do livro por parte das crianças ocorreu em horários livres ou quando as educadoras estavam ocupadas com alguma tarefa e, então, deixavam que as crianças pegassem os exemplares. Foi possível observar que, quanto mais novas eram as crianças, menor era o contato físico delas com o livro. Muitas vezes, esse distanciamento foi justificado pelas educadoras em virtude de as crianças mais novas rasgarem os livros - fato que pôde ser observado, pois vários exemplares estavam rasgados, sem capa ou faltando páginas.

Presenciaram-se algumas atividades dirigidas com o uso dos livros, nas quais tanto ocorreu uma mera leitura do livro, ou seja, não se foi além da contação da história e apresentação das figuras com crianças de dois anos, como, em outro grupo, crianças de seis anos, a leitura dirigida foi relacionada com outras leituras anteriores realizadas no grupo. Também houve espaço para imaginar as cenas do livro (que não possuíam figuras), para refletir acerca da história, para comentar a respeito do autor (no caso Monteiro Lobato), como também para avaliar a atividade proposta na sequência. Após o período de observação, as estagiárias continuaram o levantamento do acervo literário da pré-escola, durante os meses seguintes.

O levantamento do acervo literário da pré-escola revelou que a maioria dos livros versava sobre histórias de animais (75 livros), fantasias e mistérios (38 livros), contos de fada e fábulas (34 livros), aprendizagem formal (33 livros), aprendizagem de regras (33 livros) e natureza e meio ambiente (22 livros). Foi observado que poucos livros faziam referência a conflitos infantis ou familiares, apresentando personagens humanos (crianças, pais, outros familiares), discutindo questões psicológicas e sociais tão importantes no cenário atual. Muitos livros não constam de informações importantes, como o autor e a nacionalidade e, ainda, 160 deles estavam em mau estado (fato alertado pelas educadoras com seus alunos, demonstrando que o descuido ou o mau uso dos livros pode torná-los inutilizáveis). A Tabela 1 apresenta a categorização dos livros da pré-escola.

 

 

Levantamento de informações junto às educadoras

A análise das respostas nos questionários com as educadoras relevou dados interessantes que foram elencados por temas, conforme o disposto abaixo.

Segundo as professoras, a escolha dos livros era realizada por elas com a colaboração da coordenadora da escola, considerando principalmente a faixa etária à qual seriam destinados, como também os temas presentes nas obras. Algumas delas afirmaram escolher os livros após terem observado neles principalmente os seus conteúdos, as figuras, ou ainda a sua parte textual. Outras relataram priorizar o objetivo da atividade e focar especificamente na faixa etária, para poder avaliar quais características dos livros seriam mais atrativas para as crianças. A aquisição de livros novos ocorria todos os anos e a responsabilidade da compra era dos pais das crianças, a partir de uma lista encaminhada pela educadora do grupo a cada família.

A presença de livros na sala de aula foi justificada pelas professoras por ser um incentivo à leitura; elas reconheceram que, como as crianças ainda não lêem, o objetivo dos livros ficarem dispostos na sala seria o de desenvolver nelas o gosto por histórias e pelo manuseio de livros. Também relataram que os livros eram destinados principalmente à realização de atividade de leitura livre ou dirigida, ou ofertados após a realização de alguma outra atividade. Assim, existia um planejamento da utilização dos livros, mas estes não seguiam um padrão. As educadoras ora escolhiam os livros de acordo com a necessidade gerada por certas situações (por exemplo, aprender a compartilhar brinquedos, utilizando alguma história que tratasse do assunto), ora sem motivo aparente (quando o tema da história era aleatório), ou ainda afirmaram que as atividades com livros estavam no planejamento de ensino, porém não sabiam especificar como eram realizadas as atividades. Entretanto, algumas delas relataram ler com antecedência os livros para procurar aproveitá-los como recursos auxiliares para abordar temas que já estivessem em pauta, e também que retomavam os temas lidos em outros momentos.

Algumas educadoras tiveram dificuldades em pontuar quais foram as situações específicas em que foram utilizados livros em suas atividades cotidianas, relatando que os utilizam o tempo todo. Entretanto, a maior parte relatou que se utilizava do livro como recurso auxiliar em projetos específicos, como educação nutricional, utilização da água, sobre natureza e sociedade e/ou meio ambiente. O número expressivo de livros relacionados ao tema "animais e meio ambiente" pode ser explicado pelo uso nestes projetos, embora as professoras não tivessem sinalizado que a compra dos mesmos tenha sido com esta finalidade.

Todas as educadoras afirmaram que havia momentos em que as crianças escolhiam livremente os livros na sala de aula e, em outros, a escolha era feita pela professora - conforme os objetivos da atividade que estava sendo realizada. Segundo as próprias, as crianças escolhiam os livros na maioria das vezes, embora sempre sendo observadas pela professora.

Quanto à formação acadêmica que receberam na sua graduação para utilizar livros na pré-escola, algumas educadoras responderam sumariamente que sim (indicando que tiveram formação acadêmica para trabalhar com livros), outras relataram concordância, mas declararam que a formação foi pouca ou insuficiente, e outras responderam que receberam formação sobre a utilização dos livros em projetos específicos.

Em geral, as educadoras relataram ter facilidade no trato pedagógico com os livros, argumentando que a leitura era um momento de encantamento, em que a fantasia e a imaginação estavam em evidência, ou então que se sentiam à vontade para contextualizar as histórias e utilizá-las como auxílio nos temas trabalhados nos grupos.

Realização do curso de formação continuada para educadores

Foram realizados encontros de formação com as educadoras, conduzidos pelas estagiárias, com a supervisão dos coordenadores do projeto. O reduzido número de encontros foi decorrente da dificuldade em estabelecer horários comuns para atividades desta natureza no ambiente escolar. Nos encontros, foram discutidas as seguintes questões:

a) Educação como meio para o desenvolvimento do pensamento crítico que gera autonomia dos sujeitos: a meta foi a de promover um debate com as educadoras, evidenciando que o conhecimento gerado pela escola deve ser crítico, permitindo que os sujeitos possam ter contato com as mais diversas experiências, seja pela própria vivência pessoal ou dos outros - como é no caso da literatura;

b) Coerção na Educação: o caráter coercitivo, muitas vezes praticado nos ambientes educacionais, foi repensado como uma necessidade para que os sujeitos aprendam a viver coletivamente. Entretanto, a Educação não deve ser vista unicamente por esse lado, mas também pelo seu caráter humanista, que aponta para a autonomia dos sujeitos. Pensar na educação e em sua função implica pensar em quais situações devem-se coibir os desejos dos sujeitos, em quais outras se deve permiti-los e em que momento é possível produzir uma discussão reflexiva sobre a necessidade da coerção e do adiamento da realização dos desejos;

c) Concepção de infância: debateu-se que concepções de infância estão relacionadas à infância - ora a criança é colocada como suficientemente boa, ingênua, corruptível e, portanto, alguém a ser protegido dos males da sociedade e das tragédias humanas; ora a criança é vista como de toda má, com instintos que devem ser reprimidos, para que ela se torne um bom cidadão, um adulto aceitável e adaptado. Esta cisão, entre a criança boa e a criança má, esconde as contradições da realidade humana, pois somos, todos, em parte bons e em parte maus, gerando assim uma defasagem na sua formação ética, ao deixar de tratar de seus dilemas "sombrios" (seus desejos ruins e os males do mundo) e ao não respeitar sua autonomia (quando não há espaço para a criança colocar o que ela pensa a respeito das coisas, o que ela deseja para si, o que é mais importante para ela, por exemplo), adota-se uma atitude paternalista que camufla conflitos e dificulta o desenvolvimento da reflexão sobre si mesmo e sobre o mundo;

d) Moral das histórias: refletiu-se sobre o ensino de uma conduta moral, apontando que, seja ela boa ou má, seja ela rígida ou flexível, é uma coerção dos impulsos humanos, pois estabelece limites às realizações das vontades dos sujeitos na convivência com os outros. As histórias dos livros carregam sempre uma conduta moral, sobre o que é considerado bom e agradável (o certo) e do que é considerado prejudicial e infame (o errado). A grande tradição das histórias infantis é de haver sempre uma moral com conclusões únicas, que aqui irá se chamar de moral da história fechada. A história fechada não permite que o sujeito pense em outras possibilidades de resolução dos problemas da história, outras consequências para as ações ou ainda que ele compreenda a necessidade das regras sociais e as siga a partir desta compreensão (e não pelo medo de deixar de segui-las). Ainda, pode criar uma identificação falseada da realidade, pois geralmente as histórias de moral fechada são dicotômicas, dividindo o mundo entre sujeitos bons e sujeitos ruins. Entretanto, foi demonstrado que o professor pode trabalhar a história de moral fechada, proporcionado à criança um espaço para que ela pense e diga a respeito do que ouviu, leu, e aprendeu - identificando o que ela concorda e discorda, e os porquês implicados. Por outro lado, as histórias com a moral aberta permitem que o sujeito se coloque no lugar do personagem, tentando encontrar uma adequação entre o seu desejo pessoal e as possibilidades saudáveis de realizá-lo na sociedade, para que a coletividade não seja prejudicada - tampouco o próprio sujeito. Exemplos disso são histórias que pedem à criança: uma resolução para o problema apresentado (o final da história), um questionamento acerca da conduta dos personagens e onde as condutas destes os levaram, uma reflexão sobre os dilemas humanos, sejam externos (dos perigos do mundo) ou internos (dos perigos de si mesmo), dando oportunidade para que ela pense a respeito deles e encontre uma solução, seja sozinha ou com a ajuda de um adulto, no caso do professor. Histórias assim direcionadas propõem que deve haver uma conduta moral a ser adotada pelas crianças, mas que seja algo pensado, refletido e escolhido por elas. A discussão das histórias não deve ser guiada moralmente pelo educador, mas pode ser debatida, discutida, construída. Portanto, a educação deve direcionar os sujeitos a pensar por si mesmos e a colocar-se no lugar do outro, a fim de que eles encontrem maneiras saudáveis, sociavelmente aceitas de realizar seus desejos, podendo renunciar a parte destes em prol da coletividade, ou seja, seguindo as regras sociais por compreender a necessidade destas, por meio da reflexão e construção de pensamento e leitura crítica da realidade. Para dar conta da reflexão das temáticas, foi solicitado que as educadoras trouxessem para o curso quaisquer livros do acervo de seu grupo que quisessem. Após as discussões realizadas durante o curso, foi pedido que elas mostrassem os livros escolhidos e que pudessem então discernir as questões de moral aberta e fechada a partir dos próprios materiais que elas dispunham. Também foram apresentadas às educadoras as possibilidades de se trabalhar histórias de moral fechada, de modo mais aprofundado (mesmo histórias sem dilemas e conflitos), levando as próprias crianças a refletir o conteúdo do livro (questionar se a história do livro é igual na vida real, propor outro fim para a história, discutir a atitude dos personagens etc). Pediu-se para que elas relatassem suas dificuldades em trabalhar os livros com as crianças, a fim de que o trabalho das estagiárias fosse enriquecido com relatos de quem faz a prática do cotidiano escolar e, por fim, pudessem avaliar o encontro;

e) Conceito de família: foi discutida a importância de se pensar as várias formações de família e que ainda se reproduz um modelo rígido e idealizado de família em várias instituições. Para isso, foi solicitado que as educadoras relatassem suas impressões sobre o que era uma família e, com o uso do livro A história de cada um (Juciara Rodrigues), foi discutida a construção do estereótipo de uma família ideal (com pai, mãe, irmão, avós) por meio de nossas instituições sociais e a reprodução desse modelo nas salas de aula, por meio de um tratamento às crianças baseado numa concepção de "normalidade" das suas famílias - ou seja, ter necessariamente pai e mãe coabitando juntos, por exemplo - e como o uso de histórias infantis possibilitaria abarcar o tema da diversidade, construindo um pensamento crítico sobre o ideal de "normalidade" nas concepções de família. Outros livros que podem trabalhar tal tema foram apresentados para as educadoras, tais como Minha família é colorida (Georgina Martins), Menina bonita do laço de fita (Ana Maria Machado) e Os meninos verdes (Cora Coralina);

f) Sexualidade Infantil - relatou-se que a temática da sexualidade é encarada com desconforto por grande parte das pessoas, e que as indagações infantis são tratadas com respostas ambíguas ou ainda omissões, nas quais geralmente se reproduz a dificuldade que pais, educadores e as autoridades tiveram para respondê-las em momentos decisivos no processo de desenvolvimento. Discutiu-se que a sexualidade não abarca somente o sexo, mas também as questões de gênero, afeto, carinho, prazer, entre outras. Por exemplo, nas questões de gênero, foi refletido como os estereótipos são reproduzidos na literatura infantil utilizada no cotidiano escolar, na utilização de cores e brincadeiras mais "adequadas" para meninos e meninos, inferência de habilidades típicas de cada gênero, curiosidade das crianças a respeito de conhecimento de seu próprio corpo e do corpo de outrem, os papéis de gênero apresentados nos livros e nas narrativas. Foram apresentados para as educadoras alguns exemplos de bibliografia para serem trabalhados em sala de aula sobre este assunto - Menino brinca de boneca? (Marcos Ribeiro), Ceci tem pipi? (Thierry Lenain), Convivendo com meninos e meninas (Guia da Criança Cidadã, Unicef), Menino ou Menina: João ou Joana? (Luísa Veiga, Filomena Teixeira, Fernanda Couceiro).

Os resultados da observação realizada na escola foram apresentados às educadoras e à coordenadora da pré-escola, na tentativa de ajudá-las a sanar as dificuldades apontadas. O mesmo procedimento foi adotado sobre o levantamento do acervo literário realizado, fato visto pelas educadoras como elemento enriquecedor no trabalho de sala de aula, pois muitas relataram não ter tempo de analisar os livros que existem em suas salas de aula e assumiram desconhecer o acervo geral da escola, o que permitiria trocas de exemplares entre as salas dos diferentes grupos.

 

DISCUSSÃO

Os dados obtidos com os questionários indicaram que as educadoras apreciam o uso dos livros nas atividades cotidianas de sala de aula, mas que a maioria delas não tem alguma formação específica acerca da literatura infantil - relataram ter utilizado os livros com suas crianças, mesmo que esporadicamente. Segundo o relato das educadoras, as atividades com os livros despontam como sendo insuficientes, por não haver um planejamento sistematizado e contínuo a longo prazo. Por exemplo, temas que se entrelaçam e que poderiam ser trabalhados, tais como diversidade (de família, de gênero, classe social, religião, entre outros), poderiam ser retomados durante o ano letivo com o uso de histórias recontadas e reelaboradas.

Os dados também demonstram um desconhecimento por parte das educadoras sobre essas possíveis análises e tal fato pode ser explicado por uma cultura local escolar que ainda pouco valoriza o uso dos livros como um importante instrumento pedagógico que pode gerar autonomia dos sujeitos. Evidentemente, os livros podem ter um caráter de entretenimento, mas, embora seja muito importante esse elemento lúdico da literatura, ela poderia ser utilizada em vários outros aspectos pedagógicos que acabam sendo desmerecidos na pré-escola, talvez pela concepção de que as crianças "ainda não lêem" ou ainda pela defasagem nos cursos de formação de pedagogas e educadoras que não trabalham profundamente tal questão.

Apesar disso, o interesse aparente das educadoras pelo uso dos livros seria um elemento forte para que propostas de formação continuada sobre esses temas pudessem se constituir com práticas comuns na pré-escola15. As educadoras se mostraram entusiasmadas com a proposta de formação continuada ofertada, relatando que passaram a atentar para outros aspectos das histórias que elas trabalhavam, nunca antes percebidos. Alguns desses apontamentos foram: a dificuldade de trabalhar histórias com crianças muito pequenas, de que as crianças vivenciam as histórias com mais complexidade do que se espera quando o livro apresenta uma moral da história, rígida e normativa e, ainda, de que há crianças que, na leitura dos livros, relatam histórias pessoais nas quais sofreram algum tipo de coerção moral. Isso faz crer que as questões trabalhadas no curso foram refletidas pelas professoras e, em alguma medida, puderam ser relevantes, talvez por se tratar de assuntos importantes e cotidianos. Percebeu-se, também, que as discussões foram baseadas em exemplos vivenciados na realidade investigada, e os relatados apontavam dificuldades pessoais no tratamento escolar, especialmente em questões que abordavam sexualidade ou entendimento sobre a diversidade - como as situações em que as crianças reproduziam ações preconceituosas de racismo ou, ainda, concepções tradicionais do que seja família.

Na maioria dos casos relatados, a escolha e a utilização dos livros não se basearam previamente em uma proposta pedagógica e nem eram considerados como recursos que poderiam ser usados sob várias temáticas e retomados sob outras perspectivas, estimulando a apropriação de conteúdos simbólicos7 por parte das crianças que, segundo Vieira11, se interessam por curiosidade pelo mundo fantasioso e imaginário presentes nas narrativas, possibilitando o desenvolvimento de importantes construções mentais. Ziberman12 também afirma que o uso de livros na educação infantil pode ampliar a capacidade infantil imaginativa. Nesse sentido, o uso dos livros extrapola a finalidade de alfabetização, podendo ser usado pelo adulto mediador como um meio prazeroso de estimulação de futuros leitores. Esse adulto, como afirma Martins14, não se resume a um mero narrador, mas alguém ativo que estimula na educação infantil a possibilidade das várias significações da leitura e o desenvolvimento de conhecimentos, interpretações e reflexões críticas. Por isso, o adulto - no caso, o professor - deve assumir a responsabilidade sob o uso dos livros na pré-escola desde a escolha deles, a forma como usam e suas finalidades.

 

CONCLUSÃO

A análise geral do desenvolvimento das ações do projeto, desde o levantamento do acervo literário da pré-escola e da realização dos encontros de formação continuada, aponta para a necessidade de aprofundamento da temática com os educadores de pré-escola. Os livros infantis existem nas pré-escolas, mas, muitas vezes, constituem um recurso subaproveitado pelos educadores, que não utilizam o rico potencial dos livros infantis em favorecer junto às crianças o diálogo sobre questões psicossociais importantes na infância. Almeja-se, com esta e outras propostas extensionistas, oferecer suporte teórico-prático aos educadores de crianças para ampliar suas reflexões sobre a natureza ou tipologia dos livros, assim como seu preparo em utilizá-los, para que possam refletir sobre as propostas de atividades que diversifiquem o uso dos livros infantis nas salas de aula da pré-escola, considerando a infância como um importante período da vida em que o contato com livros pode ser tão enriquecedor para seu desenvolvimento humano.

 

REFERÊNCIAS

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Correspondência:
Ana Claudia Bortolozzi Maia
Departamento de Psicologia
Faculdade de Ciências
Universidade Estadual Paulista - Unesp
Av. Eng. Luiz Edmundo Carrijo Coube, 14-01
Bauru, SP, Brasil
CEP 17033-360
E-mail: bortolozzimaia@fc.unesp.br

Artigo recebido: 3/4/2011
Aprovado: 11/7/2011

 

 

Trabalho realizado no Departamento de Psicologia da Faculdade de Ciências da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Bauru, SP, Brasil. Este trabalho deriva do projeto de extensão universitária "A re-leitura de livros infantis como estratégia de formação continuada de professores de uma pré-escola" (Processo n. 5627/2008), que teve como colaboradoras: Priscila Sayuri Oliveira Fukuda e Tatiana Koschelny Pereira, alunas do curso de Psicologia e bolsistas da Pró-reitoria de Extensão da Unesp (PROEX), na época do estudo, que auxiliaram na coleta de dados.

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