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Revista Psicopedagogia

Print version ISSN 0103-8486

Rev. psicopedag. vol.28 no.86 São Paulo  2011

 

ARTIGO DE REVISÃO

 

Quando o vínculo é doença: a influência da dinâmica familiar na modalidade de aprendizagem do sujeito

 

Having the link as disease: the influence of family dynamics on the subject's learning mode

 

 

Ana Paula Decnop de Almeida

Membro pertencente à Sociedade Brasileira de Psicanálise, Dinâmica de Grupo e Psicodrama (SOBRAP- JF). Psicóloga, Psicopedagoga Clínica e Institucional, com especialização em Gestão Estratégica de Recursos Humanos, Programa de Saúde da Família e Formação em Psicodrama (em fase de entrega de monografia). Membro associado da Associação Brasileira de Psicopedagogia

Correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo tem como objetivo favorecer a atuação lúcida e assertiva no diagnóstico e na intervenção psicopedagógicos, mergulhando em um estudo bibliográfico à luz da Epistemologia Convergente, para discriminar o vínculo normal do patológico nas relações familiares e entender até que ponto é possível atribuir a essa dinâmica familiar a influência na modalidade de aprendizagem do sujeito, causando como sintoma o não aprender.

Unitermos: Família. Relações familiares. Aprendizagem.


SUMMARY

This paper proposes a review, under the perspective of Convergent Epistemology, about the family ties of affection interfering in the subject's ability of learning. In addition, it aims to prompt a reflection on the importance of psychopedagogists to know about normal and pathological links so that they could develop the ability to identify the min family dynamic sand check the strength of their influence on the subject's mode of learning, hither to seen as "ill" just because they simply can not learn.

Key words: Family. Family relations. Learning.


 

 

INTRODUÇÃO

A família é o grupo primário do qual o indivíduo participa. Sua dinâmica impõe determinados tipos de vínculos particulares, vínculos esses que irão interferir na formação da identidade do sujeito - somando-se aos fatores genéticos e sociais -, como também na sua modalidade de aprendizagem, que vai se formando de acordo com as primeiras aprendizagens no âmbito familiar, sendo modelada ao longo da vida.

Ao analisar o ambiente social familiar com suas interações e a forma como ocorreram as primeiras aprendizagens da criança, será possível inferir sobre como o conhecimento circula na família.

A modalidade de aprendizagem se constrói pelo modo como os ensinantes reconheceram e desejaram a criança como sujeito aprendente e a significação que o grupo familiar deu ao ato de conhecer. Por esse motivo, o sujeito jamais poderá ser considerado, dentro da perspectiva psicopedagógica, fora do seu campo familiar.

Para levantar questões acerca dos vínculos familiares interferindo na modalidade de aprendizagem do sujeito, o presente artigo lança mão da Epistemologia Convergente de Jorge Visca1, que propõe um trabalho clínico utilizando-se da integração de três linhas da Psicologia: Escola de Genebra (Psicogenética de Piaget), Escola Psicanalítica (Freud) e Psicologia Social (Enrique Pichon-Rivière). Essa abordagem caracteriza-se por ser uma visão integradora do conhecimento acerca das estruturas cognitiva, afetiva e social, respectivamente, de modo interdinâmico.

A inteligência é vista pela Epistemologia Genética como o resultado de uma construção e da interação das pré-condições do sujeito às circunstâncias do meio social e entende que a criança ao nascer se encontra em um estado de adualismo, ou seja, indiscriminação de si mesma e do mundo que a rodeia, a partir do qual vai construindo futuramente níveis sucessivos ou etapas de desenvolvimento. Assim como a inteligência, os vínculos afetivos vão assumir diferentes intensidades e irão orientar estruturas de conduta e personalidade. Esses vínculos podem ser estudados em relação a perspectivas histórica ou a-histórica. Esse artigo levará em conta as duas perspectivas: histórica, já que destaca a gênese e evolução das relações vinculares e a-histórica, por meio de um corte transversal em relação aos interesses no presente.

O olhar da Psicologia Social traz como um elemento importante para a análise da aprendizagem do sujeito o que corresponde ao vínculo-patológico ou saudável-estabelecido com os grupos sociais nos quais convive. Vínculo é uma estrutura dinâmica em contínuo movimento, constituído pela totalidade da pessoa, interpretado por Pichon-Rivière2 como uma Gestalt. O estudo psicossocial, sociodinâmico e institucional coleta uma série de informações que são dados sobre o interior do paciente e permite detectar e/ou descobrir as causas que provocaram a ruptura do equilíbrio psicológico ou do não-aprender.

A Psicanálise vem investigar determinantes psíquicos que levam alguém a ser um desejante de saber e mostra que os educadores, investidos da relação afetiva primitivamente dirigida ao pai, se beneficiarão da influência que este último exerce sobre a criança.

O presente artigo traz uma reflexão acerca do papel psicossocial da aprendizagem que não começa na escola, e sim, a partir das primeiras relações com a mãe, com o pai e com a família; prossegue tratando do conceito de vínculo e dos tipos instituídos neste grupo social, levanta questões sobre o que é normal e o que é patológico, para então refletir sobre a influência desses vínculos na modalidade de aprendizagem e no desempenho escolar do sujeito.

 

TUDO COMEÇA EM CASA

A família é a primeira referência de qualquer pessoa e é reconhecida como um dos pilares na formação do indivíduo. Desde o início da sua existência, a criança vivencia um total estado de indiferenciação e o adulto tenta ser capaz de satisfazer todos os seus desejos. Quem cumpre o papel de mãe é que se torna responsável por decodificar as necessidades e satisfazê-las, dentro do possível, frustrando-a quando preciso. A frustração é que permite tomar contato com o senso de realidade e começar a perceber que existe o outro. Parafraseando Winnicott3, a amamentação é o primeiro vínculo do bebê com o objeto externo, ou seja, com o que pertence ao meio que o rodeia. Quando esse vínculo ocorre de forma satisfatória, preenchendo as suas necessidades, essa experiência passa a ser internalizadaª. Caso contrário, acaba sendo vista como realidade externa ou como momento de ilusão. A convivência com esse outro, nesse contexto referenciado com a mãe, e até mesmo com a cultura, é que será responsável para cortar o cordão umbilical. Aos poucos a criança sai da posição de plena dependência e parte para o processo de individuaçãob, interferindo, assim, na constituição do sujeito.

Tanto a forma como é exercida a maternagemc quanto à disponibilidade da figura paterna no trato para com o filho, influenciarão na dinâmica dessa família. A família é, então, a matriz que irá interferir até mesmo nos futuros papéis de pais a serem exercidos pelos seus filhos.

Família se refere a um grupo de pessoas que estão ligadas por um vínculo, nem sempre caracterizadas por laços consanguíneos, que pode colaborar ou não para o surgimento de um filho saudável. Além da família é importante destacar a influência dos aspectos hereditários e do meio na formação da personalidade e na modalidade de aprendizagem do sujeito. De acordo com Winniccot3, "ela constitui um grupo cuja estrutura relaciona-se com a estrutura da personalidade do indivíduo. A família é o primeiro agrupamento e este é, simplesmente, uma duplicação da estrutura unitária".

O processo educacional não começa na escola. Ele se inicia a partir das primeiras relações afetivas com a mãe, com o pai e com a família. As condições psíquicas para o aprendizado estão em íntima relação com o desenvolvimento dos primeiros vínculos afetivos e, no decorrer deste processo, com o próprio desenvolvimento da personalidade.

A família, como sistema, assume a função psicossocial de proteger seus membros e de favorecer a adaptação à cultura existente. Ela se organiza a partir de demandas, interações e comunicações que ocorrem em seu interior e exterior. Sua estrutura é formada através das normas transacionais que se repetem e informam sobre o modo, o momento e com quem deve relacionar-se cada um de seus membros. As famílias vão criando sua identidade e forma de agir, partindo das ideologias, crenças e histórias anteriores.

Félix Guattari & Rolnik entendem que o capital inflacionou o jeito de amar, fazendo a família implodir e se desterritorializar, ocasionando um movimento de enclausuramento, simbiose e endurecimento nos relacionamentos humanos. A cultura tem produzido novas relações vinculares tendentes à manutenção de fortes laços intrafamiliares, culturalmente herdados e transmitidos, que propiciam uma vida familiar compacta, tendendo ao desenvolvimento de superfixações neuróticas, desajustes emocionais e relativa dificuldade dos filhos em estabelecerem sua própria maturidade adulta e independente, denominada de familiarismo.

 

A FAMILIA E SEUS VÍNCULOS

Existem dois campos psicológicos do vínculo que se intercomunicam simultaneamente e são complementares: um interno - sendo objeto de estudo mais referenciado na Psicanálise e na Psiquiatria - e outro externo - analisado sob o ponto de vista psicossocial. O vínculo interno é fruto de uma percepção subjetiva diretamente ligada aos aspectos externos e visíveis do sujeito, como sua forma de comportar-se, por exemplo. O vínculo externo é visível e tende a ser mais estável, resultado da observação do comportamento que também é gerado por um vínculo interno.

Para a Psicanálise, as relações entre as pessoas podem ser definidas por três tipos de vínculos, ainda que se reconheça a existência de outros nas relações mais complexas. São eles: o de dependência, que traz em seu bojo um modelo intergeracional entre pais e filhos, vínculo este sempre presente no ato de ensinar e se manifesta na concepção de que o professor sabe mais do que o aluno, que deve protegê-lo para que não cometa erros, que pode julgá-lo e determinar a legitimidade dos seus interesses, que pode determinar a comunicação possível com o educando. Outro vínculo é o da cooperação e mutualidade, caracterizado por um modelo intersexual, entre casal e fraterno - irmão e irmã -, além de um vínculo de competição ou rivalidade intergeracional, sexual ou fraterno. Para Bohoslavsky6, esses três tipos de vínculos foram aprendidos no seio da família. "Ela é - ninguém o duvida - o primeiro contexto socializante".

Vínculo "é um conceito instrumental em Psicologia Social que assume determinada estrutura e que é manejável operacionalmente"ª. Ele é sempre social, mesmo sendo com uma só pessoa; por meio da relação com este sujeito, repete-se uma história de vínculos determinados em um tempo e em espaços próprios. Vínculo está diretamente ligado às noções de papel, status e de comunicação. Para compreender o que é vínculo normal "devemos partir da análise de uma das principais características das relações de objeto: o objeto diferenciado e o não diferenciado; isso é, das relações de independência e dependência"2. Quando há alterações do vínculo este pode ser chamado de patológico.

Alicia Fernàndez7, ao analisar a família, considera simultaneamente três níveis: o nível individual centrando-se no paciente, com sua particular inter-relação organismo- corpo- inteligência- desejo; o nível vincular, focalizado na modalidade de circulação do conhecimento e da informação entre os membros da família e o nível dinâmico, aquele destinado a esclarecer o sistema de papéis necessários para o funcionamento e manutenção da estrutura familiar e os modelos de interação possíveis. Esses três níveis mostram que as relações se dão de modo que uma pessoa alimente determinado comportamento em outra, que como analogia faz parte de uma corrente.

Zimerman8 classifica a família em diferentes tipos: "família suficientemente sadia, família simbiótica, família dissociada ou dividida, família narcisista, família com perdas de limites, família depressiva e outros tipos". Ao falar sobre família, enfatiza que não existe uma família perfeitamente sadia à relatividade dos critérios referentes a sadio e patológico, mas enumera algumas características que deverão estar presentes nas famílias consideradas como suficientemente sadias. São elas: predominância da harmonia, uma atmosfera sadia entre as pessoas, que possibilita um crescimento de cada um e de todos. Os pais servem como modelo de identificação para os filhos. Portanto, é fundamental que haja coerência entre o que dizem, fazem e o que realmente são, deixando clara a delimitação de papéis e funções de cada um, bem como o reconhecimento das diferenças existentes entre as pessoas. Só dessa forma estará presente o sentimento de empatiad tão necessário à estruturação familiar.

A família simbiótica, nas palavras de Zimerman8, "possui como principal característica o fato de estarem aparentemente ligados unicamente pelo sentimento de um grande amor entre todos os familiares, mas na verdade nenhum deles ter conseguido uma autêntica emancipação e a sadia conquista de um espaço próprio". Por meio dessa dinâmica tende a ocorrer a infantilização de um ou de mais filhos, por causa do desejo inconsciente de um dos pais de garanti-lo como segurança contra a solidão na sua velhice. Na família dividida ocorre a eleição de subgrupos, em detrimento de uma saudável integração dos seus elementos, havendo o risco de se privilegiar um dos pais ou um dos filhos. Dessa forma, o que não é privilegiado, é excluído, dificultando o convívio nessa família. A família narcisista é aquela cujos membros acreditam serem donos da verdade, possuidores das melhores qualidades e, por isso, assumem uma onipotência em relação às outras pessoas. Geralmente toleram mal qualquer tipo de frustração. As famílias com perdas de limites são aquelas em que falta o reconhecimento das diferenças e manutenção da hierarquia, de papéis, de lugares, posições e funções no grupo familiar. Dessa forma, não há possibilidade de uma estruturação sadia entre os membros, havendo a necessidade de colocação de limites. Na família depressiva, as características principais são a tristeza, a apatia, o pessimismo generalizado e, na maioria das vezes, um culto a familiares mortos, impedindo viver com mais intensidade o presente.

Outros tipos podem ser vistos como:

• obsessiva, prevalecendo uma cobrança excessiva entre os seus membros, buscando a perfeição através do controle exagerado;

• fóbica, em que prevalece a evitação diante de situações novas, que exigem maiores iniciativas;

• paranoide, caracterizada por pessoas muito desconfiadas, por isso, são provocadoras e sensíveis ao extremo;

• sadomasoquista, caracterizada por uma alternância entre amor e ódio recíproco entre os membros;

• hipocondríaca, que cultua doenças, médicos, exames e um abuso de medicamentos.

O que se pode considerar é que existem características que geralmente dizem respeito a famílias com pessoas que apresentam dificuldades de aprendizagem, entre estas características está aquela em que a família não sabe lidar com as diferenças e as vê como aspecto destruidor da sua harmonia. Aquele que se diferencia por alguma razão, costuma ser rechaçado do grupo por ameaçar a sua estrutura e união. Cabe ao psicopedagogo poder provocar uma reflexão sobre o crescimento que buscará trazer como resposta do grupo lidar com o diferente, sendo a diferença tida como algo complementar e não como aquilo que vem para subtrair. O sintoma a ser observado, por exemplo, é a sabotagem do saber por quem o detém, a sua infantilização, falta de confiança em si, dificuldade de aplicar o que sabe, de se tornar autônomo. Pavlovsky apud Fernàndez1 define o lugar atribuído a uma pessoa no grupo familiar da seguinte forma:

"(aspas do autor) A maioria de nós está submersa em um transe hipnótico que remonta aos primeiros anos. Permanecemos nesse estado até que de repente despertamos, e descobrimos que nunca vivemos ou que vivemos induzidos por outros que, por sua vez, foram induzidos por outros. A ideologia é subterrânea. Tudo é como um profundo mal-entendido. Se despertamos de repente, ficamos loucos. Se despertamos pouco a pouco, nos tornamos inevitavelmente revolucionários em algumas de suas múltiplas formas, e então tentamos modificar destinos. Se não despertamos nunca, somos gente normal e não prejudicamos ninguém".

Esse lugar vivenciado inconscientemente é ocupado em geral quando o segredo familiar não é guardado por determinado integrante do grupo ou quando a este é destinado à obrigação de retê-lo de outro membro, causando-lhe dificuldades no mostrar. Ele pode então, entender um conteúdo escolar e ter dificuldade de transpor para o papel ou ter o chamado "branco" na hora da prova. Partindo dessa afirmação, fica ainda mais explícito que a aprendizagem não deve ser desvinculada da vida e nem muito menos restrita ao espaço escolar.

 

O NORMAL E O PATOLÓGICO, POR ONDE ANDAM ESSES LIMITES?

Em seu sentido mais extenso, a expressão normal se refere a padrão, regra de funcionamento, sendo um paradigma que serve de modelo e guia. Em patologia, a palavra normal é melhor traduzida por higidez (de higéia- deusa da mitologia grega que protege a saúde), porque normal é sinônimo de saudável, próprio àquele que goza saúde.

A saúde tem sido definida pela OMSe - como perfeito bem-estar físico, mental e social. Bem-estar pode ser compreendido como estado de satisfação das necessidades; entretanto, as necessidades humanas tendem a se ampliar à medida que são satisfeitas. Assim, o conceito deve ser restrito àquelas necessidades vistas como básicas: trabalho, alimentação, moradia, vestuário, lazer, conhecimento, ambiente adequado, possibilidade de pleno desenvolvimento de suas aptidões naturais, cuidados sanitários, amor, justiça, liberdade e conhecimento da sua dignidade.

A psiquiatrização das diferenças e a psicopatologização de comportamentos de minorias têm sido um obstáculo à delimitação prática entre saúde e doença e servido como elemento de coerção e repressão social. Outra questão preliminar que influi na diferenciação entre normal e patológico se refere aos conceitos de patológico, doença, enfermidade, deficiência, sofrimento, embora contenham elemento de abstração, somente podem ser exercidos sobre casos concretos e pessoas reais. É importante destacar o caráter relativo implícito na diferenciação entre o que é normal e patológico: que é normal em uma pessoa numa certa época de sua vida pode ser anormal noutra. Deve-se destacar, portanto, o fator sociocultural, o grau de instrução, a classe social, o sexo, o papel social e cultural e a subcultura a qual pertença o indivíduo, bem como o despreparo do profissional e a distorção de quem discorre sobre os limites entre saúde e doença mental, influenciado pelo temor de ser ele mesmo um doente.

Para a Psicopatologia existem critérios para distinguir o normal do patológico que se originam da evolução do conhecimento sobre os seres vivos e suas enfermidades, da prática clínica e do progresso do conhecimento da natureza.

Um critério operacional é o subjetivo: a consciência da dor, de estar enfermo, de estar apresentando algum prejuízo pessoal ou um impedimento qualquer é, talvez, o elemento conceitual mais utilizado, outro seria o critério estatístico, que é universalmente utilizado para diagnosticar os casos de deficiências mentais, déficits específicos de aprendizagens, deficiências psicosensoriais, anomalias psicomotoras, enfim, todas as dimensões que possam ser mensuradas, outro critério seria o normativo, que pressupõe a existência de uma norma ideal de funcionamento que sirva como referência ao caso a identificar. Quando se trata de uma situação na qual prepondere o aspecto biológico-individual, este critério é muito valioso. Comportamentos sociopáticos, patologias orgânico-cerebrais, variações anormais do estado de consciência e outras formas de patologias podem ser identificadas com o auxílio desse critério. Quando se emprega o critério normativo deve se levar em conta os interesses sociais, tais como: religiosos, político-ideológicos, de classe social, entre outros. Existe o critério do sofrimento e o anormal seria aquele que, em função do seu estado anômalo, sofre ou faz sofrer a sociedade. Este critério não pode ser absolutizado, porque conduziria ao exagero, evidente por si mesmo, que todo sofrimento fosse patológico. Contudo, é um critério prático que pode e deve ser usado em consonância com os demais, sobre o império do senso comum, embora se saiba que nem todos os casos de patologia psíquica sofram ou façam sofrer e que, sobretudo, a grande maioria do sofrimento não é o produto da patologia mental. Outro critério é o da adaptabilidade, que se refere à capacidade do indivíduo de se ajustar a novas condições de existência, sem perdas ou prejuízos significativos da funcionalidade, promovendo a sua interação com o meio ambiente. Neste sentido, este critério é um valioso instrumento para identificar a normalidade e distinguir a anormalidade. Existe também o critério de exercício da liberdade, já que o desajustamento do mundo imediato, muitas vezes resultará de um plano mais amplo de adaptação, e o sofrimento que daí venha a derivar, somente como tal poderá ser considerado, dentro de uma escala de valores contingente àquele próprio mundo que condena, seja realmente a defesa contra um sofrimento maior, representado pela contradição às suas estruturas valorativas. O critério do exercício da liberdade é o mais possível de ser generalizado para a conceituação do patológico, quer se trate de deficiência ou impedimento, quer se trate do sofrimento inadequado ou de doença mental franca, o que todas essas condições têm em comum, é que o seu objeto está privado de liberdade ou dificuldade de exercê-la.

Diante das considerações anteriores, fica clara a dificuldade encontrada pelos psicopedagogos em delimitar o território normal e patológico nas relações interpessoais e a conduta ética a ser adotada por esses profissionais. Normal e patológico, por onde andam esses limites?

Recordo de atender a família de um paciente de 15 anos, do ensino médio, trazendo a queixa de déficit no aprendizado, notas baixas, falta de interesse para com os estudos, apatia (segundo a educadora parecia perdido), possuía forma sucinta de apresentar conteúdos verbais e escritos, além das ideias serem expressas de modo fragmentado, "sem acrescentar as suas vivências". Contudo, todos - profissionais e familiares - acreditavam no seu potencial, caso houvesse vontade e dedicação por parte dele de reverter o quadro apresentado.

Na avaliação diagnóstica foi observado que, apesar de estar no Período Operatório Formal, seu pensamento hipotético-dedutivo estava pouco desenvolvido, apresentou certa dificuldade de interpretação, o que refletia na escrita, bem como restrita capacidade de combinar elementos e produzir novas e ricas declarações.

Recorrendo à anamnese, aos dados coletados na EFES, de Weiss, e nas sessões com o paciente, constataram-se aspectos singulares da dinâmica familiar: características de família simbiótica e obsessiva: atitudes de superproteção, estímulo à infantilização, cobranças constantes e proibições, demonstrado interesse no cumprimento do papel de filho idealizado pela família, além de um discurso diário de que "Só os fortes chegam lá! O homem tem obrigação de dominar os seus vícios!" Uma mãe impositiva e um pai ausente. O paciente não se sentia respeitado em sua individualidade e diante da cobrança, era intensificada a sua percepção interna de impotência e incapacidade diante do novo. Seu modelo de aprendizagem foi centrado em um vínculo de dependência, o que dificultava o seu crescimento; falta de confiança em si mesmo, uma atitude de sabotagem em relação ao saber, baixa autoestima. Adquirir conhecimento implicava em lidar com situações novas, geradoras de ansiedade, que se tornava ainda mais ameaçadora devido à falta de confiança em si mesmo. Por serem acentuados os erros em um dado momento da sua vida, somado a expectativas familiares para seguir determinada carreira, ocorria um medo de ser avaliado negativamente. Esse fator inibia o pensar e implicava na ausência de um real desejo que o vinculasse afetivamente com o conhecimento, já que tinha internalizado o estigma da deficiência através da dinâmica familiar.

A proposta de intervenção psicopedagógica foi de um trabalho vocacional, que despertou o seu talento e os seus valores. Durante esse processo, o paciente apresentou uma postura criativa, cuidadosa, autônoma, uma capacidade linguística, relacional, de contextualização, de abstração, levando à constatação de que não havia obstáculo epistêmico, apenas epistemofílico. A família (e a escola) foi orientada simultaneamente gerando uma resposta de valorização do paciente e reconhecimento do papel da família no desenvolvimento do educando.

 

MODALIDADE DE APRENDIZAGEM: UM MOLDE RELACIONAL

Cada um de nós tem uma modalidade de aprendizagem particular, uma forma pessoal para aproximar-se do conhecimento e conformar seu saber. Ela é construída desde o nascimento num processo contínuo de conhecer-desconhecer.

A modalidade de aprendizagem é "como uma matriz, um molde, um esquema de operar que vamos utilizando nas diferentes situações de aprendizagem"7. Ela é construída desde o sujeito em seu grupo familiar de acordo com a real experiência de aprendizagem e como esta foi interpretada pelo sujeito e pelos seus pais.

A Psicopedagogia investiga a modalidade de aprendizagem do sujeito, analisando um conjunto de aspectos - conscientes, inconscientes - da ordem da significação, da lógica, da simbólica, da corporeidade e da estética e tem como objetivo principal capacitar a pessoa a tornar-se autora do seu pensamento. Por esse motivo, é imprescindível analisar as influências familiares sobre o aprendizado escolar, pensar no desempenho do aluno, conhecendo o sujeito integralmente, mergulhando no principal núcleo que este faz parte: a família. Os psicopedagogos jamais poderão dispensar a história de vida do sujeito, somada a hereditariedade, já que esses elementos oferecem dados para a compreensão da sua personalidade, o comportamento do indivíduo e sua modalidade de aprendizagem. A modalidade de aprendizagem marcará, segundo Fernàndez9, uma forma particular de relacionar-se, buscar e construir conhecimentos, um posicionamento de sujeito diante de si mesmo como autor de seu pensamento, um modo de descobrir, construir o novo e um modo de fazer próprio ao que é alheio.

A condição essencial para que o sujeito adquira novos conhecimentos é o desejof de aprender. Esse desejo só irá se manifestar se o aprendente for visto como um coparticipante do processo de aprendizagem. Ele deverá ser ativo no sentido de perceber a utilidade do saber para a sua vida. Por esse motivo, a aprendizagem envolve o sujeito autor, objetos a conhecer e o ensinante. Só ocorre ensino quando acontece a aprendizagem. É preciso existir uma verdadeira interação de quem ensina com quem aprende e vice-versa.

Existe uma expectativa da família para com aquele que aprende. Essa expectativa interfere diretamente na aprendizagem; ou seja, existe uma dinâmica de encorajamento diante de novas situações, diante dos desafios, se existe um desejo inconscienteg de que esta pessoa permaneça dependente emocionalmente para sustentar alguns segredos (como, por exemplo, a permanência de um filho em casa para cuidar fisicamente da sua mãe quando ela estiver mais idosa). Dependendo de como aconteça esse vínculo com a aprendizagem, de como esteja a autoestima de quem aprende e de seus interesses conscientes ou não, o sujeito poderá se transformar em um pesquisador atuante, devido a sua curiosidade diante do que lhe é apresentado em situações que não trazem respostas prontas, ou poderá reagir de modo acomodado e pouco desafiador, repetindo comportamentos pouco criativos diante de diferentes estímulos. Sendo assim, as pessoas podem desenvolver uma modalidade fóbica de aprendizagem, em que é fomentado o medo de se lançar diante do novo, de correr riscos e, consequentemente, aparecerá a insegurança em relação ao potencial que possui. Dentro desse contexto, se pode falar de uma aprendizagem patológica conhecida como hipoassimilativa, resultando em um déficit lúdico na disfunção da capacidade criadora. Essa forma exibicionista em que o ensinante se porta ofusca o olhar de quem aprende, já que o outro fica tido como único detentor do saber.

A forma como a pessoa se relaciona com a aprendizagem não é fixa, ou seja, pode mudar ao longo da vida. Entretanto, quando isso não ocorre surgem grupos de modalidades (organizações) que perturbam o aprender10. Segundo a autora, são eles: hipoassimilação-hipoacomodação (déficit lúdico, resultando na disfunção da capacidade criadora); hiperassimilação-hipoacomodação (internalização prematura dos esquemas, por causa do excesso de conteúdos a serem estudados); hipoassimilação-hiperacomodação (a pessoa é incentivada a uma imitação excessiva, sem ter uma experiência prévia) e alternância variável entre assimilação-acomodação, que é o modo saudável de aprender.

Assimilação e acomodação são termos utilizados na teoria genético-cognitiva de Piaget que favorecem a adaptação. Assimilação é o movimento pelo qual os elementos do ambiente alteram-se para serem incorporados à estrutura do organismo. Neste caso, aprender não é apenas memorizar, repetir livro, sem que haja um entendimento efetivo do que se pretende enunciar. É preciso raciocinar sobre o que é falado. Isso implica a utilização de um pensamento mais complexo, próprio do Estágio das Operações Formaish. Para complementar a assimilação, é preciso da acomodação - esse movimento pelo qual o organismo altera-se, de acordo com as características do objeto a ser ingerido -, isso significa que a pessoa só acomoda se consegue colocar em prática o que assimilou e usar desse conhecimento para executar um trabalho. Ao acomodar e assimilar alternadamente, o aprendente altera o estágio cognitivo do desenvolvimento em que se encontra, avançando entre os estágios.

A modalidade de aprendizagem marcará uma forma particular de relacionar-se, buscar e construir conhecimentos, um posicionamento do sujeito diante de si mesmo, como autor de seu pensamento, um modo de descobrir, construir o novo e um modo de fazer próprio ao alheio. Na perspectiva construtivista de Piaget, o começo do conhecimento é a ação do sujeito sobre o objeto, ou seja, o conhecimento humano se constrói na interação homem-meio, sujeito-objeto. Conhecer consiste em operar sobre o real e transformá-lo, a fim de compreendê-lo, algo que se dá a partir da ação do sujeito sobre o objeto de conhecimento. As formas de conhecer são construídas nas trocas com os objetos, tendo uma melhor organização em momentos sucessivos de adaptação ao objeto.

Então, quando essa modalidade de aprendizagem se congela, tornando um padrão nas diversas situações da vida, é que pensamos em algo patológico. Quando a forma de se relacionar com a aprendizagem, com o objeto de conhecimento e com o ensinante se cristaliza, traz como resultado a falta de criatividade no que se faz, tendo como produto apenas algumas repetições do que lhe é apresentado. Outra experiência tida como negativa é quando ocorre uma internalização prematura dos esquemas, como, por exemplo, oferecendo um excesso de conteúdo a ser estudado, sem ter havido uma real assimilação do anterior. Cria-se um processo de hiperassimilação. A hipoacomodação ocorre de modo semelhante, quando não se respeita a necessidade de quem aprende e nem o seu ritmo. Na hiperacomodação, a pessoa é incentivada a uma imitação excessiva, sem ter uma experiência prévia. Sabe-se que ninguém aprende do mesmo jeito.

A forma particular de relacionar-se, buscar e construir o conhecimento interessa diretamente ao trabalho do psicopedagogo, uma vez que ele deverá ser um facilitador para que o sujeito possa posicionar-se diante de si mesmo como autor do seu pensamento. É importante realizar esse trabalho sempre com um olhar voltado para a família, dentro de uma visão sistêmicai, levando em conta três níveis: o individual, o vincular e o dinâmico, que se manifestam considerando as imagens, as sensações e as ideias de cada pessoa. No nível particular é levada em consideração a subjetividade do sujeito em relação ao mundo que a cerca. Leva-se em consideração o modo em que manifesta a sua expressão corporal, verbal, seu grau de curiosidade, a sua história em relação à aprendizagem e mediante a dinâmica familiarj. Com relação ao nível vincular, o psicopedagogo deve verificar se o que é dito pela família pode ser contestado pelo paciente ou se é imposto como verdade, se nos vínculos é abolida a diferença ou se sabem respeitar a singularidade, ou ao contrário, se através destes é cultuada a submissão, a falta de diálogo. No caso de participarem de uma dependência mútua, o novo não será bem-vindo e não haverá um espaço para o risco e para a vivência de novas experiências. Outro aspecto a ser considerado é quanto à metodologia utilizada para educar, se através de sanções ou prêmios. Se alguns assuntos considerados tabus são ditos e como isso acontece ou tornam-se proibidos. Finalmente, o nível dinâmico refere-se propriamente à dinâmica familiar, aos papéis que são atribuídos e desempenhados para a manutenção dos vínculos e, consequentemente, da sua estrutura. Todos esses fatores interferem nos relacionamentos posteriores a serem estabelecidos pelo aprendente. Isso se explica porque ele internaliza esse conjunto de relações, traduzindo-se, por exemplo, em pais unidos ou distanciados, como figuras protetoras ou protegidas, sem, contudo, ser a relação familiar o único determinante para a sua forma de pensar e agir.

A modalidade de aprendizagem é construída nas relações interpessoais estabelecidas. Numa perspectiva Piagetiana, valoriza-se a formação do sujeito no grupo. A inteligência humana somente se desenvolve no indivíduo em função de interações sociais que são, em geral, demasiadamente negligenciadas11. Apesar de não ter se detido longamente sobre essa questão, reconheceu o papel do grupo social no desenvolvimento da pessoa, entendendo social como tendências hereditárias que nos levam à vida em comum e à imitação; e o desenvolvimento intelectual sendo obra da sociedade e do indivíduo.

Vygotsky apud Grossi & Bordin12 reafirmam o valor do grupo social, tal como a família, quando nos apresenta o novo quadro epistêmico da educação, incluindo o outro no processo de conhecimento. Isso porque é através das relações que se vai construindo um significado para os fatos. Com a mediação é que se aprende até mesmo a dar os primeiros passos, a falar e a estruturar o pensamento. Essa mediação, além de interferir na formação da inteligência, estando a criança em contato também com objetos do mundo físico, é responsável por promover a troca afetiva, de modo geral. É através dessa rede de relações que se vai desenvolvendo a personalidade. Dessa forma, é realçada a presença dos pais, professores, parentes, amigos nas diversas circunstâncias. Grossi & Bordin12 afirmam que "a aprendizagem só existe na circulação de saberes e conhecimentos, entre ensinante e aprendente, entre o sujeito que tenta compreender o mundo e o outro que se interpõe entre ambos,", ou seja, é algo dialético, onde só ensina quem aprende. E tamanha é a responsabilidade de quem fica na posição de ensinante ou modelo.

 

INFLUÊNCIA DA FAMÍLIA NO DESEMPENHO ESCOLAR

Já é sabido que, algumas famílias de crianças que apresentam transtornos de aprendizagem levam mais tempo para tomar decisões, em comparação às famílias de crianças ditas normais, o que levaria a adiar a resolução dos conflitos e a uma falta de habilidade para resolver problemas. NcWhrirter apud Scoz (1987) afirma ainda que, quando os pais de crianças com dificuldades de aprendizagem constituem um grupo heterogêneo quanto à inteligência, valores afetivos são comuns a todos os seguintes sentimentos: sentimentos de confusão, frustração, raiva, crítica, culpa e intolerância. Na visão do mesmo autor, o sentimento de confusão se traduz na não compreensão do sintoma do filho, devido a sua instabilidade no rendimento escolar. Por isso, faz-se necessário que os psicopedagogos utilizem uma linguagem acessível no sentido de esclarecer a problemática citada aos pais. À medida que não compreendem, possuem maior resistência ao lidarem com o comportamento desse filho, gerando a raiva, por sentirem-se impotentes. Por isso, a intervenção do terapeuta para com a família se torna fundamental no tratamento. A raiva pode ser transformada em crítica aos profissionais, professores por não se perceberem capazes de darem conta da situação enquanto responsáveis. Outra possibilidade é de se culparem pela pouca produção da criança e paralisarem-se diante da situação. Há também a intolerância, por não serem preenchidas as suas expectativas com relação ao boletim escolar desse filho. Torna-se importante verificar o que esse fato comunica, uma vez que a desmotivação desse aluno pode estar relacionada a uma dificuldade de aprendizagem e ao mecanismo de defesak denominado fuga ou evitação, para não tomar contato com a frustração. Quando é possível aos pais aceitarem as diferenças, são geradas posturas mais democráticas por entenderem que as contradições não são vistas como ataques ao outro, mas como uma manifestação da individualidade de cada ser, que se complementa em sua diversidade.

"As famílias facilitadoras da autoria de pensamento mostram características marcadamente alteritárias, como: permissão busca e valorização da diferença; possibilidade e promoção de escolha por parte do aprendente, diferente da dos ensinantes. Nessas famílias, a diferença não é entendida como um ataque ao outro e a diferença é trabalhada com base no afeto positivo, ou seja, é possível opinar e discordar sem causar conflito. (Munhoz, Scoz, 2007, p.152)

Essa afirmação justifica a necessidade de destacar a família como o principal grupo social onde o sujeito está inserido, porque os principais ensinantes são os pais. O modo de aprender pode se dar de acordo com os vínculos estabelecidos com a forma que circula o conhecimento na família. O psicopedagogo deverá captar essa dinâmica familiar, observar como o paciente é visto pela família, como todos lidam com as situações divergentes, se esse sujeito manifesta os seus sentimentos ou opiniões e se é ouvido.

A criança pode depositar na professora ou na escola sentimentos agressivos originariamente destinados às figuras parentais (aos pais que ela têm representados dentro de si) e em sua imaginação sentir-se com muito medo de ir à escola ou de fracassar - conceito psicanalítico de transferêncial). Então a professora, estando no papel de autoridade, traz a simbologia do que é vivenciado em casa e do registro em que se processa a experiência vincular com os pais. Nesse momento entra em questão o aluno como um todo integrado, fazendo parte do seu ser organismo, corpo, inteligência e desejo.

Vale lembrar que a escola é uma extensão da sua casa, no sentido de que as relações tenderão a ser reproduzidas e projetadas na figura do professor, que naquele papel representa a autoridade. Se esse filho não se percebe aceito e respeitado por quem faz parte da sua família, dificilmente se verá como tal na escola, tendendo a evitar se expor, não sendo autor dos seus próprios pensamentos por medo da crítica ou por não exercitar a capacidade de julgamento e inferência. Cabe ao psicopedagogo clarear os pontos obscuros estabelecidos nas relações para que cada um se veja como corresponsável pelo outro e não apenas delegue responsabilidades, elegendo um depositário para a ansiedade de todo o grupo.

Para que a pessoa se considere autora do seu pensamento, é necessário que lhe seja oferecida a oportunidade para que possa experienciar novas situações, correr riscos de forma saudável. Desde criança, por meio das brincadeiras, jogos e contato com os objetos do mundo que a rodeia, essa possibilidade pode se concretizar ou não, dependendo da permissão que lhe for dada pelos pais. Só dessa forma, poderá enfrentar os obstáculos e, com o apoio necessário, construir uma autoestima positiva, baseada na confiança em si mesma. Contudo, se diante do erro, ela for recriminada frequentemente e se esses erros são sempre realçados em detrimento dos acertos, descobrirem algo pode se tornar sinônimo de castigo e repreensão e, portanto, de algo que gera sofrimento. O problema de aprendizagem pode ser originado do fato do sujeito não confiar na sua capacidade e, consequentemente, não ter autoria de pensamentom. Na maioria das vezes, fica fixado no resultado e não no processo como um referencial para o seu crescimento. Portanto, o significado dado à aprendizagem pelo grupo familiar, o modo como os ensinantes desejam essa criança como aprendente, irão influenciar na construção da modalidade de aprendizagem. A autoria de pensamento é condição para a autonomia e a autonomian favorece a autoria. A dificuldade de aprendizagem pode ser a causa de um transtorno específico por parte do sujeito ou uma linguagem para dar conta de um meio familiar disfuncionalº. A discriminação de um pólo ou outro para compreensão de como ocorre a aprendizagem do paciente é um dos principais objetivos do diagnóstico psicopedagógico. As coerções excessivas e as mensagens negativas só servirão para exacerbar os conflitos, ao passo que o sujeito precisa, nesse momento, de um suporte afetivo dos pais e pessoas que o rodeiam, para que possa se sentir seguro, para enfrentar os obstáculos, e, consequentemente, motivado.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A escola estabelece uma relação que pode ser vista como uma continuidade dos vínculos familiares, quando se diz, por exemplo, que no ensino a professora é a segunda mãe. O vínculo familiar, apesar de não ser o único responsável pelo desenvolvimento das potencialidades humanas, é tido como o principal por ser o primeiro formador da matriz de identidade e, consequentemente, interfere no olhar do indivíduo sobre o mundo.

O vínculo escolar acaba tendo a mesma natureza do familiar, porque os professores ocupam o papel de autoridade. Existe uma continuidade entre o ensino e seus vínculos arcaicos, apreendidos no seio da família.

A relação familiar não é só o vínculo que leva ao desenvolvimento das possibilidades humanas, mas que enquanto vínculo,que socializa é, também, um vínculo potencialmente alienante; daí pode concluir que o ensino prolonga e sistematiza esses aspectos polares e realça o que começa a se formar no lar.

É preciso, portanto, compreender como se processa toda essa dinâmica, avaliar se ocorre coerência entre o discurso dos atores com o que é demonstrado pela família. O discurso envolve aspectos inconscientes, segredos familiares e, provavelmente, sintomas que fazem parte de todo um grupo e que se entrecruzam com as histórias individuais desse sujeito eleito como figura central de toda a problemática familiar.

O trabalho psicopedagógico precisa direcionar o seu olhar e o de outrem, neste caso, o da família, para a saúde em detrimento da doença, no sentido de buscar o potencial que existe em cada pessoa e não enfatizar a falta, entendendo que a origem do problema de aprendizagem não se encontra na estrutura individual. "O sintoma se ancora em uma rede particular de vínculos familiares, que se entrecruzam com uma também particular estrutura individual. A criança suporta a dificuldade, porém necessária, e dialeticamente os outros dão o sentido"7.

A escuta clínica do discurso, da comunicação e da linguagem estabelecidas na família, através da ótica da epistemologia convergente - como referencial teórico - possibilita a compreensão da modalidade de aprendizagem do sujeito. Isto porque o tipo de comunicação decorrente da relação vincular que a pessoa mantém com o seu grupo familiar se repetirá, muitas vezes, involuntariamente, nas situações escolares.

 

REFERÊNCIAS

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2. Pichon-Rivière E. Teoria do vínculo. São Paulo: Martins Fontes; 1986.         [ Links ]

3. Winnicott DW. Tudo começa em casa. São Paulo:Martins Fontes; 1989.         [ Links ]

4. Freud S. A Dinâmica da Transferência. In: Edição Standard Brasileira das obras completas de Sigmund Freud. vol. 12. Rio de Janeiro: Imago; 1980.         [ Links ]

5. Guattari F, Rolnik S. Micropolítica: cartografias do desejo. Petrópolis: Vozes; 2005.         [ Links ]

6. Bohoslavsky R. A psicopatologia do vínculo. In: Patto MHS, ed. Introdução à Psicologia Escolar. São Paulo: Casa do Psicólogo; 1997.         [ Links ]

7. Fernàndez A. A inteligência aprisionada: abordagem psicopedagógica clínica da criança e sua família. Porto Alegre: Artmed; 1991.         [ Links ]

8. Zimerman GL. Velhice: aspectos biopsicossociais. Porto Alegre: Artmed; 2000.         [ Links ]

9. Fernàndez A. Os idiomas do aprendente. Porto Alegre: Artmed; 2001.         [ Links ]

10. Fernàndez A. O saber em jogo: a Psicopedagogia propiciando autorias de pensamento. Porto Alegre: Artmed; 2001.         [ Links ]

11. Wadsworth JB. Inteligência e afetividade da criança na teoria de Jean Piaget. São Paulo: Pioneira; 1997.         [ Links ]

12. Grossi E, Bordin J. Paixão de aprender. Petrópolis: Vozes; 1999.         [ Links ]

13. Cabral A, Nick E. Dicionário técnico de Psicologia. São Paulo: Cultrix; 2001.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Av. Independência, 2310/902
São Mateus - Juiz de Fora, MG, Brasil
CEP 36025-290
E-mail: ap.decnop@uol.com.br

Artigo recebido: 12/2/2011
Aprovado: 29/3/2011

 

 

O artigo foi baseado na experiência da autora como psicopedagoga clínica, tendo como foco a obtenção do título de especialista em Psicopedagogia Clínica e Institucional, realizado na instituição Estácio de Sá de Juiz de Fora, coordenado por Helena Delage. Trabalho realizado na Faculdade Estácio de Sá de Juiz de Fora, MG, Brasil.
a Adotar como próprias as ideias, normas ou valores de outra pessoa ou da sociedade, embora o processo de internalização seja realizado inconscientemente, quer dizer, a pessoa que internaliza não pensa nem sabe o que faz. Em Psicanálise, o Superego é o produto e representante da internalização das normas e padrões parentais.
b É um processo descrito por Carl Gustav Jung através do qual o ser humano evolui de um estado infantil de identificação para um estado de maior diferenciação, o que implica uma ampliação da consciência.
c Relação calorosa e amiga com a mãe ou com aquela que a substitui (Dicionário Aurélio).
d Refere-se à condição de conseguir se colocar no lugar do outro.
e É uma agência especializada em saúde, fundada em 7/4/1948 e subordinada à Organização das Nações Unidas. Sua sede é em Genebra, na Suíça.
f Segundo a Psicanálise é a representação de algo que a pessoa considera meio de satisfação ou gratificação. O sentimento de que uma coisa ou condição determinada satisfará ou aliviará uma necessidade ou carência.
g Qualquer processo mental cujo funcionamento pode ser deduzido do comportamento de uma pessoa, mas ao qual essa pessoa continua estranha, sendo incapaz de o examinar e relatar.
h É o raciocínio lógico que em média começa em torno dos onze ou doze anos, necessário à solução de todas as classes de problemas, segundo Piaget e os estágios de desenvolvimento.
i É a ideia de que todo comportamento, por mais isolado que possa parecer, está em interação com o contexto que o cerca, e pode ser mantido, ampliando ou atenuando por retroações do ambiente. Surgiu no século XX contra o pensamento reducionista. Visão do mundo.
j Qualificação de um ponto de vista que considera os fenômenos psíquicos como resultantes do conflito e da composição de forças que exercem uma certa pressão, sendo essas forças, em última análise, de origem pulsional.
k Termo psicológico que designa diferentes tipos de operações em que a defesa pode ser especificada. Os mecanismos predominantes diferem segundo o tipo de afecção considerado, a etapa genética, o grau de elaboração do conflito defensivo.
l Designa em Psicanálise o processo pelo qual os desejos inconscientes se atualizam sobre determinados objetos no quadro de um certo tipo de relação estabelecida com eles e, eminentemente, no quadro da relação analítica.
m É definida por Fernàndez como o processo e o ato de produção de sentidos e de reconhecimento de si mesmo como participante de tal produção.
n Na terminologia psicológica, atribui-se a autonomia à parte de um todo muito mais vasto que, em relação a esse todo, funciona com relativa independência.
o Família disfuncional é aquela que responde às exigências internas e externas da mudança, padronizando seu funcionamento. Ocorre um bloqueio no processo de comunicação familiar.

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