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Revista Psicopedagogia

Print version ISSN 0103-8486

Rev. psicopedag. vol.29 no.90 São Paulo  2012

 

ARTIGO ORIGINAL

 

A produção subjetiva da violência nas escolas: indicador de sentido para avaliação e desenvolvimento de política educacional

 

The subjective production of school violence: direction indicator for evaluation and development of educational policy

 

 

Vannúzia Leal Andrade PeresI; Luiz Roberto Rodrigues MartinsII

IProfessora da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO), Doutora em Psicologia e Pós-doutoranda em Educação pela Universidade de Brasília (UnB), Brasília, DF, Brasil
IIEspecialista em Políticas Públicas, trabalha no Ministério da Educação (DEAVE/SECADE) e faz Doutorado em Educação na Universidade de Brasília (UnB), Brasília, DF, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Os autores fazem uma reflexão sobre a produção subjetiva da violência nas escolas, sabidamente envolvida, de forma recursiva e contraditória, com a subjetividade social. Orientados pela Epistemologia Qualitativa analisam informações construídas no estágio básico de alunos de psicologia escolar da Pontifícia Universidade Católica de Goiás e, como resultado, apresentam o indicador de que as políticas públicas, para serem efetivas, precisam responder às necessidades singulares da escola e serem inseridas em uma ética da responsabilidade, isto é, provocarem o respeito às diferenças e a participação ativa dos sujeitos nos seus processos de aprendizagem e de desenvolvimento.

Unitermos: Políticas públicas. Educação. Violência. Subjetividade.


SUMMARY

The authors make a reflection about the subjective production of school violence, knowingly involved, recursively and contradictory, with social subjectivity. Guided by Qualitative Epistemology analyze information built into the Basic Training of pupils of school psychology of the Pontifícia Universidade Católica de Goiás, and as a result have the indicator that public policies, to be effective, need to respond to the unique needs of the school and be inserted in an ethic of responsibility, that is, cause the respect for differences and the active participation of the subjects in their learning and development processes.

Key words: Public policy. Education. Violence. Subjectivity.


 

 

INTRODUÇÃO

Já não é mais novidade que a violência nas escolas é um fenômeno mundial.

Para isso é só observar as notícias veiculadas nos meios de comunicação de massa, especialmente a televisão. O problema é que pouco se sabe como essa violência é constituída na realidade social das diferentes escolas ou como estaria envolvida com as produções subjetivas de diferentes crianças, adolescentes e seus professores sobre essa realidade.

Em uma abordagem complexa e subjetiva do psiquismo humano1, o primeiro passo para a explicação dessa problemática é uma análise de como o sistema econômico, o sistema político-social e as ideologias vigentes estão sendo mediados por professores e alunos no cotidiano da escola. Essa abordagem permite compreender que os fatos sociais, econômicos e culturais que constituem a realidade social da escola perpassam pela constituição dos processos psicológicos de professores e alunos, não de forma imediata, mas por meio de suas produções subjetivas, que incluem suas produções cognitivo-emocionais geradas e expressas no espaço escolar.

Então, podemos perguntar: como o processo ensino/aprendizagem tem envolvido os professores e seus alunos na produção subjetiva do espaço social da escola, que ao mesmo tempo é seu espaço social de constituição psicológica?

A subjetividade integra dialeticamente o individual e o social, implicando, para isso, o sujeito com sua história e o espaço social que o constitui e que é por ele constituído em um processo recursivo2.

O que isso significa, senão que há uma dialética entre o sujeito e seu espaço social, no qual, com sua ação, gera sua psique? Nesse aspecto é necessário refletir sobre a qualidade do diálogo e da relação dialética entre aqueles que atuam nas escolas, especialmente professores e alunos, e sobre como esses processos podem estar complexa e subjetivamente envolvidos com a constituição e a expressão da violência entre eles.

Ao articular emoções, processos simbólicos e significados, para a compreensão da organização psicológica do sujeito1-3 desenvolve outro conceito, o de "sentido subjetivo" que nos permite ir mais além e fazermos, finalmente, a seguinte pergunta: que registros complexos das experiências de relação na escola poderiam estar envolvidos na constituição psicológica dos alunos e dos professores e na sua produção subjetiva da violência?

Entretanto, a ênfase, ainda hoje, é nas funções cognitivas mediadas por signos supostamente internalizados, deixando-se de lado a expressão simbólico-emocional do sujeito, fruto de sua imaginação, de sua fantasia e de sua emoção, o que confere à psique um caráter gerativo e não reprodutivo1.

Em síntese, de acordo com esse autor1 podemos dizer que a ênfase no cognitivo, mediado por aspectos da vida objetiva, de forma direta e imediata, dificulta o desenvolvimento de um modelo teórico que explique como as emoções, os processos simbólicos e os significados estão articulados na organização psicológica do sujeito e na sua produção subjetiva de seus cenários sociais, dentre eles, seu cenário social escolar, violento, ou não.

Afinal, podemos mesmo dizer que a falta desse modelo tem dificultado explicar como o cenário escolar, no qual o foco deveria ser a aprendizagem e o desenvolvimento do sujeito, é, ao contrário, palco de produção de violências, em níveis cada vez maiores.

 

MÉTODO

Orientados pela epistemologia qualitativa3 e com o intuito de construir indicador de sentido da produção da violência nas escolas, analisamos informações organizadas no decorrer da realização de uma disciplina da área de desenvolvimento humano, denominada "Estágio Básico em Psicologia Escolar", por nós ministrada em três semestres consecutivos na PUC-Goiás.

A construção do indicador de sentido possibilita compreender as relações da violência com o sistema escolar e seu envolvimento com as produções subjetivas de alunos e professores, por sua vez envolvidas com a cultura, o momento histórico e com as representações sociais do processo ensino/aprendizagem, presentes em suas expressões e conflitos relacionais no cenário escolar.

O método qualitativo, fundamentado na epistemologia qualitativa para o estudo da subjetividade, portanto da realidade complexa e sistêmica do psiquismo humano, permite a construção e interpretação das informações e a abertura de novas zonas de sentido do fenômeno1,3.

Nesse caso, a construção das informações sobre a organização sistêmica e plurideterminada, de escolas conveniadas com a PUC-Goiás, abrangeu a abordagem das relações interpessoais, da organização do cenário da sala de aula, das práticas pedagógicas e da diversidade dos processos de aprendizagem, dentre outros, envolvendo a comunicação com professores e alunos das diferentes escolas, inclusive de escolas consideradas tradicionais, com disciplina rígida e conceitos ainda limitados de aprendizagem e desenvolvimento humano.

Para isso foram feitas, em média, oito visitas consecutivas dos estagiários de psicologia a cada escola-campo, momentos esses de observações interativas seguidas de conversação com alunos e professores, esta última mediada por atividades como redação, desenhos, discussão de temas, análise de filmes, complementação de frases, conforme disponibilidade e interesse de ambos.

Nesse processo, indo mais além, os estagiários desenvolveram ações educativas compatíveis com a proposta de uma psicologia escolar cujo foco é a aprendizagem e o desenvolvimento humano4, levando em conta a diversidade desses processos em cada sujeito concreto. Assim vieram ajudar na criação de espaços de reflexão e de expressão criativa de alunos e professores no tocante às suas necessidades e motivações para o processo ensino/aprendizagem.

A construção desse espaço de reflexão e expressão das necessidades de professores e alunos, especialmente de adolescentes considerados indisciplinados e incompetentes, teve como ponto de partida ou como "disparador", diferentes instrumentos, por exemplo, a estória de Ruth Rocha, Quando a Escola é de Vidro, na qual a autora aborda a problemática da falta de liberdade de expressão criativa de alunos que são requisitados a seguir prescrições padronizadas. A metodologia consistiu em os alunos ouvirem a estória e se expressarem sobre ela de diferentes formas, o que possibilitou produzirem novos sentidos subjetivos de sua relação com os professores e a escola.

Em outra oportunidade foram construídos espaços lúdicos, nos quais as crianças puderam expressar criativamente as suas visões da escola atual e imaginarem outra escola, a "escola dos sonhos", ambas concretizadas por meio da elaboração de cartazes temáticos, expostos para discussões abertas e dramatizações.

 

RESULTADOS

A análise construtivo-interpretativa das informações permitiu reconhecermos a necessidade de articularmos dois grandes eixos temáticos envolvidos com a produção subjetiva da violência nas escolas: a necessidade do sujeito de expressar sua singularidade na escola; e a subjetividade da escola e limitações da política educacional.

A produção subjetiva da violência nas escolas e a necessidade do sujeito de expressar sua singularidade

Reconhecer o envolvimento da subjetividade no fenômeno da violência nas escolas afirma o caráter construtivo-interpretativo da produção do conhecimento e, portanto, da necessidade dos pesquisadores articularem os múltiplos aspectos sociais e psicológicos que compõem a constituição da realidade escolar3.

A nossa interpretação da violência expressa pelos sujeitos nas escolas não prescindiu, contudo, de outros referenciais que perpassaram e perpassam por nossas experiências e reflexões teóricas a respeito do tema, por exemplo, a forma como a nossa sociedade política o tem tratado ao longo do tempo.

O fato é que a partir de nossa interpretação da produção subjetiva da violência nas escolas vislumbramos a possibilidade da abertura de uma nova "zona de ação" nessa realidade - a implementação de política educacional que viabilize a expressão singular dos alunos, isto é, de seus pensamentos e emoções e, portanto, de sua diversidade no processo ensino/aprendizagem.

No processo interpretativo das informações, pudemos inferir sobre elementos que estariam envolvendo a constituição do psiquismo social nas escolas, dentre eles a impossibilidade dos alunos expressarem sua singularidade, já que são muitas vezes rotulados e reprimidos por meio de práticas pedagógicas supostamente autoritárias e despersonalizantes.

Em um primeiro momento, em ambas as realidades, a da escola pública e a da escola privada, o que chama a nossa atenção é a demanda explicitamente manifesta por um psicólogo que se compatibilize com os rótulos, com as prescrições e, portanto, com a dificuldade das instituições de ensino romperem com a prática da medicalização da educação, hoje difundida em larga escala.

Nesse cenário, a discussão sobre a produção subjetiva de alunos e professores, no processo ensino/aprendizagem, em cada escola concreta, não é sequer imaginada.

Assim, torna-se difícil avançar na reflexão sobre os aspectos cognitivo-emocionais possivelmente envolvidos na produção da indisciplina e da chamada dificuldade de aprendizagem, tão presentes nas queixas das escolas e supostamente envolvidas na produção subjetiva da violência entre alunos e professores.

De forma indireta, entretanto, é visível como as práticas pedagógicas não têm permitido a diferentes crianças e adolescentes expressarem suas necessidades cognitivo/afetivas nas salas de aula e refletirem sobre emoções hostis produzidas e expressas por eles no dia-a-dia da vida da escola.

A respeito disso, pôde-se supor que, enquanto alunos têm produzido um sentido subjetivo de que há um vazio na escola ou "o nada", notadamente com relação à expressão de suas necessidades e à constituição de vínculos afetivos com os professores, estes, por sua vez, têm produzido um sentido subjetivo de que os alunos são indisciplinados ou difíceis de controlar, não havendo como se envolverem afetivamente com eles no processo ensino aprendizagem.

Inferimos que, ao não compreender a diversidade implicada no processo de aprendizagem, os professores se percebem impossibilitados de transformar a realidade da escola, se transformando. Já os alunos, embora declarem o desejo de aprender, contraditoriamente não conseguem gerar motivação para o estudo e, portanto, motivação para participarem ativamente da constituição da sala de aula como espaço de diálogo e de aprendizagem.

Sem dúvida podemos supor que são esses alguns dos elementos de sentido envolvidos com a produção subjetiva da violência nas escolas. Outros dariam maior visibilidade ao fenômeno, como o fato de que na escola dos sonhos, imaginada e fantasiada artisticamente pelas crianças, elas teriam o direito de brincar, dramatizar e criar.

Então, não seriam esses os elementos que ajudariam essas crianças a gerar aspectos constitutivos de uma psique livre e criativa? A verdade é que, nas suas expressões criativas sobre essa escola dos sonhos, uma escola sem violência, as crianças expressam, imaginativamente, seu repúdio às representações da escola construídas para elas, cotidianamente apresentadas pela mídia e às quais elas próprias são violentamente expostas.

Outro elemento dessa complexa produção subjetiva da violência são as emoções contraditórias dos adolescentes sobre a escola: uma ruim, anterior à vivência emocional de uma nova produção subjetiva sobre ela; e a outra boa, provocada pela vivência emocional sobre a Escola de Vidro, ao se inspirarem nos alunos/personagens dessa escola, os quais romperam com a opressão que lhes era imposta e expressaram livremente seus interesses e necessidades.

A partir daí podemos problematizar tanto sobre a qualidade do processo ensino/aprendizagem nas nossas escolas quanto sobre sua repercussão no desenvolvimento de seus alunos e da sociedade como um todo.

Não será necessário construir um novo caminho para a educação? Quem sabe um caminho para a expressão de subjetividades e, consequentemente, para a realização de ações efetivas que legitimem diferentes processos de desenvolvimento humano no espaço escolar. O grande desafio será reconhecer que as escolas necessitam de políticas públicas que levem em conta a subjetividade social implicada com a produção subjetiva da violência entre alunos e professores.

Entretanto, ainda hoje, as políticas educacionais são elaboradas sem levarem em conta essa necessidade, apresentando limitações que precisam ser criticamente analisadas e problematizadas.

A subjetividade social da escola e limitações da política educacional

Antes de analisar as políticas públicas educacionais relacionadas ao fenômeno da violência, temos que considerar uma questão central que modificou todo o contexto educacional brasileiro: o direito de acesso ao ensino fundamental para todas as crianças e adolescentes, prescrito na Constituição de 1988. A inclusão desse direito buscou provocar mudanças sociais para reduzir as desigualdades socioeconômicas e incorporar segmentos historicamente excluídos dos processos educacionais.

Se por um lado, essa política de inclusão permitiu a ampliação do acesso à escola, por outro, submeteu os sistemas de ensino a condições de precarização no momento em que, em boa parte dos sistemas, foram mantidos o mesmo número de professores e as mesmas condições materiais, comprometendo a qualidade da educação em função das condições de seu financiamento. O total de matrículas, de 1975 a 2002, cresceu 71,5%, passando de 19,5 milhões para 33 milhões de estudantes5.

Até a década de 1970, a escola pública atendia a um pequeno número de alunos, os quais, na sua maioria, provinham da classe média. As novas exigências constitucionais de inclusão escolar conduziram à construção de alternativas para atender a um número bem maior de crianças em idade escolar que se encontravam fora da escola.

É nesse contexto de universalização do direito à educação que se situam as políticas educacionais atuais, a universalização trouxe vantagens do ponto de vista da garantia do direito à educação e, como consequência direta, redução na qualidade do ensino público.

As políticas universais, por sua própria natureza padronizadora, não favorecem ao atendimento das especificidades de cada território em que são instaladas. Por outro lado, o estudo dos modelos para elaboração de política educacional nos remete a questões político-ideológicas como fundamento para a ação do Estado em sua intervenção na sociedade e na instituição escolar em particular. A escola torna-se o fim de uma longa e complexa cadeia de relações que se inicia na formulação de leis, decretos, portarias que, para serem concretizados, passam por longos trâmites no âmbito federal, estadual ou municipal até chegar de fato aos seus beneficiários finais: a comunidade escolar, especialmente, os alunos da escola.

De um modo geral, a análise da dimensão subjetiva da política pública educacional, como instrumento de intervenção no espaço social da escola, busca compreender a reação da comunidade escolar em relação aos objetivos pretendidos pela política e suas possibilidades de gerar bem estar no espaço concreto da escola, resolvendo os problemas vividos nessa comunidade em relação aos seus desejos, expectativas e necessidades que muitas vezes são explicitados e, em outras vezes, permanecem ocultos ou não expressos claramente por não serem facilmente identificáveis.

Assim, a política pública educacional tem sido uma interferência causada por demandas geralmente externas à realidade da comunidade escolar. Dessa forma, sua imposição pode gerar diferentes interpretações e reações da comunidade e despertar movimentos favoráveis ou desfavoráveis à sua institucionalização.

Segundo Gonçalves6, seriam várias as razões não facilmente identificáveis da dimensão subjetiva desses movimentos e que precisa ser compreendida na sua gênese, nos seus processos de constituição e nas suas possibilidades e limites de transformação.

Gonçalves refere-se a uma compreensão permitida pela metodologia do psicólogo soviético, Lev Vygotsky que recorre "à categoria historicidade, assim como às categorias do psiquismo como chave para a compreensão da dimensão subjetiva"6.

Uma política educacional pode, na realidade concreta da escola, perder seu significado original se a comunidade produzir com relação a ela sentidos subjetivos diferenciados que a façam resistir a sua implantação. Assim, a subjetividade produzida no espaço social da escola é um sistema complexo, por ser constituída na interrelação da subjetividade individual e social, ou seja, "é impossível distinguir entre os processos de ordem social, nos quais se produz a ação individual e os processos psíquicos individuais que são constituintes dessa ação"7.

Nas tensões geradas pela intenção universalizante, expressa pelos objetivos da política pública, em confronto com as necessidades específicas da comunidade escolar, é que são produzidos os sentidos subjetivos com relação às ações governamentais previstas na política. O esforço homogeneizador proposto na política pública entra em desacordo com a subjetividade social da escola, fazendo com que os efeitos transformacionais esperados da política, muitas vezes, se reduzam significativamente ou nem sejam verdadeiramente alcançados.

A configuração subjetiva do espaço social da escola não é indiferente às condições dos sujeitos que convivem nesse espaço. Tanto pode ser propícia ao desenvolvimento humano criativo que favoreça a convivência pacífica entre os membros da comunidade escolar, quanto pode refletir os conflitos e dificuldades relacionais daqueles que convivem na escola. As questões relativas à discriminação e ao preconceito podem negar a aceitação da diversidade e, com isso, criar uma condição de conflito de valores e de crenças que forjam fatores propícios para o desencadeamento da violência simbólica e não-simbólica, reduzindo a possibilidade de convivência produtiva entre professores, funcionários, gestores e pais de alunos no espaço social da escola.

A polarização entre essas duas visões extremas serve para ilustrar a importância do reconhecimento da complexidade sistêmica dos diferentes espaços sociais que se interpenetram na subjetividade social da escola, constituída pela rede de relações estabelecidas na família, no bairro, na igreja, no espaço profissional e em outros espaços sociais de convivência. A constituição dos sentidos subjetivos com relação à violência escolar, no contexto social da escola, possui proximidade com o reconhecimento, ou não, das potencialidades dos sujeitos e de suas relações afetivas e simbólicas.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É na perspectiva do reconhecimento da singularidade que a escola pode se constituir como espaço favorável ao despertar de sujeitos ativos, criativos e autônomos, responsáveis por seu próprio percurso histórico de vida. A ação educativa passa a ser uma ação em que se educa junto ao outro e com o outro. Para isso, é preciso abandonar a escola como "fábrica do processamento cognitivo de informações" para dar lugar ao espaço de transformação de indivíduos despersonalizados em sujeitos capazes de produzir novos sentidos de vida em relação a si mesmos e em relação ao outro e, dessa forma, exercer sua autonomia.

Esse tipo de ética da responsabilidade poderia ser o ponto de partida para outro tipo de política pública, focada no desenvolvimento humano, na humanização da escola como um espaço de convivência e de respeito à singularidade do outro. Somente dessa forma a escola iria favorecer a produção de sentidos subjetivos mobilizadores de múltiplas aprendizagens: aprender a sentir, a fazer, a ser e a conviver. Seria nessa perspectiva holística de integração entre o pensar, sentir e agir que a escola iria educar o sujeito para superar a violência produzida por uma sociedade que não respeita as diferenças e provoca a fragilização das relações sociais.

O fato de trazermos para discussão a necessidade que há de integrar cognição e emoção no desenvolvimento da qualidade do espaço escolar, como espaço social de educação e de desenvolvimento humano, seria o primeiro passo. Compreender a complexidade do fenômeno da violência nas escolas viria a ser um avanço para a elaboração de política educacional compatível com uma educação que reconheça a singularidade dos seus alunos e a necessidade de reformar, sobretudo, o pensamento dos professores8.

É na relação com seus alunos que o professor tem a oportunidade de se mostrar como ser humano verdadeiro. Não que o professor consiga vencer todas as determinações do contexto em que a escola está inserida, mas como o protagonismo escolar depende muito do compartilhamento entre os sujeitos que existe em cada professor, o professor continua sendo quem impulsiona os processos que dão sentido à escola. Os professores em comunhão, associados aos gestores e funcionários, podem transformar o espaço social da escola em um espaço de acolhimento ao outro, seja aluno, seja pai de aluno, seja qualquer outro cidadão que busque a escola.

De outro lado, cabe não somente aos professores a constituição de uma escola "da comunidade", em que todos estariam preocupados com o outro e todos mereceriam atenção e respeito. Para isso é preciso reconhecer a escola como o espaço de pertencimento de todos e não do domínio de alguns, uma escola aberta à comunidade e ao mundo. Sem dúvida, a escola pode se constituir como espaço para a produção subjetiva da violência, porém quando a comunidade escolar rejeita essa produção é possível produzir sentidos subjetivos que ajudem a desenvolver a qualidade afetiva das relações e constituir uma subjetividade social contrária à produção e reprodução da violência.

A subjetividade social representa a "organização subjetiva dos diversos espaços sociais, os quais formam um sistema configurado pela multiplicidade de produções que, em uma determinada sociedade, faz parte de maneira diferenciada e parcial dos distintos espaços sociais nela coexistentes"9.

González Rey viria então definir a subjetividade social como decorrente da implicação dos sujeitos e de sua atuação no espaço vivencial que simultaneamente os constitui, isto é, como estando integrada à produção de sentidos subjetivos do sujeito com relação a vários aspectos de sua vida social. Assim, os sentidos subjetivos produzidos por professores e alunos com relação a suas vivências viriam, simultaneamente, repercutir nas suas ações e na organização do espaço escolar, indicando que as produções subjetivas do sujeito não estão separadas da subjetividade social.

Podemos, então, pensar o espaço social da escola como um espaço de múltiplas dimensões, estruturado por meio de uma complexa rede de práticas simbólicas e emocionais compartilhadas por professores, alunos, funcionários, gestores e pais de alunos3. Nesse compartilhamento simbólico-emocional, a expressão da subjetividade individual e social no âmbito da escola ocorre pela produção de múltiplos sentidos subjetivos associados às condições humanas, sociais, culturais, econômicas e políticas dos membros da comunidade escolar. Todos os que participam dessa comunidade são sujeitos que trazem para o ambiente escolar todas as suas vivências histórico-culturais que lhes constituíram na condição de sujeito em outros momentos de sua vida.

Nas configurações de sentido subjetivo, únicas de cada pessoa, é que se encontram pistas para compreender a subjetividade social7. Isso significa que a realidade da escola vai além da escola em si, pois incorpora contribuições de outros espaços sociais vividos por aqueles que se encontram inseridos na realidade escolar concreta. Nessa linha de trabalho, fica claro que o problema da produção subjetiva da violência nas escolas resulta da integração de elementos individuais e elementos que atravessam a sociedade como um todo. Não há uma violência escolar propriamente dita.

A violência simbólica e não-simbólica manifesta-se na ação dos sujeitos que convivem no espaço social da escola e que são constituídos e constituem a realidade escolar.

Em qualquer circunstância, o compartilhamento de valores, ideias, sentimentos e crenças, entre os sujeitos inseridos no contexto da escola, passa por suas mediações subjetivas, por sua vez envolvidas com significados e emoções expressos na forma como se estruturam as relações na sociedade como um todo.

Concordamos com Teles10 sobre o papel da comunicação interativa na motivação do sujeito para que aprenda e conheça e quanto ao fato da afetividade e cognição não serem aspectos separados no processo de aprendizagem. Quando professor e alunos têm uma relação afetiva, o processo de construção de conhecimento acontece.

A política pública, como elemento de interferência na produção da violência, oferece possibilidades de ampliação da ação das escolas no desenvolvimento da qualidade das relações entre professor e alunos, especialmente por meio de práticas interativas e do diálogo na sala de aula. A escola que, por um lado pode ser espaço de reprodução social de preconceitos, discriminações e de outros conflitos da sociedade, por outro, também pode colaborar com a produção de caminhos para convivência social e qualidade de vida dos sujeitos.

Com o trabalho dos estagiários nas escolas vimos que a diversidade não significa um empecilho para o desenvolvimento do cenário da sala de aula, mas a sua riqueza precisa ser respeitada e valorizada por todos os educadores, o que nem sempre acontece.

Nesse aspecto, o diálogo, como prática cotidiana da sala de aula, pode facilitar que alunos e professores reflitam sobre suas histórias e necessidades, o que quase nunca acontece nas escolas pesquisadas. Ao contrário, as escolas deveriam atender à diversidade do processo de aprendizagem e serem voltadas para o desenvolvimento da imaginação criativa e da inventividade, ora relegadas ao segundo plano, mantendo invisíveis as crianças e os adolescentes concretos.

A compreensão do fenômeno complexo da violência e a busca por estratégias para a sua superação encontram também nas políticas de formação um primeiro passo, porém ainda limitado e pontual. Francischini & Souza Neto11 apresentam um exemplo de resposta governamental à violência no espaço escolar com o Programa Escola que Protege1*.

Considerando que os sentidos produzidos na subjetividade social da escola e a emocionalidade integrada aos processos simbólicos gerados nesse espaço social são elementos da maior importância para a produção de "novos" sentidos subjetivos sobre as relações entre professores e alunos, as ações realizadas pela própria comunidade escolar são passíveis de gerar novos sentidos produtores de novas emocionalidades, para que reinterpretações simbólico-emocionais ocorram modificando as configurações subjetivas existentes.

Apesar da relevância do Projeto Escola que Protege para qualificação de profissionais da educação na superação dos elementos que participam da produção subjetiva da violência, alertamos que tal política pública, em si, não favorece a produção de novos sentidos subjetivos, uma vez que está centrada na transmissão de "informações ou conhecimentos sobre os direitos de crianças e adolescentes".

O desenvolvimento de estratégias de acolhimento ao outro, a responsabilização por esse "outro" para que se sinta socialmente valorizado e reconhecido, como sujeito capaz de se aceitar a si mesmo em suas diferenças, sem potencializar preconceitos e discriminações, é algo que é construído socialmente no ambiente escolar por meio das relações entre os sujeitos. Se o espaço social da escola, como síntese do seu projeto coletivo, transformar-se em um espaço gerador de sentidos para a superação do preconceito e da diferença e se mantiver atento às discriminações de todos os tipos, proporcionando a alunos, funcionários, professores e gestores condições de desenvolvimento humano integral, as possibilidades de potencialização da violência podem ser minimizadas.

A dimensão da subjetividade social da escola, constituída na alegria, no bem-estar de alunos, professores e funcionários, que fomenta o respeito ao outro, que cuida da disciplina como um acordo de responsabilidade de todos por todos, no qual o conhecimento seja fonte de desenvolvimento da autonomia e da criatividade, pode, nessa proposta, ser geradora de condições para eliminação da violência nas escolas. São os sujeitos historicamente situados em suas relações concretas que estabelecem os significados e sentidos para suas ações individuais e coletivas.

Sem dúvida, a escola é o lugar da produção de subjetividades individuais e sociais que se constituem mutuamente. Não há como separar o individual do social no espaço escolar. A política pública pode fomentar condições que favoreçam a transformação social, porém a decisão de fazer com que os objetivos da política se concretizem depende de negociações complexas, nas quais a mobilização da subjetividade dos atores estará sempre muito presente.

Por enquanto, para as crianças e os adolescentes das diferentes escolas pesquisadas ficam as possibilidades de expressar suas necessidades e motivações por meio da arte e do lúdico. Para os estagiários, ficam as marcas da possibilidade de definirem o humano a partir de sua própria complexidade, sem se fecharem nas categorias a priori, muitas vezes definidas pelo modelo biomédico de ciência e assumidas, sem nenhuma crítica, pelas próprias escolas, pela necessidade simplista de se apegarem aos conhecimentos já dados8.

Pensamos que a produção subjetiva, possibilitada pelo exercício da imaginação criativa, ajuda a superar as barreiras das condições objetivas, tais como o mau humor, a impaciência, a falta de atenção e a indiferença, todas elas não raramente expressas nas relações entre professores e alunos tanto de escolas públicas quanto privadas1.

Para ilustrar podemos citar as ações de nossos estagiários que, por meio da arte, ajudaram crianças e adolescentes a expressarem a realidade social das escolas, nas suas relações com a realidade social mais ampla e, é claro, sempre mediadas por suas emoções, muitas vezes contraditórias.

Afinal, todos nós podemos refletir sobre o desafio que é ultrapassar o pensamento da causalidade clássica e considerar a subjetividade de alunos e professores, tanto na realização de práticas pedagógicas que atendam à diversidade da sala de aula quanto na busca de um modelo de política educacional que permita produzirem uma convivência pacífica e respeitosa entre eles.

 

REFERÊNCIAS

1. González Rey FL. A re-examination of defining moments in Vygotsky's work and their implications for his continuing legacy. In: Mind, Culture, and Activity; 2011;18(3): 257-75. Disponível em: http://lchc.ucsd.edu/ MCA/Mail/xmcamail.2011_07.dir/pdfEDxyyPG4hN.pdf        [ Links ]

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7. González Rey FL. O social na psicologia e a psicologia social. 2004.         [ Links ]

8. Morin E. A cabeça bem feita. Repensar a reforma. Reformar o pensamento. Trad. Jacobina E. 15ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; 2008.         [ Links ]

9. González Rey FL. Psicoterapia, subjetividade e pós-modernidade. Uma aproximação histórico-cultural. São Paulo: Thomson; 2007.         [ Links ]

10. Teles AMO. A subjetividade social na escola. Brasília: Paralelo 15; 1999.         [ Links ]

11. Francischini R, Souza Neto MO. Enfrentamento à violência contra crianças e adolescentes: Projeto Escola que Protege. Rev Dep Psicol. 2007;19(1):243-51.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
Vannúzia Leal Andrade Peres
Rua T 37, Quadra, 128, Lote 11B, Ed. Bragança, Apto. 1001 - Setor Bueno
Goiânia, GO, Brasil - CEP 74230-020
E-mail: vannuzia@terra.com.br

Artigo recebido: 18/6/2012
Aprovado: 3/9/2012

 

 

* O Projeto Escola que Protege pretende qualificar profissionais de educação por meio de formação nas modalidades à distância e presencial, para uma atuação adequada, eficaz e responsável, no âmbito escolar, diante das situações de evidências ou constatações de violências sofridas pelos educandos. A formação na temática da violência física, psicológica, negligência, abandono, abuso sexual, exploração do trabalho infantil, exploração sexual comercial e tráfico para esses fins, em uma perspectiva preventiva, faz-se imprescindível mediante a necessidade de oportunizar à comunidade escolar a sensibilização e compreensão sobre o prejuízo dessas diversas formas de violência para o desenvolvimento integral de crianças e adolescentes, bem como assegurar adequado encaminhamento e fluxo, no que concerne à Educação, de modo a garantir sigilo da identidade do educador e da escola e preservar a privacidade da vítima. (Relatório Executivo do Projeto Escola que Protege).
Trabalho realizado na Pontifícia Universidade Católica de Goiás, Goiânia, GO, Brasil.