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Revista Psicopedagogia

Print version ISSN 0103-8486

Rev. psicopedag. vol.30 no.93 São Paulo  2013

 

ARTIGO ORIGINAL

 

Os sentidos da aprendizagem para professores da educação infantil, ensino fundamental e médio

 

The meanings of learning for early childhood education, elementary and high school teachers

 

 

Juliana Soares de JesusI; Vera Lucia Trevisan de SouzaII; Ana Paula PetroniIII; Lilian Aparecida da Cruz DugnaniIV

IGraduanda em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Pesquisa realizada com bolsa de Iniciação Científica pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq, Campinas, SP, Brasil
IICoordenadora, docente e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Campinas - PUC-Campinas. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq- Nível 2, Campinas, SP, Brasil
IIIPsicóloga Escolar. Doutora e Mestre em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Campinas, SP, Brasil
IVPsicóloga. Doutoranda e Mestre em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Bolsista CNPq, Campinas, SP, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

OBJETIVO: A pesquisa que ora apresentamos teve como objetivo compreender os sentidos atribuídos pelo professor à aprendizagem escolar.
MÉTODO: Adotaram-se como aporte teórico e metodológico os pressupostos da Psicologia Histórico-Cultural, com ênfase à acepção de Vygotsky sobre desenvolvimento e aprendizagem. A investigação teve como sujeitos 11 professores de duas escolas públicas de uma cidade do interior de São Paulo, sendo uma de educação infantil e outra de ensino fundamental e médio. Como instrumento de coleta de dados foram realizadas entrevistas semiestruturadas.
RESULTADOS: Os resultados indicam que os sentidos da aprendizagem se configuram embasados pela incompreensão do processo de aprendizagem e pela crença de que os diferentes ritmos e formas dos alunos se envolverem com o ensino se constituem como problemas de aprendizagem que podem ser resolvidos por tratamento médico, e não pela efetivação de práticas de ensino mais efetivas, embasadas na compreensão de como se dá o processo de desenvolvimento e aprendizagem de crianças e jovens.

Unitermos: Aprendizagem. Psicologia educacional. Transtornos de aprendizagem.


ABSTRACT

OBJECTIVE: This study now presented had the intention to comprehend the meaning teachers attribute to school learning.
METHODS: We adopted as theoretical and methodological support the assumptions of Cultural-historical Psychology, with emphasis on the concept of Vygotsky about development and learning. The investigation had as subjects eleven teachers from two public schools of an inner city of São Paulo, being one of early childhood education and another of elementary and secondary education. The instrument used for data collection was semi-structured interviews.
RESULTS: The results indicate that the meanings of learning configure based on misunderstanding of the learning process and by the belief that the different rhythms and forms of the students to get involved with learning constitutes as learning problems that can be solved by medical treatment and not by the establishment of more effective teaching practices based on comprehending of how the process of development and learning of children and young people.

Key words: Learning. Psychology, educational. Learning disorders.


 

 

INTRODUÇÃO

Este artigo apresenta um recorte dos resultados de uma pesquisa de iniciação científica em que se discutiu e foram analisados os sentidos atribuídos pelos professores à medicalização dos alunos. O referido estudo fez com que tomássemos contato com os sentidos que esses professores atribuíam ao processo de aprendizagem, e da intrínseca relação entre este e a medicalização, sendo essa a discussão que ora apresentamos. Iniciamos com uma explanação acerca da construção histórica da medicalização dos alunos e sua aproximação à instituição escolar.

A partir do século XIX, pautando-se em um movimento progressista tem início a luta de diversas categorias por um Brasil novo, que tinha como pressupostos o avanço e o desenvolvimento econômico. E a escola foi a instituição socialmente reconhecida como aquela que seria responsável pela constituição do "novo homem", na medida em que esta deveria forjar sujeitos capazes de alavancarem e acompanharem o "progresso". E foi diante desse cenário que a Psicologia passou a atuar expressivamente nos espaços escolares, sendo considerada, desde então, uma ciência fundamental na sustentação de práticas pedagógicas e na produção de técnicas que pudessem, não apenas orientar, mas também "adaptar" o desenvolvimento dos sujeitos aos novos interesses econômicos1.

Com base nessa perspectiva, predominava o discurso adaptativo, segundo o qual o aluno deveria se adaptar aos modos de ensino da escola, portanto, aqueles que porventura não apresentassem os resultados esperados eram considerados "problemáticos", e as justificativas para tal baseavam-se principalmente em duas vertentes. A primeira, com foco organicista, considerava que as diferenças no rendimento escolar, justificavam-se principalmente pela multiplicidade de raças. Segundo essa corrente, as diferentes raças humanas apresentavam tanto disparidades fisiológicas e psicológicas, que explicariam a diversidade dos resultados dos alunos na escola2.

Ocorre que os testes psicológicos começaram a revelar que as diferenças do rendimento escolar não ocorriam apenas em raças diferentes, mas também em classes sociais diferentes. Tal constatação dá origem a segunda vertente, a ambiental, que vai buscar nos fatores ambientais a explicação para os parcos resultados de aprendizagem de alguns alunos. Sendo assim, os negros e filhos de trabalhadores pobres não alcançavam sucesso escolar por conta de seus hábitos, padrões, e práticas sociais que os tornavam culturalmente inferiores aos demais e, portanto, deficitários. Poucos estudiosos acenavam para a problemática da formação de professores e/ou condições estruturais da escola. Pode-se dizer que das perspectivas apresentadas o ensino sempre ocorria, o que não ocorria era o aprendizado e sempre por causa do aluno, de sua família, de sua raça, de sua condição social, ou seja, sempre por fatores que estavam externos à escola2.

No decorrer dos 30 primeiros anos do século XIX, percebemos que a mensuração e elucidação do fracasso escolar deram lugar, na Europa e nos Estados Unidos, a uma nova explicação: as dificuldades de aprendizagem decorriam de distúrbios psicológicos. Nesse momento, a Psicologia passava a atuar com programas preventivos, configurando-se como prática de tratamento de desvios psíquicos, tendo em sua base, diagnósticos de distúrbios psicológicos infantis. Dessa forma, a Psicologia contribuiu para sedimentar a visão de que as oportunidades estavam ao alcance de todos e que os que ocupavam os melhores postos sociais eram os mais capazes. Ainda hoje, mesmo após esse expansivo movimento nas décadas de vinte e trinta do século passado, é rotineira a prática de avaliação de crianças que não se enquadram no modelo padronizado pelas escolas, por meio de diagnósticos médicos e psicológicos. A tendência de psicologizar as manifestações de dificuldade de aprendizagem das crianças tornou-se hábito, e os destinatários desses rótulos, mais uma vez, são as crianças que pertencem a classes menos favorecidas2.

Entretanto, ensino e aprendizagem constituem-se como um processo em que concorrem as influências mútuas dos sujeitos envolvidos; sendo assim, a relação estabelecida entre professor e aluno assume um importante papel nos resultados obtidos por meio das atividades desenvolvidas na escola3. Poderíamos dizer que, para o professor, compreender esse processo contribuiria para a construção de um ensino mais efetivo, na medida em que o aproximaria dos movimentos que caracterizam o desenvolvimento humano, visto que este não ocorre de forma linear, mas em espiral, caracterizado por avanços e por retrocessos, que fazem parte de um mesmo processo. Essas concepções conferem aos erros outra nuance, na medida em que caracterizam o erro como o devir do acerto, uma hipótese de solução para um determinado problema, que com a mediação correta se desenvolverá para uma resolução correta4.

Vygotsky5 considera que o ponto de partida para a aprendizagem é constituído pelas atividades que ocorrem muito antes da entrada da criança na escola e, existindo, assim, uma história precedente ao período escolar. São esses processos mais simples (por exemplo, o conhecimento de nomes de objetos antes mesmo de saber escrever) que permitem afirmar que há uma similaridade entre o aprendizado pré-escolar e o escolar, mas, evidenciando uma grande diferença: são os conhecimentos formais transmitidos pela escola que possibilitarão ao aluno o estabelecimento de novos nexos, que por sua vez promoverão o desenvolvimento das funções psicológicas superiores, em um movimento dialético permanente5.

Esse autor ainda ressalta a importância e os efeitos de combinar esses dois processos complementares, a aprendizagem e o desenvolvimento, e para tal propôs como nova forma de abordar o tema, por meio da conceitualização do que denominou como zona de desenvolvimento proximal5.

A zona de desenvolvimento proximal pode ser compreendida como um processo que se constitui de dois níveis: um em que já se considera o que já foi apreendido e internalizado e outro em que ainda há a necessidade da ajuda de pessoas mais experientes para que a aprendizagem se efetive, buscando atingir o que se considera como a forma ideal de determinada conduta ou fenômeno. Nesse movimento, conseguimos identificar as funções amadurecidas e aquelas que ainda amadurecerão, mas que estão presentes em estado embrionário, em sua forma mais elementar; dito de outra forma há a possibilidade de compreensão do curso interno do desenvolvimento5.

Ao mostrar que o aprendizado aciona processos internos e novas aquisições são feitas por meio da interação com outras pessoas, afirma-se que: aprendizagem não é desenvolvimento, mas é condição para ele. Com essa ideia, Vygotsky5 compreende que o aprendizado adequado movimenta e desenvolve funções psicológicas culturalmente humanas, todavia, esse desenvolvimento progride de maneira mais lenta, nunca acompanhando o aprendizado escolar e, dessa forma, toda tentativa infrutífera de solução de algo tem em si a possibilidade, posterior, de um acerto. Para o autor, então, a aprendizagem produz desenvolvimento e se adiantaria a ele e emerge dessa ideia a importância em focalizar a aprendizagem: ela é produtora e promotora do desenvolvimento do psiquismo do sujeito, o que permite afirmar que uma criança que não avança em seu processo de aprendizagem tem seu desenvolvimento prejudicado.

Diante do exposto é necessário elucidarmos de que sujeito estamos falando, em outras palavras, quais são as concepções de mundo e de homem sustentadas pela Psicologia Histórico-cultural, em particular pelos pressupostos de Vygotsky, que tem sido considerado seu principal representante. A partir dessa perspectiva é possível dizer que o homem nasce com potencial para se tornar humano, o que irá ocorrer a depender das relações que estabelece com o meio. Assim, sujeito e social constituem um ao outro em um movimento dialético permanente, imbricados de tal modo que não é possível dizer em que proporção um constitui o outro6.

É a apropriação pelo sujeito dos instrumentos produzidos pela cultura e o domínio que esse pode ter sobre eles que viabilizam as formas de ser, estar e agir no mundo. Ocorre que tal apropriação não se dá de modo imediato, mas mediado, pela cultura e pelo social, sobretudo pela linguagem. Assim, as interações com o outro se mostram fundamentais na constituição do sujeito7.

Logo, o sujeito constitui-se em um processo de devir e o seu desenvolvimento se dará a partir do acesso que lhe é possibilitado aos instrumentos produzidos pela cultura. Dessa perspectiva, o sujeito é um ser ativo, capaz de transformar a si próprio e a realidade que o cerca, sendo autor e, ao mesmo tempo, ator de sua própria história. Contudo, essa história se constrói na relação que empreende com as condições materiais de sua existência que, por sua vez, possibilitarão ao sujeito desenvolver novos nexos e novas formas de ser e agir. É nesse processo, no qual social e sujeito constituem um ao outro simultaneamente, que se consolidam as formas de ser, estar e agir no mundo8.

Mesmo tornando-se um ser social, cada sujeito preserva sua singularidade, configurada pelos significados e sentidos que ele atribuiu às suas experiências, em um movimento contínuo entre externo (social) e interno (psíquico)7. E é nessa singularidade que se encontram os sentidos, a unidade que acreditamos ajudar a compreender qualquer fenômeno.

O sentido é particular ao sujeito e envolve aspectos intelectuais, afetivos e volitivos, pois é tido como "a soma de todos os eventos psicológicos que a palavra desperta em nossa consciência"8. Os sentidos configuram-se a partir das experiências concretas que o indivíduo vivencia e, dessa maneira, o sentido além de ser particular, é construído nas e pelas atividades diárias do sujeito.

Vygotsky8 entende que "para compreender a fala de outrem não basta entender as suas palavras - temos que compreender seu pensamento. Mas nem mesmo isso é suficiente - também é preciso que conheçamos a sua motivação"8. Assim, é necessário considerar a dimensão afetiva presente na geração do pensamento e da fala dos sujeitos pesquisados na sua compreensão da aprendizagem.

 

MÉTODO

A presente pesquisa foi realizada em duas escolas públicas de uma cidade do interior do estado de São Paulo, sendo uma municipal responsável pelo Ensino Infantil e a outra estadual que atende ao Ensino Fundamental, Médio e Educação de Jovens e Adultos (EJA).

Os sujeitos participantes foram onze professores, sendo três da educação infantil, quatro do ciclo II do Ensino Fundamental e quatro do Ensino Médio. Para a construção das informações, foram utilizadas entrevistas semiestruturadas, que continham dois casos fictícios, em busca de maior aprofundamento das percepções e vivências dos professores sobre o processo de ensino-aprendizagem e suas dificuldades de concretização. Partimos de questões que se voltavam para o conhecimento e a caracterização dos alunos que possuíam dificuldade de aprendizagem, as práticas dos professores voltadas a estes e a relação entre as dificuldades apresentadas e a necessidade da medicalização. Essas entrevistas foram gravadas em áudio e transcritas.

Tomamos o método dialético como fundamento, buscando acessar o movimento do fenômeno investigado por meio das contradições apreendidas nas falas dos sujeitos.

Ao tomar as falas dos professores como elemento de investigação, procuramos entender seus pensamentos, e, sobretudo, conhecer sua motivação, uma vez que para Vygotsky, são os desejos, as emoções e os interesses que geram o modo de pensar. Buscar os sentidos significa, dessa forma, identificar os afetos que permeiam as falas dos professores. São esses pressupostos, a configuração complexa dos sentidos e atribuição de significados que nortearam nossa análise.

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A escola tem uma grande influência nos processos de constituição dos sujeitos, sobretudo pelo acesso que proporciona aos conhecimentos, produtos sociais e culturais do homem7,9.

Dessa perspectiva, a escola cumpre a função de transmitir às novas gerações o legado histórico da cultura humana, ao mesmo tempo em que permite ao sujeito compreender o mundo do qual faz parte e a si mesmo, na medida em que se torna capaz de dominar os signos produzidos historicamente pelo homem. Esse processo, de acesso aos conhecimentos científicos, atribuição de novos significados e sentidos a partir destes e modificações nos modos de compreensão de si mesmo e do mundo, só pode ser proporcionado pela escola, logo, alijar o sujeito do conhecimento escolar é alijá-lo da possibilidade de ampliação de consciência7,10,11.

É a qualidade das relações vivenciadas e experienciadas no processo de ensino-aprendizagem, mediadas pelos docentes, sabidamente os parceiros mais experientes dessa interação, que possibilitarão ao professor e ao aluno perceberem-se como capazes ou incapazes de ensinar-aprender12.

Sendo assim, o processo de ensino-aprendizagem compreende muito mais do que a dimensão cognitiva, tem imbricado em si a afetividade, entendida aqui da perspectiva de Wallon, como tudo que afeta o outro, seja em nuances negativas ou positivas, assume extrema importância e passa a atuar como favorecedora ou impeditiva da objetivação desse processo, tanto por parte do professor como por parte do aluno13. Ao se reportarem a Wallon, autoras afirmam que as emoções assumem um papel preponderante na formação da vida psíquica do sujeito, na medida em que é um meio deste se relacionar com o mundo3.

O olhar do professor para um aluno capaz, e que para além do erro, aprende, faz com que o aluno também se perceba como alguém capaz de aprender, e invista esforços nesse processo. Logo, o aluno capaz ou incapaz, saudável ou doente, com problemas de aprendizagem ou no processo de aprender, é construído pelo olhar do outro e pela forma como vê a si mesmo, em um movimento dialético permanente5.

Cabe frisar que as atribuições de significados e a configuração de sentidos descritas abaixo ocorrem ao mesmo tempo e de forma imbricada, sendo constituídos pelo/no cotidiano, pelas ações e relações desenvolvidas na escola e constitutivos dos discursos acerca da medicalização do aluno. A tentativa de elucidar esse processo está refletida nas interpretações que apresentamos a seguir.

Os sentidos da aprendizagem

Tem sido recorrente a informação de que os especialistas da área da saúde, sobretudo psiquiatras e psicólogos, recebem um número cada vez maior de crianças que são encaminhadas por professores e profissionais da escola para avaliação psicológica, o que resulta no aumento do número de diagnósticos de crianças com transtornos e a indicação para de uso de medicamentos12.

Nesse sentido, há uma busca da equipe pedagógica por motivos que possam "explicar" e "justificar" o baixo rendimento escolar, e é desse movimento que se origina o encaminhamento da criança para as redes de saúde. Os profissionais dessas redes, por sua vez, comumente "fecham diagnósticos", segundo os quais as origens dessas dificuldades se encontram em causas externas à escola, tais como: problemas físicos, genéticos, neurológicos, ambientais e familiares12. O que estaria na base da deflagração desses movimentos?

Em comum essas suposições revelam a premissa de que a aprendizagem é dissociada do ensino, ou seja, não caracterizam um processo dialógico e dialético, destacando-se a ideia de individualização e culpabilização do aluno pela falha no processo que é dele e, ao mesmo tempo do professor, de maneira indissociável11.

Ocorre que, ao serem perguntados sobre quais são os aspectos que caracterizam o aluno que não aprende, o que se percebe é que o significado do que é aprender não está vinculado ao processo de ensino-aprendizagem, mas a outras questões. Aproximemo-nos das falas* abaixo:

" [...] então eu acho que se o aluno não acompanha a sala, eu já peço para mãe ficar um pouco mais atenta, porque se eu estou ali, ajudando, ajudando, ajudando e no outro dia a criança não reteve nada daquilo que eu disse na aula passada, alguma coisa, para mim, ali tem, ou é falta de estímulo em casa ou a criança não está interessada mesmo, só por ela, não tem problema nenhum, mas ela mesma não quer saber" (Mônica, professora da educação infantil, ao ser questionada sobre como identifica que o aluno tem problema de aprendizagem).

"Ele [referindo-se ao aluno que apresenta dificuldade de aprendizagem] não tem o mínimo de interesse, ele rabisca, ele rasga a folha, ele cospe na folha" (Sônia, professora do infantil).

"A maioria apresenta indisciplina [referindo-se aos alunos com dificuldade de aprendizagem], porque já que eles não conseguem acompanhar a aula, é mais fácil que eles se tornem indisciplinados" (Morgana, professora do ciclo II do Ensino Fundamental).

"Eles [referindo-se aos alunos que considera ter problemas de aprendizagem] estão em sala de aula, eles tumultuam, não têm interesse em fazer nada, em registrar nada, ai a gente percebe que eles não têm é... vamos dizer assim, habilidade para escrever, para interpretar" (Narciso, professor do Ensino Médio).

Conforme pudemos observar, os professores relatam as dificuldades de aprendizagem de seus alunos com foco no comportamento e não em seus resultados escolares. Não há uma única menção às dificuldades enfrentadas no processo de ensino-aprendizagem, das tentativas infrutíferas de ambos, ou mesmo do baixo desempenho dos alunos nas avaliações. O que se destacam nessas falas é a falta, em particular, vinda do aluno: de atenção, de interesse, de envolvimento, de memorizar rapidamente determinado conteúdo. Ao que nos parece, o aluno que não aprende é equivalente ao aluno que incomoda, que precisa de mais atenção ou de propostas diferenciadas, em outras palavras, ao aluno que é sujeito e não se assujeita às práticas padronizadas.

A aprendizagem é resultado de um complexo processo de desenvolvimento do sistema psicológico associado à mediação realizada pelo outro, no caso da escola, pelo professor, entre os instrumentos da cultura, representados pelos conhecimentos científicos, e o sujeito que está aprendendo, no caso, o aluno. Os agentes que medeiam esse processo, parceiros mais experientes, são os responsáveis por criar situações que favoreçam a apropriação e o domínio desses instrumentos pelos parceiros menos experientes. E é aqui que reside o processo de ensino-aprendizagem, o modo, com que qualidade e de que forma o aluno consegue se apropriar desse conhecimento revela o aluno que aprende ou o que não aprende, ao mesmo tempo em que coloca às claras as práticas de ensino que promovem ou não esse aprendizado. Dessa perspectiva, o processo de ensino deve ser revisto constantemente, na medida em que envolve seres dinâmicos, construídos e construtores da realidade que os cerca9.

Mas não é o que nos mostram as falas acima, pois parece haver, por parte dos professores, a concepção de um aluno que chega aos bancos da escola pronto, apto, participativo e interessado, como se esses fossem comportamentos dados a priori e não dependessem da construção da identidade de aluno, que só pode ser forjada dentro dos muros da escola, por meio da interação com os agentes escolares.

Complementamos, ainda, que caberia ao professor criar condições para que determinados processos cognitivos se desenvolvessem, auxiliando os alunos na construção de seu interesse pela aquisição do conhecimento e possibilitando a significação dos mesmos. Dessa perspectiva, o professor é promotor de situações sociais do desenvolvimento, e não apenas um mero transmissor ou expositor de informações4.

Esse contexto e ações que devem nortear o processo de ensino-aprendizagem, contudo, parece não ser reconhecido pelos professores:

"Olha, na rede, qualquer problema que a gente, assim, vê dentro da sala de aula, preenchemos um relatório, esse relatório é encaminhado para um setor, DOSETI, e eles é que fazem a avaliação, a gente é que meio que diagnostica, e aí é feito o relatório e encaminhado onde pessoas, especialistas, é que vão realmente detectar se aquela criança tem problema de aprendizagem ou um outro tipo de problema" (Sônia, professora da Educação Infantil).

"Você acaba de falar... esses dias eu contei cinco vezes, eu falei a mesma coisa e quando você perguntava ele não sabia responder o que eu tinha acabado de falar. Isso é o mais básico" (César, professor do ciclo II do Ensino Fundamental).

"Então a gente orienta, diz para eles onde é que está a resposta ou força o aluno a copiar da lousa" (Narciso, professor do Ensino Médio).

Revela-se nas falas acima um processo de ensino-aprendizagem que não se pauta no desafio ao aluno, no devir de seu desenvolvimento, na crença de seu potencial, mas, ao contrário disto, ancora-se em possibilidades que estão aquém do sujeito e entregar ao aluno aquilo que ele já sabe fazer, ao que nos parece, constrói o desinteresse pela escola. Quem estaria interessado em ensinar para o outro algo que ele já sabe, ou ainda em aprender o que já foi aprendido? O que se evidencia aqui, quando focamos nos alunos do ciclo II do Ensino Fundamental, na faixa etária de 11 a 15 anos, é o questionamento do que teria acontecido com esses jovens, ao longo de sua escolaridade, para que se desinteressassem tanto pela escola e, ainda, como ter passado pelo menos seis anos pela escola não promoveu, sequer, a apropriação da leitura e da escrita. O modo como os professores, cujas falas temos citado até aqui, concebem o ensino e a aprendizagem parece responder parcialmente a essas questões.

Ensinar e aprender devem constituir-se como um desafio para os agentes que compõem esse processo, e as falas acima parecem revelar o alijamento, a um só tempo, dos agentes envolvidos nas duas faces do ensino-aprendizagem, o professor e o aluno. O rótulo da incapacidade e da doença atribuído ao aluno que não aprende, é também incorporado pelo professor, em um movimento dialético. Na busca por atividades mais simples, que permitam ao aluno fazer o que já sabe, se forja o professor que não lança mão de estratégias que transformem a realidade que o cerca. Os sentidos que parecem sustentar essa forma de agir do professor é o medo em lidar com o seu próprio desconhecimento, medo que o paralisa em suas práticas, e que desqualifica o outro como forma de reafirmar o seu saber e a própria educação escolar. A palavra diagnóstico, explicitada em uma das falas, nos dá indícios de como começa a se desenhar a visão do aluno doente no contexto escolar.

Na construção da visão do aluno "doente"

Mas de onde surgiu esse olhar e expectativa com relação ao seu educando? Como ela foi constituída pelos professores? Ao tentarmos investigar como haviam sido abordados os problemas de aprendizagem ou distúrbios de comportamento na formação inicial dos professores, deparamo-nos com as seguintes falas:

"Não, não tive nenhuma disciplina que contemplava isso" (Valdir, professor do Ensino Médio).

"Olha na época, nós tínhamos a Psicologia da Educação. Porque além da faculdade, eu fiz o magistério também, então eu fiz quatro anos de magistério que era mais dedicado ao Ensino Infantil, mas era uma coisa muito superficial... hoje eu vejo isto" (Morgana, professora do nível médio).

"E algumas coisas que eu lembro é o estilo de aprendizagem da criança, as diferentes fases de aprendizagens, as patologias mais comuns, as dificuldades, como a questão do autismo, síndrome de Down, deficiência visual, auditiva, mas assim..." (Ângela, professora do nível médio).

"Nós estudávamos alguns comportamentos, principalmente no magistério a gente presenciou algumas coisas no estágio? Mas hoje eu vejo que foi uma coisa assim bem superficial" (Morgana, professora do nível médio).

"É, dizia mais assim dos distúrbios de aprendizagem [referindo-se a disciplinas que cursou no magistério], para, que dos distúrbios da aprendizagem alguns poderiam ter um... certo trauma, de alguma coisa estar vindo de um trauma de família ou de alguma coisa assim e outros às vezes até mesmo por uma deficiência" (Raquel, professora do ciclo II do nível fundamental).

No que se refere à formação inicial, que deveria dar subsídios ao professor para lidar com a diversidade que compõe o cotidiano da sala de aula, pudemos observar que ora esses sujeitos não tiveram disciplinas que os instruíssem ao que e como fazer uma docência que previsse a possibilidade de aprendizagem para todos os alunos, ora essa disciplina, ministrada na cadeira de Psicologia da Educação, era direcionada para as patologias médicas, psicológicas e aos problemas de ordem social.

Contudo, o que nos chama a atenção é que mesmo com incontáveis trabalhos da área que refutem a visão do não aprendizado como doença, essa percepção ainda permaneça entre os professores na escola. Quais seriam os sentidos que estariam sustentando essa forma de conceber o aluno? Fato é que em nenhum momento da formação os professores foram preparados para lidar com essas questões intramuros da escola, o que resulta num modo de olhar, conceber e trabalhar com o aluno que não aprende de uma maneira distorcida:

"A gente, quando encontra casos graves, nós passamos para direção e ela encaminha, eles encaminham para a saúde mental" (Ângela, professora do Ensino Médio).

"Alguns têm um pouco mental [referindo-se a alunos que possuem distúrbios], sabe, vem com laudo, com uma certa dificuldade, mas a grande maioria não tem laudo, não tem nada" (Raquel, professora do ciclo II do Ensino Fundamental).

"Já teve problemas de aluno que não estava aprendendo e a fono[audióloga] veio aqui e foi detectado que ele tinha o tímpano perfurado, já teve crianças que foi feito o teste de acuidade visual e a criança não aprendia direito devido a problemas de visão, então sim, já teve casos em outros anos [referindo-se a casos em que realizou um encaminhamento]. Esse ano específico é o D. [referindo-se a um aluno que considera hiperativo]" (Sônia, professora do nível infantil).

Por que os professores possuem essa concepção do não aprender associado a alguma patologia? O que mantém esse discurso? Ao deparar-se ao longo de sua formação e atuação com a existência de explicação médicas e psicológicas a respeito do não aprender, com seus "diagnósticos" confirmados pelas áreas da saúde, os professores acabam por significar o não aprender como resultante da existência de alguma doença.

Percebemos, nesse momento, as reconstruções internas dos signos externos feita pelos sujeitos, tendo em vista as condições objetivas que os envolvem. Esse movimento que promove o desenvolvimento de processos mentais superiores inicia-se por uma atividade que é externa ao homem e possibilita a significação de um processo que existia entre pessoas em algo interno ao sujeito. Todo esse processo é resultado de sucessivos eventos ocorridos ao longo do desenvolvimento do indivíduo e permite a mudança das leis que governam a ação e a reconstrução de uma atividade psicológica5.

Não podemos deixar de considerar, a partir da perspectiva adotada, que o homem é um ser social, e reafirmamos: tudo que existe nele esteve antes presente e foi construído pela cultura, na sociedade a que pertence. Vimos, assim, que a internalização de atividades enraizadas socialmente e desenvolvidas ao longo da história constituiu a percepção do processo de medicalização, e, dessa forma, é de responsabilidade de todos e mantida por todos. O modo como nossos sujeitos funcionam é resultado da pressão e exigências existentes na sua vida objetiva: as dificuldades de aprendizagem visíveis e recorrentes no seu dia-a-dia, suas relações diárias, o medo, o sentimento de impotência, o desconhecimento que permeia o processo ensino-aprendizagem.

 

CONCLUSÕES

Tentar compreender os sentidos atribuídos pelos professores para o processo de aprendizagem nos permite afirmar que os discursos apresentados conciliam-se com os da área da saúde, mesmo com algumas tentativas de desenvolvimento do ensino e da aprendizagem. Conforme se demonstrou na análise, essas crenças têm em sua base o desconhecimento dos processos de desenvolvimento e de ensino-aprendizagem, visto a convicção de que o não aprender estaria associado a alguma doença e, com isso, à necessidade de se ter um diagnóstico, conforme observamos no contexto escolar.

Os dados encontrados revelam os conflitos desencadeados pelas inúmeras e diferentes concepções sobre dificuldade de aprendizagem: o fato de não saber como trabalhar com o aluno leva o professor a buscar fora de sua sala de aula as causas para o insucesso que vivencia. Também constatamos que esse processo não se atrela apenas aos docentes, como a todos os atores escolares, o que cristaliza a visão do aluno como único culpado pelo seu desempenho escolar. Por outro lado, identificamos os saberes médicos na base dessas concepções, o que pode ser justificado pela divulgação, na mídia, de transtornos e patologias que influenciam a aprendizagem e que podem e devem ser tratados com remédios.

Não queremos aqui concluir com um senso comum, mas precisamos ressaltar que todo esse movimento de aquisição e atribuição de significados ocorre a depender do que é visto, vivido e transmitido por todas as pessoas da sociedade. O que está em foco não é a culpabilização do professor, nem sua vitimização, mas sim a tentativa de trazer à tona os aspectos que envolvem esse complexo processo que caracteriza a escola: o ensino e a aprendizagem, para, dessa forma, contribuir para a construção do ensino formal mais efetivo, que promova desenvolvimento dos sujeitos nele envolvidos.

Esse processo não exclui apenas o aluno, como também, e indubitavelmente, o professor. Do desconhecimento do processo ensino-aprendizagem às inúmeras cobranças da sociedade em relação ao ensino que tem de desenvolver, gera-se um sofrimento decorrente da não efetivação de suas práticas e atividades, o que resulta em uma identidade de professor fragmentada, que visualiza a sua presença nas salas de aula necessariamente como um ato de classificação de doenças pelos seus sintomas.

Revelou-se, portanto, necessária a ressignificação não apenas do processo ensino-aprendizagem, como também das concepções existentes acerca da não aprendizagem, sobretudo, nos discursos instalados cotidianamente.

A análise apresentada nas páginas precedentes suscita muitas outras questões que fomos lançando e que merecem ser melhor investigadas em pesquisas futuras.

 

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13. Wallon H. Psicologia e educação da criança. Lisboa: Veja; 1979.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
Vera Lucia Trevisan de Souza
Pontifícia Universidade Católica de Campinas - PUCCAMP
Av. John Boyd Dunlop, s/n - Jd. Ipaussurama
CEP 13060-904, Campinas, SP, Brasil
E-mail: vera.trevisan@uol.com.br

Artigo recebido: 26/8/2013
Aprovado: 30/9/2013

 

 

Trabalho realizado na Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Campinas, SP, Brasil.
* As nomeações dadas aos sujeitos entrevistados e instituições são fictícias.
DOSETI é um nome fictício e refere-se a um centro integrado que recebe alunos de todo o município e oferece atendimento nas áreas de Psicologia, Fonoaudiologia, Pedagogia Especializada para deficientes mentais e auditivos e Terapia Ocupacional.