SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.32 número98Habilidades sociocomunicativas e de atenção compartilhada em bebês típicos da primeira infânciaA importância das neurociências na formação do professor de inglês índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Revista Psicopedagogia

versão impressa ISSN 0103-8486

Rev. psicopedag. vol.32 no.98 São Paulo  2015

 

RELATO DE EXPERIÊNCIA

 

Criança com dificuldade de aprendizagem: o processo de construção de uma guia de encaminhamento de alunos com queixas escolares a serviços de saúde

 

Children with learning disabilities: the process of building a routing guide of students with school issues to health services

 

 

Francisco Frederico NetoI; Andréa Cristina CardosoII; Harumi Nemoto KaihamiIII; Kátia OsternackIV; Gabriela Viegas StumpV; Marina Emiko Ivamoto PetlikVI; Carolina Luísa Alves BarbieriVII

IMestre em Pediatria pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, coordenador do Programa de Dificuldade de Aprendizagem do Ambulatório de Especialidades em Pediatria da Sociedade Beneficente de Senhoras Hospital Sírio-Libanês, São Paulo, SP, Brasil
IIMestre em Educação, Administração e Comunicação pela Universidade São Marcos/SP, fonoaudióloga e psicopedagoga do Ambulatório de Especialidades em Pediatria da Sociedade Beneficente de Senhoras Hospital Sírio-Libanês, São Paulo, SP, Brasil
IIIMestre em Ciências pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, psicóloga do Ambulatório de Especialidades em Pediatria da Sociedade Beneficente de Senhoras Hospital Sírio-Libanês e psicóloga chefe do Serviço de Psicologia do Instituto de Medicina Física e Reabilitação - HCFMUSP, São Paulo, SP, Brasil
IVDoutora em Ciências - Neurologia pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Especialista em Neuropsicologia credenciada pelo Conselho Federal de Psicologia, Colaboradora do Ambulatório de Especialidades em Pediatria da Sociedade Beneficente de Senhoras Hospital Sírio-Libanês, São Paulo, SP, Brasil
VMédica psiquiatra da infância e adolescência, graduação FM-USP, especialização em psiquiatria geral e da infância e adolescência pelo IPq HC- FM-USP. Psiquiatra coordenadora do ensino de médicos residentes no Ambulatório Projeto Transtorno do Espectro Autista do Instituto de Psiquiatria do HC-FMUSP e colaboradora do Ambulatório de Especialidades em Pediatria da Sociedade Beneficente de Senhoras Hospital Sírio-Libanês, São Paulo, SP, Brasil
VIDoutora em Pediatria pela Faculdade de Medicina da USP, Coordenadora do Ambulatório de Especialidades em Pediatria da Sociedade Beneficente de Senhoras Hospital Sírio-Libanês, São Paulo, SP, Brasil
VIIDoutora em Saúde Coletiva pelo Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP, Professora do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da UNISANTOS, Santos, SP, Brasil e pediatra do Ambulatório de Especialidades em Pediatria da Sociedade Beneficente de Senhoras Hospital Sírio-Libanês, São Paulo, SP, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

INTRODUÇÃO: Atualmente, assiste-se a um aumento de crianças com queixas escolares encaminhadas a profissionais de saúde, havendo uma comunicação pouco eficiente entre escola e serviço de saúde. Este artigo buscou compartilhar a experiência de construção de uma guia de encaminhamento de alunos com queixas escolares.
MÉTODO: Relato de experiência.
RESULTADOS: A partir de encontros entre coordenadores pedagógicos e profissionais de saúde, o modelo inicial de guia de encaminhamento, que contemplava apenas a solicitação de informações sobre as queixas escolares dos alunos, foi sendo aperfeiçoado até chegar a um modelo mais ágil e racional de comunicação que facilitasse a troca de informações entre profissionais da educação e saúde.
CONCLUSÃO: O aprimoramento da guia melhorou a comunicação entre as escolas e o serviço, facilitou a discriminação das queixas pelos professores e permitiu uma melhor compreensão inicial da queixa escolar do aluno encaminhado.

Unitermos: Comunicação Interdisciplinar. Guia de encaminhamento. Dificuldade de Aprendizagem. Saúde da Criança


SUMMARY

OBJECTIVE: Currently has been observed an increase of children with school issues forwarded to health professionals, with an inefficient communication between the parties. This study aimed to portray the creation of a routing guide for students with school issues to health services.
METHODS: A experience report.
RESULTS: From meetings with teaching coordinators and reviews by health team, routing guide, that starts with a basic model of information request about the students with school issues, was sought to develop a more streamlined and rational model of communication that ease up the exchange of information between the spheres of education and health.
CONCLUSION: The use of the guide improved the communication between school and our service, making it easier to discriminate complaints by teachers and allowing a better initial understanding of the students learning disabilities.

Key words: Interdisciplinary Communication. Routing guide. Learning Disabilities. Child Health


 

 

INTRODUÇÃO

Alunos com queixa(s) escolar(es), seja por mau rendimento escolar ou por dificuldade de aprendizagem, vêm motivando encaminhamentos frequentes de professores a profissionais da área da saúde infanto-juvenil, como pediatra, neurologista, psiquiatra, fonoaudiólogo, psicólogo e psicopedagogo1-3.

O campo da dificuldade de aprendizagem na criança e adolescente vem revelando tensões e desafios a serem enfrentados. Dentre as principais complexidades acerca do tema, destacam-se a diversidade e a falta de padronização de nomenclaturas, assim como o distanciamento dialógico e a presença de jargões, preconceitos e conflitos na interface entre Educação e Saúde. A uniformidade pode, de forma ambivalente, pecar pelo reducionismo de uma entidade complexa por natureza, mas, por outro lado, facilitar a interlocução entre especialistas e instituições de ensino1.

A interlocução entre os campos da educação e saúde ainda é incipiente, pois engloba profissionais de diversas áreas do conhecimento. Cada profissional e área de conhecimento no âmbito dos seus saberes e práticas tem uma percepção própria do "problema", balizada pela sua formação, cujos olhares, métodos diagnósticos, definições e abordagens dialogam pouco com os demais setores1,4,5.

A dificuldade de comunicação entre as áreas da Educação e Saúde extrapola a esfera técnico-científica e está muito presente no âmbito da praxis, envolvendo todo o processo de encaminhamento, diagnóstico, propostas terapêuticas e acolhimento integral e singular às crianças e suas famílias1,5, apesar do consenso de que a dificuldade de aprendizagem só pode ser apreendida, discutida e enfrentada de forma multiprofissional e interdisciplinar1,5,6.

A aprendizagem ou sua defasagem vai depender de múltiplos fatores e âmbitos, intra e extraescolares, como aspectos institucionais (métodos pedagógicos, capacitação e motivação dos professores e estrutura física), políticos (legislação, política de saúde), psicossociais, familiares (escolaridade e presença ativa dos pais na educação dos filhos), intrínsecos à criança, entre outros4,6. Dessa forma, o aumento de encaminhamentos de crianças com queixa de dificuldade de aprendizagem a serviços de saúde vem se mostrando sintomático dessa complexidade multifatorial.

Alguns autores apontam como um de seus determinantes a dificuldade de alguns professores em discriminar a criança cujo mau rendimento escolar é fruto de questões pedagógico-sociais, daquelas que apresentam, verdadeiramente, uma dificuldade de aprendizagem que necessite de avaliação especializada1,7,8. A dificuldade dessa discriminação pelo professor também pode estar atrelada a questões estruturais da escola e das condições de trabalho, como falta de material pedagógico, salas superlotadas, pouco investimento em capacitação dos docentes entre outros8,9.

Apesar de estudos da literatura científica apontarem essas barreiras, não se encontram ferramentas de comunicação ou encaminhamento eficazes para suprir e/ou minimizar essas lacunas. Com o intuito de aproximação dialógica e aprimoramento dos encaminhamentos de crianças com queixa de dificuldade de aprendizagem, este relato tem o objetivo de compartilhar a experiência da construção de uma guia de encaminhamento que buscou otimizar e instrumentalizar o professor a identificar, discriminar e dimensionar as queixas de dificuldade de aprendizagem do aluno que ele pretende encaminhar a serviços de saúde.

 

CARACTERIZAÇÃO DA EXPERIÊNCIA

Este estudo é um relato de experiência vivenciado entre o Programa de Dificuldade de Aprendizagem do Ambulatório de Especialidades em Pediatria da Filantropia da Sociedade Beneficente de Senhoras do Hospital Sírio-Libanês (AEP-HSL)(a) e sete escolas públicas da região central de São Paulo-SP, entre os anos de 2011 e 2013.

O Programa de Dificuldade de Aprendizagem do AEP-HSL surgiu em 2010 fruto da percepção da elevada demanda de crianças encaminhadas com queixas relacionadas a mau rendimento escolar encaminhadas pelas escolas da região central do Município de São Paulo-SP. Ele foi concebido com o objetivo de realizar diagnóstico diferencial da criança e adolescente com dificuldade de aprendizagem e orientar e propor intervenções necessárias, respeitando a singularidade de cada caso. É um serviço formado por uma equipe multiprofissional constituída por pediatra, fonoaudióloga, psicopedagoga, psicóloga, neuropsicóloga e psiquiatra. Atende a crianças de 8 a 14 anos oriundas de sete escolas públicas na região central, na Bela Vista, em São Paulo-SP. Desde 2013, recebe crianças encaminhadas da atenção primária da região centro-oeste do Município de São Paulo-SP.

Além do contato com as crianças e suas respectivas famílias, o Programa de Dificuldade de Aprendizagem do AEP-HSL buscou estreitar o diálogo entre os serviços por meio de diversas estratégias, como reuniões com coordenadores pedagógicos e professores, discussão multidisciplinar de casos específicos, conceitos, diagnósticos, encaminhamentos e propostas terapêuticas.

Em março de 2011, foi realizado o primeiro encontro entre profissionais do Programa e das sete escolas Encontros subsequentes aconteceram a cada dois meses para troca de informações sobre diagnóstico e propostas terapêuticas e pedagógicas para as crianças avaliadas. Logo nos primeiros meses observou-se que grande número de encaminhamentos era devido a problemas de comportamento, enquanto as dificuldades mais específicas relacionadas à aprendizagem ainda eram pouco identificadas e encaminhadas. Outro fato observado foi que rapidamente as escolas começaram a informar que estavam ficando com uma lista de espera expressiva.

Fruto desses encontros e da própria prática de atendimento dos alunos encaminhados à equipe do programa buscou a construção de instrumentos que facilitassem esse diálogo e o melhor direcionamento das crianças que necessitavam de avaliação especializada na área. Essa construção foi um processo dinâmico, fruto do amadurecimento, reflexão e discussão entre a equipe do Programa de Dificuldade de Aprendizagem do AEP-HSL e o retorno dado pelos profissionais das escolas. O fio condutor deste relato de experiência é a descrição do desenvolvimento de um instrumento de encaminhamento de alunos com queixas escolares da escola ao serviço de saúde.

De acordo com as recomendações da Resolução CNS n°196/96, do Conselho Nacional de Saúde - Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) -, o presente estudo obteve a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital Sírio-Libanês (Protocolo no 2010/56) em 16/12/2010. O estudo está isento de conflito de interesse.

 

O DESENVOLVIMENTO DAS GUIAS DE ENCAMINHAMENTO DE CRIANÇAS COM QUEIXA(S) ESCOLAR(ES) E SUA FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICO-METODOLÓGICA

A guia de encaminhamento da escola para o Programa de Dificuldade de Aprendizagem do AEP-HSL foi progressivamente aprimorada subdividindo-se as diferentes áreas de problemas da criança na escola e avançando na discriminação da intensidade da queixa.

No início de programa, os encaminhamentos eram realizados de forma aleatória, ora informando apenas a necessidade de atendimento especializado, ora descrevendo queixas que não traduziam de forma mais ampla as dificuldades apresentadas pelos alunos. Foi então desenvolvido um primeiro modelo de encaminhamento (Figura 1), objetivando ordenar e estabelecer um fluxo entre os serviços. Esse modelo tinha um caráter aberto e descritivo das dificuldades escolares observadas pelos professores, devendo abranger aspectos de aprendizagem, atenção, socialização e comportamento. Esse modelo foi proposto no primeiro encontro do serviço com as escolas, em março de 2011.

 

 

A partir das discussões realizadas nos encontros bimestrais entre nosso serviço com os coordenadores pedagógicos das escolas, a guia foi se transformando e tomando novas formas. Já ao final de 2011, a experiência dos primeiros encaminhamentos por meio da guia modelo 1, com descrições muitas vezes sucintas ou pouco detalhadas, conduziram a reformulações. Além disso, os professores apontavam para a necessidade de uma guia de encaminhamento de preenchimento mais ágil, dada a pouca disponibilidade de tempo dos mesmos para esse fim.

Foi introduzido, então, o segundo modelo (Figura 2), que teve como inspiração a escala SNAP IV do DSM IV10, na qual os comportamentos sugestivos de Hiperatividade e Déficit de Atenção são classificados em quatro categorias de intensidade (nem um pouco, só um pouco, bastante e demais). Passou-se, então, de um modelo apenas descritivo para outro que além deles favorecia um preenchimento mais sistematizado e abrangente, buscando evitar que alguma queixa de dificuldade escolar não fosse apontada pela escola, e que agregava ainda o dado de quanto tempo essa criança apresenta essas queixas. Assim, esse novo modelo permitia ao professor/coordenador pedagógico visualizar de forma organizada as diferentes queixas de dificuldade escolar, assim como incentivar a discriminação da intensidade das queixas observadas. Da mesma forma, a equipe do serviço de saúde passou a receber relatórios mais qualificados, agregando agilidade, coerência e fidedignidade aos dados descritos pelos professores.

 

 

O uso frequente desse segundo modelo de guia de encaminhamento mostrou a necessidade de novos aperfeiçoamentos, dando origem ao terceiro modelo (Figura 3), que é o utilizado até hoje em nosso serviço. Além de uma melhor identificação do aluno, ele buscou estruturar as queixas em quatro áreas principais de dificuldade escolar (comportamento, aprendizagem, linguagem e outras) e agregou novos dados.

Dentre eles, o detalhamento das queixas de linguagem e fala, de comportamento (em apatia/desinteresse, agressividades e outros) e de escrita em duas subdivisões: dificuldade na escrita ao copiar e ao ouvir um ditado. Essa descrição mais pormenorizada traz informação relevante para a equipe de saúde que avaliará o aluno, evidenciando possíveis dificuldades na área visual e/ou auditiva. Além disso, ele contemplou informações acerca da existência de algum diagnóstico previamente conhecido desta criança, se ela faz reforço escolar, sua hipótese de aquisição e grau de defasagem na percepção do professor.

 

CONSIDERAÇÕES A PARTIR DESSA EXPERIÊNCIA

Em nossa experiência, a utilização da guia melhorou a comunicação entre escola e o nosso serviço, facilitou a discriminação das queixas pelos professores e permitiu uma melhor compreensão inicial do quadro da criança, tanto pela escola quanto pela equipe de saúde.

Os dados da criança (nome, escola, ano letivo, data de nascimento, idade, responsáveis e contato) são essenciais para o contato com a família do aluno e com a própria escola. Ao longo do período de utilização da guia de encaminhamento, o dado que mais habitualmente foi conflitante ou mal preenchido foi o ano letivo em que o aluno se encontrava, já que muitas vezes tanto escola quanto família faziam referência à série e não ao ano escolar, traduzindo a confusão ainda existente após a mudança na estrutura da Educação quando o Ensino Fundamental, que passou a ter a duração nove e não mais oito anos. O conhecimento do ano letivo correto mostrou-se importante, pois as avaliações multiprofissionais levam em consideração as expectativas sobre o desempenho acadêmico do aluno em referência ao seu nível de escolaridade.

O aspecto seguinte refere-se à identificação pelo profissional da escola sobre qual área de dificuldade escolar é mais comprometida (comportamental, aprendizagem ou linguagem). Claro que mais de uma área poderá estar comprometida, mas muitas vezes será apontada apenas uma das três áreas, indicando, já de início, para onde a investigação poderá ser direcionada. A seguir vem o detalhamento de cada uma das áreas de dificuldade escolar, visando a uma compreensão mais ampla e minuciosa das queixas do aluno observadas pela escola.

Inicialmente são descritos aspectos relacionados a queixas comportamentais, como agitação psicomotora, desinteresse, atenção e agressividade. Quando os sintomas nesta área se mostram intensos, costumam apontar para possíveis diagnósticos de transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), distúrbios de conduta, distúrbios de humor, deficiência intelectual, distúrbio de sono, problemática psicossocial, etc. Será importante, no entanto, um olhar aprofundado sobre aspectos psicossociais, já que muitas vezes a dinâmica familiar, a falta de espaço físico onde a família habita, a falta de oportunidade de acesso a lazer e cultura, assim como a exposição à violência urbana, poderão influenciar diretamente na ocorrência desses sintomas.

No tocante às queixas relacionadas propriamente aos aspectos da aprendizagem (leitura, escrita, interpretação, aritmética), quando os sintomas nessa área se mostram intensos, costumam apontar para uma ampla gama de diagnósticos, que vão desde uma simples defasagem pedagógica até um transtorno de aprendizagem, como dislexia ou discalculia.

Nesse ponto dois aspectos merecem ser comentados. O primeiro refere-se à coerência entre as queixas de dificuldade de aprendizagem apontadas na guia e a idade do aluno e ano letivo. Muitas vezes o aluno ainda se encontra em processo de alfabetização e as queixas descritas são perfeitamente aceitáveis para a idade e ano escolar que o aluno frequenta. O segundo aspecto de relevância é saber se o aluno encaminhado foi exposto de forma regular e sistematizada ao processo de alfabetização e aprendizagem. Muitas vezes por trás de uma queixa de uma dificuldade de aprendizagem intensa está a simples falta de oportunidade de estudar.

Alguns estudos apontam que a dificuldade de aprendizagem é focada ou inerente ao aluno, desconectada do contexto escolar2,3,11. Na nossa experiência, as crianças com defasagens e com questões que envolvam o processo de ensino-aprendizagem na escola se beneficiariam de uma atenção mais individualizada, reforço escolar e apoio psicopedagógico, sem a necessidade de encaminhamento a serviço especializado. A equipe parte do pressuposto que cada criança tem seu tempo de aprendizagem e que isso tem que ser respeitado e não indica necessariamente um atraso. Outra questão observada nesses anos foi que o foco é exclusivamente o desempenho da criança, muitas vezes sem a menção ou correlação se a criança foi exposta adequadamente ao processo de aprendizagem.

A terceira área de dificuldade escolar a ser detalhada refere-se a questões de linguagem que possam apontar para problemas de aprendizagem que mereçam investigação. Por exemplo, fala sem sentido, descontextualizada, e dificuldade em entender o que lhe é falado podem apontar para diagnósticos como deficiência intelectual, déficit de atenção e problemas auditivos. Queixas envolvendo trocas de letras F/V, T/D, P/B ao falar e escrever costuma apontar para diagnósticos na área do processamento fonológico, como, por exemplo, o déficit de processamento auditivo central. Por outro lado, podemos encontrar alunos que foram pobremente expostos ao processo de alfabetização com queixas muito semelhantes.

Ainda no aspecto de linguagem, a guia apresenta uma ressalva, informando que problemas articulatórios (fala de difícil compreensão, vícios de linguagem, "língua presa"), fluência (gagueira) e voz (rouquidão) poderão se beneficiar de fonoterapia, mas deverão ser encaminhados para outro serviço de saúde, já que em nosso serviço abordamos apenas as queixas de linguagem diretamente relacionadas a queixas de dificuldade de aprendizagem (transtornos fonológicos, dislexia, etc).

O último aspecto das dificuldades escolares refere-se a queixas de coordenação motora e equilíbrio que poderão apontar para possíveis diagnósticos na área neurológica. As informações finais referem-se ao conhecimento ou não pela escola de possíveis diagnósticos preexistentes e sua possível associação com a dificuldade de aprendizagem descrita, além da identificação do grau de defasagem do aluno, da hipótese de alfabetização em que o mesmo se encontra e da informação se o aluno frequenta ou não reforço na própria escola. Assim, por exemplo, a simples análise da hipótese de alfabetização, de acordo com a idade da criança, poderá já apontar para uma importante defasagem, levantando as primeiras suspeitas diagnósticas.

O modelo atual deixa ainda espaço aberto para a descrição de outras queixas de dificuldade escolar não contempladas anteriormente, mas que possam ter sido observadas pela equipe da escola. Deve ficar claro que, apesar desse detalhamento, esse modelo de guia deve ser analisado como um todo e é o primeiro passo na abordagem diagnóstica do aluno com dificuldade de aprendizagem.

Apesar da notória melhora dos encaminhamentos e da comunicação com os profissionais da escola quando acompanhadas pelo uso da guia atual, esta experiência revelou a importância da distinção entre crianças que realmente precisam e se beneficiariam de uma avaliação especializada daquelas que têm desajuste de ensino-aprendizagem, para que a utilização desse instrumento não se torne um meio de encaminhamentos indiscriminados ou que potencialize o aumento dos encaminhamentos. Na intenção inversa, ele buscou justamente discernir os casos de dificuldade de aprendizagem que realmente mereçam uma avaliação especializada por equipe multidisciplinar de saúde. A construção desse instrumento é um primeiro passo, mas estudos são necessários para sua validação.

A construção desse modelo de guia de encaminhamento é resultado de uma oportunidade especial de um diálogo profícuo e de uma construção conjunta envolvendo Saúde e Educação. Esse aspecto aliado ao amadurecimento de conceitos e práticas por meio das sucessivas reuniões de discussão de casos e temas relacionados à dificuldade de aprendizagem favoreceu que o preenchimento da guia se tornasse cada vez mais preciso, fazendo com que chegassem a nosso serviço cada vez mais alunos com dificuldades escolares que justificavam o encaminhamento.

Com o advento da integração do AEP-HSL ao sistema SUS, a partir de 2013, um novo desafio foi colocado, já que passamos a receber alunos com queixa de dificuldade de aprendizagem de regiões mais remotas, com as quais não existia a mesma proximidade geográfica e oportunidade de encontros sistemáticos como no início do nosso programa. Como para muitas dessas escolas o encaminhamento formalizado para uma equipe diagnóstica multidisciplinar é uma oportunidade recente, convivemos ainda com encaminhamentos desnecessários onde são identificadas apenas falhas pedagógicas, perfeitamente sanáveis pela própria escola com reforço escolar e atividades afins.

Por outro lado, as novas escolas que já encaminharam mais vezes e se habituaram ao uso da guia passaram a realizar encaminhamentos cada vez mais precisos de alunos com dificuldade de aprendizagem merecedora de avaliação diagnóstica por equipe multiprofissional. A construção desse modelo de guia de encaminhamento aponta na direção do aprimoramento da comunicação e da integração dos setores de Educação e Saúde para que juntos promovam o potencial de cada criança, de cada adolescente ao longo de sua formação educacional.

 

CONCLUSÃO

Em nossa experiência, a utilização da guia melhorou a comunicação entre a escola e o nosso serviço, facilitou a discriminação das queixas pelos professores e permitiu uma melhor compreensão inicial do quadro da criança, tanto pela escola quanto pela equipe de saúde. Acreditamos que esta experiência possa ser multiplicada em outros espaços de interlocução educação-saúde e aponta para futuros estudos de validação desse instrumento.

 

AGRADECIMENTOS

Agradecemos à coordenação, equipe técnica e administrativa do Ambulatório de Especialidade em Pediatria do Hospital Sírio-Libanês e aos profissionais das sete escolas públicas que participaram dessa construção.

 

REFERÊNCIAS

1. Ciasca SM. Distúrbios de aprendizagem: proposta de avaliação interdisciplinar. 2ª ed. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2004.         [ Links ]

2. Osti A. As dificuldades de aprendizagem na concepção do professor [Dissertação]. Campinas: Universidade Estadual de Campinas; 2004.         [ Links ]

3. Lopes RCF, Crenitte PAP. Estudo analítico do conhecimento do professor a respeito dos distúrbios de aprendizagem. Rev CEFAC. 2013;15(5):1214-26.         [ Links ]

4. Araújo APQC. Avaliação e manejo da criança com dificuldade escolar e distúrbio de atenção. J Pediatr. 2002;78(supl 1):104-10.         [ Links ]

5. Sucupira ACSL. Hiperatividade: doença ou rótulo? In: Collares CAL, Moysés MAA, orgs. Caderno do Cedes. Fracasso escolar: uma questão médica? São Paulo: Cortez; 1986. p.30-43.         [ Links ]

6. Collares CAL, Moysés MAA. A transformação do espaço pedagógico em espaço clínico: a patologização da educação. In: Alves ML, org. Cultura e saúde na escola. São Paulo: Fundação para o Desenvolvimento da Educação; 1994. p.25-31.         [ Links ]

7. Carvalho FB, Crenitte PAP, Ciasca SM. Distúrbios de aprendizagem na visão do professor. Rev Psicopedagog. 2007;24(75):229-39.         [ Links ]

8. Silva AFV, Couto IC, França JA, Colares MFA. Percepções dos professores do ensino fundamental sobre as dificuldades de aprendizagem. Rev Eletrônica de Letras 2013;6(1). Disponível em: http://periodicos.unifacef.com.br/index.php/rel/article/view/562 Acesso em: 11/2/2015        [ Links ]

9. Torres DI, Ciasca SM. Correlação entre a queixa do professor e a avaliação psicológica em crianças de primeira série com dificuldade de aprendizagem. Rev Psicopedagog. 2007;24(73):18-29.         [ Links ]

10. DMS - IV. Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais. Porto Alegre: Editora Artes Médicas Sul; 1994.         [ Links ]

11. Oliveira JP, Santos SA, Aspilicueta P, Cruz GC. Concepções de professores sobre a temática das chamadas dificuldades de aprendizagem. Rev Bras Ed Esp. 2012;18(1): 93-112.         [ Links ]

12. Jacomini MA. A escola e os educadores em tempo de ciclos e progressão continuada: uma análise das experiências no estado de São Paulo. Educação e Pesquisa. 2004; 30(3):401-18.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
Francisco Frederico Neto
Ambulatório de Especialidade em Pediatria do Hospital Sírio-Libanês
Rua Peixoto Gomide, 337 - Bela Vista - São Paulo, SP, Brasil - CEP: 01409-001.
E-mail: ffredericoneto@gmail.com

Artigo recebido: 20/4/2015
Aprovado: 9/7/2015

 

 

Trabalho realizado no Ambulatório de Especialidade em Pediatria do Hospital Sírio-Libanês, São Paulo, SP, Brasil.
(a) Serviço criado em 2010 com o nome inicial 'Núcleo de Apoio à Aprendizagem', foi remodelado e assumiu nova configuração. Desde 2013 passou a se chamar 'Programa de Dificuldade de Aprendizagem' do Ambulatório de Especialidades em Pediatria da Filantropia da Sociedade Beneficente de Senhoras do Hospital Sírio-Libanês.

Creative Commons License