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Revista Psicopedagogia

versão impressa ISSN 0103-8486

Rev. psicopedag. vol.32 no.99 São Paulo  2015

 

ARTIGO DE REVISÃO

 

O brincar na clínica psicopedagógica

 

The play in clinic psychopedagogical

 

 

Rosanita MoschiniI; Iara CaierãoII

IMestre em Educação (UFSM); Especialista em Infância e Família (UFRGS) e Orientação Educacional (UNINTER); Licenciada em Pedagogia (UNISINOS); Membro do Grupo Didático Psicopedagógico, Coordenado por Alícia Fernàndez (2011-2015); Membro da Diretoria da ABPp-RS, Gestão 2011-2013 e 2014-2016; Docente em Cursos de Pós-Graduação em diversas IES; Assessora e Consultora em Educação, Porto Alegre, RS, Brasil
IIPsicopedagoga; Doutora em Educação (UFRGS); Mestre em Educação (PUCRS); Licenciatura em Pedagogia - Habilitação em Supervisão Escolar; Habilitação em Letras/UPF; Membro Comissão Científica ABPp Nacional; Presidente ABPp-RS Gestão 2011-2013; 2013-2016. Docente em Cursos de Pós-Graduação em diversas IES. Assessoria Psicopedagógica a Secretarias Municipais de Educação, Porto Alegre, RS, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo visa apresentar aspectos do brincar relacionados com a clínica psicopedagógica, com base na revisão de literatura acerca da temática, em complementaridade com a prática psicopedagógica. As reflexões baseiam-se na importância de se estabelecer um espaço de jogo na clínica psicopedagógica visando a qualificação do processo terapêutico, como um espaço de criatividade.

Unitermos: Psicopedagogia. Aprendizagem. Jogos e Brinquedos.


ABSTRACT

This article presents aspects of playing-related psychoeducational clinic, based on a review of literature on the theme, complementing the psychoeducational practice. The reflections are based on the importance of establishing a space game in psychoeducational clinic aiming to qualify the therapeutic process as a space for creativity.

Key words: Psychopedagogy. Learning. Play and Playthings.


 

 

INTRODUÇÃO

A valorização da autoria de pensamento é, sem dúvida, emergente nos tempos atuais, acompanhada da capacidade de estar a sós e ao desenvolvimento da potência do brincar.

O presente artigo busca tecer algumas considerações acerca da importância do brincar e na criação do espaço potencial, enfocando este conceito no espaço terapêutico psicopedagógico no que tange as dificuldades de aprendizagem.

Enquanto psicopedagogos, compreendemos que se faz necessário nutrir a própria autoria e a permissão para o brincar, a fim de descobrir nossa singularidade, nossa diferença, nossa marca e, partindo disso, abrir espaços potenciais. Só assim é possível construir esses espaços em tempos que se acredita que as máquinas tendem a substituir-nos como sujeitos pensantes e desejantes. Assim, torna-se imperioso nosso trabalho de abrir espaços de criatividade1.

Para Winnicott2, qualquer que seja a definição que tenhamos a respeito de criatividade, ela deverá incluir a ideia de que a vida só é digna de ser vivida quando a criatividade forma parte da experiência vital do indivíduo. "Para ser criativa, uma pessoa tem que existir e sentir que existe". Para esse autor, a criatividade é o "fazer que surge do ser. Indica que aquele que é, está vivo". O impulso poderá estar adormecido, mas quando a palavra "fazer" se torna apropriada, então já há criatividade. Nesse sentido, o brincar e a criatividade são inseparáveis, pois brincar (e não o brinquedo) implica, sempre, em criar.

Portanto, para que o aprender se constitua como processo significativo, há que conter os elementos da arquitetura lúdica, ou seja, a curiosidade, o desafio, o desejo, o prazer no processo, a produção (e não o produto) e a síntese. Essa síntese não precisa ser conclusiva, mas síntese de um percurso em que a palavra substitui o fazer. Ao fazer meu, um conhecimento estou (re)criando-o, (trans)formando-o e (in)corporando-o, caso contrário trata-se apenas e tão somente de (in)formação. Reconhecer o brincar como potência é essencial para quem faz mediação psicopedagógica.

 

O ESPAÇO DE JOGO COMO POTENCIALIZADOR DA APRENDIZAGEM

Entender o espaço de jogo no atendimento psicopedagógico como um espaço de criatividade, no qual estão envolvidos o brincar, o paciente e o terapeuta, é primordial quando pensamos em constituição psíquica e desenvolvimento da imaginação. É por meio desses espaços lúdicos que os espaços de pensamento serão efetivos, assim, sendo capaz de autorizar-se a ressignificar sua história sem perder a memória (recordação) do passado.

Para Rodulfo3, não há no brincar apenas uma função, pois, "nos diferentes momentos da ação subjetiva, observaremos variantes e transformações na função do brincar". Alinhado à perspectiva de Winnicott2, o autor insiste no conceito brincar, pois, diferentemente de brinquedo, que remete a um produto de certa atividade, o brincar, no infinitivo, indica seu caráter de produção. O autor argentino diz que o brincar se constitui no fio condutor "que podemos tomar para não nos perdermos na complexa problemática da constituição subjetiva. (...) não há nenhuma atividade significativa no desenvolvimento da simbolização da criança que não passe vertebralmente por ele (o brincar)".

Já Huizinga4 também dá ênfase ao caráter processual, mas o termo por ele adotado é "o jogo" e não o "brincar". Para ele o jogo é uma função significante que encerra um determinado sentido em si mesmo e, nas diferentes concepções do jogo, há nelas um elemento comum: "todas elas partem do pressuposto de que o jogo se acha ligado a alguma coisa que não seja o próprio jogo, (...) pois, o jogo seja qual for sua essência, ela não é material". Quanto à limitação de tempo e espaço, a segunda é mais flagrante, pois todo e qualquer jogo acontece no interior de um campo previamente delimitado, seja de maneira concreta ou imaginária, mas há essa delimitação, por vezes com precisão. Nessa perspectiva, é possível dizer que a floresta, a fazendinha e os planetas têm todos a forma e a função de territóriosa de jogo, em cujo lugar se respeitam determinadas regras. Mundos temporários, efêmeros, fugazes, mas não menos real.

Agamben5, no capítulo "O país dos brinquedos: reflexões sobre a história e sobre o jogo", utiliza o termo "brinquedo" e "brincadeira" para designar o lúdico na sua dimensão processual. Nessa altura e com a entrada do jogo e da brincadeira no cotidiano, o tempo passa a ter outra dimensão. Há dois tempos: o tempo do calendário, do relógio, da repetição e o tempo do jogo que altera completamente essa estrutura lógica do tempo real. "O jogo carrega na sua essência a esfera do sagrado; por meio dele o homem conserva o passado - com o qual as crianças brincam". O jogo, para o autor, transforma e fragmenta toda a estrutura em eventos e rompe a conexão entre o passado e o presente. O jogo transforma a sincronia (do tempo rígido e ritual) em diacronia. Contudo, se houvesse uma sociedade que tomasse o tempo pela perspectiva do jogo como referido pelo autor no país dos brinquedos, as horas poderiam correr como faíscas ou aconteceria como a roda de Íon, que gira em chamas por toda a eternidade.

O tempo do brincar é o tempo da alma, da fantasia e do poder, pois em território lúdico a criança se empodera e realiza o que, no cotidiano, se sente impedida ou limitada para fazer. Num passe de mágica se transforma em personagens bons ou maus, mas geralmente mais fortes que elas, como podemos ver na letra da canção "João e Maria", de Chico Buarque: "Agora eu era herói e o meu cavalo só falava inglês e a noiva do cowboy era ... além das outras três (...)".

Mas como brinca uma criança em sofrimento? Como lida com o descompasso de suas aprendizagens e de sua atenção fragmentada?

De acordo com Fernàndez1, quando nos encontramos ante um sujeito que padece de um problema de aprendizagem, tal tarefa não só se faz mais imperiosa, como tem, por sua vez, especificidades. A inteligência, a elaboração objetivante, participa da tarefa autobiográfica e, por sua vez, a realização de tal obra alimenta a inteligência. Necessitamos da inteligência para construir nossa autoria e, reciprocamente, para crescer, a inteligência precisa de um sujeito que se assuma autor.

Para tanto, só há possibilidade de haver a construção do saber, se o indivíduo for capaz de jogar com o conhecimento. Por isso a importância de entendermos o espaço de jogo não relacionado a um ato e sim a um processo. Winnicott2 chama de espaço transicional, espaço de confiança de criatividade. Transicional entre o crer e não crer, entre o dentro e o fora. O espaço transicional é o único onde se pode aprender. Espaço transicional e espaço de aprendizagem são coincidentes, como destaca Fernàndez6.

Para construir um saber, para se apropriar de um conhecimento, devemos jogar com a informação e relativizá-la, sendo certa e sendo não certa. É neste processo que irá se construir o espaço de criação, a possibilidade de transformar o objeto, de acordo com a experiência individual e, por sua vez, deixar-se transformar pela inclusão do objeto.

A capacidade de jogar, reordenar, tomando, separando, com ideias, com informações, é fundamental no processo de aprendizagem, pois a criança que não realiza tais ações em território lúdico terá, possivelmente, dificuldade em fazê-lo em espaço escolar.

Na clínica psicopedagógica, é perceptível nos atendidos um déficit no jogar, correlacionado com o déficit na aprendizagem. Na medida em que potencializamos o brincar no tratamento psicopedagógico, a partir de um espaço de confiança, vão-se modificando a rigidez, estereotipias das modalidades de aprendizagem.

"A Psicopedagogia, cuja função é mediar o processo de aprendizagem de quem se encontra impossibilitado de fazê-lo e resgatar o prazer de aprender fazendo-se autor do seu próprio aprender, encontra na ação do brincar os principais fundamentos para a sua prática emancipatória com crianças, pois não há como fazer Psicopedagogia fora da perspectiva lúdica, já que lúdico implica construção, autoria e prazer7".

Com isso, podemos considerar que o objetivo do trabalho psicopedagógico é auxiliar a recuperação do prazer perdido de aprender e a autonomia do exercício da inteligência, a partir da recuperação do prazer de jogar. Nessa perspectiva, Caierão7 afirma que, é na arquitetura lúdica realizada pela criança, no ato dinâmico do brincar, que colhemos significativos elementos para conhecer e compreender o funcionamento cognitivo do sujeito e a partir dele realizar a devida intervenção psicopedagógica.

Assim, frente ao processo de diagnóstico psicopedagógico, temos dentre outros momentos um que é de grande importância: a Hora do Jogo.

Na sessão intitulada Hora do Jogo, a criança não está jogando (uma vez que responde a ordem para que brinque), mas nos mostrando como pode jogar. Por isso um dos parâmetros de observação na Hora do Jogo Psicopedagógica vai ser o mostrar-ocultar-esconder6.

Como afirma Winnicott2, "é no jogo que a criança relaciona as ideias com a função corporal". Portanto, é através do jogo que a criança vai expressar agressão, para adquirir experiência, para controlar a ansiedade, para estabelecer contatos sociais como integração da personalidade e por prazer.

 

HORA DO JOGO PSICOPEDAGÓGICA

A Hora do Jogo no setting psicopedagógico tem como objetivo compreender alguns processos que podem ter levado às dificuldades de aprendizagem, uma vez que o espaço de aprendizagem e de jogar são coincidentes; ambos os processos têm nome analogizáveis (inventário - organização - integração); a modalidade desenvolvida no jogo e o tipo de tratamento do objeto lançam luz sobre a cena de aprendizagem; o brincar possibilita o desenvolvimento das significações de aprender, o que na criança se expressa por meio da atividade lúdica6.

Estabelecemos a hora do jogo no primeiro momento do processo de diagnóstico psicopedagógico, antes da primeira reflexão interdisciplinar, para assim termos uma aproximação inteligência-desejo-corporeidade, a partir da qual optaremos pela necessidade ou não de observar outros aspectos.

De acordo com Fernández6, a Hora do Jogo Psicopedagógica "supera a dicotomia dos testes projetivos, pois ajuda a observar em seu operar, aqueles aspectos que tradicionalmente foram estudados de forma isolada e somente em seus produtos (testes de performance, psicomotricidade, maturidade visomotora, etc.). A Hora do Jogo permite observar a dinâmica da aprendizagem".

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir das considerações acima, podemos afirmar que, entender o brincar como um processo e um espaço de criatividade, portanto potencial e de aprendizagem, é fator primordial quando se trata da clínica psicopedagógica.

Para tanto, faz-se necessário buscar compreender como se estabelece o brincar e os espaços transicionais, para, assim, compreender como se dá a constituição psíquica e, consequentemente, o desenvolvimento da imaginação.

O processo de autoria está intimamente vinculado ao processo de aprender, assim como o aprender está relacionado à capacidade de jogo, de tomar para si o objeto e transformá-lo, recriá-lo construindo novos significados, novas possibilidades e novas aprendizagens.

 

REFERÊNCIAS

1. Fernàndez A. Os idiomas do aprendente: análise das modalidades ensinantes com famílias, escolas e meios de comunicação. Porto Alegre: Artmed; 2001.         [ Links ]

2. Winnicott DW. O brincar & a realidade. Rio de Janeiro: Imago; 1975.         [ Links ]

3. Rodulfo R. O brincar e o significante: um estudo psicanalítico sobre constituição precoce. Porto Alegre: Artes Médicas; 1990.         [ Links ]

4. Huizinga J. Homo ludens. São Paulo: Perspectiva; 2001.         [ Links ]

5. Agamben G. Infância e história: destruição da experiência e origem da história. Belo Horizonte: Editora UFMG; 2005.         [ Links ]

6. Fernàndez A. A inteligência aprisionada: abordagem psicopedagógica clínica da criança e sua família. Porto Alegre: Artmed; 2008.         [ Links ]

7. Caierão I. Hora do jogo: a arquitetura lúdica como instrumento de avaliação psicopedagógica. In: Scicchitano RMJ, Castanho MIS, eds. Avaliação psicopedagógica: recursos para a prática. Rio de Janeiro: Wak Editora; 2013.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
Iara Caierão
Av. Venâncio Aires, 1119, cj 09
Porto Alegre, RS, Brasil CEP: 90040-193
E-mail: iarac@terra.com.br

Artigo recebido: 10/11/2015
Aprovado: 8/12/2015

 

 

Trabalho realizado na Associação Brasileira de Psicopedagogia - Seção Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil.
a Prefere-se o termo território ao invés de terreno, pois o conceito de território remete a uma apropriação do espaço: espaço habitado, espaço apropriado por alguém, espaço que se faz seu.

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