SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.33 número101Desempenho de escolares em testes de atenção e funções executivas: estudo comparativoDados preliminares de um programa de intervenção para compreensão leitora por meio da técnica de cloze índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Revista Psicopedagogia

versão impressa ISSN 0103-8486

Rev. psicopedag. vol.33 no.101 São Paulo  2016

 

ARTIGO ORIGINAL

 

Avaliação do uso de jogos eletrônicos para o aprimoramento das funções executivas no contexto escolar

 

Evaluation of the use of electronic games to improvement of executive functions in the school context

 

 

Daniela Karine RamosI; Natália Lorenzetti da RochaII

IDoutora em Educação e professora do Programa de Pós-Graduação em Educação e do Departamento de Metodologia de Ensino da Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil
IIPsicóloga e Mestranda em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este estudo avalia o uso de jogos eletrônicos para o aprimoramento das funções executivas em crianças no contexto escolar. A pesquisa caracteriza-se como exploratória e utiliza uma abordagem qualitativa para subsidiar, fundamentar e orientar a utilização e o desenvolvimento de jogos cognitivos para dispositivos móveis. A composição da amostra envolveu a participação de duas turmas, contabilizando 50 alunos, na faixa etária de 8 a 11 anos. As turmas participaram de uma intervenção pautada no uso da Escola do Cérebro - um sistema que integra jogos cognitivos eletrônicos - diariamente, durante 20 minutos, em um período de 4 semanas. As intervenções foram observadas e registradas de modo contínuo e, ao final, os dois professores das turmas participantes e os alunos foram entrevistados em grupo. Os resultados apontam para maior motivação das crianças, desempenho crescente nos jogos e aprimoramento de funções executivas, em especial, o autocontrole e a atenção.

Unitermos: Jogos de vídeo. Função executiva. Atenção. Aprendizagem.


ABSTRACT

This study evaluates the use of electronic games for the improvement of executive functions in children in the school context. The search presents a qualitative approach, to support and guide the use and the development of cognitive games for mobile technologies. The sample was composed by 50 students aged 8-10 years from two classes. Those classes participated in guided experiments using the Escola do Cérebro - a system that integrates cognitive electronic games - daily for 20 minutes in a period of 4 weeks. Interventions were observed and recorded continuously and after finishing the experiments, the two teachers of those classes were interviewed and the students participated in a group interview. The results point to the increasing of the student motivation, to the improvement in gaming performance and the improvement of executive functions, in particular the self-control and the attention.

Key words: Video games. Executive function. Attention. Learning.


 

 

INTRODUÇÃO

Este trabalho pauta-se em um enfoque globalizador de Educação, o qual inclui uma prática pedagógica que aborda conteúdos de aprendizagem conceituais, procedimentais e atitudinais, visto que propõe o uso de jogos eletrônicos para o aprimoramento das habilidades cognitivas1. Dessa maneira, trabalha-se mais diretamente conteúdos procedimentais, os quais supõem o exercício múltiplo e a reflexão sobre a ação.

Os jogos utilizados compõem um programa de Neuroeducação denominado Escola do Cérebro, que pode ser utilizado em dispositivos móveis, como tablets, e servir como uma alternativa à escola para o exercício de habilidades cognitivas (Figura 1). Entende-se por jogos cognitivos eletrônicos "um conjunto de jogos variados que trabalham aspectos cognitivos, propondo a intersecção entre os conceitos de jogos, diversão e cognição"2. Partindo desse pressuposto, considera-se que os desafios e as características dos jogos contribuem para o exercício e desenvolvimento de habilidades cognitivas.

 

 

As habilidades cognitivas tornam o sujeito competente para interagir com o meio, uma vez que permitem a discriminação de objetos e propiciam a construção e a estruturação contínua dos processos mentais3. Essas habilidades estão fortemente vinculadas às funções executivas, que compreendem "um elenco de operações cognitivas do qual fazem parte a flexibilidade, o planejamento cognitivo e a capacidade de autorregulação dos processos mentais e comportamentais"4. A Escola do Cérebro propõe, principalmente, o exercício da atenção, da memória de trabalho e da capacidade de resolução de problemas.

A atenção pode ser entendida como um tipo de concentração em uma tarefa mental na qual se seleciona certos estímulos perceptivos para processamento posterior, ao mesmo tempo em que se busca a exclusão e inibição de estímulos distratores5. Dessa forma, é possível compreender a relevância do treino das funções executivas, uma vez que o processo inibitório de estímulos distratores repercute diretamente no exercício da atenção. Nota-se, ainda, a importância destas para a aprendizagem, para o desempenho escolar e para a capacidade de transferência de aprendizagem para outros contextos6-9.

No que se refere ao exercício da atenção por meio do uso dos jogos eletrônicos, pesquisadores10 ressaltam os benefícios do uso desses recursos que focam em determinadas ações e requerem o bloqueio de estímulos distratores, exigindo que o jogador gerencie diversas tarefas e mantenha a meta central do jogo. Esses fatores aliados a um ambiente veloz e imprevisível tornam os jogos ferramentas divertidas e poderosas no treino da atenção11.

Os jogos cognitivos eletrônicos permitem o exercício de habilidades, o que pode modificar a organização funcional e estrutural do cérebro, resultando em melhor desempenho dos jogadores em tarefas que envolvam a memória, o cálculo, o raciocínio lógico, a criatividade e a resolução de problemas12.

Estudos da área ressaltam que pessoas que têm o hábito de utilizar jogos eletrônicos exercitam as habilidades cognitivas, o que reflete em um melhor desempenho em determinadas tarefas. Estudiosos compararam o desempenho de adultos jovens, em tarefas de atenção - os que jogavam e os que não jogavam jogos eletrônicos de ação - e concluíram que a prática aumenta a capacidade de atenção e melhora a execução de inúmeras tarefas que envolvem percepção visual, atenção e habilidades espaciais13.

Outro estudo publicado, feito por meio da observação de 160 crianças em diversas situações e idades, indicou que aquelas que possuem um maior desempenho em jogos eletrônicos também possuem mais atenção em tarefas rotineiras14. Tais pesquisas sugerem uma transferência de aspectos aprendidos dentro do jogo para a vida cotidiana, o que reflete nas potencialidades do uso de jogos cognitivos em um contexto escolar no qual a atenção é fundamental para o processo de aprendizagem.

Sendo assim, trabalhar formas de exercitar a atenção por meio do uso dos jogos, além de ser uma alternativa divertida e lúdica, faz com que as crianças comecem também a perceber a importância em focalizar a atenção nas atividades escolares para obter êxito.

Cabe ressaltar, ainda, o caráter multissensorial dos jogos eletrônicos, uma vez que, em geral, possuem: um ritmo acelerado, componentes de imprevisibilidade, um nível ideal de dificuldade, um contexto e uma estrutura para ações, além de serem delimitados por regras e objetivos que desafiam o jogador. Tais fatores propiciam uma aprendizagem visual, dando oportunidade ao recebimento de algum tipo de reforço comportamental (experiência, pontos, itens) e fazendo com que constantemente uma nova estratégia seja utilizada, devido à imprevisibilidade do jogo15. Ademais, os jogadores exercitam sua capacidade de fazer escolhas e tomar decisões, o que se reflete em uma experiência repleta de emoção e diversão16.

Os jogos eletrônicos estão cada vez mais presentes no cotidiano de crianças, jovens e adultos, tornando-se parte de seu ambiente vivencial. Dessa maneira, sugere-se a inserção do uso dos mesmos no contexto escolar, a fim de propiciar um ambiente mais rico e envolvente, capaz de gerar situações que divirtam as crianças, na medida em que exercitam as habilidades cognitivas e mostram-se acessíveis para a utilização nesse espaço11.

Com base nesse panorama, este trabalho apresenta e discute o programa de Neuroeducação denominado Escola do Cérebro, a fim de avaliar os indicativos relacionados ao desenvolvimento cognitivo das crianças participantes, discorrer acerca dos benefícios que a Escola do Cérebro proporcionou no tocante às funções executivas, tomando como base a utilização no contexto de sala de aula e a avaliação realizada pelos professores e pelas próprias crianças.

 

MÉTODO

A pesquisa realizada caracteriza-se como exploratória, por procurar ampliar a compreensão sobre o tema, explicitando os aspectos da situação17 e utiliza uma abordagem qualitativa que resguarda, principalmente, um caráter descritivo, visto que se buscou proporcionar a descrição do fenômeno investigado, por meio de entrevistas e observações realizadas18.

Participantes

O estudo contou com uma amostra não-aleatória por conveniência de 50 alunos, sendo 28 meninos e 22 meninas, na faixa etária de 8 a 11 anos, envolvendo a participação de duas turmas do Ensino Fundamental (anos iniciais) do Colégio de Aplicação da Universidade Federal de Santa Catarina.

Devido à participação de alunos e professores, o projeto foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética, conforme parecer nº 200.436. Após a seleção das turmas, foram entregues o Termo de Livre Consentimento aos pais e responsáveis e, mediante a autorização dos mesmos, a pesquisa deu prosseguimento.

Procedimentos

Os procedimentos envolveram a proposição de uma intervenção, utilizando a Escola do Cérebro, acessada por tablets em sala de aula, diariamente, por aproximadamente 20 minutos, durante um período de 4 semanas. Cada intervenção incluiu a organização do espaço para realização da atividade, o acesso ao tablet e à rede, a realização do login na Escola do Cérebro e o uso de um jogo definido.

No decorrer da atividade foram feitas observações cursivas e registros, incluindo comportamentos, interações orais e dificuldades encontradas. Foi registrada, ainda, a reação das crianças a cada jogo e a forma com que elas lidavam com a frustração e com a vitória.

Após o período de intervenção, realizou-se uma entrevista em grupo com as crianças que jogaram na Escola do Cérebro e uma entrevista individual com as duas professoras das duas turmas participantes. As entrevistas foram filmadas e transcritas, após consentimento das partes envolvidas.

Instrumentos e materiais da pesquisa

As intervenções pautaram-se no uso de um sistema que integra jogos cognitivos eletrônicos a uma base de dados, a qual permite ao jogador acompanhar a evolução de seu desempenho nos jogos em relação às três habilidades cognitivas exercitadas: memória de trabalho, resolução de problema e atenção (Quadro 1).

As observações realizadas ao longo das intervenções foram registradas em formulário online. Esse formulário continha categorias que auxiliavam no momento do registro, sendo elas: atenção e foco na atividade, interesse pela atividade, interação colaborativa, respeito às regras dos jogos, capacidade de planejamento de ação e persistência.

Outro instrumento utilizado foi o roteiro de entrevista semiestruturado aplicado ao final das intervenções com as duas professoras das turmas participantes. O roteiro tinha o objetivo de estabelecer um diálogo sobre as percepções acerca da atividade desenvolvida, identificação de mudanças comportamentais e de desempenho escolar das crianças. De modo geral, as questões que conduziam buscavam interrogar acerca das evoluções observadas (aspectos cognitivos e sociais); focalização da atenção e tempo de sustentação, desempenho em atividades escolares, benefícios e limitações observadas quanto ao uso da Escola do Cérebro.

Por fim, utilizou-se um roteiro semiestruturado para realização da entrevista em grupo com as crianças. Os questionamentos feitos eram acerca do que mais gostaram de jogar; o que não gostaram e o porquê dessas preferências. Além disso, buscou-se inquirir o que cada criança pensava sobre os benefícios dos jogos; o que teria "melhorado" após o tempo de jogo e o que teria "modificado" em seu comportamento na escola, no tocante à aprendizagem e à convivência com os demais colegas.

Análise dos dados

As observações realizadas durante as intervenções foram registradas e analisadas, procurando identificar as interações e comportamentos que pudessem ser tomados como indicadores de envolvimento e exercício das habilidades cognitivas.

As entrevistas realizadas com as professoras e com os alunos das duas turmas participantes foram transcritas e analisadas de acordo com a perspectiva da análise do conteúdo19, utilizando procedimentos sistemáticos de descrição do conteúdo das entrevistas e observações, definindo indicadores para permitir a inferência de conhecimentos. Para tanto, observando os três polos cronológicos de organização da análise de conteúdo: na pré-análise, realizou-se a leitura flutuante, procurando identificar as categorias e indicadores e preparando o material para análise; na exploração do material, organizou-se o conteúdo e codificou-se com base nos indicadores, para então proceder ao tratamento dos resultados, realizando inferências e fazendo interpretações.

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Em nosso estudo propusemos o uso de jogos cognitivos eletrônicos em sala de aula, como parte das rotinas escolares e avaliamos os resultados obtidos, tomando por base as observações realizadas e as entrevistas feitas com os participantes. A leitura flutuante realizada no material transcrito resultante dessas entrevistas revelou três categorias que orientaram à análise (Figura 2).

As três categorias puderam ser identificadas nos dois perfis de participantes. Os professores destacaram, por exemplo, em relação ao autocontrole, que as crianças manifestavam mais paciência, passaram a respeitar mais as regras e os colegas, demonstrando domínio melhor dos limites, o que contribuiu diretamente na diminuição de conflitos em sala. Já as crianças destacaram que passaram a ter mais paciência, reforçando o que os professores evidenciaram, algumas crianças afirmaram que começaram a pensar mais antes de agir, por exemplo.

A definição das categorias orientou a codificação e identificação das partes das transcrições que podiam estar relacionadas, permitindo quantificar a frequência de cada categoria, conforme demonstrado na Tabela 1. Contudo, cabe ressaltar que, como a entrevista com as crianças foi realizada em grupo, nem todas se manifestaram.

 

 

As entrevistas realizadas com as professoras revelaram que as intervenções propiciaram o exercício da paciência e do autocontrole, tanto para seguir os procedimentos para acesso e conexão à Escola do Cérebro, quanto para jogar com outro colega, quando determinado tablet não conectava. Assim, o uso dos jogos eletrônicos no contexto escolar favoreceu o trabalho de conteúdos atitudinais, por meio da manifestação de comportamentos pró-sociais expressadas pelo convívio respeitoso e amigável1. Esses fatores também puderam ser vistos na prática, porque são consequências de um maior exercício de autorregulação e autocontrole, o que se relaciona diretamente com as funções executivas, como a flexibilidade cognitiva, a disciplina e o planejamento das ações, aspectos que se contrapõem às respostas impulsivas9.

Um, entre muitos, aspectos positivos referentes ao uso dos jogos eletrônicos nessa situação diz respeito à transposição de aspectos aprendidos dentro do jogo para a vida cotidiana14. Esse fato pode ser ilustrado pela fala de algumas crianças acerca dos aspectos positivos dessa experiência: "aprendi que tem que ter paciência em muitos lugares, até lá em casa quando a comida está sendo preparada". Outra complementou da seguinte forma: "aprendi que a gente não tem só que fazer, tem que pensar antes de fazer ou falar. Agora eu entendo porque a minha mãe fala para eu pensar antes de falar".

Os resultados obtidos podem ser revelados pelas mudanças ocorridas nas turmas que, segundo as professoras, passaram a sustentar por mais tempo a atenção, tornaram-se mais rápidos na resolução das atividades em sala e mais persistentes. Nesse sentido, uma professora ressalta que a Escola do Cérebro "contribui de modo geral com outras atividades de sala".

A atenção das crianças, quando comparamos aos momentos iniciais do contato com o tablet e o fim do período dos jogos, também deve ser evidenciada. Antes, havia uma dificuldade bastante nítida em entender o que era solicitado e, consequentemente, atender adequadamente as orientações para organização da atividade com os jogos, bem como em relação aos desafios e às ações requeridas. Alguns alunos acabavam clicando em ícones desnecessários, o que atrapalhava o andamento da atividade e repercutia na necessidade de ter que ficar repetindo algumas vezes as mesmas orientações. No decorrer das intervenções, percebeu-se que as crianças estavam mais atentas ao que era falado e mais focadas nos jogos. Tal ocorrido também foi notado pelas crianças que disseram ter desenvolvido "a paciência e a inteligência", já que: "tem que ir vendo, vendo, pensando, pensando como se fosse um labirinto cheio de pedacinhos".

Os professores, de modo geral, também avaliaram a intervenção como relevante, principalmente, em relação ao desenvolvimento cognitivo e social dos alunos. Nesse sentido, uma das professoras faz o seguinte relato durante a entrevista de avaliação das intervenções: "melhorou a atenção e a concentração. Até o limite, o controle deles. Porque na atividade eles tinham que ficar centrados e isso contribuía com o dia a dia". Ademais as professoras observaram que as turmas tiveram uma melhora em relação à atenção, passando a ouvir o que era solicitado e explicado por elas e respondendo adequadamente. Os episódios de distrações, que antes eram costumeiros e podiam ser observados na maior parte dos alunos da turma, diminuíram e, consequentemente, o desempenho escolar teve uma melhora geral. Desse modo, foi possível constatar uma correlação com o que estudiosos colocaram acerca da importância dos jogos eletrônicos no exercício de bloqueio de estímulos distratores11.

No Quadro 2, sistematizou-se algumas passagens das transcrições realizadas a partir das entrevistas individuais com as professoras que ilustram como as categorias foram codificadas:

De modo similar, a sistematização e codificação das entrevistas realizadas em grupo com as duas turmas participantes (Quadro 3) permitiu identificar as mesmas categorias de análises dos professores, na qual destaca-se o autocontrole, como a habilidade mais exercitada com o uso da Escola do Cérebro. Na sequência, temos a capacidade de resolução de problemas em destaque e o exercício da atenção.

Nos quadros sistematizados, destacou-se os resultados obtidos a partir da intervenção com base nas avaliações feitas pelos próprios participantes da pesquisa. Essas contribuições refletiram sobre o ambiente escolar, pois com episódios de distração diminuídos e melhoria no desempenho de parte dos alunos, aos poucos, os professores perceberam maior progresso no ambiente de sala de aula e nas relações sociais entre as crianças. Esse fato foi explicado pelos professores como decorrente do exercício de autocontrole e da paciência, que ocorreu também durante a interação com os jogos eletrônicos em sala de aula.

Pode-se, a partir do exposto, reforçar que o uso dos jogos eletrônicos pode influenciar nas habilidades cognitivas que, por sua vez, se vinculam com as funções executivas e essas interferem em processos de autorregulação e autocontrole, fazendo com que as crianças, a partir do uso de jogos eletrônicos, exercitem habilidades que são fundamentais também à vida social10.

Quanto às possíveis melhoras no tocante às relações sociais entre os alunos, pode-se exemplificar o clima de competição saudável e de ajuda mútua que se instaurou na sala de aula durante o uso dos jogos. Observou-se, várias vezes, as crianças interagindo com o colega para propor uma disputa, dar uma dica ou para saber como determinado jogo poderia ser solucionado. Esta procura pelo outro, para entender o que estava sendo pedido no jogo, foi fundamental para a aceitação da Escola do Cérebro e para o desenvolvimento de comportamentos pró-sociais, como declara um dos alunos participante: "no início eu não gostava porque não sabia muito bem como jogar. Depois meu colega ficou me ajudando e daí eu aprendi a passar todas as fases e a gostar do jogo".

Além desses pontos elencados, cabe destacar o que os alunos falaram acerca dos jogos que compõem a Escola do Cérebro: "os jogos além de serem muito legais, ainda foram ficando mais fáceis a cada dia". A vontade de ultrapassar fases e jogar da melhor maneira possível, atingindo uma posição cada vez mais alta no ranking disponibilizado pela Escola do Cérebro, foi visível. Esses aspectos reforçam o que pesquisas colocam como elementos importantes em um game, a fim de motivar e fazer com que cada vez mais ocorra interesse pelos jogos15. Os componentes de imprevisibilidade, os níveis de dificuldade e o recebimento do reforço comportamental (ranking) fizeram com que os alunos cada vez mais superassem suas últimas pontuações.

Dentre os jogos disponibilizados na Escola do Cérebro, o Jogo "Genius" foi o mais citado como favorito pelas crianças. A justificativa dada por elas para tal fato é: "tem que pensar mais, gravar as cores na cabeça, usar a memória para ganhar pontos e bater recordes. Por isso ele é mais divertido". Ainda no tocante à forma e à percepção que as crianças possuíam sobre os jogos, um aluno se atentou para as particularidades de alguns: "vi que no Connectome tem que ter paciência, mas no Genius tem que ser rápido para não esquecer". Este e muitos outros aspectos identificados nesse estudo entram em consonância com outros estudos, que enfatizam que crianças que jogam em espaços eletrônicos apresentam uma tendência a desenvolver maior capacidade de atenção, superando o que é esperado para a idade e para o processo maturacional13. Em nossa experiência, observou-se melhorias em relação à atenção e à própria percepção que as crianças possuíam dos jogos.

Ao considerarmos que a atenção pode ser compreendida como uma habilidade cognitiva3 passível de ser exercitada, configurando-se como um conteúdo procedimental1 importante à aprendizagem escolar, ressaltamos que as intervenções realizadas com base no uso dos jogos eletrônicos revelam-se alternativas pedagógicas para um enfoque globalizador.

As intervenções foram realizadas com o uso de tablets, que eram distribuídos um para cada criança, posteriormente ligados e conectados à rede para acesso à Escola do Cérebro. O uso desse recurso revelou ansiedade inicial e curiosidade por parte dos alunos, ao mesmo tempo em que a necessidade de conexão à rede gerou frustrações e dificuldades, uma vez que alguns tablets tiveram problemas de conexão. Diante disso, nas entrevistas de avaliação das intervenções, algumas crianças pontuaram como limitações da intervenção esses problemas. Segundo uma das crianças: "algumas vezes era muito demorado e travava".

A dependência do uso da rede wi-fi foi uma das causas mais frequentes de situações-problema. Outra limitação encontrada foi a pouca durabilidade das baterias dos tablets. Por mais que estivessem previamente carregados, algumas vezes era necessário improvisar, procurando uma tomada para conectar enquanto a criança jogava. Em algumas circunstâncias, os atrasos e problemas de processamento dos tablets e jogos também foram incômodos, o que implicava na necessidade de reiniciar o dispositivo móvel.

Apesar dos obstáculos encontrados, cabe destacar o quanto tal atividade foi relevante para os alunos envolvidos. Ter acesso a uma atividade diferenciada e lúdica, utilizando a tecnologia do tablet, foi motivador para as crianças. Do mesmo modo, a mediação realizada durante todas as intervenções auxiliou os participantes a superarem dificuldades, desenvolverem estratégias para solucionar os desafios dos jogos e proporcionaram um clima favorável para a manifestação de comportamentos pró-sociais.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os resultados obtidos reforçam as contribuições que o uso dos jogos eletrônicos pode oferecer para o exercício das habilidades cognitivas, destacando o seu uso no contexto escolar e função da mediação para a obtenção de melhorias significativas.

O estudo realizado, pautado em uma abordagem qualitativa, valoriza as percepções e observações dos professores e alunos jogadores sobre as contribuições do uso dos jogos cognitivos eletrônicos para o aprimoramento das funções executivas, diferentemente, de outros estudos quantitativos, valoriza a descrição e procura sistematizar as contribuições tangenciais ao uso dos jogos, focando na aprendizagem e nas dinâmicas do contexto escolar.

Os resultados descritos ao longo do trabalho são tomados como indicadores das contribuições do uso dos jogos eletrônicos no contexto escolar, pois não podemos isolar várias outras variáveis, como o próprio ambiente escolar e o processo maturacional da criança, que influenciam o desenvolvimento das habilidades cognitivas destacadas na pesquisa.

Desse modo, reforça-se a necessidade da realização de novos estudos que visem à compreensão dos processos e o modo como as mudanças são operadas, esclarecendo assim as repercussões sobre as habilidades sociais, a motivação e a persistências que aparecem como resultados observados pelos pesquisadores e professores. Estudos futuros podem investigar mais precisamente a questão da interação social quando se faz uso de jogos eletrônicos em sala de aula, já que esta é vista, por muitos profissionais, como relações antagônicas. A experiência da Escola do Cérebro, além de desmistificar esse fato, pode servir como inspiração para futuros estudiosos investigarem como os jogos eletrônicos trabalham no treino de processos que influenciam diretamente na aprendizagem e na interação social.

 

AGRADECIMENTOS

Registramos nossos agradecimentos aos professores do Colégio de Aplicação da Universidade Federal de Santa Catarina, pelo apoio e participação no desenvolvimento do projeto, ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e à Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Estado de Santa Catarina (FAPESC), pelo apoio financeiro recebido.

 

REFERÊNCIAS

1. Zabala A. A prática educativa: como ensinar. Porto Alegre: ArtMed; 1998.         [ Links ]

2. Ramos DK. Jogos cognitivos eletrônicos: contribuições à aprendizagem no contexto escolar. Ciência Cogn. 2013;18(1):19-32.         [ Links ]

3. Gatti BA. Habilidades cognitivas e competências sociais. Santiago: Laboratório Latinoamericano da Qualidade de Avaliação, UNESCO; 1997. p.20.         [ Links ]

4. Lent R. Neurociência da mente e do comportamento. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 2013.         [ Links ]

5. Matlin MW. Psicologia cognitiva. 5ª ed. Rio de Janeiro: LTC; 2004.         [ Links ]

6. Folger T. Podemos ser sempre inteligentes? In: Leal G, org. Biblioteca mente e cérebro: para ser mais inteligente. São Paulo: Duetto Editora; 2014.         [ Links ]

7. Hardiman M, Magsamen S, McKhann G, Eilber J. Neuroeducation: learning, arts and the brain. Washington: Dana Press; 2009.         [ Links ]

8. Rueda MR, Checa P, Cómbita LM. Enhanced efficiency of the executive attention network after training in preschool children: immediate changes and effects after two months. Dev Cogn Neurosci. 2012;2(suppl. 1):S192-S204.         [ Links ]

9. Diamond A, Lee K. Interventions shown to aid executive function development in children 4 to 12 years old. Science. 2011; 333(6045):959-64.         [ Links ]

10. Barkley RA. The executive functions and self-regulation: an evolutionary neuropsychological perspective. Neuropsychol Rev. 2001; 11(1):1-29.         [ Links ]

11. Rivero TS, Querino EHG, Starling-Alves I. Videogame: seu impacto na atenção, percepção e funções executivas. Rev Neuropsicol Latinoam. 2012;4(3):38-52.         [ Links ]

12. Ramos DK, Rocha NL, Luz ML, Silvestrin D, Schmaedech D. O uso de jogos eletrônicos para o exercício das habilidades cognitivas: relato de uma experiência no ensino fundamental. In: Alves L, Nery J, orgs. Jogos eletrônicos, mobilidades e educações: trilhas em construção. Salvador: EDUFBA; 2015. p.293-305.         [ Links ]

13. Green CS, Bavelier D. Action video game modifies visual selective attention. Nature. 2003;423(6939):534-7.         [ Links ]

14. Dunbar G, Hill R, Lewis V. Children's attentional skills and road behavior. J Exp Psychol Appl. 2001;7(3):227-34.         [ Links ]

15. Achtman RL, Green CS, Bavelier D. Video game as a tool to train visual skills. Restor Neurol Neurosci. 2008;26(4-5):435-46.         [ Links ]

16. Schuytema P. Design de games: uma abordagem prática. São Paulo: Cengage Learning; 2008.         [ Links ]

17. Malherios BT. Metodologia da pesquisa em educação. Rio de Janeiro: LTC; 2011.         [ Links ]

18. Gil AC. Projetos de pesquisa. São Paulo: Atlas; 1996. p.331-60.         [ Links ]

19. Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70; 1997.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
Daniela Karine Ramos
Universidade Federal de Santa Catarina - Centro de Ciências da Educação
Departamento de Metodologia de Ensino - CED/MEN
Bloco B. - Campus Reitor João David Ferreira Lima - Trindade
Florianópolis, SC, Brasil - CEP 88040-970
E-mail: dadaniela@gmail.com

Artigo recebido: 30/3/2016
Aprovado: 13/6/2016

 

 

Trabalho realizado na Universidade Federal de Santa Catarina - Centro de Ciências da Educação, Florianópolis, SC, Brasil.

Creative Commons License