SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.34 issue104Educational cooperation in action inclusive in regular schoolsReflections of school mediation for a child with selective mutism author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Revista Psicopedagogia

Print version ISSN 0103-8486

Rev. psicopedag. vol.34 no.104 São Paulo  2017

 

ARTIGO ORIGINAL

 

Internato em psicologia: aprender-a-refletir-fazendo em contextos de prática do SUS

 

Internship in psychology: learn-reflect-making in practice settings

 

 

Mônica Ramos DaltroI; Milena Pereira PondéII

IPsicóloga, psicanalista, doutora em Medicina e Saúde Humana, Professora Adjunta do Curso de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Medicina e Saúde Humana da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública (EBMSP), Salvador, BA, Brasil
IIPsiquiatra, Pós-doutorado na Divisão de Psiquiatria Social e Cultural na McGill University, Montreal-Canadá. Professora adjunta e orientadora da graduação e pós-graduação em Medicina e Saúde Humana da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública, pesquisadora do Laboratório Interdisciplinar de Pesquisa em Autismo (LABIRINTO), Salvador, BA, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O Brasil tem 49.412 psicólogos atuando no Sistema Único de Saúde (SUS). Isso desafia o ensino a deslocar-se de suas tradicionais estruturas, que privilegiam a clínica, para formar promotores de saúde. Parte de uma tese que compreende a psicologia como profissão de saúde, este estudo descreve o Internato, uma prática pedagógica assistida, na qual o professor responde como mediador numa perspectiva psicopedagógica. Esse estudo apresenta a percepção dos estudantes sobre a experiência de aprendizagem no Internato. Estudo descritivo, qualitativo, que analisou o conteúdo de 51 questionários de estudantes do 8º ao 10º semestre, pelo Método de Interpretação de Sentido. Os resultados são indicativos de 100% de satisfação frente à experiência e desenvolvimento de competências como atitude interdisciplinar, capacidade de atuar em equipe, comunicação, autonomia e maturidade, reveladoras de uma aprendizagem que integra atitude, conceito e técnica, respondendo às demandas das Diretrizes Curriculares e do SUS.

Unitermos: Internato e Residência. Ocupações em Saúde. Sistema Único de Saúde. Percepção.


ABSTRACT

There are about 49,412 Psychologists working on SUS that challenges the education system to move from its traditional position, which privileges clinics, to develop health promoters. This is part of a thesis that thinks Psychology as a health profession. This study describes the Internship, a pedagogic assisted practice, where the teacher is viewed as a mediator in a psychopedagogical perspective. It provides the perception of the students about the Internship experience. This is a descriptive study based on qualitative approach analyses of the content of 51 questionnaires of students enrolled between the 8th and 10th semester of a Psychology course in Bahia, Brazil. The data was analyzed using Sense Interpretation Method. The results indicate 100% of satisfaction facing the experience and development of competences as interdisciplinary attitude, capacity to work with teams, communication, autonomy and maturity. All the above reveals the learning that integrates attitude, concept and techniques, answering the demands of the DCN's and SUS.

Key words: Internship and Residency. Health Occupations. Unified Health System. Perception.


 

 

INTRODUÇÃO

O Brasil conta com atuais 253 mil profissionais inscritos e ativos no Conselho Federal de Psicologia (CFP), com estimados 164 mil estudantes em cursos de graduação. Dados indicativos de uma profissão que cresce e se consolida no país, ocupando espaços privados e públicos de forma cada vez mais potente, em especial no campo da saúde. Em 2006, o Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES) contabilizava 14.407 psicólogos atuando no SUS. Em 2015, o número sobe para 49.412, um crescimento de 243% em menos de dez anos. Esse percentual corresponde, atualmente, a 19,53% dos profissionais registrados no Sistema Conselho de Psicologia, caracterizando o SUS como maior empregador de psicólogos no País, acompanhado pelo Sistema Único de Assistência Social (SUAS), que registra a participação de 8.088 psicólogos em seus quadros1-4.

Essa realidade desafia as instituições de ensino superior a ampliar suas tradicionais estruturas formativas, que privilegiam a atuação clínica e organizacional para incluir a perspectiva de formar psicólogos aptos a responder na promoção da saúde, proposição esta colocada pelas Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs), desde 2004, que destacava o Sistema Único de Saúde (SUS) como um importante campo de prática, ao qual a formação deveria estar vinculada.

Este estudo descreve um processo de formação acadêmica integrado ao SUS. Entende que essa perspectiva formativa ultrapassa os limites da formação de especialistas em psicologia da saúde, pois considera que a prática profissional do psicólogo deve estar circunscrita a partir da promoção da saúde, tendo como bússola os princípios norteadores do SUS.

Aqui o psicólogo é considerado um profissional de saúde e sua prática localizada a partir da promoção de saúde, na sua dimensão ampliada, que envolve práticas de assistência, prevenção, mas, também, no empoderamento de indivíduos, organizações e grupos sociais de forma que possam intervir nos determinantes dos seus processos saúde-doença, sofrimento ou crescimento5. Esta abordagem articula a prática do psicólogo às demandas do SUS, sistema de saúde público, baseado nos princípios da universalidade de acesso, na equidade de direitos, na integralidade e qualidade da atenção à saúde6.

A promoção à saúde está descrita a partir de cinco eixos de atuação: elaboração e implementação de políticas públicas saudáveis, criação de ambientes favoráveis à saúde, reforço da ação comunitária, desenvolvimento de habilidades pessoais, reorientação dos sistemas e dos serviços de saúde. Isso requer uma formação acadêmica de natureza generalista e a inserção precoce do estudante no sistema de saúde, de forma que o processo educacional possa promover a articulação crítica e reflexiva da teoria com a prática, com vistas a agenciar uma identidade profissional que contemple uma visão de saúde ampla e na dimensão da integralidade, equidade e como um direito a ser garantido6-8.

Este estudo está vinculado a uma tese de doutoramento que apresenta um currículo para a formação do psicólogo como profissional de saúde, orientação que gerou uma orgânica aproximação com os modos de ensino e aprendizagem do universo da saúde. No processo de reflexão realizado junto aos docentes sobre os desafios do ensino da psicologia na atualidade, dois elementos se colocaram: o perfil dos estudantes que ingressam no curso, prioritariamente jovens, imaturos, imersos numa cultura que privilegia o consumo, a imagem, as relações rápidas e narcísicas9; associação ao ensino de uma profissão com múltiplas identidades e um objeto de estudo e intervenção cuja natureza é, em si, imaterial.

Identificou-se, assim, a necessidade de oferecer aos estudantes contextos de aprendizagem que lhes possibilitasse, precocemente, evidenciar o sentido da aprendizagem, materializar seu objeto. Contudo, fazia-se necessário, simultaneamente, proteger os usuários dos serviços da natural imperícia dos aprendizes, emergiram as discussões sobre a opção pela prática assistida, denominada no âmbito da instituição como Internato, uma modalidade tradicional no ensino da medicina.

Essa prática pedagógica foi implantada na formação médica brasileira em meados da década de 1960, voltada para o treinamento de práticas em saúde. Na época, apresentou-se como um novo modelo, baseado nas referências norte-americanas de ensino, que se contrapunha ao modelo europeu, voltado essencialmente para a formação teórica10. Essa modalidade prática de ensino foi instituída no 6o ano da graduação médica, considerada como um complemento curricular voltado ao desenvolvimento de habilidades práticas.

Em 1969, o Internato consolidou-se como fundamental ao treinamento médico, tornou-se obrigatório como período especial de aprendizado a ser realizado em hospitais e centros de saúde, a partir da resolução do Parecer 506/69, do Conselho Federal de Educação. Firmou-se como campo para o desenvolvimento de competências práticas e do senso de responsabilidade frente à assistência ao doente, garantido pela supervisão do corpo docente da instituição de ensino. Em 1974, o relatório final da XII Reunião Anual da Associação Brasileira de Educação Médica (ABEM) atualiza as recomendações sobre o Internato - vigentes até a atualidade - estabelece uma duração mínima de dois semestres, podendo atingir até quatro em um ciclo rotativo, podendo haver, ainda, após o rodízio, um estágio eletivo11.

Baseado nesse modelo, o curso de psicologia em estudo está vinculado a uma instituição de ensino superior privada, sem fins lucrativos, situado na região Nordeste do Brasil. Apresenta uma estrutura curricular integrada baseada no desenvolvimento articulado de competências conceituais, técnicas e atitudinais e, para isso, incorporou à sua estrutura didática o Internato, cujo o objetivo principal, para aprendizagem em serviço, é o aprender-a-refletir-fazendo.

Essa proposta se diferencia essencialmente da tradicional experiência de estágio supervisionado na psicologia em função do nível de complexidade das atividades realizadas pelos estudantes e por se caracterizar como uma prática pedagógica assistida, que implica a presença permanente do professor ao lado do aluno. O Internato objetiva a apresentação de campos de prática, vinculados ao SUS, e o desenvolvimento de competências para uma atuação de generalista que preparem o estudante para atuar no estágio a partir da perspectiva da integralidade.

Contexto em que o estudo se realiza

No Internato do curso de psicologia, o professor, acompanhado por um grupo de, no máximo, 15 estudantes, realiza atividade prática em contextos docente-assistenciais. Em um formato de preceptoria, o docente da instituição de ensino é alocado num campo de prática com a tarefa pedagógica de articular a teoria e a prática in vivo, mediando o processo de aprendizagem. O Internato realiza-se a partir de um ciclo de dois semestres e contempla quatro contextos de prática, alternados em rodízios de dez semanas cada, no 7o e 8o semestres do curso.

Os componentes curriculares estão assim nomeados: Psicologia na Atenção Primária à Saúde, Psicologia na Atenção Secundária à Saúde, Psicologia na Atenção Terciária à Saúde e Psicologia no Trabalho e nas Organizações; com carga horária de 120 horas cada. As atividades didáticas se iniciam na primeira semana, quando os estudantes são apresentados aos objetivos, contextos, territórios, atividades e sistema de avaliação a serem desenvolvidos no processo acadêmico. Nas nove semanas que se seguem, o professor desenvolve atividades práticas próprias do trabalho do psicólogo no contexto em que se encontra, que estão vinculados ao SUS.

Em níveis de complexidade crescente, os estudantes são acompanhados de forma a desenvolver, no mínimo, as competências e habilidades definidas a seguir, a partir das DCNs12, para que possam ser aprovados nos componentes curriculares:

1. Capacidade de resolver ou bem encaminhar os problemas de saúde da população a que vai servir;

2. Possibilidade de integrar e aplicar os conhecimentos adquiridos nos anos anteriores do curso de graduação;

3. Possibilidade de aplicar técnicas próprias ao exercício do fazer-do-psicólogo de acordo com as necessidades do campo (escuta individual e em grupo, visita domiciliar, dinâmica de grupo, seleção de pessoal, sala de espera, entre outras);

4. Atitudes adequadas à prática profissional;

5. Atuação e lógica de tomada de decisões na direção do trabalho multiprofissional;

6. Interesse pela promoção e preservação da saúde e da qualidade de vida de sujeitos e organizações;

7. Consciência sobre suas limitações, responsabilidades e deveres éticos, perante o paciente, a instituição e a comunidade;

8. Desenvolvimento do aperfeiçoamento profissional continuado.

A avaliação se constitui uma provocação permanente para o processo pedagógico. No Internato, realiza-se em distintos níveis e, de forma processual, compõe-se como experiência de aprendizagem. A proposta avaliativa define uma frequência mínima para aprovação de 90% e análise do desenvolvimento de competências conceituais, técnicas e atitudinais, sem nenhuma hierarquização entre elas:

Avaliação Teórica: individual referente aos conteúdos teóricos trabalhados durante o processo. Pode ser configurada como uma apresentação de caso para os membros da equipe, da coordenação, ou como um relatório, estudo ou até uma prova, a critério do professor.

Avaliação Técnica: diferenciada a cada contexto e atividade realizada. Podendo contemplar entrevistas, aplicação de testes, visita domiciliar, construção de laudos, registros em prontuários, técnicas de dinâmica de grupo, entre outras.

Avaliação Atitudinal: A atitude ética, estética e profissional é avaliada pelo professor, no cotidiano do trabalho pedagógico. Envolve, também, a autoavaliação e a avaliação interpares organizadas com feedback. Para dar suporte a isso, os docentes desenvolveram um instrumento de avaliação atitudinal, denominado Instrumento de Avaliação Atitudinal em Contextos de Estágio (IAACE), utilizado no Internato e nos Estágios Supervisionados. Esse instrumento é utilizado individualmente em três situações: autoavaliação, avaliação entre pares (cada colega avalia o outro) e avaliação docente. Os resultados encontrados são discutidos e uma nota é atribuída, pelo professor, ao desempenho atitudinal na etapa avaliada.

Todo esse processo didático-pedagógico, fundamentado na teoria da aprendizagem sociointeracionista, que considera que a atividade humana é sempre mediada pelo uso de símbolos, ferramentas que possibilitam ao sujeito uma implicação com o mundo real através da consciência. Assim, demanda que o processo pedagógico se desloque da função de instrução para se consolidar a partir do trabalho de mediação, na qual o professor oferece o seu saber/fazer como modelo, permitindo ao aprendiz partir do nível de aprendizagem em que se encontra para explorar seu limite potencial13.

O processo do Internato parte do nível atual de conhecimento do estudante sobre o contexto e sobre as práticas no psicólogo no campo em que estão inseridos. Cabe ao professor acompanhar o aprendiz no nível de desempenho individual ambicionando que ele seja capaz de chegar ao nível potencial máximo cognitiva e interpsicologicamente. Para isso, faz-se necessário localizar a diferença entre aquilo que o aprendiz pode fazer individualmente e aquilo que é capaz de fazer com a ajuda de pessoas mais experimentadas, como outros aprendizes especialistas ou instrutores.

Assim, no Internato, professor e aluno interagem com os conteúdos a serem aprendidos, com problemas para os quais resoluções são buscadas. O ponto crucial dessa teoria da aprendizagem é a concepção de que os conhecimentos em sua dimensão conceitual não precedem necessariamente à habilidade do aprendiz; é algo que existe partilhado pelo professor e pelo aprendiz na interação social com todo o contexto de aprendizagem. A consequência esperada é a interiorização de conhecimentos e valores que, não necessariamente, serão identificados pelo aprendiz no instante em que os usar14.

Cada um dos ciclos rotatórios tem seus objetivos específicos configurados a partir das demandas negociadas pelo Serviço com o professor/psicólogo. Esses objetivos são dialeticamente afetados pelo perfil de cada turma; pelas rotinas de cada serviço; pelo encontro com os indivíduos em cada experiência, em cada momento e pelo perfil de cada docente. Entretanto, todos os rodízios são guiados pelos mesmos objetivos gerais de promover competências para o fazer generalista em psicologia, o que envolve um circuito de competências que se inicia com a capacidade de escuta/observação, seguida pelo planejamento, intervenção, avaliação da intervenção, devolução e retornando para a escuta/observação.

Com essa perspectiva, o estudante é convidado a assistir ao psicólogo em ato, sequencialmente desenvolver atividades, em níveis de complexidade distintos, mediados pela experiência do docente enquanto professor-psicólogo. No processo, professores e estudantes também são desafiados a articular o conjunto da prática às teorias a ela relacionadas, possibilitando a construção de uma análise crítica do processo e simultaneamente, desenvolvendo competências que integram valores, atitudes, conceitos e técnicas. Este artigo descreve a percepção de estudantes sobre a experiência de aprendizagem vivida no Internato.

 

MATERIAL E MÉTODO

A metodologia de pesquisa adotada caracteriza o estudo como descritivo de abordagem qualitativa. Foi realizado no âmbito do curso de Psicologia da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública, com todos os 51 estudantes matriculados no 8o, 9o e 10o semestres durante o segundo semestre de 2014. O instrumento para a coleta de dados foi um questionário, contendo duas questões abertas, apresentado no formato impresso, aplicado por bolsistas de iniciação científica, em sala de aula, e buscou identificar a percepção dos estudantes sobre a experiência de aprendizagem vivida e as competências desenvolvidas a partir do Internato.

O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública, em 29/08/2012, sob o no 108.985. Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre Esclarecido. Os dados foram analisados a partir do método de Interpretação de Sentido Temático, que inclui análise compreensiva do conjunto de narrativas, a identificação das palavras, ações, conjunto de inter-relações do corpo analítico. Sequencialmente, identificam-se as singularidades do material nas quais as categorias são circunscritas e a análise interpretativa do conteúdo se realiza15.

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Entre os 51 sujeitos que participaram dessa etapa do estudo, 100% descrevem a experiência de exposição ao Internato como positiva e fundamental ao processo de formação acadêmica, utilizando expressões como: "medalha de ouro do curso"; "um enorme diferencial do curso"; "experiência maravilhosa"; "o Internato é incrível"; "considero valiosa minha aprendizagem"; "a melhor experiência que vivi na faculdade"; "é muitíssimo importante na formação".

Embora avaliando a experiência como positiva, três pontos de descontentamentos foram apresentados por três dos sujeitos participantes do estudo; a curta duração dos rodízios; o sistema de avaliação utilizado; a obrigatoriedade de percorrer os quatro rodízios:

".... no entanto, a forma de avaliar o aluno precisa ser mais elaborada."

"Achei valiosa a experiência obtida em cada um (dos rodízios), mas lamento que a duração dos mesmo seja tão curta."

"O Internato é uma experiência única na prática, enquanto estudantes de psicologia, pois proporciona conhecer o campo de atuação do psicólogo. Porém, nós não temos a chance de escolher os campos que queremos, temos que passar por todos. Isso é complicado porque os professores não percebem que os alunos estão ali para conhecer e, quem sabe, se identificar com o campo, mas, às vezes, os alunos não se motivam com o campo, e os professores não buscavam dar orientações que pudessem motivar os alunos ou dar espaço para novas criações dentro da sua área de atuação."

"As habilidades que eu aprendi no Internato foram a de suportar as regras organizacionais dos supervisores que eu não posso opinar ou não tinha autonomia para tal."

A proposta curricular na qual o Internato está apresentado como contexto de prática assistida, fundamentado no conceito ampliado de saúde por considerar que este abre um campo potencial para a formação do generalista16,17. Para consolidar essa perspectiva, os rodízios e a duração destes foram estabelecidos de maneira a sustentar, semestralmente, dois ciclos de atividades didático-pedagógicas em diferentes contextos de prática, garantindo a pluralidade da psicologia, apresentando a complexidade do SUS, diferenciando-se das práticas de estágio. Tal experiência é, majoritariamente, referida como importante para a elaboração de uma escolha mais madura pelo campo de estágio, no qual o estudante poderá investir de forma mais aprofundada na aprendizagem e nos planos futuros de carreira, como revelado nas narrativas seguintes:

"Conhecer os principais eixos de trabalho da psicologia, contribuindo para que se tome uma decisão mais "assertiva" na escolha do estágio específico."

"Ajudando-nos a refletir sobre a escolha de campo de estágio."

"O Internato é "muitíssimo" importante para a formação, porque oportuniza a prática assistida. O aprimoramento é contínuo. Sinto-me muito mais preparada para o estágio."

Esta etapa da tese de doutoramento que investiga a dimensão subjetiva da formação em psicologia focaliza a experiência de aprendizagem e de construção do conhecimento a partir da concepção de complexidade descrita por Paulo Freire18 e Vygotsky13. Para esses teóricos, o objetivo primordial da educação é a transformação; embora com pontos de vista distintos, consideram que a experiência de aprendizagem se realiza a partir da apropriação subjetiva do que foi aprendido, com efeito na forma desse ser/sujeito/indivíduo operar no mundo. Nos depoimentos apresentados, é possível dar conta de que a experiência de exposição ao Internato possibilitou aos estudantes uma vivência transformadora, que envolveu produção de saber sobre a psicologia, suas teorias, valores emergentes e técnicas, mas, também, sobre si, suas possibilidades, limites:

"Foi no Internato que a prática de psicologia se tornou real. A experiência de aprendizagem é única, pois, por sermos assistidos, há uma noção de responsabilidade imposta pelo outro que, mais tarde, é internalizada no estágio."

"Acho importante pontuar que a responsabilidade (com os pacientes, usuários, trabalhadores, sociedade e profissão) é a competência que envolve mais os aspectos éticos, essenciais aos psicólogos. No Internato, desenvolvi autonomia, aprendi a como me portar em situação de trabalho, aprendi a treinar técnicas e instrumentos da psicologia. Me autorizei a me expor, a criar casos clínicos, a desenvolver diagnóstico de cultura de empresa e fazer seleção e recrutamento, aplicar entrevista fechada, fazer triagem, visita domiciliar e aprendi a escrever relatórios e prontuários."

"A experiência de Internato foi fundamental no meu processo de formação, em algumas habilidades como: iniciativa estudo, associação teoria-prática, trabalho em equipe, trabalhos com outras profissões, lidar com outros estudantes, conhecer novas pessoas e desenvolvimento da prática exercitando a profissão."

"... Autocuidado, compromisso com pacientes, colegas de trabalho, atividades."

"Olhar mais diferenciado sobre algumas questões, escuta diferenciada e responsabilidade com prazos e horários."

"O Internato, por ser um contato direto com a prática (mesmo que ainda supervisionado), aparece enquanto um espaço de crescimento profissional e individual."

Esses resultados são indicativos de que os objetivos propostos para a formação de psicólogos, indicados pelas DCNs12 para graduação em psicologia, são alcançados. E as respostas oferecidas evidenciam o desenvolvimento de competências de profissionais generalistas ajustadas às necessidades do SUS.

A concepção de competência, adotada nesse estudo, também está ancorada na perspectiva de uma educação transformadora, compreende que esse desenvolvimento transita entre o enfoque Cognitivo Estrutural - que envolve conhecimentos e habilidades relacionados ao exercício de uma profissão - e o enfoque Dinâmico Pessoal - centrado na atenção à pessoa, que integra ao cognitivo os aspectos motivacionais e a complexidade do cenário laboral, com sua heterogeneidade e singularidades19. Esse trânsito conceitual configura o campo em que se pode reconhecer o efeito das produções subjetivas, expressas pela capacidade de análise e de síntese, na gestão da informação, na possibilidade de trabalhar em equipe, nas relações interpessoais, no compromisso ético, no desenvolvimento da autonomia, na possibilidade de adaptação a situações novas ou à capacidade de liderança:

"No Internato, desenvolvi autonomia, aprendi como me portar em situação de trabalho, aprendi a treinar técnicas e instrumentos da psicologia. Me autorizei a me expor."

"A experiência foi positiva e proporcionou desenvolvimento de habilidades e competências para lidar também com o inesperado do cotidiano, estimulando a capacidade criativa nos profissionais em formação."

"Sobre as competências desenvolvidas nos Internatos: conhecimento prático das diversas áreas da psicologia, habilidades clínicas de escuta e intervenção, trabalho em grupo, atuação com outras áreas profissionais."

"Como competência a adquirir: a escuta qualificada, aprendi a sustentar o silêncio do outro, analisar a situação de diferentes olhares, aprendi a ouvir mais."

"Resolutividade, autonomia, trabalhar em grupo na prática."

"Escuta qualificada, autonomia, relacionamento cliente/terapeuta, trabalho em grupo, trabalho individual."

"Identifico como competências a responsabilidade, autonomia, trabalho em equipe, reflexão sobre a ética no trabalho e desenvolvimento da escuta qualificada e do cuidado com o outro nas mais diversas situações de trabalho em psicologia."

Com os resultados apresentados, é possível também discutir a importância da perspectiva sociointeracionista que fundamenta essa prática pedagógica, especialmente a partir da medição. O professor investe no desenvolvimento potencial do estudante/aprendiz oferecendo suporte ao processo de amadurecimento pessoal e profissional20. Isso configura o Internato como um espaço de transição seguro na busca pela autonomia, no processo de constituição de identidades que permitam ao estudante virtualizar sua prática profissional futura, localizando seus desejos e possibilidades:

"... é fundamental, já que promove a experiência prática de toda a teoria aprendida, promove o amadurecimento da pessoa, estimula a capacidade de tomar decisões e o manejo."

"O Internato é uma experiência muito enriquecedora, por possibilitar que o aluno comece a conhecer a prática do psicólogo, de uma forma diferenciada (por conta do acompanhamento do professor), ajudando-nos a refletir sobre a escolha de campo de estágio."

"O Internato foi muito importante, pois através dele foi possível conhecer diferentes campos de atuação, além de ter as práticas supervisionadas, o que dá mais segurança ao aluno."

"O Internato me possibilitou colocar em prática toda a teoria adquirida no outro, além de vivenciar esta com professores altamente competentes em suas áreas."

"Aprendizado essencial para conciliar teoria e prática, o Internato fornece uma síntese das quatro principais áreas de atuação, numa enriquecedora experiência. Creio que foi, em todos os sentidos, algo surpreendente e muito construtivo."

A estrutura curricular apresentada coloca o estudante em contato analítico com o fazer-psicologia do 1o ao 6o semestre com o uso do método de Aprendizagem Baseada em Problemas; no 7o e 8o semestres, com a imersão no Internato, ele é exposto a uma experiência educacional em que aprende e transforma a realidade em que está inserido, na qual lhe é demandado que se coloque, que apresente suas construções teóricas, opções epistemológicas, valores, atitudes.

Não por acaso, emergem com maior frequência respostas que identificam o desenvolvimento de competências atitudinais. A atitude foi considerada por Paulo Freire18 um conteúdo pedagógico essencial para a formação de sujeitos críticos e González Maura19 afirma a indissociabilidade da competência atitudinal do conceitual e do técnico. Embora estejam didaticamente diferenciadas ao longo deste texto, nas respostas apresentadas, a aquisição de atitudes de dimensões técnicas e éticas estão referidas na dimensão da integralidade e consideradas como um dos grandes ganhos da experiência de aprendizagem, articuladas à satisfação em conhecer de perto diferentes contextos de prática e à possibilidade de articular teoria e prática:

"Gosto bastante do Internato. Foi uma excelente prática para termos noção da prática do psicólogo. Desenvolvi competências, tais como: articulação da teoria com a prática e uma maior segurança na atuação."

"Adquiri a competência de identificar o problema trazido pelo paciente, a comunicação oportuna e me achei no campo profissional que quero."

"Durante o percurso do Internato, considero valiosa minha aprendizagem, a prática nos dá a certeza de que sabemos fazer algo e é interessante a construção do conhecimento na prática. A partir daí, melhorei minha escuta, atenção e uma melhor percepção do ambiente e do sujeito."

"O Internato, da mesma forma, interligando a teoria com a prática, foi de grande importância na formação. Esse preparo antes do estágio auxiliou a criar um perfil na atuação me dando mais segurança e autonomia."

O conjunto dos resultados descritos neste estudo dá conta que o Internato, como contexto didático de prática assistida de ensino em psicologia, favorece o desenvolvimento de competências de generalistas propostas pelas DCNs, entre elas, a autonomia e a capacidade de atuar em grupo de forma interdisciplinar, fundamentais à prática do SUS.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Internato propõe a ação conjunta de professor e estudantes no SUS, contextos nos quais existem equipes profissionais interagindo, níveis complexos de problematização, sujeitos reais vivenciando toda espécie de mal-estar, próprio da existência, da cultura, da contemporaneidade. Neste universo, aprender e ensinar realizam-se como uma unidade dialética processual e psicopedagógica que coloca em circulação a construção do conhecimento articulado à construção de identidades. E como se realiza no contexto de prática acontece no campo real da interdisciplinaridade, considerada por Fazenda21 uma atitude que se forma a partir de práticas pedagógicas dessa natureza, que integram teoria e prática.

A análise dos resultados é também indicativa de que o Internato favorece o processo de amadurecimento dos jovens estudantes, de acordo com as expectativas dos docentes que formularam a proposta. As narrativas apresentadas descrevem a experiência de aprendizagem a partir do deslocamento da posição subjetiva passiva para uma posição que implica dúvidas, certezas, possibilidades, grupos e consideram o fazer em psicologia dirigida a um outro, fundamentado em práticas de cuidado. Esse processo de amadurecimento está atribuído à possibilidade de conhecer os campos de prática assistidos dialogicamente pelo professor e pelo desenvolvimento de uma rede de novos conhecimentos que afetam sua atitude de forma efetiva e se sustentam em um conjunto relacional que envolve sujeitos, organizações e distintos papéis e identidades.

Os estudantes identificam como ponto de desenvolvimento o processo de avaliação no Internato. As autoras deste estudo acrescentam como pontos de vulnerabilidade para o desenvolvimento dessa prática pedagógica o número restrito de estudantes por turma, que, além de aumentar os custos operacionais da prática, demandam um processo complexo de negociação com os serviços em que se insere. Assim, identificam a necessidade de desenvolvimento de estudos subsequentes que analisem a avaliação e o impacto dessa prática para os serviços docentes assistenciais nos quais se realizam.

A análise geral dos dados considera que a articulação da teoria e da prática, em diferentes contextos, favoreceu a construção de um conhecimento significativo relacionado ao repertório cultural dos sujeitos, no qual novas identidades inter-relacionadas emergiram a partir do desenvolvimento de competências. Essa perspectiva coloca em foco a responsabilidade política das escolhas pelas práticas pedagógicas de um currículo e abre novas possibilidades de análise sobre a inclusão da dimensão subjetiva na formação acadêmica em psicologia, mas também ressalta a força da integração teoria-prática para a preparação de sujeitos aptos a atuar de forma ética no SUS.

Destaca-se, também, a posição de mediação ocupada pelos professores, promotores de ações pedagógicas que ocorrem no campo da integralidade do processo de aprendizagem. Com esta perspectiva, o estudo destaca a necessidade de discutir as tradicionais formas de ensino da psicologia investindo em uma formação de profissionais aptos para atuar nos três níveis de atenção à saúde, com possibilidade de analisar e compreender as dimensões das estruturas organizacionais e institucionais.

 

REFERÊNCIAS

1. Brasil. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Resolução Nº 5, de 15 de Março de 2011. Institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos de graduação em Psicologia, estabelecendo normas para o projeto pedagógico complementar para a Formação de Professores de Psicologia. Brasília: Ministério da Educação/Conselho Nacional de Educação; 2011.         [ Links ]

2. Silva RO. Exercício profissional enquanto trabalho: do que estamos falando? Jornal do Federal; 2015. [acesso 2017 Jun 3]. Disponível em: http://site.cfp.org.br/exercicio-profissional-enquanto-trabalho-do-que-estamos-falando/        [ Links ]

3. Lhullier LA. Quem é a Psicóloga Brasileira? Mulher, Psicologia e Trabalho. 1a ed. Brasília: Conselho Federal de Psicologia; 2013.         [ Links ]

4. Ferreira Neto JL. Psicologia, políticas públicas e o SUS. São Paulo: Escuta; 2011.         [ Links ]

5. Contini MLJ. O psicólogo e a promoção de saúde na educação. 2a ed. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2010.         [ Links ]

6. Paim JS. A Constituição Cidadã e os 25 anos do Sistema Único de Saúde (SUS). Cad Saúde Pública. 2013;29(10):1927-36.         [ Links ]

7. Mitre SM, Siqueira-Batista R, Girardi-de-Mendonça JM, Morais-Pinto NM, Meirelles CAB, Pinto-Porto C, et al. Metodologias ativas de ensino-aprendizagem na formação profissional em saúde: debates atuais. Ciênc Saúde Coletiva. 2008;13(Suppl. 2):2133-44.         [ Links ]

8. Chiesa AM, Nascimento DDG, Braccialli LAD, Oliveira MAC, Ciampone MHT. A formação de profissionais da saúde: Aprendizagem significativa à luz da promoção da saúde. Cogitare Enferm. 2007;12(2):236-40.         [ Links ]

9. Birman J. Adolescência sem fim? Peripécias do sujeito num mundo pós-edipiano. In: Cardoso MR, Marty F, orgs. Destinos da adolescência. Rio de Janeiro: Letras; 2008. p. 81-105.         [ Links ]

10. Grosseman S, Patrício ZM. Do desejo à realidade de ser médico: a educação e a prática como processo contínuo de construção individual e coletiva. Florianópolis: UFSC; 2004.         [ Links ]

11. Associação Brasileira de Educação Médica - ABEM. O internato nas escolas médicas brasileiras. Rio de Janeiro: MEC; 1982.         [ Links ]

12. Brasil. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Superior. Resolução nº 8, de 7 de Maio de 2004. Institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos de graduação em Psicologia. Brasília: Diário Oficial da União; 2004.         [ Links ]

13. Vygotsky LS. A formação social da mente: O desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. São Paulo: Martins Fontes; 1994.         [ Links ]

14. Fino CN. Vygotsky e a zona de desenvolvimento proximal (ZDP): três implicações pedagógicas. Rev Port Educ. 2001;4(2):273-91.         [ Links ]

15. Minayo MCS, org. Pesquisa social: Teoria, método e criatividade. 29a ed. Petrópolis: Vozes; 2010.         [ Links ]

16. Senne WA. Reforma universitária e diretrizes curriculares: a formação reativa da graduação em psicologia. Mnemosine. 2012;8(1): 178-93.         [ Links ]

17. Bock AMB, Aguiar WMJ. Por uma prática promotora de saúde em orientação vocacional. In: Bock AMB, Amaral CMM, Silva FF, Silva LBC, Calejon LMC, Andrade LQ, et al. eds. A escolha profissional em questão. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2011. p. 9-24.         [ Links ]

18. Freire P. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2011.         [ Links ]

19. González Maura V. ¿Qué significa ser un profesional competente? Reflexiones desde una perspectiva psicológica. Rev Cubana Educ Sup. 2002;22(1):45-53.         [ Links ]

20. Zanella AV. Zona de desenvolvimento proximal: análise teórica de um conceito em algumas situações variadas. Temas Psicol. 1994; 2(2):97-110.         [ Links ]

21. Fazenda I, org. O que é interdisciplinaridade? São Paulo: Cortez; 2008.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
Mônica Ramos Daltro
Rua Theodomiro Baptista 343/302 A - Rio Vermelho
Salvador - Bahia - CEP 41940-320
E-mail: monicadaltro@bahiana.edu.br

Artigo recebido: 30/5/2017
Aprovado: 15/6/2017

 

 

Trabalho realizado na Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública (EBMSP), Salvador, BA, Brasil.

Creative Commons License