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Revista Psicopedagogia

versão impressa ISSN 0103-8486

Rev. psicopedag. vol.35 no.108 São Paulo set./dez. 2018

 

ARTIGO ORIGINAL

 

Noções de conservação e de reversibilidade lógica em crianças com transtorno de déficit de atenção/hiperatividade (TDAH)

 

Notions of conservation and logical reversibility in children with attention deficit hyperactivity disorder (ADHD)

 

 

Caroline Benezath Rodrigues BastosI; Sávio Silveira de QueirozII

IDoutoranda no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), Vitória, ES, Brasil
IIProfessor Titular do Departamento de Psicologia Social e do Desenvolvimento e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), Vitória, ES, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo desta pesquisa foi investigar as noções de conservação e de reversibilidade lógica em crianças com Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade (TDAH). Participaram 14 crianças do sexo feminino diagnosticadas com TDAH, sendo sete com idades entre 7 e 8 anos e sete entre 10 e 11 anos. A pesquisa foi realizada em um hospital público da cidade de Vitória-ES e o instrumento utilizado foi a Prova Piagetiana de Conservação de Substância. Os dados foram coletados e analisados qualitativamente, a partir do Método Clínico Piagetiano. De acordo com Piaget, as noções de conservação de substância e de reversibilidade lógica são adquiridas por volta dos 7 anos de idade. Porém, os resultados desta pesquisa revelaram que a grande maioria das participantes, de ambas as faixas etárias, ainda não adquiriu tais noções, de forma que a etapa de transição para a aquisição das noções é a que contém o maior número de participantes. No entanto, comparando as faixas etárias, foi observado que na medida em que as crianças aumentam de idade, há também um progresso em direção à completude das noções de conservação e de reversibilidade lógica. Portanto, os resultados mostram a necessidade de promover essas noções em crianças com TDAH. Diante disso, propõem-se intervenções baseadas no incentivo das relações sociais de cooperação através do brincar e dos jogos com regras.

Unitermos: Transtorno da Falta de Atenção com Hiperatividade. Noção de Conservação. Reversibilidade Lógica. Desenvolvimento Infantil.


SUMMARY

The objective of this research was to investigate the notions of conservation and logical reversibility of children with Attention Deficit Hyperactivity Disorder (ADHD). Participated in the study 14 female children diagnosed with ADHD, being seven children between 7 and 8 years old and seven between 10 and 11 years old. The research was conducted in a public hospital in the city of Vitória-ES and the instrument used was the Piagetian Test of Conservation of Substance. Data were collected and analyzed qualitatively based on the Piagetian Clinical Method. According to Piaget, the notions of conservation of substance and logical reversibility are acquired approximately at the age of seven. However, the results of this research revealed that the vast majority of the participants, from both age groups, have not yet acquired such notions and the transition stage for acquisition of the notions contains the largest number of participants. Comparing the age groups, it was observed that as the children grow old, there is a progress in the notions of conservation and logical reversibility. Therefore, the results show the need to promote these notions in children with ADHD. Given this fact, it is proposed interventions based on the incentive of social relations of cooperation through play and rule games, because these promote the acquisition of notions of conservation and logical reversibility.

Keywords: Attention Deficit-Hyperactivity Disorder. Logical Reversibility. Notion of Conservation. Child Development.


 

 

INTRODUÇÃO

O Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade (TDAH) é dividido em três subtipos: Apresentação Combinada; Apresentação Predominantemente Desatenta; e Apresentação Predominantemente Hiperativa/Impulsiva1. No primeiro subtipo o indivíduo apresenta sintomas de desatenção e hiperatividade/impulsividade com intensidades equivalentes; o segundo subtipo incide quando os sintomas de desatenção estão significativamente mais presentes; e no terceiro subtipo prevalecem os sintomas de hiperatividade/impulsividade1. É no sexo masculino que o transtorno prevalece (2:1 em crianças e 1,6:1 em adultos), mas pessoas do sexo feminino tendem a apresentar mais os sintomas de desatenção1.

Para que o diagnóstico do TDAH seja dado, os sintomas devem surgir antes dos 12 anos de idade e interferir significativamente em pelo menos dois contextos nos quais o indivíduo está inserido1. Todavia, o primeiro diagnóstico geralmente ocorre no ensino fundamental porque a redução do desempenho acadêmico é frequentemente um sintoma da criança com TDAH1.

Dentre as conclusões dos estudos de Graeff & Vaz2, os autores constataram que as crianças com TDAH "possuem indicadores de capacidade de produção e desempenho em índice menor do que as crianças sem este déficit" (p. 274). Oliveira et al.3, ao avaliarem processos de leitura, observaram dificuldades de escolares com TDAH e elucidaram que tais alterações se devem "ao comprometimento da interação entre o processamento visual, linguístico, atencional e auditivo" (p. 344).

No entanto, vale ressaltar que Fonseca et al.4 evidenciaram, em um relato de experiência de mediação psicopedagógica no caso de uma criança com TDAH, que intervenções interdisciplinares possibilitam a "melhora no comportamento, na aprendizagem e nas relações pessoais" (p. 330). Do mesmo modo, Jafferian & Barone5 enfatizam a importância da intervenção psicopedagógica para a desconstrução do rótulo favorecendo a autonomia de pacientes com TDAH.

Além disso, diversos estudos nacionais abordam o desenvolvimento do indivíduo com TDAH na perspectiva piagetiana. Segundo Piaget6, o processo de desenvolvimento cognitivo humano evolui a partir de estágios com construções contínuas e progressivas que, dentre seus objetivos, buscam a aquisição das noções de conservação e de reversibilidade lógica.

A noção de conservação advém quando a criança conserva o invariante de um elemento diante de transformações superficiais da sua dimensão7. Em cada faixa etária a criança constrói um tipo de noção de conservação, tais como: substância (7-8 anos), peso (9-10 anos), volume (11-12 anos), etc.7. Contudo, para que surja a noção de conservação, é necessário que haja o pensamento reversível7.

A reversibilidade lógica é a capacidade de realizar uma ação simultaneamente em dois sentidos, isto é, contempla a inversão e a reciprocidade, que correspondem ao retorno do pensamento ao ponto de partida7. Portanto, a noção de conservação é precisamente o critério que afirma a presença da capacidade de reversibilidade lógica7.

Deste modo, as noções de conservação e de reversibilidade lógica perpassam por inúmeras gradações a partir de articulações mais elementares6. No estágio de desenvolvimento cognitivo pré-operatório, aproximadamente dos 2 aos 7 anos de idade, há somente pensamento pré-lógico, no qual a criança ainda não adquiriu completamente as noções de conservação e de reversibilidade lógica, pois apresenta estruturas semirreversíveis com compensações apenas aproximadas6,7.

A partir dos 7 anos de idade, no estágio de desenvolvimento cognitivo operatório concreto (que ocorre no intervalo aproximado de 7 a 11/12 anos de idade), incide a completa aquisição de ambas as noções, assinalando um pensamento lógico operatório6,7. Trata-se, então, de um processo que se inicia com a ausência de conservação e irreversibilidade do pensamento; progressivamente perpassa pela transição de tais noções; até, enfim, alcançá-las completamente7.

A relação social de cooperação, caracterizada pela reciprocidade e respeito mútuo entre crianças, é fundamental para promover a aquisição das noções operatórias (como a conservação e a reversibilidade)8. Tais noções são importantes no processo evolutivo humano, pois estão associadas à descentração e à liberação do egocentrismo cognitivo, permitindo que a criança diferencie o seu ponto de vista de perspectivas alheias e construa o pensamento lógico8.

Bastos et al.9 fizeram uma pesquisa cujo objetivo foi investigar os tipos de trocas sociais, de acordo com a Teoria das Trocas Sociais de Jean Piaget, de meninas com 7 e 10 anos de idade, com indícios de déficit de atenção e hiperatividade. Os autores constataram que as participantes de ambas as idades apresentaram predominantemente trocas sociais equilibradas, ou seja, manifestaram reciprocidade e reversibilidade em suas trocas sociais, levantando a hipótese de que as crianças que possuem tais sintomas não adquirem tardiamente a reversibilidade lógica.

Por outro lado, Campos et al.10 utilizaram duas provas piagetianas operatórias de conservação de quantidades contínuas e descontínuas para caracterizar o desempenho de crianças diagnosticadas com TDAH com idades entre 8 e 12 anos e verificaram que os participantes da pesquisa exibiram, em geral, respostas não conservadoras, e, portanto, foram classificados no estágio pré-operatório, que se trata do estágio anterior ao que, segundo Piaget & Inhelder7, crianças com estas idades se encontram.

Ainda nessa perspectiva, Folquitto11 comparou crianças com e sem o diagnóstico de TDAH, com idades entre 6 e 12 anos, e observou que as crianças diagnosticadas com TDAH manifestaram uma tendência a apresentar respostas em provas piagetianas operatórias que são classificadas em níveis inferiores ao esperado, quando comparadas com crianças sem TDAH.

Em suma, diante de estudos que apontam que as crianças com TDAH tendem a apresentar problemas no desempenho acadêmico1-3 e déficits na aquisição das noções operatórias10,11 que são importantes para o desenvolvimento infantil, tornou-se cientificamente relevante realizar esta pesquisa, cujo objetivo foi investigar as noções operatórias de conservação e de reversibilidade lógica em crianças com Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade (TDAH).

 

MÉTODO

Participantes

Participaram desta pesquisa 14 crianças do sexo feminino, sendo sete com idades entre 7 e 8 anos e sete com idades entre 10 e 11 anos. Todas as participantes são diagnosticadas com Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade (TDAH) e recebem atendimentos multiprofissionais em um ambulatório de Pediatria de um hospital público da cidade de Vitória-ES.

Optou-se em realizar a pesquisa com crianças que possuem as referidas idades, pois, segundo Piaget6, são idades que representam o início (7 anos) e o final (11 anos) do estágio de desenvolvimento cognitivo operatório concreto, caracterizado pela aquisição, por volta dos 7 anos de idade, das noções de conservação e de reversibilidade lógica. Além disso, como há prevalência de diagnósticos do TDAH no sexo masculino1, menos estudos são realizados com participantes com TDAH do sexo feminino12, e, diante disso, optou-se por realizar esta pesquisa com crianças do sexo feminino, visando ampliar conhecimentos sobre o desenvolvimento das mesmas.

Os dados foram coletados após a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido pelos pais ou responsáveis da criança e após a assinatura do Termo de Assentimento pelas próprias participantes, ambos explicando o objetivo e os procedimentos da pesquisa. O Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Espírito Santo (CEP/UFES) autorizou a realização desta pesquisa, sob o parecer de número 783.387. Este estudo está de acordo com a Resolução nº 466 de 12 de dezembro de 2012 do Conselho Nacional de Saúde13.

Instrumento

O instrumento utilizado nesta pesquisa foi a Prova Piagetiana de Conservação de Substância, adaptada de Assis14 e Piaget & Inhelder15. Este instrumento consiste em apresentar para a criança duas bolas com a mesma quantidade de massa de modelar, e, em seguida, realizar quatro transformações, uma de cada vez, de forma a deixar ambos os elementos com dimensões diferentes (arredondado e alongado; alongado e achatado; arredondado e dividido em quatro bolinhas; e alongado e dividido em oito bolinhas)14,15. Após cada transformação, foi aplicado um roteiro de perguntas com a finalidade de verificar se para as participantes os dois elementos ainda apresentavam a mesma quantidade de massa de modelar14,15. As informações coletadas foram posteriormente inseridas em protocolos para a análise dos dados.

Os dados foram coletados e analisados qualitativamente, com base no Método Clínico Piagetiano, buscando revelar a lógica do pensamento das crianças através de perguntas em que as participantes precisaram justificar todas as suas respostas, conforme propõem Castorina et al.16.

Segundo Campos et al.10, as provas operatórias permitem averiguar as estruturas cognitivas da criança. Para esta pesquisa, optou-se por utilizar a prova operatória de conservação de substância porque ela possibilita avaliar a noção de conservação de substância, que implica diretamente na capacidade de reversibilidade lógica, as quais são aquisições que ocorrem por volta dos 7 anos de idade7. Deste modo, levou-se em consideração as idades das participantes para a escolha da referida prova.

Procedimentos de coleta de dados

A aplicação do instrumento foi realizada no ambulatório de Pediatria de um hospital público da cidade de Vitória-ES, onde as participantes recebem acompanhamento multiprofissional devido ao TDAH. Os procedimentos foram filmados e realizados individualmente, uma única vez com cada participante.

Procedimentos de análise de dados

Para a análise dos dados, foram utilizadas três categorias pré-elaboradas fundamentadas na Teoria de Piaget & Inhelder 7 sobre as noções de conservação e de reversibilidade lógica, que indicam a etapa em que as crianças se encontram na construção de tais noções, são elas: (1) Ausência de Conservação/Ausência de Reversibilidade; (2) Semiconservação/Semirreversibilidade; (3) Noção de Conservação/Noção de Reversibilidade.

Na etapa de ausência de conservação e ausência de reversibilidade, a criança acredita que a quantidade de massa de modelar se altera após todas as transformações dos elementos nas diferentes dimensões17. Na etapa de semiconservação e semirreversibilidade, a conservação pode ser afirmada para uma ou mais transformações, mas ainda é negada para outra(s), pois a conservação ainda está em transição e só é generalizável aos casos mais simples17. Na etapa de noção de conservação e noção de reversibilidade, a criança afirma a conservação da quantidade de massa de modelar como necessária diante de todas as transformações nas diferentes dimensões17.

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Respondendo ao objetivo desta pesquisa, que foi investigar as noções de conservação e de reversibilidade lógica em crianças com TDAH, os resultados revelaram que a grande maioria das participantes, de ambas as faixas etárias, ainda não adquiriu completamente as noções de conservação de substância e de reversibilidade lógica. Para uma melhor visualização e descrição dos resultados, a quantidade de participantes que se encontra em cada etapa do processo de aquisição das noções investigadas foi detalhada na Tabela 1 a seguir.

 


Tabela 1 - Clique para ampliar

 

Conforme ilustrado, 11 das 14 participantes ainda se encontram na etapa de ausência ou na etapa de transição para a aquisição das noções de conservação de substância e de reversibilidade lógica, o que, segundo Piaget6,7, são características encontradas no estágio pré-operatório (entre 2 e 7 anos de idade). Entretanto, as participantes possuem 7/8 anos e 10/11 anos de idade, e, portanto, de acordo com a perspectiva piagetiana, estariam no estágio operatório-concreto (entre 7 e 11/12 anos) e apresentariam a completa aquisição dessas noções7.

Frente a isso, os resultados desta pesquisa corroboram os resultados de outros estudos nacionais, como o de Campos et al.10 e o de Folquitto11, que também verificaram baixo desempenho de crianças com TDAH em provas piagetianas operatórias.

Por outro lado, apesar desta constatada discrepância entre as idades das participantes desta pesquisa e o estágio de desenvolvimento em que se encontram, é preciso enfatizar que a sequência dos estágios piagetianos de desenvolvimento cognitivo deve ser abordada como um processo de construções integradas, e, por isso, as idades referentes a cada etapa devem ser contempladas como idades médias e aproximadas7.

Para ilustrar as etapas do processo de aquisição das noções de conservação e de reversibilidade lógica foram selecionados alguns trechos que as participantes disseram durante a entrevista. Ressalta-se que foram atribuídos nomes fictícios às crianças para preservar suas identidades.

A fala da participante Bianca (7;3) evidencia a ausência de conservação diante do alongamento de uma das bolas de massa de modelar. Quando questionada se ambos os elementos (arredondado e alongado) continuavam com a mesma quantidade, a participante respondeu: "Uma tem mais. (...) Porque ela virou uma minhoquinha.". Portanto, para Bianca, a quantidade de massa aumentou quando a substância se tornou mais longa, desconsiderando que a espessura diminuiu. Este exemplo demonstra a contestação da conservação de substância devido à centração do pensamento em uma determinada dimensão do objeto, ignorando completamente a outra e não compensando as diferenças7.

Se compararmos o total de participantes em cada etapa, a etapa que contempla o maior número de participantes (7) é a Semiconservação/Semirreversibilidade. Esta etapa de transição ilustra que as transformações do processo de aquisição das noções investigadas são graduais e sem começos absolutos, então "assim que as deformações ultrapassam certos limites, a intuição imediata vence a inteligência operatória e a conservação é novamente colocada em dúvida" (p. 46)15.

Contudo, os resultados demonstram que apenas 3 das 14 participantes da pesquisa apresentaram as noções de conservação de substância e de reversibilidade lógica. A fala da participante Flávia (8;3) explana a afirmação da conservação de substância diante de todas as transformações das bolas de massa de modelar. Para a compreensão do discurso da criança, ressalta-se que uma das bolas de massa de modelar tinha a cor azul. Ao ser questionada se após as transformações da dimensão os dois elementos ainda tinham a mesma quantidade de massa de modelar, a participante afirmou: "Sim. Não importa se essa daqui cresceu, vai continuar a mesma quantidade. (...) Não importa se essa daqui alongou e essa daqui achatou, não importa! (...) Não importa o tamanho, o que importa é que as duas eram bolas e eram do mesmo tamanho, isso que importa. (...) É tudo a mesma coisa. Porque o azul antes era igual a bola, se esse daqui conseguiu fazer, o azul também consegue. (...) Os dois têm a mesma quantidade, porque você alongou mais o azul, aí não importa se você alongou esse, mas os dois mesmo estão na mesma quantidade. Os dois tem a mesma quantidade de massinha.".

A contra-argumentação a outras formas de pensar é um aspecto fundamental no Método Clínico Piagetiano, pois permite verificar a coerência que a criança tem de suas respostas16. Flávia manteve tais afirmações mesmo quando contra-argumentada a outras opiniões, pois quando questionada se outra criança estava correta ao dizer que após as transformações um elemento passou a ter mais quantidade de massa de modelar que o outro, a participante respondeu: "Ela tá errada. Porque ela acha que só porque essa daqui cresceu é que tem mais quantidade... Não! (...) Porque não importa o tamanho, não importa o que que ela fez, o que que você fez, não importa nada! O que importa mesmo são as bolas, porque as duas estavam do mesmo tamanho, isso que importa! (...) Se esse daqui você alongou e essa daqui você transformou em bolinha, não importa! É tudo a mesma coisa.".

Segundo Dolle17, a fala da participante Flávia exemplifica uma justificação de igualdade por inversão, ou seja, "se fizéssemos de novo a bola, teríamos a mesma coisa que antes, teríamos as mesmas duas bolas, logo é a mesma coisa de massa" (p. 126). Nesse sentido, Piaget6 enfatiza que o verdadeiro motivo que leva a criança a admitir a conservação de substância é justamente "a possibilidade de retorno vigoroso ao ponto de partida" (p. 41), pois a noção de conservação confirma a existência da estrutura operatória reversível.

As outras duas participantes que demonstraram as noções completas de conservação de substância e de reversibilidade lógica (Isabel e Karina), também apresentaram em suas falas a justificação de igualdade por inversão. Todavia, é preciso destacar que apesar da justificação de igualdade por inversão ter sido observada nas respostas de Flávia, Isabel e Karina, tal justificação não foi emitida de forma isolada, pois também pôde-se constatar nos discursos das três participantes aspectos referentes aos outros dois tipos de justificação de igualdade, ou seja, "identidade: 'têm a mesma quantidade, pois não se tirou e nem se colocou nada'; e compensação: 'está mais comprido, mas é mais fino'" (p. 126)17.

Além disso, ao compararmos as participantes por faixas etárias, logo observamos que na medida em que as crianças aumentam de idade, há também uma evolução em direção à aquisição das noções de conservação de substância e de reversibilidade lógica. Observa-se que há mais crianças com idades entre 7 e 8 anos na etapa de ausência de conservação e ausência de reversibilidade do que crianças com idades entre 10 e 11 anos, assim como, por outro lado, há mais crianças com idades entre 10 e 11 anos na etapa de transição e na etapa de noção de conservação e noção de reversibilidade do que crianças com idades entre 7 e 8 anos. Isso corrobora as proposições da teoria piagetiana sobre o processo de desenvolvimento cognitivo humano.

 

CONCLUSÕES

Este estudo pode servir como base para futuras pesquisas sobre o desenvolvimento infantil que aborde o TDAH e as noções de conservação e de reversibilidade lógica. Pode-se presumir que o fato da grande maioria das participantes não ter adquirido completamente tais noções aos 7/8 anos e aos 10/11 anos de idade (como era esperado na perspectiva piagetiana) se justifique pela presença do TDAH, pois o diagnóstico deste transtorno nas participantes pode ser um aspecto que torna a amostra desta pesquisa distinta da amostra estudada por Piaget e porque os resultados desta pesquisa corroboram os resultados de outras pesquisas nesta mesma perspectiva, realizadas com crianças com TDAH. Porém, para confirmar esta hipótese são necessárias realizações de outras pesquisas sobre a aquisição das referidas noções em crianças com TDAH, incluindo um número maior de participantes, crianças do sexo masculino e outros instrumentos que avaliem tais aquisições.

Além disso, ressalta-se que esta pesquisa foi realizada com crianças do sexo feminino e, segundo o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5)1, as pessoas com TDAH do sexo feminino tendem a apresentar mais características de desatenção (TDAH Predominantemente Desatento) quando comparadas com o sexo masculino. Este dado é relevante, pois pode estar associado com os resultados da pesquisa.

Enfim, respondendo ao objetivo desta pesquisa, que foi investigar as noções de conservação e de reversibilidade lógica em crianças TDAH, os resultados revelaram que a grande maioria das participantes, de ambas as faixas etárias, ainda não adquiriu completamente tais noções. Como as noções de conservação e de reversibilidade lógica são importantes para o processo de desenvolvimento e de aprendizagem da criança, torna-se fundamental favorecer a aquisição das referidas noções em crianças com TDAH. Para isso, propõe-se o incentivo das relações sociais de cooperação, pois segundo Piaget8, estas são as interações responsáveis por desabrochar o pensamento reversível.

A cooperação pode ser promovida de diversas formas, como por exemplo, através do brincar entre crianças, como pode ser observado na pesquisa de Caiado & Rossetti18, que constatou que a maior utilização dos jogos de regras no contexto escolar foi associada a um maior desempenho cooperativo dos alunos. Ademais, Costa19 verificou que os jogos com regras contribuíram para a construção das noções de conservação de correspondência termo-a-termo, de substância e de peso em crianças pré-escolares.

Frente a isso, diversos estudos apontam a importância do brincar para a aprendizagem, para o desenvolvimento e para a educação infantil, pois brincando a criança desenvolve aspectos cognitivos, sociais, afetivos e morais20. Portanto, para além de intervenções medicamentosas, também "pode-se pensar o lúdico como uma nova proposta de avaliações e intervenções sociocognitivas em crianças com TDAH, ampliando, assim, as possibilidades de atuação frente ao transtorno" (p. 76)21, podendo ser amplamente utilizado por professores, psicólogos e psicopedagogos.

 

AGRACEDIMENTOS

O presente trabalho foi realizado com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.

 

REFERÊNCIAS

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Endereço para correspondência:
Caroline Benezath Rodrigues Bastos
Rua Gama Rosa, 143/802 - Edifício Elizeth
Centro - Vitória, ES, Brasil - CEP 29015-100
E-mail: carol_benezath@hotmail.com

Artigo recebido: 21/8/2018
Aprovado: 9/9/2018

 

 

Trabalho realizado na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), Programa de Pós-Graduação em Psicologia (PPGP), Vitória, ES, Brasil.
Conflito de interesses: Os autores declaram não haver.

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