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Revista Psicopedagogia

versão impressa ISSN 0103-8486

Rev. psicopedag. vol.37 no.113 São Paulo maio/ago. 2020

http://dx.doi.org/10.5935/0103-8486.20200020 

RELATO DE EXPERIÊNCIA

 

A literatura na primeira infância

 

Literature in early childhood

 

 

Leda Maria Codeço Barone

Psicopedagoga - Associação Brasileira de Psicopedagogia (ABPp). Psicanalista - Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBP-SP). Doutorado em Psicologia Escolar pelo Instituto de Psicologia da USP, São Paulo, SP, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo trata da leitura de literatura na primeira infância. Ele parte da ideia de que a literatura, esse patrimônio cultural, contribui para a entrada do infante na ordem simbólica. O artigo vai tratar ainda da importância da literatura para o desenvolvimento do pensamento e da imaginação da criança, bem como recurso para o desenvolvimento da capacidade de elaboração de situações dolorosas e inevitáveis da vida.

Unitermos: Literatura. Primeira Infância. Leitura. Ordem Simbólica. Elaboração.


SUMMARY

This article discusses reading literature in early childhood. It departs from the standpoint that literature, this cultural heritage, contributes to the infant's entry into the symbolic order. The article will also deal with the importance of literature for the development of the infant's thinking and imagination; as well as for the development of the capacity to elaborate painful and unavoidable situations of life.

Keywords: Literature. Early Childhood. Reading. Symbolic Order. Elaboration.


 

 

Um livro é um brinquedo feito de letras. Ler é brincar.

Rubem Alves

Na apresentação de Receite um livro1 há uma recomendação da Sociedade Brasileira de Pediatria para - pais, professores, cuidadores e educadores de modo geral -ler, cantar, conversar, e fazer rimas para crianças desde a mais tenra infância. Isto porque tais atividades são importantes para o desenvolvimento psíquico infantil.

Recomendação semelhante é feita no romance de Hugo Mãe O filho de mil homens2. Nele, há um diálogo entre Alfredo, um velho, e o menino Camilo. Diz o velho: "Imaginava que um não leitor ia ao médico e o médico o observava e dizia; você tem o colesterol aumentado, se continuar assim, não se salva. E o médico perguntava: tem abusado dos fritos, dos ovos, tem lido o suficiente?" Ao que o paciente respondia dizendo não ler há muito tempo por não gostar ou por preguiça. Então o médico acrescentava: "ah fique pois sabendo que ou você lê urgentemente um bom romance ou então vemo-nos no seu funeral dentro de poucas semanas."

Num belo texto Candido3 defende a literatura como direito humano fundamental. Para o autor, "a literatura corresponde a uma necessidade universal que deve ser satisfeita sob pena de mutilar a personalidade, porque pelo fato de dar forma aos sentimentos e à visão de mundo ela nos organiza, nos liberta do caos, e portanto nos humaniza."4.

Ainda para o mesmo autor, o texto literário, por ser uma organização da palavra num todo estruturado, comunica-se ao nosso espírito, primeiro nos organizando e em seguida organizando o mundo. E "isto ocorre desde as formas mais simples como a quadrinha, o provérbio, a história de bichos..." e naturalmente pelos textos mais complexos e eruditos.

Candido entende por humanização "o processo que confirma no homem aqueles traços que reputamos essenciais, como o exercício da reflexão, a aquisição do saber, boa disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso da beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo de humor."5. A literatura desenvolve a nossa humanidade porque nos torna mais sensíveis à natureza, à sociedade e ao semelhante.

Assim, a partir das ideias apontadas acima, pretendo, neste trabalho, defender a leitura de literatura na primeira infância; desde o seu início e ao longo dela, porque o patrimônio cultural representado pela literatura pode contribuir de maneira importante para a entrada do infante na ordem simbólica. Além disso, a leitura feita pela mãe, ou por quem se ocupa do bebê, põe em jogo a voz humana, outro elemento caro para sua organização psíquica.

No entanto, quando se fala na leitura para bebês, ouço, muitas vezes, argumentos desvalorizando a experiência, uma vez que o bebê não entende, não fala ainda, e, portanto, não poderia tirar proveito dela. Outras vezes os argumentos vão no sentido de valorizar a importância da leitura, apoiados na possível contribuição da experiência para a aprendizagem futura da leitura e mesmo para o desenvolvimento do gosto de ler.

Sem negar esse último argumento que reputo como verdadeiro, a direção que seguirá este trabalho será outra; justificar o procedimento de leitura (de literatura) para a primeira infância considerando dois pontos fundamentais: 1- seu valor para a construção do psiquismo ou, dito de outra maneira, para humanização do infante, desenvolvendo por isso o seu pensamento e sua capacidade imaginativa, e, 2 como recurso para superar ou elaborar situações dolorosas e inevitáveis da vida.

Leitura, construção psíquica e humanização

Benveniste6 nos ensina que a linguagem está na natureza do homem, e que ela "ensina a própria definição do homem." É pela linguagem, pela entrada na ordem simbólica que o recém-nascido se humaniza. Mas ao nascer, e mesmo antes do nascimento, esse processo já tem início, ainda que de modo rudimentar, e se completa com a aquisição da linguagem. Assim, é pelo contato com o outro, com a linguagem vinda do outro, que a cria humana se constitui humano.

Diatkine7 observa ter existido, por muito tempo, a crença de que a linguagem só se desenvolvia no infante a partir do segundo ano de vida e que, antes, a alternância entre gritos e lalações era suficiente para informar à mãe sobre o estado de satisfação ou de necessidade do bebê. No entanto, estudos variados demonstravam que o bebê já traz ao nascer a competência de discriminar a voz materna, além de responder a ela de modo significativo.

Cabrejo-Parra8, corroborando a ideia anterior, observa que o bebê já vem ao mundo com capacidade para distinguir a voz de sua mãe, da de outras vozes do seu meio. Já é, portanto, capaz de fazer uma primeira leitura, embora ainda muito rudimentar. A inscrição da voz da mãe no psiquismo do bebê se inicia ainda no ventre materno, por volta dos quatro meses de gestação, quando a capacidade auditiva do feto se organiza de tal maneira que as informações sonoras já estão acessíveis a seu aparelho auditivo. E essa capacidade de discriminação mental é capaz de colocar em movimento o pensamento.

A criança, desde o início da vida, é banhada pela linguagem dos outros, que às vezes é dirigida a ela, outras não. Mas, quando a mãe cuida do bebê, enquanto realiza a maternagem, é normal que ela fale, nomeie as partes do seu corpo; contando o que está realizando: Vamos tomar o banho, lavar o pezinho. Hum, que mãozinha gordinha, que água gostosa, por exemplo. Outras vezes canta, fabula, conta lembranças da infância, sonhos, desejos e devaneios. Já sabemos que o bebê é sensível a diferenças discretas. Podemos pensar que a criança não entende nada do que é dito, mas a mãe embora saiba disso, mesmo assim fala. Salienta Diatkine9 ainda que, nessas falas da mãe, o bebê"... é confrontado com este duplo jogo da linguagem: o primeiro ligado à experiência presente, o segundo modulado pelas variações da realidade psíquica da mãe e pelas contradições de seus devaneios, mistério por enquanto indecifrável para um e testemunhando os mais autênticos movimentos do outro."

Tudo isso contribui para o desenvolvimento do psiquismo do bebê, que pode fazer discriminação e memorização dos acontecimentos, bem como dos estados de alma da mãe. Outras vezes, as experiências de linguagem são feitas a partir de um feliz jogo de imitação mútua. O bebê gorjeia e a mãe repete estimulando e diferenciando a cada vez mais o jogo, num verdadeiro exercício comunicativo, e, de reconhecimento e acolhimento mútuo.

Sobre essas trocas entre mãe e bebê, Cabrejo-Parra faz uma interessante observação. Ele nos lembra que as diferentes culturas criam brinquedos ditos de triangulação, como os chocalhos, e outros, que favorecem a organização psíquica do bebê. São objetos para os quais ambos, a mãe e o bebê, olham como um terceiro, pelo qual os dois se interessam juntos; situação bem diferente dos olhares narcísicos iniciais. Esse objeto, uma espécie de objeto transicional, Cabrejo-Parra8 os compara às primeiras sílabas do bebê. E assim, quando a mãe se interessa pelas sílabas do bebê, ela está se interessando também por sua atividade psíquica, o que significa introduzir a triangulação, permitindo por isso que a criança crie as diferenças psíquicas necessárias para a construção do pensamento.

Importante ressaltar que nesse jogo linguageiro, a criança começa a se apropriar do sentido e da prosódia da língua, construindo, a partir da internalização dos traços acústicos da voz da mãe, a própria voz. A voz, ao mesmo tempo tão pessoal e íntima, é construída a partir da voz de alguém. É essa acolhida pelo outro que permite que passemos do grito à voz. Se construímos uma voz própria é porque fomos iniciados pela fala do outro o que nos permitiu passar do grito a fala. Nesse sentido a voz já traz a presença simbólica do outro. Esse ubiquismo psíquico, que é inerente à construção do sujeito, faz com que cada falante seja porta-voz, isto é: que em sua voz traga os traços acústicos daqueles que lhe franquearam o acesso à linguagem.

Cabrejo-Parra10 ressalta a importância de um aspecto da voz, ou seja; a possibilidade de sua modulação. Apenas o homem e os pássaros possuem a extraordinária capacidade de modular os sons. E essa capacidade tem, no ser humano, uma riqueza ímpar porque através dela ele é capaz de expressar as diferentes paixões da alma: amor, ódio, desprezo, angústia, medo, indignação, alegria, humor, ironia. Dessa maneira, não apenas as palavras significam, mas são moduladas, modificadas, intensificadas pela tonalidade e expressividade da voz. E o bebê, antes mesmo de conhecer os sentidos das palavras, já é sensível à modulação da voz. Reage ao sussurro que o acalma, assusta-se com a rispidez da voz e delicia-se com a melodia dela.

Entre outros autores, Anzieu11 também enfatiza a importância do espelho sonoro, das trocas sonoras entre o bebê e sua mãe para a construção psíquica da criança. O autor propõe a ideia "de uma pele auditivo-fônica, e sua função na aquisição, pelo aparelho psíquico, da capacidade de significar e depois de simbolizar. Antes que o olhar e o sorriso da mãe que alimenta e cuida do bebê produzam na criança uma imagem de si que lhe seja visualmente perceptível e que seja interiorizada para reforçar seu self e esboçar seu ego, o banho melódico (a voz da mãe, suas cantigas, a música que ela proporciona) põe à disposição um espelho sonoro do qual ele se vale a princípio por seus choros (a voz da materna acalma em resposta), depois por seus balbucios e, enfim, por seus jogos de articulação fonemática"12.

Literatura e enfrentamento de situações dolorosas

Certa vez ouvi de uma menina com seus dois ou três anos, enquanto vivia a separação dos pais, pedir com sua linguagem infantil: cante para mim, o cravo brigou com a rosa, pedido esse repetido algumas vezes. Com essa canção infantil, a pequena ao mesmo tempo em que elaborava a separação dos pais parecia sentir-se reconhecida e acolhida em sua dor.

Muitos são os autores que reconhecem o valor da narrativa, das histórias que se contam às crianças para ajudá-las a lidar com as situações dolorosas da vida. Num belo texto de Benjamin13, intitulado Narrativa e cura, o autor trata da função curativa da narração. Ele fala da relação da mãe com um filho doente. Ela leva-o para cama e então começa a contar histórias. Relembra que a cura pelas palavras já era conhecida por meio das palavras mágicas.

Aqui não posso esquecer também da definição dada por uma paciente à psicanálise: a talk cure, reconhecida também por Benjamin quando afirma que a narração feita pelo doente na presença do analista já é o começo do processo de cura. Finalmente, Benjamin13 se interroga: "Não seria toda doença curável se ela se deixasse levar pela correnteza da narração até a foz? Se considerarmos a dor uma barreira que bloqueia a corrente da narração, podemos ver claramente que ela se quebra quando o declive é suficientemente acentuado para arrastar tudo que encontra em seu caminho em direção ao oceano venturoso do esquecimento."

Diatkine nos diz que as histórias lidas para as crianças antes de dormir permitem que ela suporte melhor o medo do escuro e de morrer como também de perder seus pais. Vale a pena lembrar, aqui, a observação de Freud a respeito de um menino que tinha medo do escuro. Reconhecendo que o medo do escuro e da solidão está relacionado à ausência da pessoa amada que cuida da criança, sua mãe ou substituta, Freud nos conta a observação que fez de uma criança com medo do escuro dizer em voz alta: Mas fala comigo titia. Estou com medo! Por quê? Do que adianta isso. Tu nem estás me vendo." Ao que a criança responde. "Se alguém fala, fica mais claro."14.

Também Bettelheim15, no livro clássico A psicanálise dos contos de fada reconhece o valor dos contos e narrativas para auxiliar às crianças a lidar com seus medos, suas incertezas e situações traumáticas da vida. Muitas são as intempéries na vida de uma criança; doença, abandono, perda de um ente querido, violência de todo tipo, entre outros; que a impedem de construir um sentido positivo para a existência. O autor reconhece, então, que a tarefa mais difícil na educação de crianças é justamente a de ajudá-las a encontrar significado na vida.

E, em relação ao cumprimento desta tarefa, Bettelheim destaca em primeiro lugar o cuidado dos pais ou de outros cuidadores e depois salienta o valor a herança cultural transmitida à criança por meio de contos. Ainda afirma o autor: "Para que uma história realmente prenda a atenção da criança, deve entretê-la e despertar sua curiosidade. Mas para enriquecer sua vida, deve estimular sua imaginação: ajudá-la a desenvolver seu intelecto e a tornar claras suas emoções; estar harmonizada com suas ansiedades e aspirações; reconhecer plenamente suas dificuldades e, ao mesmo tempo, sugerir solução para os problemas que a perturbam."16.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pensamos que a literatura na primeira infância tem uma importância muito grande para o desenvolvimento humano nos aspectos de construção do pensamento, da imaginação, aprimoramento da língua, e elaboração dos problemas da vida. Naturalmente que essa contribuição terá um efeito importante sobre a aprendizagem da criança e também no gosto e prazer na leitura. Nesse sentido a literatura é fermento importante para apropriação da cultura e inserção social do sujeito.

A literatura, como entendemos aqui, compreende desde as histórias contadas, as fábulas, as quadrinhas e cantigas, como também a literatura clássica e erudita. E a leitura coloca em jogo três movimentos constitutivos da atividade de ler. Trata-se de ler as informações que vêm do mundo da intersubjetividade, mundo em que, na concepção de Cabrejo-Parra, se desenvolve todo tipo de sentimento e emoção. Também trata-se de ler as informações do mundo físico, do mundo exterior. E finalmente de ler aquilo que se passa no íntimo de nós mesmos. A leitura entrelaça essas possibilidades de relações: com o outro, com a realidade e conosco mesmo, de modo que, sem o saber, estamos sempre lendo três livros: o da intersubjetividade, o do mundo e o livro interno. Assim, reconhece o autor: "o outro livro que nós podemos segurar em nossas mãos é finalmente uma espécie de eco do livro que portamos dentro de nós."

Bonnafé17, em seu livro, conta a experiência do A.C.C.E.S.*, de animações de leitura para bebês. São encontros em que se oferece livros a bebês que os manipulam como desejam. Há um animador que coordena a sessão com os livros e que os lê, mas os bebês têm toda liberdade de se movimentarem, interagir entre si. Nada é forçado. A ideia é a aproximação da criança ao texto escrito. A experiência não tem como objetivo a aprendizagem da leitura, nem que no final se tornem leitores, mas permitir à criança a descoberta de que os textos são coisas que portam sentidos e assim que possam também construir sentidos.

Cabrejo-Parra, importante colaborador da A.C.C.E.S., esclarece que nas sessões de leitura acontece o que se passou no começo com a língua oral. "O bebê compreende rapidamente que o que dizem os adultos, o movimento de sua boca, o som tem um sentido que ela interpreta. (...) mas nós não sabemos o que elas compreendem, mas nós sabemos que elas compreenderam alguma coisa e que uma espécie de movimento psíquico aconteceu." Os bebês constroem coisas diferentes a partir da escuta do texto, da observação e manuseio dos livros. Da mesma forma que também faz a leitura do mundo. De alguma maneira, conseguem perceber as diferenças entre o escrito e as figuras, e a perceber que o texto tem sentido.

E de que maneira essas experiências podem ser importantes para o psicopedagogo? Tanto a leitura para os bebês como para toda a primeira infância parece-me um excelente caminho para construção do sujeito da aprendizagem. Aprendizagem da leitura também, mas principalmente na construção e desenvolvimento da capacidade interpretativa, cognitiva e imaginativa. Contribui por isso para a inserção da criança na cultura.

Penso aqui em pelo menos duas contribuições. A primeira diretamente com as crianças ou seus pais, na escola, na creche e na clínica. A segunda na formação de profissionais ligados ao atendimento à primeira infância: educadores, professores, profissionais de creche e demais instituições que prestam atendimento à primeira infância.

No trabalho clínico o uso da leitura de literatura para crianças com dificuldades de aprendizagem tem se mostrado muito produtivo. Cito uma experiência, Barone18, com um menino com dificuldade de aprendizagem de leitura, em que todo o atendimento foi atravessado pela leitura de textos infantis. A princípio os textos eram escolhidos pelo psicopedagogo mas, logo em seguida, demandados pelo paciente. Chamava a atenção o modo como, a princípio, o menino ouvia as histórias. Ele deitava-se na carteira, fechava os olhos, às vezes suspeitava que estivesse dormindo. Mas logo percebi que ele se encantava com o som da minha voz. Pensava se ele estaria entendendo o que eu lia, pois ele parecia entregue a seus devaneios e prazer. No entanto, pude perceber que aos poucos ele começa a pedir-me para escrever o nome de um ou de outro personagem da história. Depois passou a pedir que escrevesse o nome da história para que ele copiasse. Ao mesmo tempo, realizava desenhos para ilustrar a história ouvida.

Outro fragmento do atendimento desse menino que vale a pena destacar, foi sua reação depois de ouvir a fábula O ursinho e as abelhas, de Leonardo Da Vinci19. A fábula narra a história de um ursinho que encontra mel no buraco de uma árvore. Porém, quando ele começa a comer o mel, um bando de abelhas enfurecidas começa a picá-lo. O ursinho tenta se defender como pode, mas não conseguindo, volta, todo picado, para junto de sua mãe. Após escutar a fábula, o menino fica muito inquieto e quer propor outro fim para história. Em sua proposta, o pai vem em socorro do filho ajudando-o a se livrar das abelhas.

Esse episódio colocou em cena uma questão do menino. Tendo sido abandonado pelo pai ainda no ventre da mãe, ele necessitava de um pai que pudesse fazer a separação simbólica da relação simbiótica vivida com a sua mãe, passo importante, nesse caso, para sua aprendizagem. E, através do contato com a fábula ouvida, o menino tem oportunidade de tratar de uma questão importante em sua constituição subjetiva, podendo expressar-se.

Lembro de um trabalho feito com mães de crianças atendidas, em uma clínica psicopedagógica de uma IES, por apresentar dificuldades de aprendizagem de leitura. Muitas dessas mães, oriundas de classe social menos favorecida, não liam ou apresentavam grande defasagem em seu nível de leitura. O trabalho ocorreu por meio de leitura, feita pelo psicopedagogo, de fábulas e contos diversos, seguida de um momento de discussão dos temas apresentados, das associações realizadas a partir das histórias ouvidas, bem como sobre as dificuldades de aprendizagem de leitura e dos filhos.

A leitura, na maioria das vezes, era feita pelo psicopedagogo, mas havia a possibilidade de ser lido por alguma participante, caso desejasse. A experiência pareceu ser muito rica para as participantes que trabalhavam com alegria enquanto seus filhos eram atendidos por um estagiário aluno do curso de graduação em psicopedagogia da instituição.

Nesse trabalho, todas as mães recebiam o texto que seria lido a cada sessão para que pudessem acompanhar, caso desejassem, a leitura. Em muitos encontros, a única participante que tinha um nível melhor de leitura se oferecia para ler. Porém, num dia ela falta. Uma das participantes que dizia não saber ler nem escrever, embora tivesse frequentado os primeiros anos do ensino fundamental, se prontifica a ler. De início, de forma titubeante, mas depois com certa firmeza, lê o texto, e se surpreende com o fato de ter conseguido fazer a leitura.

Além das propostas aqui referidas, penso que o psicopedagogo poderá, a partir delas, criar outras possibilidades que enriqueçam nossa prática e atendam a diferentes demandas de nossos alunos, pacientes e instituições que procuram nossos serviços.

 

REFERÊNCIAS

1. Sociedade Brasileira de Pediatria. Receite um livro. Fortalecendo o desenvolvimento e o vínculo. A importância de recomendar a leitura para crianças de 0 a 6 ano. São Paulo: Sociedade Brasileira de Pediatria; 2015.         [ Links ]

2. Mãe VH. O filho de mil homens. São Paulo: Cosac Naify; 2011. p. 68.         [ Links ]

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4. Candido A. O direito à literatura. In: A Candido A, ed. Vários escritos. 4a ed. São Paulo/Rio de Janeiro: Duas Cidades/Ouro Sobre Azul; 2004. p. 186.         [ Links ]

5. Candido A. O direito à literatura. In: A Candido A, ed. Vários escritos. 4a ed. São Paulo/Rio de Janeiro: Duas Cidades/Ouro Sobre Azul; 2004. p. 180.         [ Links ]

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9. Diatkine R. Leituras e desenvolvimento psíquico. In: Barone LMC, Costa BHR, Porcacchia SS, orgs. O leitor e o texto. A função terapêutica da literatura. Curitiba: Editora Appris; 2016. p. 33.         [ Links ]

10. Cabrejo-Parra E. Fête narcissique des premières syllabes. Nouv Rev Psychanal. 1994; 49:189-97.         [ Links ]

11. Anzieu D. O Eu-pele. São Paulo: Casa do Psicólogo; 1998.         [ Links ]

12. Anzieu D. O Eu-pele. São Paulo: Casa do Psicólogo; 1998. p. 195.         [ Links ]

13. Benjamin W. Narrativa e cura. J Psicanal (São Paulo). 2002;35(64/65):115-6.         [ Links ]

14. Freud S. A ansiedade. Conferências introdutórias sobre psicanálise. In: Freud S, eds. Edição Standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. v. XVI. Rio de Janeiro: Editora Imago; 1985. 474 p.         [ Links ]

15. Bettelheim B. A psicanálise dos contos de fadas. 3a ed. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra; 1979.         [ Links ]

16. Bettelheim B. A psicanálise dos contos de fadas. 3a ed. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra; 1979. p. 13.         [ Links ]

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18. Barone LMC. De ler o desejo ao desejo de ler. 5a ed. Rio de Janeiro: Vozes; 2005.         [ Links ]

19. Vinci L. Fábulas e lendas (interpretadas e transcritas por Bruno Nardini). São Paulo: Círculo do Livro; 1972.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
Leda Maria Codeço Barone
Universidade Ibirapuera (UNIB)
Av. Interlagos, 1329 - Chácara Flora - São Paulo, SP, Brasil - CEP 04661-100
E-mail: ledabarone@uol.com.br

Artigo recebido: 29/6/2020
Aprovado: 7/7/2020

 

 

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Conflito de interesses: A autora declara não haver.

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