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Revista Psicopedagogia

versão impressa ISSN 0103-8486

Rev. psicopedag. vol.38 no.115 São Paulo abr. 2021

http://dx.doi.org/10.51207/2179-4057.20210011 

RESENHA

 

Relações fraternas: uma história atravessada pelo transtorno do espectro autista

 

 

Emellyne Lima de Medeiros Dias LemosI; Cibele Shírley Agripino-RamosII

IDoutora em Psicologia Social, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, PB, Brasil
IIDoutora em Psicologia Social, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, PB, Brasil

Endereço para correspondência

 

 

O Transtorno do Espectro Autista (TEA) acomete precocemente o desenvolvimento, causando prejuízos nas áreas sociocomunicativa e comportamental, em diferentes graus1. O aumento vertiginoso na população mundial tem sido apontado; porém, no Brasil, os dados epidemiológicos são escassos. Objetivando solucionar esta questão no país, em 2019 foi sancionada a lei 13.861/20192, que inclui dados sobre o transtorno no Censo do IBGE. Segundo o Centers for Disease Control and Prevention, nos Estados Unidos, uma em cada 54 crianças foi identificada com TEA3. Nesse sentido, ao abordar um tema tão coletivo, na medida em que afeta grande número de pessoas, e tão particular, considerando cada sujeito em sua singularidade, as autobiografias são importantes para quem pesquisa e trabalha com o tema, ao compreender o fenômeno sob o olhar daqueles que o vivenciam em seu cotidiano.

O livro "How to be a sister - a love story with a twist of autism" foi escrito por uma autora norte-americana em sua fase adulta, já casada e residindo em uma cidade diferente de sua irmã com TEA, Margaret, que, adulta, mora em uma residência coletiva. Traduzido para o Brasil como "Eu, minha irmã e seu universo particular: uma história de amor e autismo", e publicado no país no ano de 2019, a narrativa é dividida em 11 capítulos, abordando a desafiadora e edificante trajetória de uma família (constituída por pai, mãe e cinco filhos) atravessada pelo autismo4.

O prefácio, escrito pelo Professor Doutor Gustavo Teixeira, importante nome na área, aponta que a obra é aclamada pela crítica especializada norte-americana e destaca que deve ser lida por todos aqueles que militam pela causa do autismo no Brasil, em especial por pais, profissionais e educadores que trabalham com crianças, adultos ou adolescentes com TEA.

Destaca-se a relevância da obra especialmente para os irmãos que, segundo a autora, são carentes de informações dirigidas a eles. Por anos, a autora buscou leituras que dessem voz a esse público esclarecendo questões como:

"Como você lidou com isso?", "Consegue se relacionar com essa irmã?", "Como faz para estruturar sua vida sabendo que a dela sempre estará limitada pela deficiência?", "O que você faz com a culpa, a raiva, o sofrimento?", "O que fará quando seus pais morrerem?" (p. 80)4.

Os capítulos descrevem, detalhadamente, situações do cotidiano familiar, na perspectiva da autora, em diferentes fases do seu desenvolvimento, e abordam tudo aquilo que permeia sua subjetividade: pensamentos, memórias, questionamentos, expectativas, sonhos e sentimentos. Perpassam, também, valorosas descrições sobre as características do transtorno que, em diferentes graus, podem ser identificadas pelos leitores nas pessoas com TEA com quem convivem.

A autora transita pelo pretérito, presente e futuro, ao descrever como percebia um acontecimento na ocasião em que ele ocorreu, como o percebe agora em sua fase adulta ou fazendo questionamentos sobre ele no futuro. As descrições das reações das pessoas diante de episódios de crise da irmã autista, com nível grave de comprometimento, e o relato dos seus sentimentos de medo, tristeza, frustração, raiva e impotência misturam-se à narrativa detalhada de memórias de sons, músicas, cheiros, sabores, cores, ambientes e objetos. Por outro lado, são abordados desfechos positivos colocando como ela e os irmãos precisaram lidar com certo humor nessas situações.

Posto isso, há três aspectos interessantes que merecem ser destacados. O primeiro deles está relacionado ao esforço da autora para reconhecer as diferenças entre as características do transtorno e aquelas relacionadas à personalidade. O segundo refere-se à analogia de que, como tudo na vida, há o lado bom e o lado ruim em ter uma irmã com TEA. O terceiro, por sua vez, diz respeito à percepção de que o autismo pode assumir diferentes significados devido à variedade de fatores a ele relacionados.

Na obra, a autora deixa claro como foi ressignificando os comportamentos da irmã e seus episódios de crise, embora nunca conseguisse diminuir a ansiedade antes de cada encontro com ela. Fica evidente que as dificuldades em compreender esses comportamentos diminuem seu senso de autoeficácia, mas a experiência na fase adulta tem demonstrado que está aprendendo a lidar com eles, fazendo com que saia de cada encontro mais esperançosa. Ela pondera que Margaret, aos 40 anos, vive uma fase mais tranquila na residência coletiva, que divide com três adultos com a mesma condição, ressaltando que isso só foi possível devido aos anos de esforços dos familiares e dos profissionais.

No capítulo intitulado "Jantar ao estilo familiar", a autora descreve detalhadamente o que é comum na situação de jantar familiar em ambientes públicos e relaciona as experiências da infância ao evento de sua vida adulta: convidar sua irmã para um almoço. No capítulo "O almoço", ela relata a ansiedade que precede os encontros, as tentativas de prever os comportamentos da irmã, a dificuldade em estabelecer diálogos e a sensação ao perceber que a irmã pareceu feliz ao vê-la. Embora Margaret não tenha se comportado de maneira socialmente aceita durante todo o almoço, a autora pondera que quase ninguém acerta o tempo todo, saindo esperançosa do encontro social de irmãs adultas.

Em "Que ela coma o bolo", a autora rememora os comportamentos de Margaret nos casamentos de todos os irmãos, inclusive no seu, cuja ansiedade era em comer o bolo de casamento. Exceto no casamento de um dos irmãos, no qual Margaret não foi convidada, os demais se caracterizaram pela presença de algum comportamento socialmente inadequado, seguido de aprendizados para todos. O capítulo "Improvisando" traz à tona a sensação de que os irmãos tinham de que algo ruim estaria prestes a acontecer diante de eventos sociais (férias, aniversários ou passeios em família).

O capítulo "O que é autismo" trata sobre a busca de informações na perspectiva de irmã de uma pessoa com o transtorno. Diante de um cenário de poucas informações dirigidas aos irmãos, o autismo é abordado de uma maneira geral, e também particular, dizendo: "Talvez seja um aspecto definidor de uma personalidade ou tão somente uma característica de muitas complexidades que constituem uma pessoa" (p. 77)4. A autora rememora como tinha fantasias sobre a cura da irmã.

Em "A ovelha está entre a mesa e o hambúrguer" são abordadas situações relacionadas ao uso excêntrico da linguagem, vivenciadas pelos irmãos com vergonha e humor, algumas das quais viraram piadas coletivas, levando a crises de riso até mesmo da própria Margaret. Em meio a relatos de como sua mãe investiu em ensinar boas maneiras à irmã, a autora menciona irmãos que, sem alternativas, precisam se responsabilizar pelos seus irmãos com TEA na vida adulta. No seu caso, mesmo não tendo que morar com a irmã, busca como pode fazer mais por ela e demonstra gratidão aos funcionários que cuidam por 24 horas da irmã, contribuindo para que ela tenha uma vida tranquila.

Sobre "Amigos e vizinhos", a autora faz menção às crises da irmã autista e a como os seus vizinhos eram complacentes, especialmente uma família da qual mãe e filha permaneceram amigas suas até a vida adulta. Na memorável crise pelo desaparecimento de uma escova azul, Margaret gritara tanto, e pelo dia todo, que os vizinhos chamaram a polícia. Em "A tia que não sabia de nada", o relato gira em torno da experiência de cuidar dos seus três sobrinhos durante uma viagem de sua outra irmã, momento no qual a autora declara sua decisão de não ter filhos, e como precisou se adaptar a uma casa com crianças com desenvolvimento típico, diferentemente do que lembrava de sua infância.

No capítulo "E agora, Margaret?", a pergunta é derivada de uma interação das duas irmãs em um passeio, cuja lista de atividades planejadas foi um pouco extensa e, após essa pergunta, ambas decidem encerrar o passeio. A autora também expõe a falta de comunicação familiar a respeito da condição da irmã ao longo dos anos. No penúltimo capítulo, "A vida é uma travessa de espaguete", há novamente o relato de uma crise de Margaret, dessa vez pela caixa de uma fita cassete. A autora aborda como era complicado passar pela mesma situação tantas vezes e continuar nunca sabendo como lidar com elas, novamente demonstrando a falta de comunicação familiar, visto que após a crise ninguém proferiu uma palavra por um bom tempo. Nesse capítulo, também há uma breve reflexão sobre seu papel no sistema familiar e como jamais tivera a atenção da mãe exclusivamente para si.

Por fim, em "Como ser irmã", a autora versa sobre as memórias da infância e de como foi registrando que sua irmã era diferente a partir de acontecimentos diários. Aborda sua primeira e última festa de aniversário, indicando seus esforços, ao improvisar brincadeiras, com o propósito de distrair a atenção das crianças dirigida à Margaret. A autora faz alusão também às vivências da infância quando ficava aos cuidados da avó para que a mãe levasse a irmã às terapias, quando olhava a escola especial de Margaret e achava mais interessante que a sua ou quando revidou à irmã com uma mordida, causando em si imenso sentimento de remorso e culpa. Com relatos emocionalmente mais leves, muitas frases poderiam ser citadas, mas essa parece ser a mais representativa de uma relação fraterna atravessada pelo autismo e ressignificada através do tempo:

Vou sentir reverberar a nossa felicidade frágil, adquirida a duras penas, numa sensação sonora do laço inquestionável que nos une. É tênue a fronteira entre esperança e mudança. Me apego a essa ideia e procuro acreditar que isso possa se estender a tudo mais na minha vida. (p. 200)4.

As interinfluências nas interações familiares demonstradas nessa narrativa autobiográfica revelam a contribuição da obra e como o tema é promissor em direção a novas pesquisas.

 

REFERÊNCIAS

1. American Psychiatric Association. Diagnostic and statistical manual of mental disorders. 5th ed. Arlington: American Psychiatric Association; 2013.         [ Links ]

2. Brasil. Presidência da República. Lei No 13.861, de 18 de julho de 2019. Altera a Lei No 7.853, de 24 de outubro de 1989, para incluir as especificidades inerentes ao transtorno do espectro autista nos censos demográficos. Brasília: Diário Oficial da União; 2019.         [ Links ]

3. Maenner MJ, Shaw KA, Baio J, Washington A, Patrick M, DiRienzo M, et al. Prevalence of Autism Spectrum Disorder Among Children Aged 8 Years - Autism and Developmental Disabilities Monitoring Network, 11 Sites, United States, 2016. MMWR Surveill Summ. 2020;69(4):1-12. doi: 10.15585/ mmwr.ss6904a1        [ Links ]

4. Garvin E. Eu, minha irmã e seu universo particular: uma história de amor e autismo. Rio de Janeiro: Agir; 2019.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
Emellyne Lima de Medeiros Dias Lemos
Universidade Federal da Paraíba, Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes
Campus I - Cidade Universitária - Castelo Branco
João Pessoa, PB, Brasil - CEP 58059-900
E-mail: emellyne@gmail.com

Artigo recebido: 11/7/2020
Aprovado: 11/2/2021

 

 

Resenha do livro: "Eu, minha irmã e seu universo particular: uma história de amor e autismo." Autora: Eileen Garvin. Rio de Janeiro: Agir; 2019.

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