SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.38 issue116Intellectual performance and dysfunctional beliefs in children victims of sexual abuseThe child's relation whit the iconic language existent in digital age: The childish perception about icon in smartphone author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Revista Psicopedagogia

Print version ISSN 0103-8486

Rev. psicopedag. vol.38 no.116 São Paulo May/Aug. 2021

http://dx.doi.org/10.51207/2179-4057.20210018 

ARTIGO ORIGINAL

 

Neurodesenvolvimento infantil: relato de avaliação psicológica sem uso de técnicas padronizadas

 

Child neurodevelopment: Reporting psychological assessment without using standardized techniques

 

 

Jaqueline Pereira Carvalho CardosoI; Fernando Silva PaulaII; Jeanny Joana Rodrigues Alves de SantanaIII

IPsicóloga - Instituto de Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, MG, Brasil
IIDoutor e Mestre em Ciências - Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP), na área de Psicologia; Licenciado, Bacharel e Psicólogo - Instituto de Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, MG, Brasil
IIIMestre e Doutora em Psicobiologia - Universidade de São Paulo (FFCLRP); Especialista em Psicologia da Saúde -Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto-SP; Aprimoramento Profissional em Psicologia da Saúde - Hospital de Base/FAMERP; Licenciada, Bacharel e Psicóloga pelo Instituto de Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, MG, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O estudo teve como objetivo avaliar aspectos do desenvolvimento cognitivo e socioemocional de criança em idade pré-escolar encaminhada devido a problemas no neurodesenvolvimento, utilizando-se de técnicas não padronizadas de avaliação psicológica. Na fase 1 de avaliação da menina de 6 anos de idade aconteceram: anamnese com familiares e seções individuais com a criança, quando se identificou inviabilidade da testagem psicológica. Na fase 2 da coleta de dados ocorreram: observação sistemática do comportamento (em sessões lúdicas, realizadas individualmente e em grupo de crianças) e entrevistas com equipe escolar. Os registros comportamentais foram analisados quanto à natureza, frequência e intensidade das respostas, e as entrevistas quanto ao seu conteúdo. Os dados foram interpretados segundo teorias do neurodesenvolvimento, neuropsicologia e psicologia cognitiva. Os resultados indicaram que a criança tem dificuldades em entender e seguir as instruções verbais; a resolução de problemas é geralmente feita via raciocínio concreto; há baixa frequência e qualidade da comunicação social; constantes falhas de controle inibitório relacionam-se com a alta intensidade de sinais de intolerância à frustração. São sugeridos prejuízos moderados na capacidade de raciocínio geral, falhas atencionais, alterações no nível de atividade motora e dificuldades no desenvolvimento socioemocional. Por outro lado, como potencialidade identificada cita-se o histórico positivo de engajamento em treino de habilidades sociais em sala de aula, o que sugere bom prognóstico e deve ser valorizado em plano terapêutico futuro. Conclui-se sobre a importância do estudo de técnicas não padronizadas de avaliação psicológica para identificação adequada de déficits cognitivos, afetivos, comportamentais e seus impactos na vida do paciente.

Unitermos: Desenvolvimento. Avaliação Psicológica. Neurodesenvolvimento. Cognição.


SUMMARY

The study aimed to evaluate aspects of the cognitive and socioemotional development of children (preschool age) referred due to problems in neurodevelopment, using non-standardized psychological assessment techniques. In phase 1 of the evaluation of the 6-year-old girl, there were: anamnesis with family members and individual sections with the child. It was concluded that the use of psychological testing was not feasible. In phase 2 there were: systematic observation of behavior (in play sessions, carried out individually and in a group of children) and interviews with school staff. The behavioral records were analyzed as to the nature, frequency and intensity of the responses, and the interviews according to their content. The data were interpreted based on theories of neurodevelopment, neuropsychology and cognitive psychology. The results indicated the child has difficulties in understanding and following verbal instructions; problem solving is usually done via concrete reasoning; there is low frequency and quality of social communication; constant failures of inhibitory control are related to the high intensity of signs of frustration intolerance. Moderate impairments in general reasoning ability, attentional failures, changes in the level of motor activity and difficulties in socioemotional development are suggested. On the other hand, the identified potentiality is the positive history of engagement in training social skills in the classroom, which suggests a good prognosis and should be valued in the future therapeutic plan. We conclude about the importance of studying non-standardized psychological assessment techniques for the proper identification of cognitive, affective, behavioral deficits and their impact on the patient's life.

Keywords: Development. Psychological Assessment. Neurodevelopment. Cognition.


 

 

INTRODUÇÃO

Para caracterizar o desenvolvimento típico e os atrasos na cognição, a ciência aponta fatores de risco e proteção que abrangem a interação entre domínios biológicos e experiências nos contextos físico e social1. Assim, a avaliação psicológica tem, entre seus diversos objetivos, a finalidade de identificar como a criança representa o mundo e de descrever a particularidade dos seus domínios cognitivos. Com isso, é possível elaborar previsões sobre o progresso do desenvolvimento e propor estratégias para mudanças no ciclo de vida2. Por exemplo, sabe-se que a maioria das crianças com diagnóstico precoce de transtornos do neurodesenvolvimento que, ao longo dos anos, experimentaram resolução ou atenuação em alguns sintomas cognitivos, continuaram com problemas emocionais e de aprendizagem que exigiram apoio especializado nos primeiros anos escolares3.

Na avaliação psicológica são analisados aspectos do comportamento que se relacionam com um padrão de variabilidade esperada do fenômeno em termos individuais e entre indivíduos4. Os manuais de avaliação psicológica sugerem mensuração das habilidades por meio de aplicação de testes psicológicos, e a interpretação destes dados com base em parâmetros de padronização e por modelos teóricos do funcionamento cognitivo. Esse processo orienta as decisões sobre estratégias de diagnóstico e intervenção5. No caso de transtornos do neurodesenvolvimento, são investigados déficits que se manifestam muito cedo na vida e que levam a prejuízos no funcionamento pessoal, social, acadêmico ou profissional, abrangendo desde limitações específicas no aprendizado a prejuízos globais nas habilidades sociais ou inteligência6.

Na prática clínica, os transtornos do neurodesenvolvimento nem sempre são elucidados exclusivamente à luz dos testes psicológicos por várias razões7,8. Dentre essas, destaca-se a escassez de instrumentos validados para populações específicas9 e o grau de dificuldade de execução do teste, o qual está relacionado com a ponderação que se faz sobre a adequação em usá-lo na situação específica10. Na avaliação da memória episódica, por exemplo, as tarefas de recuperação com sugestões (reconhecimento) e sem sugestões (lembrança) são distintas entre si quanto aos procedimentos de aplicação, e têm objetivos específicos de diagnóstico. No entanto, só é possível monitorar o desempenho desse tipo de memória em tarefas nas quais exista um procedimento de dificuldade progressiva (formatos de respostas curtas, fáceis ou difíceis), em que os efeitos do teste de tipo "teto" (desempenho muito alto) e "piso" (poucos acertos) são controlados11.

Na avaliação dos problemas do desenvolvimento é preciso considerar a heterogeneidade na apresentação do sintoma. Isso requer, às vezes, análises específicas que apresentarão melhores indicadores de desempenho12. Há ainda que se valorizar na avaliação aspectos para além dos sintomas, como a qualidade de vida do indivíduo13. Por esse motivo, os protocolos de observação de comportamentos e modos de interação do sujeito com o ambiente apresentam vantagens, pois são planejados/desenvolvidos com o objetivo de obter informações mais detalhadas de determinados processos cognitivos. Além disso, o comportamento em estudo é expresso em termos de intensidade, duração e peculiaridade ambiental14.

A avaliação psicológica que não utiliza ferramentas padronizadas deve ser formatada segundo modelos teóricos, e os dados gerados interpretados à luz desse conhecimento. Um dos principais aspectos a se considerar, conforme teorias do neurodesenvolvimento, refere-se ao processo de diferenciação em módulos funcionais, à medida que ocorre a maturação cerebral. Falhas nesse mecanismo dinâmico de desenvolvimento podem prejudicar a especialização e localização de funções, bem como a comunicação entre circuitos, afetando o desempenho em processos como atenção, memória, raciocínio, dentre outros15.

Por meio de procedimentos não padronizados da avaliação psicológica, como entrevista clínica com informantes sobre manifestações comportamentais nos primeiros anos de vida do indivíduo, é possível obter indícios sobre como ocorreu um período muito importante da maturação cerebral, etapa chamada de "fase maturativa" ou "anos formativos". Esse momento é caracterizado por intensa atividade de migração neuronal; apoptose (redução neuronal programada); mielinização (formação da "capa" lipídica e proteica que envolve os neurônios); sinaptogênese; arborização dos dendritos e axônios e eliminação competitiva e reestruturação das sinapses15. Assim, fundamenta-se a importância de se investigar em minúcia as fases que compreendem zero a 6 anos; 6 aos 12 e 12 aos 18 anos de vida (períodos críticos). Deve-se buscar a relação entre os eventos de maturação cerebral esperados e os estímulos recebidos nessas fases em vários domínios como o social, afetivo, de segurança e nutrição adequada15.

O profissional que realiza a avaliação do neurodesenvolvimento por procedimentos não padronizados buscará interpretar as informações coletadas de entrevistas, observações comportamentais e outras fontes em termos da origem desenvolvimental típica (esperada). Por exemplo, pesquisas sobre a atenção visual mostram que o sistema básico de alerta da atenção já está presente em recém-nascidos. Em torno dos 4 meses de vida o bebê começa a demonstrar controle cortical dos processos de alocar e deslocar a atenção entre alvos concorrentes16. Entretanto, somente por volta dos 4 a 6 meses de idade o mecanismo que possibilita a supressão de informações concorrentes quando ocorrem mudanças de orientação da atenção torna-se funcional17.

A busca por uma compreensão das relações entre variáveis de desenvolvimento que se combinam exclusivamente no indivíduo é uma preocupação clínica, pois "o mesmo problema de comportamento pode ser afetado por diferentes permutações de variáveis e relações causais, dentro e entre pessoas"18. A aplicação prática desse ponto de vista consiste na descrição detalhada do problema apresentado, do curso temporal desta condição e da relação deste problema com as variáveis de contexto.

A integração dessas informações com medidas padronizadas permitirá uma visão holística focada no indivíduo. Esses dados integrados podem ser configurados como linha de base para o planejamento da intervenção, tomada de decisão clínica e acompanhamento do tratamento, pois não são mutuamente exclusivos8,18. A integração de dados gerais e específicos da avaliação psicológica também servirá para melhorar a previsão das crises e dificuldades, resposta ao tratamento, reações cognitivas e emocionais às mudanças propostas19,20.

Fundamentado teórica e metodologicamente nos princípios supramencionados, este estudo buscou avaliar aspectos do desenvolvimento cognitivo e socioemocional de criança em idade pré-escolar encaminhada devido a queixas de problemas do neurodesenvolvimento, utilizando-se, para isto, técnicas não padronizadas de avaliação psicológica. De modo específico, planejou-se discutir os limites e o escopo da avaliação psicológica sem uso de instrumentos padronizados e apontar perspectivas de tomada de decisões diagnósticas e terapêuticas baseadas neste método da avaliação psicológica clínica.

 

MÉTODO

Trata-se de um estudo de caso, delineamento de caso único, realizado com uso de dados qualitativos por meio de observação naturalística e registros de arquivos21. Todos os procedimentos éticos da legislação vigente foram respeitados, sendo que o protocolo de pesquisa foi registrado pelo código CAAE 61285116.6.0000.5152 e parecer emitido pelo Comitê de Ética da Universidade sob o número 1.919.465.

Participante

Participou do estudo Eva (nome fictício), uma menina de 6 anos de idade. No momento do estudo ela cursava o primeiro ano da educação infantil em uma escola pública. Ela foi encaminhada para a clínica-escola de Psicologia de uma universidade por uma equipe de saúde, devido a queixas de dificuldades de aprendizagem; comportamento agressivo e desafiador; comportamentos repetitivos e estereotipados.

Instrumentos

Foram utilizados formulários para realização do estudo conforme condutas éticas em pesquisa (Termo de Consentimento Livre e Esclarecido para responsável legal por menor, em duas vias), e, também:

a) Protocolo de anamnese: na entrevista não estruturada com a responsável legal da participante do estudo foram levantados dados sobre a história do desenvolvimento físico, cognitivo e social. Temas norteadores da entrevista: motivo da avaliação psicológica; história do problema atual; gestação e parto (características e eventos importantes); principais marcos do desenvolvimento (físico; psicomotor; linguagem); história de saúde geral (acuidades sensoriais; alimentação; sono; controle de esfíncteres); história de saúde familiar (transtornos mentais); dinâmica das relações familiares; lazer; vida escolar (se alfabetizado; dificuldades/facilidades rendimento acadêmico; tarefas de casa); histórico de terapêuticas para tratamento do problema atual.

b) Roteiro de entrevista com equipe escolar: Os dados da entrevista com os funcionários da escola foram registrados para abranger comportamentos sociais com colegas, desenvolvimento motor e linguístico, aptidão para as atividades propostas, obediência e atenção.

c) Plano de tarefas comportamentais: foram desenvolvidas atividades lúdicas e jogos, de natureza individual e em grupo, para avaliar habilidades cognitivas, linguísticas e outras. Os comportamentos da criança durante a execução dessas tarefas foram observados e registrados por escrito e depois analisados qualitativamente22-24.

Procedimentos

O procedimento do estudo se iniciou por uma avaliação preliminar, composta por entrevistas com familiares da criança e por uma sessão de estabelecimento de vínculo profissional com a menina. Esta primeira sessão com a criança também tinha como objetivo identificar as condições de viabilidade de uso de testes psicológicos. Na segunda fase do estudo foram implementadas as etapas de coleta de dados de observação comportamental da criança, em sessões individuais e em grupo com outras crianças; seguida por entrevista com equipe escolar.

A análise dos registros de observação comportamental foi realizada de forma qualitativa, em termos da natureza, frequência e intensidade das respostas. Os dados de entrevistas e consultas documentais também foram considerados em termos do conteúdo. O conjunto de informações foi analisado de modo integrado, e interpretado conforme teorias do neurodesenvolvimento15. As categorias de análise dos domínios do desenvolvimento foram as seguintes, com as respectivas descrições operacionais6,15:

a) Desenvolvimento emocional: demonstrar capacidade de expressão e regulação afetiva; habilidade de utilizar função simbólica para interagir com o ambiente e adaptar-se a ambientes sociais com reciprocidade;

b) Linguagem/comunicação: compreender mensagens multidimensionais (visuais, verbais, etc) e expressar mensagens em ambiente de comunicação por meio de palavras, frases e outros meios, de forma a atingir objetivos específicos no ambiente;

c) Cognitivo (percepção, memória, atenção, pensamento): capacidade de reconhecer e organizar sensações; selecionar e processar estímulos alvos e inibir estímulos distratores; demonstrar habilidade de reter, recuperar informações, representar e usar o conhecimento; capacidade de monitorar os próprios pensamentos e resolver, de modo flexível, conflitos de inputs e outputs (entrada e saída de informações no sistema cognitivo); demonstrar pensamentos baseados na lógica;

d) Motor (desenvolvimento físico): habilidade de manipular objetos; demonstrar domínio de superfície corporal, locomoção, marcha; capacidade de coordenação perceptomotora.

 

RESULTADOS

A descrição dos resultados foi dividida em etapas, conforme os níveis da avaliação. Ao discorrer sobre as entrevistas iniciais, foram apresentadas as principais informações para conceitualização do caso. No que se refere às atividades realizadas, optou-se por descrevê-las, juntamente com o desempenho da criança.

Etapa 1: Entrevistas com familiares

A entrevista de anamnese foi realizada com a tia paterna. Essa tia cuidou da menina desde os primeiros meses de vida, logo depois que a mãe biológica decidiu sair de casa e, portanto, é referenciada pela criança como "mãe", o que também fazemos aqui neste estudo. No momento da entrevista a criança morava com a mãe, o primo e o avô. No mesmo quarteirão, em outra casa, também viviam o pai e outros parentes. A informante mencionou que desde muito cedo na vida de Eva foram observados atrasos no desenvolvimento, e, assim, ela tem sido tratada como uma "criança especial" (sic). O aprendizado da marcha ocorreu por volta dos 18 meses e o início da fala ocorreu aos 24 meses. A mãe explicou que a criança tem controle esfincteriano adequado, ou seja, pode sinalizar os momentos de ir ao banheiro, porém ainda precisa de ajuda para finalizar a higiene e outros cuidados pessoais (tomar banho e trocar de roupa, por exemplo).

A queixa relatada pela mãe foi de que Eva apresentava problemas de aprendizagem (não apresentava habilidades básicas pré-alfabetização antes dos 5 anos, e aos 6 anos foi avaliada pela equipe pedagógica como em defasagem no currículo de alfabetização), comportamento agressivo com outras crianças e animais, desobediência e medo de ruídos. Os problemas de comportamento estavam presentes em casa, na escola e em situações injustificadas ou descontextualizadas. Sobre a vida escolar, Eva frequentava o primeiro ano da escola infantil, sendo que no ano anterior ela recebeu atendimento de educação especial na escola, que realizou encaminhamento para atendimento neuropediátrico.

A mãe relatou resistência da filha a comer alimentos saudáveis, preferindo alimentos industrializados. Ela também informou que não responde a seus pedidos, tem interesse limitado em alguns temas e não consegue permanecer focada em uma atividade por muito tempo. Houve relato de comportamento frequente de pular no mesmo local durante um determinado período, em situações não relacionadas ao contexto; hábito de espancar animais e outras crianças na escola; manifestação de intenso medo de estímulos ambientais; demanda constante pela atenção da mãe e interesse e insistência restritos com o mesmo tema.

Estas informações repassadas durante a anamnese indicaram a necessidade de avaliações específicas sobre domínios da linguagem, atenção, emoções, relações interpessoais e aprendizagem escolar. Por outro lado, as informações repassadas na anamnese sugeriram elementos de fatores de proteção ao desenvolvimento (aspectos positivos) como o apoio social recebido pela mãe nos cuidados materiais e afetivos. Houve, também, recebimento de suporte por instituições sociais (saúde e educação), que têm estabelecido parceria com a família na busca por intervenções1.

Etapa 2: Primeira sessão individual com a criança

A primeira sessão com a criança foi feita com o intuito de estabelecer vínculo profissional e verificar a viabilidade de utilização de testes psicológicos padronizados para esclarecimento da queixa de problemas de aprendizagem e do desenvolvimento em geral. Entretanto, não houve resposta da criança aos testes que pudesse ser considerada. Ela não atendeu aos pedidos de realização dos testes, insistindo em fazer outras atividades durante a sessão, com intenso movimento corporal e de fala.

Ressalta-se que a pesquisadora utilizou técnicas dos manuais de psicologia para estabelecimento de vínculo, para proporcionar contexto de espontaneidade, relaxamento e entusiasmo da examinanda9. Mesmo assim, as tentativas de aplicação de testes psicológicos não foram bem-sucedidas. Por exemplo, no teste em que a demanda era uma cópia de um desenho, ela fez rabiscos, não seguindo a regra apresentada. Em outro teste de escolha dos estímulos visuais, de acordo com a semelhança entre eles, ela não respondeu às instruções, e, quando orientada a atenção para o objetivo, respondeu aleatoriamente sem olhar para o cartão. Assim, mediante os resultados preliminares de que não havia viabilidade de uso de testes padronizados, a equipe do estudo optou por adotar medidas de avaliação psicológica não padronizadas, baseadas na observação naturalística e registros de arquivos.

Etapa 3: Atividade em grupo de crianças e sessões lúdicas individuais

Houve uma sessão de grupo com outras crianças que também foram encaminhadas para avaliação psicológica devido às queixas de dificuldades de aprendizagem. Essa sessão foi planejada para avaliar a interação social entre pares21, dentre outros elementos importantes para o esclarecimento da queixa de dificuldades de aprendizagem e problemas no desenvolvimento. Foram realizados jogos, como o "telefone sem fio" e "contação de histórias". A criança não conseguiu permanecer sentada o tempo suficiente para participar dos jogos, não prestou atenção à história, não seguiu a instrução para continuar a atividade de passar o discurso para o colega, e não conseguiu contar a história. Ao invés disto, insistia com a examinadora para realizar outra atividade. Ela estava constantemente solicitando realizar atividade vivenciada em outro momento (ela estava pedindo para usar um vestido, que era uma "fantasia de princesa" disponível no salão de jogos do local). Nesse momento, foi possível perceber a insistência em um tema e a dificuldade em seguir regras.

A sessão seguinte foi preparada para atividades lúdicas desenvolvidas individualmente14. Então, ela foi convidada a fazer desenhos; reconhecer-se no espelho; utilizar bonecos; usar o princípio de encaixe para mover tijolos para construir objetos; e atividade de role play. Os desenhos foram feitos na forma de rabiscos, ou seja, sem precisão visual ou correspondência com o que foi solicitado ou com a identidade visual esperada do estímulo. Por exemplo, quando solicitada a representar a família, ela fez rabiscos em linhas verticais desorganizadas, aplicando força excessiva do lápis no papel, e produzindo muito rapidamente. Nesse contexto, houve uma correspondência simbólica entre o item produzido e os aspectos familiares (ela mencionou a representação de si mesma e de sua família).

No jogo do espelho, ela olhou para si mesma e reconheceu o rosto e os traços sem dificuldade, mostrando uma leve marca que havia em seu rosto. Na parte da sessão sobre montar e encaixar, ela apresentava dificuldades em seguir as orientações espaciais, mas era capaz de simbolizar (ver um círculo como representando uma piscina) e empilhar peças. No momento de guardar as peças do jogo, apresentou dificuldade para organizá-las de forma a que se estruturassem na caixa, ficando irritada e demonstrando vontade por terminar com rapidez. Quanto ao uso de fantoches, ela demonstrou um interesse rápido e começou a contar uma história, dando nomes e contando fatos, mas em pouco tempo não se interessou mais por isto, e pediu para trocar a atividade.

Durante a quarta sessão de avaliação, houve etapa de contação de histórias, faz de conta com personagens e desenhos. Os desenhos feitos pela examinanda eram semelhantes aos anteriores, usando apenas uma cor para todo o desenho, feita de forma rápida e com traços grossos. Os desenhos foram feitos sem detalhes e com pouca coordenação.

Durante a atividade de "contação de histórias", a criança conseguiu prestar atenção à narrativa apenas brevemente, mas rapidamente começou a falar temas diversos. Sua história era pouco relacionada ao tema sugerido, e apresentava fatos de sua realidade como: "... caiu e machucou o joelho". Ela não continuou a história da examinadora, como inicialmente proposto. Na proposta de brincar de cuidar de um bebê, ela permaneceu por muito tempo e demonstrou interesse e imaginação pela atividade, realizando ações de cuidado e zelo, em paralelo a reações de bater e repreender. Além disto, ela simulou levar a boneca ao médico várias vezes.

Na última sessão de coleta de dados, verificou-se o comportamento de seguimento de regras, atenção concentrada e memória, por meio da tarefa de economia de fichas. Solicitou-se à criança de realizasse uma coreografia de acordo com o que a música estava pedindo. Verificou-se que a instrução de seguir os passos da dança era cumprida apenas quando a sequência era propositalmente fragmentada, e a examinadora direcionava as posições do corpo da garota. A menina não conseguiu integrar dois movimentos em sequências simples, mesmo tendo realizado o treinamento dos movimentos isolados. Apesar de inicialmente guiada pelas contingências de reforçamento, o comportamento foi rapidamente diminuindo de frequência até chegar a zero, quando ela parou a atividade e realizou outra ação no ambiente.

Na sessão mencionada, foi adotada a técnica da economia de fichas23, utilizando material cartolina que representava uma árvore fixada na parede. Conforme a criança realizava as etapas da atividade, ela recebia um prêmio, que era o desenho de uma flor, que deveria ser afixado à figura da árvore. Nessa situação, embora inicialmente guiada por contingências de reforçamento, o comportamento de seguir as orientações da pesquisadora diminuiu rapidamente até chegar a zero, quando interrompeu a atividade e realizou outra ação no ambiente.

Outra atividade realizada foi falar as letras que foram mostradas em um alfabeto de madeira. Ela não conseguiu nomear os itens, e começou a responder aleatoriamente, de maneira aleatória e repetitiva.

É importante destacar que em todas as sessões a criança demonstrou-se aberta a estabelecer comunicação positiva com a examinadora, expressando afeto e comportamento direcionado à interação. Houve manifestação de interesse pelo outro, mas de forma menos evidente quando o contexto envolvia pessoas de mesma idade (pares).

Em síntese, as informações coletadas na Etapa 3 parecem sugerir que há uma dificuldade importante nos aspectos de comunicação, que supostamente podem ser atribuídos às dificuldades de foco atencional; ou falhas na capacidade de estabelecer raciocínio abstrato sobre as instruções recebidas; ou mesmo prejuízos na capacidade de compreensão da linguagem oral. Como ponto positivo, verificou-se capacidade de simbolização vista através de representações com uso de bonecos e dramatização de situações cotidiana. Entretanto, a história produzida falhou em termos de lógica temporal e consistência de fatos e personagens; permanecendo com argumentação vinculada aos estímulos concretos. Outro ponto positivo a ressaltar é a capacidade para o aprender, quando foi verificada a associação entre respostas e contingências de reforçamento, embora tenha ocorrido rápido esvanecimento do comportamento aprendido23. Também foi destaque positivo a prontidão para estabelecer contato social, mesmo que ele tenha ocorrido com falhas.

Etapa 4: Visita à comunidade escolar para coletar dados sobre o comportamento e o desempenho acadêmico da criança

Na visita à escola, a docente mencionou que a menina apresentava pouca habilidade motora fina e grossa, pouco desenvolvimento escolar e dificuldade de acompanhar a turma. Ela indicou que a criança não reconhecia a forma das letras, cometia frequentes omissões e trocas de letras na fala (r pelo l) e memorizava apenas pequenos trechos de histórias contadas por vídeos animados, repetindo em contextos não relacionados à história. Houve relato também de que as lições escolhidas para ensinar a menina eram indicadas para crianças menores, pois ela não conseguia acompanhar o ritmo de aprendizagem dos colegas de turma. Além disso, de acordo com as informações obtidas, a resposta de agressividade manifestada com outras crianças (agressão física constante nos colegas e indisposição para compartilhar brinquedos) diminuiu de frequência em relação ao observado no início da escolarização, sendo que isto ocorreu após a realização de um ajuste comportamental realizado pelo professor (treino genérico de habilidades sociais e reforçamento diferencial). Também foi relatado que a criança se alimenta bem na escola e não mostra resistência aos alimentos oferecidos.

 

DISCUSSÃO

Neste estudo buscamos avaliar aspectos do desenvolvimento cognitivo e socioemocional de criança em idade pré-escolar encaminhada devido a problemas no neurodesenvolvimento, utilizando-se de técnicas não padronizadas de avaliação psicológica. A avaliação geral da criança mostrou, em síntese: a) dificuldades em entender e seguir as instruções: mesmo em comandos simples (repetir ao colega uma mensagem verbal ouvida, descrever uma cena visual composta por personagens infantis, desenhar uma figura), a criança não inicia a ação solicitada, ou simplesmente a executa rapidamente sem realmente concluir o resultado esperado (produto); b) ocorreram constantes interrupções nas falas e ações dos interlocutores (voltava-se frequentemente para os adultos solicitando realização de atividade diferente da proposta); c) resposta incompatível com a solicitada, como quando solicitada a descrever uma cena, citava estímulos diferentes dos observados, repetindo palavras referentes a outro tema; d) engajamento e comunicação com o grupo de crianças por breves instantes, apenas durante os momentos de brincadeira que exigiam movimentação corporal ("pega-pega"); e) expressão frequente de raiva e tristeza quando seus pedidos e interrupções de atividades foram repreendidos, ou não foram prontamente aceitos pelos adultos. Nessas situações, pode-se observar o comportamento de sentar-se, cruzar os braços e ficar parada por um certo tempo; f) os pontos positivos individuais relacionam-se à capacidade para aprender, ou seja, desenvolvimento de novo repertório de respostas conforme contingências ambientais. Há, também, demonstração de afetividade e vinculação social, principalmente com adultos; g) os fatores de proteção ao desenvolvimento (aspectos positivos) a se destacar abrangem os cuidados familiares (apoio social), mais especificamente os esforços da mãe em proporcionar meios de avaliação e intervenção para melhor desenvolvimento da criança (Tabela 1).

A avaliação relatada foi desenvolvida considerando que a literatura aponta que ferramentas estáticas de avaliação psicológica podem não ser suficientes para descrever processos psicológicos dinâmicos em termos de desenvolvimento, manifestação e manutenção dos sintomas24. Relatos de estudos mostram que tarefas comportamentais para avaliação do desenvolvimento de crianças são muito úteis para evidenciar tanto padrões de desempenho cognitivo quanto idiossincrasias que não são adequadamente identificáveis em protocolos fechados29.

Discutindo os dados à luz da neurociência e da ciência do desenvolvimento, supõe-se que perdas precoces no desenvolvimento neurológico da criança (não descritas ou esclarecidas na história clínica do paciente) tenham causado alterações sensório-motoras que tiveram um "efeito cascata" no processo de desenvolvimento esperado, no qual as interconexões corticais devem ser progressivamente diferenciadas em módulos de funções cada vez mais especializadas e localizadas15. Por esse motivo, a criança pode ter dificuldade em executar processos dependentes dos módulos de função, como integrar informações observadas e ouvidas (instruções da tarefa) e usar esse conteúdo para direcionar o comportamento para uma meta (executar as tarefas solicitadas).

Por exemplo, durante todas as sessões individuais, as examinadoras organizaram condições ambientais e de vínculo com a criança para facilitar a aplicação de testes psicológicos. Essas tentativas foram frustradas porque a criança não seguiu as instruções, mesmo depois de realizar um treinamento atencional no qual foi ensinada a direcionar e sustentar a atenção a alguns estímulos. Nessas condições, uma resposta era emitida, mas com um viés do acaso, porque a resposta ocorria rapidamente, sem que os estímulos do teste fossem observados. Além disso, a resposta foi realizada concomitantemente a outra tarefa, por exemplo, responder enquanto andava pela sala ou levantando-se e procurando outro objeto no ambiente.

Relacionando os dados de desempenho cognitivo da criança com processos do desenvolvimento e aprendizagem, podemos resgatar da literatura o conceito de "períodos críticos", que são assim denominados em referência àqueles períodos da maturação cerebral quando estímulos específicos (ou ausência deles) são muito importantes para o desenvolvimento e mais potentes em determinadas fases da criança.

Assim, no presente caso em discussão, verifica-se que para as funções sensoriais, motoras e da linguagem, cuja janela de oportunidade está situada, principalmente, do nascimento aos três primeiros anos de vida, percebe-se que, aos 6 anos de idade, a criança ainda não atingiu marcos expressos por comportamentos como entender frases simples; associar nomes e imagens; utilizar frases simples para se comunicar; seguir comandos de localização espacial; não realiza desenhos de figuras simples; tem pensamento concreto (esperado), mas com pouca expressão de uso de símbolos semiabstratos; não utiliza a linguagem para expressar desejos e fazer perguntas e tem dificuldade em participar em jogos em grupos de simulação e imitação26.

Em termos de trajetória de desenvolvimento, como preconizado na literatura, algumas possibilidades são analisadas no presente caso. Supõe-se que fatores de risco para o desenvolvimento neurológico, não documentados ou claramente identificados, estiveram presentes muito cedo na vida da criança, levando a uma limitação marcante no seu atual funcionamento neurocognitivo30,31. Considerando uma perspectiva de compensação dos déficits cognitivos, a estimulação ambiental (treino/habilitação) pode contribuir para que os problemas do domínio geral resultem, com o tempo, em dificuldades em domínios específicos15.

Segundo a literatura em psicologia cognitiva2, na hipótese de déficits nas funções cognitivas de domínio geral, a criança mostrou sinais de dificuldade em concentrar recursos cognitivos (sensoriais e perceptivos) em aspectos relevantes do ambiente, a fim de direcionar o comportamento para objetivos. A dificuldade em sustentar esses estímulos-alvo ocorre tanto no contexto concreto, por exemplo, na atenção à instrução verbal apresentada pela examinadora, quanto nos sistemas abstratos, que são aqueles que requerem a seleção da resposta necessária para atingir um objetivo.

Diante de alguma instrução de tarefa, ela demorou um tempo para responder e, durante a resposta, ela precisou que a examinadora repetisse frequentemente o comando para permanecer na ação; caso contrário, haveria uma alteração rápida para outra ação, sem que a primeira fosse finalizada. Por exemplo, quando instruída a desenhar um carro, a criança iniciou a ação, repetiu as instruções do examinador, mas no final da produção de rabiscos disse que havia desenhado a figura de uma garota.

No presente caso podemos supor que o desenvolvimento do sistema sensorial pode não ter ocorrido conforme esperado na trajetória de maturação cerebral. A capacidade de responder a estímulos sensoriais se inicia antes do nascimento, mas o domínio desta habilidade, ou seja, mecanismos de captação, identificação (consciência deliberada do estímulo) e representação sensoriais são aprimorados ao longo dos anos, em processos diferenciados conforme o sistema sensorial em avaliação, estimulação ambiental e programação genética. Fato é que prejuízos nesse percurso podem comprometer profundamente a capacidade da criança de interagir com sucesso consigo mesma e com o ambiente ao seu redor32.

Outro domínio cognitivo que pode estar em déficit no desenvolvimento da criança em estudo refere-se ao sistema atencional. Os dados mencionados parecem indicar comprometimento do sistema neural envolvido na seleção da atenção, ou seja, para orientar recursos para certos tipos de estímulos e ignorar outros. Também parece haver falhas no sistema de alerta (tônus atencional), que mantém uma sensibilidade geral para a entrada de informações (atenção sustentada), bem como dificuldades no sistema executivo, que engloba "selecionar e alternar metas, inibir a respostas estabelecidas, mas inadequadas, e resolução de conflitos comportamentais"16.

Ao executar algumas das tarefas, foi possível identificar, ainda, o uso generalizado do raciocínio concreto. Observou-se que quase sempre ela precisa de sugestões ambientais para poder seguir uma instrução. Essas dicas precisam ser simples e imediatas, para que as informações não fossem perdidas. Por exemplo, em uma atividade de guardar peças em uma caixa, ela teve dificuldade em responder quando a seguinte dica foi dada: "vire a peça!". Nessa situação, permaneceu na tentativa e erro de ajustar os itens. No entanto, quando recebida a instrução "todos devem estar do mesmo lado", i. e., quando a classificação por similaridade visual era necessária, foi possível para ela concluir a tarefa.

Em outra situação observada, a paciente tentou fixar um pedaço de fita adesiva à boneca, mas sem sucesso. A examinadora deu a instrução "você precisa girar a fita adesiva para colar a boneca", o que não resultou em uma mudança de resposta. No entanto, quando recebidas as instruções "a fita está colando no seu dedo. Você precisa colar na boneca" - ela conseguiu mudar a direção do movimento das mãos e fixar a fita corretamente na boneca. Em outras palavras, a compreensão do ambiente e a relação entre variáveis são possíveis pela experiência concreta, não pela representação mental dos estímulos.

O que se pode considerar sobre esse relato de modo de raciocínio da criança é que ela utiliza, na maioria do tempo, o raciocínio concreto, o que é esperado para a sua idade. Entretanto, esse raciocínio concreto deveria conter, nessa idade de 6 anos, certos elementos lógicos, o que parece não ocorrer. Em outras palavras, o uso dos símbolos, a capacidade de aprender sobre eles, memorizando-os e aplicando esse conhecimento na resolução de problemas já deveria ter se manifestado no comportamento da criança por volta dos 2 anos de idade2.

Sua expressão verbal é volumosa (fala muito), mas em baixa tonalidade e com repetição de palavras e troca de letras. Quanto ao uso prático da fala para atingir fins no ambiente, é comum a criança se referir a si mesma na terceira pessoa, principalmente em situações de frustração. Por exemplo, quando ela não recebe atenção quando pede para jogar outra brincadeira, ela pega a boneca e diz: "Ela tá 'bava' [brava] com você". "Você vai ficar de castigo" sic.

Em relação ao comportamento de acompanhamento das instruções, quando a examinadora deu instruções específicas, a menina apresentou comportamento de oposição, não respondeu, continuou a tarefa anterior ou pulou no mesmo local e sacudiu os braços vigorosamente. Por insistência da examinadora em realizar a nova atividade, a menina mostrou irritabilidade, expressão facial de raiva e verbalizava frases usando a terceira pessoa para indicar insatisfação com a situação, como mencionado anteriormente.

Observou-se também que as regras das atividades foram cumpridas quando realizadas diretamente (olhar fixo, frases curtas) e com voz firme pela examinadora. Na escola, o professor explicou que esses comportamentos ocorrem na sala de aula, no entanto, com o passar dos dias de treinamento de seguimento de regras, a criança foi mais obediente aos comandos "não pode!" e "agora não", e demonstrou menos frequentemente a intolerância a frustrações.

Os comportamentos destacados nessas três últimas observações fazem, inicialmente, uma alusão a aspectos de aprendizagem (não seguimento de regras, oposição). Entretanto, em um olhar mais cuidadoso ao desenvolvimento cognitivo de funções psicológicas básicas, podemos supor que processos atencionais prejudicados funcionam como barreiras (fatores primários) para o progresso de treino comportamental. Sabemos que a atenção é responsável por realizar um filtro de seleção das informações ambientais para a aprendizagem e memória, tornando possível um conjunto de eventos que capacitam formulação de pensamentos e direcionamento das ações.

O que parece haver nesse caso em questão são déficits nos mecanismos de orientação da atenção, que deveriam realizar a supressão de informação competitiva durante os deslocamentos do foco atencional. No desenvolvimento humano esses mecanismos complexos ficam mais evidentes a partir dos 6 meses de vida, e permanecem em contínuo desenvolvimento na infância e adolescência. A trajetória desenvolvimental esperada na função "atenção" é aquela na qual mecanismos executivos (top-down) passam a controlar tanto aspectos perceptuais quanto informação retida na memória17.

Os resultados obtidos e descritos a partir da avaliação psicológica realizada com a examinada não possibilitaram uma definição diagnóstica. Isso se justifica por dois aspectos. Primeiramente, é prudente que o debate sobre diagnóstico em transtorno do neurodesenvolvimento seja realizado de modo interdisciplinar, dada a natureza multidimensional dos transtornos. Além disso, o diagnóstico diferencial também dependeria da utilização de instrumentos padronizados, algo inviável no presente caso.

A psicoterapia para a criança é recomendada, pois tem como objetivo a realização de treino cognitivo para habilidades que estão prejudicadas e mudança de comportamentos-problema. A finalidade é obter melhora no desempenho acadêmico e de habilidades mínimas para a escolarização, como a psicomotricidade e relação entre som e palavra para melhorar a fala.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo foi realizado com o propósito de avaliar aspectos do desenvolvimento cognitivo e socioemocional de criança de 6 anos, em idade pré-escolar, encaminhada com hipótese de transtorno do neurodesenvolvimento, utilizando-se, para isto, técnicas não padronizadas de avaliação psicológica. Foi possível identificar que a menina apresentou dificuldades nos domínios da linguagem, raciocínio, funções executivas, atenção e desenvolvimento socioemocional. A boa qualidade da estimulação ambiental familiar e a participação de comunidade escolar no processo caracterizam-se como fatores de proteção do desenvolvimento saudável da criança.

Os resultados mostraram que é possível obter grande amplitude de dados de avaliação psicológica pela técnica de observação do comportamento do examinando, integrando as informações com aquelas das entrevistas e por consultas a registros documentais. A síntese dependerá da profunda referenciação teórica, que disponibilizará evidências científicas e modelos teóricos para interpretação clínica e decisões práticas de tratamento. Como limites deste estudo, temos que a perspectiva de generalização é estabelecida no nível de análise dos elementos identificados no caso. A contribuição deste tipo de investigação abrange o detalhamento de fatores do desenvolvimento em caso único, ao mesmo tempo que amplia o debate sobre teorias e técnicas de investigação do desenvolvimento neurocognitivo infantil.

 

REFERÊNCIAS

1. Bettio CDB, Bazon MR, Schmidt A. Fatores de risco e de proteção para atrasos no desenvolvimento da linguagem. Psicol Estud. 2019;24:e41889. doi: https://doi.org/10.4025/1807-0329e41889        [ Links ]

2. Bjorklund DF, Causey KB. Children's Thinking: Cognitive Development and Individual Differences. Thousand Oaks: SAGE; 2018. p. 1-22.         [ Links ]

3. Shulman L, D'Agostino E, Lee S, Valicenti-McDermott M, Seijo R, Tulloch E, et al. When an Early Diagnosis of Autism Spectrum Disorder Resolves, What Remains? J Child Neurol. 2019;34(7):382-6. doi: http://www.dx.doi.org/10.1177/0883073819834428        [ Links ]

4. Haynes SN, Smith GT, Hunsley JD. Introduction to the Scientific Foundations of Clinical Assessment. In: Haynes SN, Smith GT, Hunsley JD. Scientific Foundations of Clinical Assessment. 2nd ed. New York: Routledge Taylor & Francis Group; 2019. p. 1-30.         [ Links ]

5. Flanagan DP, Alfonson VC, Ortiz SO, Dynda AM. Cognitive Assessment: Progress in Psychometric Theories of Intelligence, the Structure of Cognitive Ability Tests, and Interpretive Approaches to Cognitive Test Performance. In: Saklofske DH, Reynolds CR, Schwean VL, eds. The Oxford Handbook of Child Psychological Assessment. New York: Oxford University Press; 2013. p. 239-85. doi: 10.1093/oxfordhb/9780199796304.001.0001        [ Links ]

6. American Psychiatric Association. Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais - DSM-5. 5ª ed. Porto Alegre: Artmed; 2014.         [ Links ]

7. Primi R. Avaliação psicológica no Brasil: fundamentos, situação atual e direções para o futuro. Psicol Teor Pesqui. 2010;26(n. spe):25-35. doi: http://www.dx.doi.org/10.1590/S0102-37722010000500003        [ Links ]

8. Ashworth M, Guerra D, Kordowics M. Individualised or Standardised Outcome Measures: A Co-habitation? Adm Policy Ment Health. 2019;46(4):425-8. doi: http://www.dx.doi.org/10.1007/s10488-019-00928-z        [ Links ]

9. Carim DB, Sallum I, Dias G, Badin K, Barbirato, F. Avaliação neuropsicológica e desenvolvimento cognitivo na pré-escola. In: Malloy-Diniz L, Fuentes D, Mattos P, Abreu N, orgs. Avaliação Neuropsicológica. 2ª ed. Porto Alegre: Artmed; 2018. p. 191-205.         [ Links ]

10. Lundh LG. The Person as a Focus for Research - The Contributions of Windelband, Stern, Allport, Lamiell, and Magnusson. J Pers Oriented Res. 2015;1(1-2):15-33. doi: http://www.dx.doi.org/10.17505/jpor.2015.03        [ Links ]

11. Caine D, Crutch SJ. Neuropsychological assessment. In: Husain M, Schott JM, eds. Oxford Textbook of Cognitive Neurology and Dementia. Oxford: Oxford University Press; 2016. p. 113-22.         [ Links ]

12. Macy M, Bagnato SJ. Authenticity in Early Childhood Assessment: The Developmentally Appropriate Alternative. In: Saklofske DH, Reynolds CR, Schwean VL, eds. The Oxford Handbook of Child Psychological Assessment. New York: Oxford University Press; 2013. doi: 10.1093/oxfordhb/ 9780199796304.001.0001        [ Links ]

13. Assumpção FB, Bernal MP. Qualidade de vida e autismo de alto funcionamento: percepção da criança, família e educador. Bol Acad Paul Psicol. 2018;38(94):99-110.         [ Links ]

14. Marques DF, Bosa CA. Protocolo de Avaliação de Crianças com Autismo: Evidências de Validade de Critério. Psicol Teor Pesqui. 2015;31(1):43-51. doi: http://www.dx.doi.org/10.1590/0102-37722015011085043051        [ Links ]

15. Domingues MA. Desenvolvimento e aprendizagem: o que o cérebro tem a ver com isso? Canoas: Editora ULBRA; 2007.         [ Links ]

16. Atkinson J, Braddick O. Visual attention in the first years: typical development and developmental disorders. Dev Med Child Neurol. 2012;54(7):589-95. doi: http://www.dx.doi.org/10.1111/j.1469-8749.2012.04294.x        [ Links ]

17. Amso D, Scerif G. The attentive brain: insights from developmental cognitive neuroscience. Nat Rev Neurosci. 2015,16(10):606-19. doi: http://www.dx.doi.org/10.1038/nrn4025        [ Links ]

18. Haynes SN, Mumma GH, Pinson C. Idiographic assessment: Conceptual and psychometric foundations of individualized behavioral assessment. Clin Psychol Rev. 2009;29:179-91. doi: http://www.dx.doi.org/10.1016/j.cpr.2008.12.003        [ Links ]

19. Clark DA, Brown GP. Cognitive Clinical Assessment: Contributions and Impediments to Progress. In: Brown GP, Clark DA. Assessment in Cognitive Therapy. New York: Guilford Press; 2015. p. 3-26.         [ Links ]

20. Duarte CP, Schwartzman JS, Matsumoto MS, Brunoni D. Diagnóstico e intervenção precoce no transtorno do espectro do autismo: Relato de um caso. In: Caminha VLPS, Huguenin JY, Assis LM, Alves PP, orgs. Autismo: vivências e caminhos. São Paulo: Edgar Blücher; 2016. p. 46-56.         [ Links ]

21. Shaughnessy JJ, Zechmeister EB, Zechmeister JS. Metodologia de Pesquisa em Psicologia. 9a ed. Porto Alegre: AMGH; 2012.         [ Links ]

22. Soares MC, Teodoro NR, Ferraresi TSP, Gebrim LB, Francisco CP, Gonçalves BNR, et al. Cognição e comportamento avaliados pela observação do desempenho em tarefas comportamentais em um grupo de crianças. In: Anais do 6º Congresso Internacional de Dislexia e 9º Encontro Multidisciplinar dos Transtornos de Aprendizagem e Atenção. 2018 Jun 15-16; Marília, SP, Brasil. Marília: Unesp; 2018. p. 139-52.         [ Links ]

23. Matson JL, Estabillo JA, Matheis M. Token Economy. In: Zeigler-Hill V, Shackelford TK, eds. Encyclopedia of Personality and Individual Differences. Cham: Springer; 2016. doi: http://www.dx.doi.org/10.1007/978-3-319-28099-8_956-1        [ Links ]

24. Wright AGC, Hopwood CJ. Advancing the Assessment of Dynamic Psychological Processes. Assessment. 2016;23(4):399-403. doi: http://www.dx.doi.org/10.1177/1073191116654760        [ Links ]

25. Paiva GCC. Avaliação dos processos de desconto temporal em pacientes com déficit de atenção/hiperatividade (TDAH), transtorno do espectro autista (TEA) e casos comórbidos [Dissertação]. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais; 2017.         [ Links ]

26. Pedroso FS, Rotta NT. Transtorno da linguagem. In: Rotta NT, Ohlwiler L, Riesgo RS, orgs. Transtornos da aprendizagem: abordagem neurobiológica e multidisciplinar. 2ª ed. Porto Alegre: Artmed; 2016. p. 112-32.         [ Links ]

27. Júlio-Costa A, Lopes-Silva JB, Moura RJ, Rio-Lima B, Haase VG. Como avaliar suspeita de deficiência intelectual. In: Malloy-Diniz LF, Mattos P, Abreu N, Fuentes D, orgs. Neuropsicologia: Aplicações Clínicas. Porto Alegre: Artmed; 2016. p. 133-48.         [ Links ]

28. Costa DS, Medeiros DGMS, Alvim-Soares A, Géo LAL, Miranda DM. Neuropsicologia do transtorno de déficit de atenção/hiperatividade e outros transtornos externalizantes. In: Fuentes D, Malloy-Diniz LF, Camargo CHP, Cosenza RM, orgs. Neuropsicologia: Teoria e Prática. Porto Alegre: Artmed; 2014. p. 165-82.         [ Links ]

29. Vilela R. Entre o mostrar e o dizer: considerações sobre a tarefa no diagnóstico clínico infantil. Constr Psicopedag. 2019;27(28):26-36.         [ Links ]

30. Fogelman N, Canli T. Early Life Stress, Physiology, and Genetics: A Review. Front Psychol. 2019;10:1668. doi: http://www.dx.doi.org/10.3389/fpsyg.2019.01668        [ Links ]

31. Spann MN, Bansal R, Hao X, Rosen TS, Peterson BS. Prenatal socioeconomic status and social support are associated with neonatal brain morphology, toddler language and psychiatric symptoms. Child Neuropsychol. 2020;26(2):170-88. doi: http://www.dx.doi.org/10.1080/09297049.2019.1648641        [ Links ]

32. Aksoy AB, Ylmaz Bursa G. Sensory Development during Infancy. In: Koleva I, Başal HA, Tufan M, Atasoy E, eds. Educational Sciences Research in the Globalizing World. Sofia: St. Kliment Ohridski University Press; 2018. p. 475-90.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
Jeanny Joana Rodrigues Alves de Santana
Rua Sapucaí, 220/101
Uberlândia, MG, Brasil - CEP 38411-090
E-mail: jeannysantana@yahoo.com.br

Artigo recebido: 25/3/2020
Aprovado: 15/1/2021

 

 

Trabalho realizado na Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, MG, Brasil.
Conflito de interesses: Os autores declaram não haver.

Creative Commons License