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Revista Psicopedagogia

versão impressa ISSN 0103-8486

Rev. psicopedag. vol.38 no.117 São Paulo set./dez. 2021

http://dx.doi.org/10.51207/2179-4057.20210029 

ARTIGO ORIGINAL

 

Comparação de dados normativos do "ages and stages questionnaires" original e adaptado para creches públicas do Rio de Janeiro

 

Comparison of normative data from the original "Ages and Stages Questionnaires" and adapted for public daycare centers in Rio de Janeiro

 

 

Luis Filipe Faria de Aboim TavaresI; Jesus Landeira-FernandezII; Luis AnunciaçãoIII

IMestre em Psicologia Clínica; Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), Rio de Janeiro, RJ, Brasil
IIDoutor em Neurociências e Comportamento, Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq - Nível 1A - CAPS - Psicologia e Serviço Social; Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), Rio de Janeiro, RJ, Brasil
IIIDoutor em Psicometria e mestre em Saúde Pública; Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), Rio de Janeiro, RJ, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A Secretaria de Educação do município do Rio de Janeiro aplicou, em 2010, 2011 e 2012, nas 468 creches públicas, o instrumento "Ages & Stages Questionnaire", Terceira Edição, em sua versão adaptada e contextualizada ao Brasil (ASQ3-BR). Esta aplicação teve objetivo de fazer um rastreio do desenvolvimento de 109.758 crianças atendidas pelas creches, com idade entre 10 e 54 meses, especificamente em domínios relacionados à Comunicação, Coordenação Motora Ampla, Coordenação Motora Fina, Resolução de Problemas e Pessoal-Social. Os dados obtidos foram analisados visando o desenvolvimento de normas de interpretação do instrumento para população específica de crianças em creches brasileira. Isto foi realizado através do cálculo das médias e desvios-padrão dos escores, bem como pelos respectivos pontos de corte inferiores, considerados por dois desvios-padrão abaixo da média, e percentis de 5% e 10%. A partir deste procedimento, os resultados obtidos pelas crianças brasileiras foram comparados com os valores normativos estabelecidos pelo instrumento em seu original tanto para confirmar suas características psicométricas como para identificar possíveis diferenças nos resultados das crianças. Observou-se que os resultados obtidos nas creches públicas do Rio de Janeiro são inferiores àqueles observados no contexto norte-americano. Entretanto, eles tendem a se equiparar com o norte-americano no decorrer do amadurecimento da criança, especialmente quando elas ultrapassam os 24 meses de idade. Neste sentido, é possível sugerir que a estimulação oferecida pelas creches contribui para o desenvolvimento das crianças atendidas.

Unitermos: Desenvolvimento Infantil. Rastreio. Psicometria. Normatização.


SUMMARY

The Rio de Janeiro municipality Education Secretary applied in 2010, 2011, and 2012 the Portuguese-BR version (ASQ3-BR) of the Ages & Stages Questionnaire, Third Edition, in 468 public kindergartens to assess the development of 109,758 children aged 10 to 54 months. This endeavour was carried out to get information about the development of Communication, Gross Motor Coordination, Fine Motor Coordination, Problem Solving, and Personal-Social. The results were analysed, identifying the instrument's norms to its interpretation, as well as the respective cut-offs considering two standard deviations below the mean. In addition, the 5% and 10% percentiles based on the obtained scores were calculated. Also, the results were compared with normative values established by the original instrument to confirm its psychometric characteristics and to identify differences in the obtained data. It was observed that the results obtained in Rio de Janeiro's public daycare centers, although they started with results lower than those observed by the author of the instrument in the United States, after the age of 36 months, and with 24 months of living with other children, the results are matched with the American results, from which it can be concluded that the stimulation by living in daycare centers is effective for the psychomotor development of the children attended.

Keywords: Child Development. Screening Test. Psychometric. Standardization.


 

 

INTRODUÇÃO

O desenvolvimento infantil durante a primeira infância, frequentemente entendida como os seis primeiros anos de vida, excedem tanto em velocidade quanto em amplitude qualquer outra fase da vida. Durante a primeira infância, ocorre o crescimento físico, o amadurecimento do cérebro, a aquisição dos movimentos, o desenvolvimento da capacidade de aprendizado, a iniciação social e afetiva, entre outros. Sabe-se hoje que cada um desses aspectos é interligado com os demais, bem como influenciado pela realidade na qual a criança vive1-3.

Evidências obtidas por estudos em Neurociência revelam que, embora a maioria das estruturas cerebrais já esteja presente na primeira infância, elas são ainda extremamente imaturas, frágeis e, portanto, suscetíveis a uma grande variedade de interações ambientais. Essas experiências iniciais representam o aspecto principal na formação de circuitos neurais que permanecerão ao longo da vida do indivíduo. Por sua vez, o desenvolvimento desses circuitos neurais depende de fatores genéticos que a criança traz ao nascer, mas também das informações adquiridas a partir das interações que ela estabelece com o ambiente a partir de seu nascimento4.

Após o nascimento, a criança passa por períodos críticos ou sensíveis, durante os quais a influência do meio externo produz efeitos duradouros ou até mesmo irreversíveis no funcionamento de sua atividade mental, em oposição a efeitos circunstanciais da experiência fora desses períodos. Desta maneira, estes períodos críticos representam janelas em que o sistema nervoso está extremamente sensível aos processos de interação sociais que, por sua vez, são capazes de produzir alterações permanentes em diversos circuitos neurais5.

Posto isso, a avaliação e monitoramento do desenvolvimento infantil é de interesse e relevância pública e social. Essa fase do desenvolvimento infantil conta com alguns instrumentos de medida desenvolvidos para mapear este processo. Dentre os mais conhecidos, pode-se citar as escalas Bayley de Desenvolvimento Infantil6, as escalas de inteligência Stanford-Binet para primeira infância7 e as escalas de inteligência Wechsler para pré-escola e primário8.

No entanto, estas escalas são extensas, necessitam que a administração seja realizada por uma equipe treinada, bem como consomem um longo tempo de aplicação em cada criança. Do ponto de vista de políticas públicas, apesar da completude das informações, estes instrumentos nem se mostram práticos e rápidos para utilização em larga escala, nem são adequados para avaliações iniciais ou de rastreio9.

De acordo com o Programa Nacional de Educação (PNE) de 2013, cerca de 28% das crianças brasileiras entre zero e 3 anos de idade frequentavam creches e 88% das crianças brasileiras entre 4 e 5 anos frequentavam pré-escolas públicas no ano de 2013. Os dados do município do Rio de Janeiro alcançaram 33 e 90%, respectivamente10.

De acordo com o Ministério da Educação (MEC), até 0,8% das crianças brasileiras em idade pré-escolar podem apresentar algum tipo de déficit do seu desenvolvimento11, cuja identificação em tempo hábil para se tomar ações corretivas demanda instrumentos que possam realizar tal mensuração em larga escala de forma rápida e de fácil aplicação12,13.

Uma alternativa proposta recentemente por pesquisadores brasileiros como instrumento de rastreio do desenvolvimento infantil foi a tradução, adaptação transcultural e análise das características psicométricas do Ages & Stages Questionnaire, Third Edition14 para o português brasileiro13, cujos constructos são baseados nos conceitos de Arnold Gesell15.

Arnold Gesell, psicólogo e pediatra americano, especializado no desenvolvimento da criança, desenvolveu uma abordagem do desenvolvimento infantil considerando o estabelecimento de padrões de comportamento da criança ao longo do desenvolvimento dentro de um conceito "maturacional", no qual o desenvolvimento se processa através de uma sequência ordenada16.

Na teoria da maturação, que se refere a um padrão de mudanças comum a todos da mesma espécie, o crescimento do feto, por exemplo, segue um padrão de mudanças biologicamente determinado. Dessa forma, uma sequência que parece se repetir sempre em relação à maioria das crianças, como sentar, engatinhar, andar, etc., sugere a existência de certo padrão de desenvolvimento17.

Gesell procurou estabelecer escalas de desenvolvimento que permitissem comparar os comportamentos esperados para certa faixa etária. Com isso, o desenvolvimento passou a ser entendido como um processo de padronização, isto é, uma sequência de respostas definitivas que envolvem uma sequência fixa de padrões de crescimento físico e correspondem a um período da evolução inerente ao organismo humano15.

Gesell concebeu cinco domínios de desenvolvimento considerando ser característica do padrão de crescimento de uma criança. Tais domínios descrevem o desenvolvimento de um processo típico como previsível e ordenado, podendo se prever como a maioria das crianças irá se desenvolver, sendo eles:

A linguagem ou comunicação corresponde à evolução da relação através da expressão por gestos, sons ou palavras. Inclui o monólogo, expressão dramática, comunicação e compreensão.

O desenvolvimento da coordenação motora se divide em duas subáreas, descritas da seguinte maneira:

Coordenação motora ampla, que inclui postura, locomoção ou atividades de deslocamento, reações posturais, coordenação corporal e outras habilidades motoras específicas;

Coordenação motora fina ou atividades manuais, que inclui usar os pequenos músculos coordenando olhos e mãos. Escrever, coordenar os movimentos das mãos e dos olhos, criar peças de arte, mover olhos e lábios;

O desenvolvimento adaptativo ou resolução de problemas inclui a percepção, ajuste, orientação, bem como a capacidade de iniciar novas experiências a partir de experiências passadas;

E, finalmente, o comportamento ou domínio Pessoal-Social, que procura observar a reação da criança quando junto a outras pessoas, considerando ajuste à vida doméstica, à propriedade, aos grupos sociais e às convenções comunitárias.

De acordo com Gesell16,18, embora estes domínios compreendam a maioria dos padrões visíveis de comportamento da criança, eles não se apresentam em compartimentos separados. A criança reage sempre como por inteiro. Esta classificação por domínios é, portanto, apenas uma conveniência para facilitar sua observação e análise, sem que, no entanto, se deixe de avaliar também a interação psicológica de um determinado comportamento com os demais domínios.

O instrumento Ages and Stages Questionnaires, adaptado para a língua portuguesa-brasileira (ASQ3-BR), foi considerado pelo município do Rio de Janeiro como uma ferramenta de avaliação de rastreio (screening) capaz de fornecer informações de forma rápida sobre o estado de desenvolvimento da criança nas cinco áreas de desenvolvimento, entre as idades de 10 a 54 meses, cobrindo desde os 8 meses de vida até os 5 anos de idade, podendo ser aplicado nas crianças em creche e em pré-escola, bem como pela facilidade na aplicação, exigindo apenas que o informante, no caso a funcionária da creche responsável pela criança, conheça muito bem essa criança avaliada19.

Entretanto, considerando que o ASQ3 foi originalmente desenvolvido para a língua inglesa e na cultura americana, antes da aplicação do ASQ3 nas creches do Rio de Janeiro, foi necessária a tradução para o português brasileiro e a adequação à cultura brasileira, resultando no ASQ3-BR13, de forma a conseguir ser entendido pelas responsáveis pela aplicação do teste, mas que também mantivesse a capacidade de medir o constructo original. Segundo Borsa et al.20, para a adaptação de um instrumento psicológico, é necessário comprovar tanto as evidências acerca da equivalência semântica dos itens quanto as evidências psicométricas da nova versão do instrumento e que, desta forma, a adaptação engloba a adequação cultural, ou seja, o preparo deste para seu uso em outro contexto.

Outrossim, a influência cultural das pessoas responsáveis pela aplicação do instrumento podem também afetar os resultados, visto ser uma tarefa difícil avaliar questões sobre o desenvolvimento infantil considerando condições que não fazem parte de suas práticas diárias21.

Para assegurar tais condições, o primeiro passo para a adaptação do instrumento foi utilizar o procedimento de retrotradução como parte da metodologia. Três tradutores bilíngues diferentes fizeram a versão do ASQ3 para o português/brasileiro. Em seguida, um estudo piloto foi feito para determinar problemas de compreensão e entendimento dos itens com 120 professores e agentes auxiliares de creche, resultando em adaptações culturais para melhor entendimento do ASQ3-BR13,22.

Para estudos de validação da versão brasileira do ASQ3-BR, Filgueiras et al.23 pesquisaram as características psicométricas do ASQ3-BR em uma amostra de 45.640 crianças, entre 6 e 60 meses de idade, para identificar se o instrumento poderia ser utilizado como política pública de avaliação do desenvolvimento infantil no município do Rio de Janeiro. No geral, encontraram consistência interna adequada em todos os 5 domínios das 16 subescalas através do Coeficiente Alfa de Cronbach*, que variou entre o mínimo de 0.53 e o máximo de 0.91.

Todas as subescalas se mostraram unidimensionais usando três técnicas de análise fatorial exploratória. A unidimensionalidade foi confirmada para todas as faixas etárias usando o método de Análise Fatorial Confirmatória de Múltiplos Grupos, considerando cada faixa etária do ASQ3-BR como grupo independente23.

Esta adaptação foi direcionada para adequação à língua e cultura brasileira, mantendo o escopo original do instrumento que seria para aplicação por pais ou cuidadores em ambiente particular, não identificando necessidade de adequações para outras situações, tais como ambiente de creche24, condições essas que podem influenciar não só o próprio desenvolvimento da criança quanto à maneira como poderá ser avaliada20,25.

Posto isso, o presente trabalho tem como objetivo identificar as normas de interpretação do ASQ3-BR para uma população de crianças atendidas por creches públicas, através de uma análise estatística dos resultados obtidos nos 3 anos de aplicação pelo município do Rio de Janeiros, bem como apresentar um paralelo comparativo entre os resultados obtidos com os valores estabelecidos pela versão original americana.

 

MÉTODO

Participantes

Um total de 109.758 questionários ASQ3-BR foram incluídos no presente estudo, distribuídos em 15 tipos de questionários para cada uma das faixas etárias (Tabela 1). O presente estudo considerou os resultados do ASQ3-BR aplicado em 2010, 2011 e 2012 para crianças na faixa etária de 10 a 54 meses nas creches públicas do Rio de Janeiro.

Instrumento

O ASQ3-BR consiste numa série de questionários relativos a cinco domínios do desenvolvimento infantil, que são 1) Comunicação, 2) Coordenação Motora Ampla, 3) Coordenação Motora Fina, 4) Resolução de Problemas e 5) Pessoal-Social. Cada um dos domínios apresenta 6 itens específicos. O ASQ3-BR oferece um acompanhamento do desenvolvimento infantil em 15 faixas etárias**, compreendidas entre 10 e 60 meses de idade. Dessa maneira, existe um protocolo específico para os 10, 12, 14, 16, 18, 20, 22, 24, 27, 30, 33, 36, 42, 48 e 54 meses.

Os 6 itens para cada domínio do desenvolvimento são respondidos através de uma escala Likert gradual, com três categorias ordinais de discriminação em função da capacidade da criança em emitir comportamentos apropriados para a idade. Assim, as respostas podem ser 1 para "Ainda Não", 2 para "Às Vezes" e 3 para "Sim"14.

Procedimentos

Para a aplicação do instrumento em 2010, na sua primeira rodada, 418 diretores de creches públicas foram convidados pela Secretaria de Educação da cidade do Rio de Janeiro para levar o ASQ3-BR a ser aplicado em suas respectivas creches através de cuidadoras ou crecheiras em suas salas de aula. Em seguida, as cuidadoras ou diretores tabularam os dados de cada criança de sua respetiva creche em um banco de dados. Nas rodadas de 2011 e 2012 foram realizadas apenas reuniões de atualização entre os diretores e as cuidadoras13,19.

Análises Estatísticas

Inicialmente, resultados que apresentaram dados faltantes foram desconsiderados, resultando numa redução no número de participantes de 6% em 2010, 3% em 2011 e 2% em 2012, distribuídos uniformemente entre todas as 15 faixas etárias do estudo.

Posteriormente, para possibilitar uma análise estatística, os valores originalmente codificados com 1, 2 e 3 foram substituídos pelos valores de classificação correspondentes de 10, 5 e 0 respectivamente, conforme estabelecido pelo instrumento original ASQ3. Esses valores foram somados para cada domínio, resultando no escore total do respectivo domínio em cada questionário para cada criança.

A normatização se refere aos padrões de como se deve interpretar um escore que a criança recebeu em um instrumento. Isto se dá porque o escore bruto produzido necessita ser contextualizado para poder ser interpretado. Assim, um escore deve se referenciar a algum padrão ou norma para adquirir um sentido, seja: a) para determinar a posição que a criança ocupa no traço latente medido pelo teste que produziu o tal escore ou b) para comparar o escore desta criança com o escore de qualquer outra em seu grupo.

Este critério de referência ou norma de interpretação é constituído por 3 referências, que são:

1) Nível de desenvolvimento do indivíduo, que pode ser idade mental, série escolar ou estágio de desenvolvimento da criança.

2) "Grupo padrão", constituído pela população típica para a qual o teste é construído (norma intragrupo), que corresponde à posição na qual se posiciona em relação ao grupo ou seja, o posto percentílico ou o desvio-padrão de uma amostra representativa da população26.

3) Critério externo (normas referentes a critério), que é utilizado quando se deseja um critério único, independentemente do grupo em que o participante representa ou está alocado.

Para caracterizar o nível de desenvolvimento da população em estudo das faixas etárias em cada um dos cinco domínios do ASQ3-BR, foi utilizado o cálculo das médias dos escores totais, considerando os resultados dos anos de 2010, 2011 e 2012.

O "Grupo padrão" foi calculado através dos pontos de corte inferior de cada faixa etária, através da respectiva média menos dois desvios-padrão e também foi caracterizado pelos valores dos percentis de 5% e 10% para cada domínio em cada faixa etária e por gênero masculino e feminino.

Como critério externo de referência ou norma de interpretação, foram considerados os resultados das médias e os pontos de corte inferiores estabelecidos pelo instrumento original ASQ3 com uma população doméstica americana14,27.

Para a abordagem de comparação entre os valores estabelecidos pelo ASQ3 original e os resultados obtidos pelo ASQ3-BR nos 3 anos de aplicação, foi realizada uma avaliação da "Equiparação de Escores" através da abordagem do teste de ancoragem, no qual foram considerados grupos distintos com testes equivalentes, sendo uma parte dos itens, aqueles que apresentaram médias e linhas de corte inferior equivalentes entre o ASQ3 e o ASQ3-BR, estabelecidos como teste de ancoragem. O método considerado foi o de Equações Lineares (linear equating), avaliando a inclinação das curvas de regressão (slope)28.

Segundo Pasquali26, a equiparação ou equivalência de escores (equating) tem como objetivo comparar testes distintos com a mesma população ou distinta população, que tenham como objetivo medir o mesmo constructo. Assim, serve para comparar escores em formas diferentes de teste, ajustando níveis diferentes de dificuldade e de conteúdo entre os testes. Consiste em se justificar e operacionalizar funções de ligação (linking) entre dois eventos distintos, mas relacionado, tais como dois testes diferentes que medem o mesmo constructo.

Desta maneira, para se resolver os problemas de diferenças entre escores obtidos em formas diferentes de um teste, utiliza-se a equiparação de escores, a qual é um processo estatístico e que requer certos tipos de delineamento na coleta de dados, sendo eles: a) um grupo randômico com dois testes, b) dois grupos randômicos com um teste ou, c) dois grupos randômicos com dois testes, mas com um teste de ancoragem comum.

A equiparação poderá ser realizada segundo 3 métodos:

1) Equações lineares (linear equating);

2) Equações não lineares ou equiparação equipercentílica;

3) Equiparação através da Teoria de Resposta ao Item28.

O cálculo das linhas de regressão é estabelecido através da seguinte fórmula:

y=ax+b

onde o "a" representa a inclinação da curva (slope) e o "b" o ponto de intercessão com o eixo y, que são os dois parâmetros que definem uma linha de regressão. O "x" (preditor) é a variável "idade'.

Na abordagem de dois grupos randômicos com dois testes, mas com um teste de ancoragem comum, temos o ASQ3 analisado em uma população doméstica americana14,27 e o ASQ3-BR analisando uma população de creches públicas brasileira21,23, sendo que o grupo de ancoragem foi considerado pelo grupo de questões com escores médios e linhas de corte equivalentes nas mesmas faixas etárias do mesmo domínio.

Para o cálculo de equiparação através das equações lineares (linear equating), considerando que o presente estudo dispõe apenas das médias e desvios-padrão e os respectivos pontos de corte inferiores do ASQ327, foram calculadas as curvas de regressão linear, onde as inclinações das curvas indicam a evolução dos resultados de cada domínio ao longo das 16 faixas etárias para o ASQ3 e o ASQ3-BR.

Aspectos Éticos

Os dados utilizados foram fornecidos pela Secretaria de Educação do Município do Rio de Janeiro e foram trabalhados estatisticamente, selecionando apenas as faixas etárias estabelecidas pelo instrumento ASQ3-BR. Nenhuma relação com as creches ou indivíduos foi objeto de estudo pelo presente trabalho. O trabalho foi aprovado pelo Comitê de Ética da Pontifícia Universidade Católica - Rio, sob o número 20/2010.

 

RESULTADOS

Comunicação

A Tabela 2 abaixo apresenta os dados normativos do ASQ3-BR referentes ao domínio de comunicação.

 


Tabela 2 - Clique para ampliar

 

A média total encontrada para o ASQ3-BR foi de 44,3, o desvio padrão de 13,7 e o ponto de corte inferior médio de 17,0. O escore médio estabelecido pelo ASQ3 de Squires foi média geral de 48,7, o desvio padrão médio de 12,7 e o ponto de corte inferior resultante de 23,3. Na análise dos percentis da população total, os limites inferiores calculados foram de 24,5 para décimo percentil e 17,7 para quinto percentil.

Na Figura 1, pode ser observada a distribuição comparativa dos escores médios para cada faixa etária aplicados pelo ASQ3-BR e aqueles estabelecidos pelo ASQ3, bem como a distribuição comparativa dos pontos de corte inferior.

 

 

O cálculo das inclinações das curvas de regressão apresenta valores de 1,4904 para o ASQ3-BR e 0,6702 para o ASQ3 original, com uma correspondência significativa.

Pode-se observar que, embora os valores do instrumento original americano se encontrem em patamares ligeiramente mais altos nas faixas etárias entre 10 e 24 meses, a partir de 27 meses de idade tanto as curvas dos escores médios quanto as curvas dos pontos de corte se equiparam.

Motora Ampla

A Tabela 3 apresenta os dados normativos do ASQ3-BR referentes ao domínio da atividade de Coordenação Motora Ampla da criança.

A média total encontrada para o ASQ3-BR foi de 53,7 e desvio padrão de 9,7 e o ponto de corte inferior médio de 34,2.

Os valores estabelecidos pelo ASQ3 de Squires foram a média total dos escores médios de 53,4, o desvio padrão médio de 10,1 e linha de corte inferior média de 33,2.

Na análise dos percentis da população total, os limites inferiores calculados foram de 40,3 para décimo percentil e 33,1 para quinto percentil.

Na Figura 2, pode ser observado que os resultados deste domínio, na distribuição dos escores pelas 16 faixas etárias do ASQ3-BR, também apresenta uma similaridade àquela estabelecida pelos valores do escore médio do ASQ3 (Squires), bem como a distribuição comparativa das linhas de corte inferior.

 

 

O cálculo das inclinações das curvas de regressão apresenta valores de 0,5571 para o ASQ3-BR e 0,0369 para o ASQ3, o que representa uma tendência ligeiramente superior na evolução do constructo quando avaliado pelo ASQ3-BR em ambiente de creche.

Pode-se observar uma similaridade significativa na distribuição das linhas de corte por faixas etárias entre os valores do ASQ3-BR e o ASQ3 original americano, havendo apenas uma ligeira diferença a partir de 27 meses de idade.

Motora fina

A Tabela 4 apresenta os dados normativos do ASQ3-BR referentes ao domínio da atividade de Coordenação Motora Fina.

A média total encontrada para o ASQ3-BR foi de 45,0 e desvio padrão de 14,0 e o ponto de corte médio de 16,9.

Os valores estabelecidos para o ASQ3 de Squires foram 48,8 para a média total dos escores médios, 11,6 de desvio padrão médio e 25,6 como a média da linha de corte inferior.

Na análise dos percentis da população total, os limites inferiores calculados foram de 24,0 para décimo percentil e 17,0 para quinto percentil.

Na Figura 3, podem ser observados os resultados deste domínio, bem como a distribuição comparativa das linhas de corte inferior. Entretanto, a distribuição dos escores do ASQ3-BR não apresenta a mesma similaridade àquela estabelecida pelo ASQ3, como verificado nos domínios anteriores.

 

 

No cálculo das curvas da regressão a partir dos mínimos quadrados, as inclinações dessas curvas são extremamente sugestivas. Para o ASQ3-BR, se obteve o valor de 0,1525, e para o ASQ3 original um valor negativo de -0,5753, ou seja, uma distribuição oposta entre a performance do ASQ3-BR e os limites preconizados pelo instrumento original.

Estes resultados podem indicar que os itens do instrumento ASQ3 original apresentam características de maior facilidade no atendimento pelas crianças, nas faixas etárias superiores da população original americana, mas que não se repetiu para as respectivas faixas etárias da população de creche brasileira do estudo pelo ASQ3-BR.

Pode-se observar que, embora os valores do instrumento original americano se encontrem em patamares significativamente mais altos nas faixas etárias entre 10 e 24 meses, a partir de 33 meses de idade as curvas dos pontos de corte se equiparam.

Resolução de Problemas

A Tabela 5 apresenta os dados normativos do ASQ3-BR referentes à capacidade de resolução de problemas.

A média total encontrada para o ASQ3-BR foi de 45,6 e desvio padrão de 13,0 e o ponto de corte médio de 19,6.

Os valores estabelecidos para o ASQ3 de Squires foram 50,0 para a média total dos escores médios, 10,8 para desvio padrão médio e 28,4 como a média da linha de corte inferior.

Na análise dos percentis da população total, as médias calculadas foram de 26,3 para décimo percentil e 19,7 para quinto percentil.

Na Figura 4, pode ser observada a distribuição dos escores médios do ASQ3-BR para o domínio Resolução de Problemas, bem como a distribuição comparativa das linhas de corte inferior.

 

 

O cálculo das inclinações das curvas de regressão apresenta valores de 0,6797 para o ASQ3-BR e 0,2128 para o ASQ3.

Pode-se observar que, embora os valores do instrumento original americano sejam superiores nas faixas etárias entre 10 e 24 meses, a partir de 27 meses de idade até 42 meses, as curvas se equiparam.

Pessoal e Social

A Tabela 6 apresenta os dados normativos do ASQ3-BR relacionados com aspectos pessoais e sociais da criança.

A média total encontrada para o ASQ3-BR foi de 45,3 e desvio padrão de 12,1 e o ponto de corte médio de 21,1.

Os valores estabelecidos para o ASQ3 de Squires foram 50,0 para a média total dos escores médios, 10,5 para desvio padrão médio e 28,8 como a média da linha de corte inferior.

Na análise dos percentis da população total, os limites inferiores calculados foram de 28,7 para o décimo percentil e 23,0 para quinto percentil.

Na Figura 5, pode ser observada a distribuição dos escores médios do ASQ3-BR para o domínio Pessoal e Social, bem como a distribuição comparativa das linhas de corte inferior, que também apresenta uma similaridade da distribuição ao longo das faixas etárias em relação aos escores médios do ASQ3 (Squires).

 

 

O cálculo das inclinações das curvas de regressão apresenta valores de 1,0687 ASQ3-BR e 0,3197 para o ASQ3, permanecendo a tendência superior do ASQ3-BR na evolução das crianças em creche.

Pode-se observar que, embora os valores do instrumento original americano se encontrem em patamares superiores nas faixas etárias entre 10 e 27 meses, a partir de 30 meses de idade as curvas se equiparam.

 

DISCUSSÃO

Considerando que o desenvolvimento infantil conta, atualmente, com poucos instrumentos que sejam de baixo custo e facilidade de aplicação em um modelo de rastreio, o ASQ3 estabelecido por Squires et al. se apresentou como tal, mas com a particularidade de que deveria ser aplicado pelas figuras parentais, que possam realizar o acompanhamento de forma proximal de forma a identificar a evolução do desenvolvimento de crianças nos cinco domínios14.

Como em Psicologia o único nível que se pode trabalhar empiricamente é comportamento verbal e motor, outros constructos só podem ser avaliados pela observação do comportamento desenvolvido pelo sujeito em estudo. Segundo Pasquali, os itens constituem a representação comportamental do traço latente. Eles são as tarefas, ações empíricas através das quais o traço latente se manifesta26.

Outrossim, o ASQ3 foi constituído numa abordagem maturacionista do desenvolvimento infantil de Arnold Gesell29, considerando como principais características as seguintes etapas:

12 a 18 meses: Anda sozinho e explora a casa e seus arredores; Empilha 2 ou 3 cubos; enche recipientes; Pronuncia 5 ou 6 palavras; Manifesta ciúmes e reações de rivalidade no jogo, com irmãos mais velhos.

18 meses a 2 anos: Sobe e desce escada, inicialmente segura por uma mão e depois sozinha, apoiando-se; Mostra seus olhos e seu nariz; Empilha 6 cubos; Associa 2 ou 3 palavras e enriquece o vocabulário; Imita um traço no papel; Aprende a comer sozinha; Interesse pelo que fazem os adultos e imita seus gestos; Interesse crescente por outras crianças; Controle esfincteriano começa a definir-se.

2 a 3 anos: Aprende a pular e depois a pular com uma perna só; Desenvolve a linguagem; Usa o 'eu'; Começa a fazer perguntas; Compreende a maioria das palavras que lhe são ditas; Pode reproduzir um círculo; Começa a brincar com os outros.

3 a 4 anos: Passeia sozinha e visita crianças vizinhas; Anda na ponta dos pés; Veste-se sozinha; Adquire higiene noturna; Imita uma cruz, desenha figura humana com cabeça e tronco; Reconhece cores; Diz seu nome e idade; Fala de maneira inteligível, conservando a linguagem do meio infantil; Pergunta muito e se interessa como nascem os bebês; Ouve histórias, pedindo as que mais gosta; Brinca com outras crianças; Demonstra afeição; Realiza tarefas simples.

4 a 5 anos: Salta, pula, sobe e desce escada colocando um só pé no degrau; Desenha figura humana com cabeça, membros e partes principais; Copia quadrado e triângulo; Fala de maneira completamente inteligível; Sabe contar seus dedos; Sabe sua idade e os dias da semana; Pergunta muito; protesta quando impedida de fazer o que quer; Conhece tamanho e forma; Interesse pelas atividades dos adultos16,18.

Esses comportamentos quando do processo de adequação do ASQ3 para o ASQ3-BR foram adaptados às condições culturais brasileiras, embora em relação ao objeto fim, que seria a avaliação de crianças em creche, não tenha sido considerado13.

Borsa et al.20 ressaltam que a adaptação de instrumentos exige a manutenção do seu conteúdo e das características psicométricas, mas que mantenha sua validade para a população a quem se destina, no caso crianças em creche.

Embora Squires et al. considerem que o ASQ3 possa ser utilizado para outras finalidades que não o acompanhamento pelas figuras parentais do desenvolvimento infantil, ressaltam que cuidados necessários para a adequação do instrumento, objetivando a população, a cultura e as práticas onde se quer avaliar devem ser incluídos30.

No estabelecimento dos valores normativos do ASQ3-BR e a subsequente comparação com os valores normativos estabelecidos para o ASQ3, embora apresentassem uma significativa correspondência entre as curvas de desenvolvimento, foram observadas diferenças significativas em alguns patamares.

Tais diferenças podem ser decorrentes do processo de adaptação do instrumento ou podem ser consideradas como pertinentes à população em estudo, ou seja, a evolução do desenvolvimento infantil em ambiente de creche. Essas diferenças serão analisadas abaixo através de uma Análise Semântica e da Equiparação de Escores.

Análise semântica

Comunicação

No domínio Comunicação, o ASQ3 apresentou uma média geral superior em relação ao ASQ3-BR em 9,9%, bem como o ponto de corte médio 36%, em função de uma significativa superioridade dos resultados do ASQ3 até os 22 meses de idade. Nesses primeiros meses, as questões definidas pelo instrumento ASQ3 demandam uma interação entre o bebê e a cuidadora, com características fortemente parentais. Questões como "O bebê fala três palavras como, por exemplo, "Mamã", "Papá" e "Dá?" utilizados nos questionários de 10, 12 e 14 meses, ou mesmo a questão "A criança fala mais palavras além de "Mamã" e "Papá"? nos questionários de 16, 18 e 20 meses podem afetar as respostas entre um ambiente doméstico e o de creche. Após os 27 meses, os resultados dos dois instrumentos praticamente se equivalem.

Coordenação motora ampla

No domínio da Coordenação Motora Ampla observou-se uma diferença de apenas 0,5% a maior entre o ASQ3 e o ASQ3-BR na média geral dos escores e de 3,0% entre as respectivas linhas de corte inferiores. Apenas nas faixas etárias entre 27 e 48 meses se observou uma ligeira diferença entre os escores médios e os pontos de corte. Questões como "A criança sobe ou desce sozinha pelo menos dois degraus?" apresentadas nos questionários de 27, 30, 33 e 36 meses podem não ser respondidas positivamente em ambiente de creche em função da indisponibilidade de tal ação.

Coordenação motora fina

No domínio da Coordenação Motora Fina, observou-se que o ASQ3 apresentou uma média geral dos escores 8,4% superior à apresentada pelo ASQ3-BR, como o ponto de corte médio, com resultados 48,8% superiores. Observa-se uma discrepância significativa entre os resultados do ASQ3 e do ASQ3-BR em 10 e 12 meses e moderada entre 12 e 30 meses. Questões como "O bebê pega....." utilizada nos questionários de 10 e 12 meses depende muito de um cuidado muito próximo que está mais disponível num ambiente doméstico do que numa creche. Da mesma forma, questões como "O bebê empilha, sozinho....." utilizadas em 14, 16 e 18 meses.

Já questões como "A criança vira as páginas de um livro sozinha?", utilizada nos questionários de 16 até 30 meses dependem da disponibilidade de livros no ambiente de creche, sendo este material mais facilmente encontrado em ambiente doméstico.

Após os 33 meses, os resultados entre os 2 instrumentos praticamente se equivalem no domínio da Coordenação Motora Fina.

Resolução de problemas

O domínio da Resolução de Problemas apresentou valores da média geral dos escores do ASQ3 9,6% superiores ao do ASQ3-BR, como também a linha de corte inferior do ASQ3, que apresentou valores médios 44,8% acima da linha de corte do ASQ3-BR.

Embora as faixas etárias entre 27 e 42 meses apresentem valores praticamente equivalentes, as faixas abaixo de 24 e acima de 48 divergiram significativamente.

No primeiro caso, observa-se questões como "Depois de ver você esconder um brinquedo..." ou "Se você colocar um brinquedo pequeno dentro de..." presente nos questionários de 10, 12 e 14 meses de idade, as quais são dependentes de uma atenção muito intensa por parte do cuidador, o que é mais provável num ambiente doméstico através das figuras parentais. Da mesma forma, questões como "A criança consegue colocar um pedacinho de pão ou biscoito dentro de uma garrafa pequena..." ou "Depois de deixar cair um pedacinho de pão ou biscoito dentro de uma garrafa pequena" presente nos questionários de 16, 18, 20 e 24 meses.

Já no período superior, em questões como "A criança se fantasia e faz de conta que é outra pessoa ou outra coisa? Por exemplo, a criança pode se vestir com roupas diferentes....." presentes nos questionários de 48 e 54 meses, observa-se a possível indisponibilidade de roupas para que a resposta seja afirmativa. E, finalmente, na faixa etária de 60 meses se encontra a questão "A criança completa as seguintes frases usando uma palavra que significa o oposto daquela que está sublinhada?..." que implica necessariamente que a criança já esteja alfabetizada, o que não necessariamente está dentro do escopo de atividades da creche.

Pessoal e social

Finalmente, no domínio Pessoal e Social, os resultados das médias gerais dos escores apresentaram o ASQ3 com valores 10% superiores aos apresentados pelo ASQ3-BR. Da mesma forma, o ponto de corte inferior médio, onde o ASQ3 tem um valor 37% superior em relação ao ASQ3-BR.

Embora tanto as médias quanto as linhas de corte tenham se apresentado praticamente equivalentes a partir da faixa etária de 30 meses, nos questionários para idades de 10 e 27 meses se encontram questões tais como "Quando você estende a mão e pede ao bebê o brinquedo dele, ele lhe oferece,..." presente em 10 e 12 meses ou "A criança procura você quando precisa de ajuda para fazer coisas..." presente em 16 e 18 meses, em que a interação pessoal da cuidadora com o bebê é imprescindível, o que, às vezes, num ambiente com diversas crianças, não seja totalmente possível.

Equiparação de escores

Na comparação do ASQ3-BR com o ASQ através da abordagem de equiparação de escores com equações lineares28, observa-se que em todos os domínios o ponto de intercessão da curva de regressão do ASQ3-BR foi inferior em todos os domínios em relação ao ASQ3 original americano, como apresentado na Tabela 7.

 

 

Para estes resultados, deve-se considerar que a população submetida à avaliação do ASQ3 tenha sido de crianças americanas em ambiente doméstico, como preconizado pela autora14,27, com uma capacidade de observação ou mesmo a estimulação diferenciada dessas crianças.

Deve-se considerar que a população submetida à avaliação do ASQ3-BR foi constituída de crianças em ambiente de creche, e que principalmente nos primeiros meses de avaliação, ou seja, 10 a 12 meses de idade, essas crianças ainda estavam num processo de ambientação na creche, e cuja a estimulação tenha sido apenas a que as respectivas figuras parentais tivessem tido condições de dar, em função das condições socioeconômicas bastante diversas da população americana que foi base para preconização das normas do ASQ331,32.

Por outro lado, a inclinação de todas as linhas de regressão ou slope do ASQ3-BR foi superior em relação aos ASQ3 original americano, conforme a Tabela 8, ou seja, pode-se supor que a evolução dos resultados da avaliação pelo ASQ3-BR das crianças em ambiente de creche é superior a crianças em ambiente doméstico, e que mesmo as crianças avaliadas pelo ASQ3-BR tivessem resultados das avaliações nas faixas etárias iniciais inferiores, sua evolução em ambiente de creche permitiu alcançar resultados equivalentes àqueles avaliadas pelo ASQ3 em ambiente doméstico.

 

 

A influência sociocultural do ambiente de origem para as crianças que ingressam, bem como os poucos meses de convivência em ambiente de creche, podem ser fatores significativos na comparação dos resultados do ASQ3-BR com os limites estabelecidos originalmente pelo ASQ3 para a amostra da população norte-americana, que foi avaliada individualmente num ambiente familiar14. A partir de um maior tempo de permanência da criança no ambiente de creche, os resultados do ASQ3-BR são progressivamente mais similares aos valores originais americanos do ASQ3.

Um dos possíveis componentes para essa evolução nos resultados das avaliações pode-se considerar o efeito desafiador do ambiente de creche. De acordo com Vygotsky, "o aprendizado desperta processos internos de desenvolvimento que são capazes de operar somente quando a criança interage em seu ambiente e em cooperação com seus companheiros, o que ele denominou de "desenvolvimento proximal"33,34.

 

CONCLUSÕES

Podemos concluir que a similaridade da evolução dos resultados dos escores médios e dos pontos de que corte da população em estudo é indicador que o instrumento ASQ3-BR é sensível à evolução dos cinco domínios e, portanto, pode ser um importante instrumento de avaliação da efetividade das políticas públicas voltadas para o desenvolvimento infantil.

Outrossim, observou-se que os resultados inferiores apresentados pelo ASQ3-BR para crianças com idade até 30 meses, quando comparados com os valores preconizados pelo ASQ3 de Squires, possa ser decorrente da influência sociocultural do ambiente de origem, bem como dos poucos meses de convivência em ambiente de creche. No entanto, observa-se que as crianças a partir dessa faixa etária, e com um maior tempo de permanência, apresentam resultados para o ASQ3-BR progressivamente similares ao preconizado pelo ASQ3 de Squires. Tal evolução tem relação intrínseca com o possível efeito desafiador do ambiente de creche, onde a convivência com outras crianças, além do cuidador responsável, incentiva o esforço em se equiparar ou mesmo sobrepujar, que em condições domésticas não seria tão estimulado.

 

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Endereço para correspondência:
Luis Filipe F. A. Tavares
Rua Humaitá 12 apt. 303
Rio de Janeiro, RJ, Brasil - CEP 22261-001
E-mail: luis.filipe.tavares@hotmail.com

Artigo recebido: 26/12/2020
Aprovado: 20/9/2021

 

 

* Alfa de Cronbach: coeficiente calculado a partir da variância dos itens individuais e da variância da soma de todos os itens. Foi utilizado para aferir a consistência interna do ASQ3-BR.
** Embora o ASQ3 tenha 17 faixas etárias incluindo 8 e 60 meses, no ASQ3-BR estas faixas foram desconsideradas devido ao baixo número de crianças submetidas à pesquisa.
Trabalho realizado na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Psicologia, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
Conflito de interesses: Os autores declaram não haver.

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