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Revista Psicopedagogia

versão impressa ISSN 0103-8486

Rev. psicopedag. vol.39 no.119 São Paulo maio/ago. 2022

http://dx.doi.org/10.51207/2179-4057.20220025 

RELATO DE PESQUISA

 

Competência socioemocional, trabalho e projeto de vida

 

Socioemotional competence, work and life project

 

 

Marcia Souza Gerheim

Mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); mestre em Avaliação pela Faculdade Cesgranrio, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo relata a investigação que contou com alunos de um curso superior de Licenciatura em Pedagogia para promover o desenvolvimento da competência socioemocional agrupada no eixo número 6 da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) nomeada de Trabalho e Projeto de vida. A metodologia, com abordagem qualitativa e apoiada no referencial fenomenológico, elaborou um questionário para avaliar e descrever o fenômeno. Esse instrumento serviu para orientar o processo avaliativo por meio dos indicadores das dimensões Projeto de Vida e Trabalho; assim como, o das subdimensões: determinação, esforço, autoeficácia, perseverança e autoavaliação, compreensão sobre o mundo do trabalho e preparação para o trabalho. Os achados desse processo foram sintetizados em eixos de sentidos que revelaram que as participantes são capazes de lidar com as adversidades em um contexto marcado por muitas mudanças, tal como o relacionado à pandemia da COVID-19. A análise dos dados demonstra que as envolvidas têm conhecimento das próprias habilidades, percebem em si a persistência necessária para que se desenvolvam profissionalmente e identificam a existência de um espectro de práticas profissionais que ainda lhe são inusitadas. Entre seus principais valores para a vida profissional, mencionam: sustentabilidade, qualidade de vida e autorrealização. Nas considerações finais ressalvam-se as contribuições do olhar multidisciplinar psicopedagógico, o qual propicia o desenvolvimento contínuo de habilidades, atitudes e valores que são essenciais à aprendizagem e não se esgotam em nenhuma etapa da vida.

Unitermos: Competência Social. Competência Emocional. Habilidades Sociais. Habilidades Emocionais. Avaliação de Competência. Autoavaliação.


SUMMARY

This article reports the investigation that involved students from a degree course in Pedagogy to promote the development of the socio-emotional competence number 6 of the Brazilian National Common Curricular Base (BNCC) named Work and Life Project. The methodology, with a qualitative approach and supported by the phenomenological framework, designed a questionnaire to evaluate the phenomenon. This instrument served to guide the evaluation process through indicators grouped in the dimensions Life and Work Project; as well as in the sub-dimensions: determination, effort, self-efficacy, perseverance and self-assessment, understanding of the world of work and preparation for work. The findings of this process were synthesized in groups of meanings which revealed that the participants are able to deal with adversities in a context marked by many changes, such as that one related to the COVID-19 pandemic. Data analysis demonstrates that those involved have knowledge of their own abilities, can recognize in themselves the persistence necessary to develop professionally and identify the existence of a still unexplored spectrum of professional practices. Among their main values for professional life, they mention sustainability, quality of life and self-fulfillment. In the final considerations, we highlight the contributions of the psycho pedagogical multidisciplinary perspective, which contributes to the continuous development of skills, attitudes and values which are essential to learning and that do not end at any stage of life.

Keywords: Social Competence. Emotional Competence. Social Skills. Emotional Abilities. Competence Evaluation. Self-Evaluation.


 

 

Introdução

Esse artigo tem o propósito de apresentar o relato completo de uma investigação que contou com alunos que cursam Licenciatura em Pedagogia para elaborar um processo de desenvolvimento e avaliação de competência socioemocional.

A investigação avaliativa que iremos descrever parte da verificação de que, atualmente, existe a necessidade de que professores de Ensino Básico tenham preparo para mediar e promover, nos alunos e em si mesmos, o processo de elaboração dos saberes, habilidades e atitudes relacionadas à competência socioemocional.

Em amplo aspecto, esse investimento buscou interferir no campo da educação da sociedade brasileira, durante o período pós-pandemia da COVID-19, pois abrigou ações que têm o potencial de contribuir com a instrumentalização do professor-pedagogo para enfrentar as demandas e adversidades que constituem a sua prática docente. Os impactos e efeitos que o conjunto de exigências e dificuldades inerentes ao processo pedagógico têm sobre professores e alunos vêm sendo extensivamente investigados e discutidos por profissionais das áreas de Pedagogia, Psicologia e Psicopedagogia.

Nesse contexto, delineamos a relevância de encaminhar o relato completo da investigação que se originou a partir do olhar psicopedagógico de Gerheim (2021) para conduzir a experiência de desenvolver e avaliar competência socioemocional junto a sujeitos que se preparam para serem professores-pedagogos em instituições de Ensino Básico.

Sobre esses futuros professores recairão expectativas de mediação e promoção (junto aos seus alunos) de processos de desenvolvimento de competências gerais. Isso se deve aos requisitos de atendimento impostos pelas diretrizes do Ministério da Educação que orientam o currículo de todas as escolas públicas e privadas do país quanto à necessidade de se desenvolver competência socioemocional. Ou seja, um processo o que abrange a promoção de competência social, competência emocional, habilidades sociais, habilidades emocionais.

Para tanto, partimos de Abed (2016) e Bittencourt et al. (2019) para observar dois pontos de contribuição que o campo do saber psicopedagógico pode trazer para esse tema.

O primeiro revela que o professor necessita mediar e promover competência socioemocional em si próprio; para, depois, poder fazer o mesmo junto a seus alunos. Esse caminho subjetivo que o professor deve percorrer é facilitado pelas contribuições dessa área de conhecimento.

O segundo ponto define que o desenvolvimento de competência socioemocional - por envolver elementos tais como perseverança, resiliência, habilidade social, capacidade de trabalhar em equipe, etc. - é essencial para que alunos de Ensino Básico obtenham sucesso na aprendizagem e na sua vida escolar. Esse entendimento tem sido fundamentado e amplificado pelo compartilhamento das ações investigativas pertinentes a essa área de saber.

Considerando o exposto, situamos no campo da Psicopedagogia a ação de viés fenomenológico que engajou alunos de um curso superior de Licenciatura em Pedagogia na promoção do desenvolvimento da competência socioemocional agrupada no eixo número 6 da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) com o nome de: Trabalho e Projeto de vida.

Competência socioemocional

Desde a década de 1990, a importância de se desenvolver competência socioemocional vem sendo reforçada por ações como a criação do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e o Relatório Jacques Delors - organizado pela Organização da Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (UNESCO). Tornou-se consenso internacional que cabe ao campo da educação considerar o ser humano de modo integral e agregar profissionais capazes de promover processos que levem os alunos a aprender (não somente) a conhecer, mas também, a fazer, a ser e a conviver.

Assim, governos e instituições ao redor do mundo têm dirigido seus esforços para a criação de políticas e práticas para disseminar o desenvolvimento de competências socioemocionais em escolas de Ensino Básico. Para tanto, no Brasil, o Ministério da Educação associado ao Conselho Nacional de Secretários de Educação e à União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação se fundamentaram nas Diretrizes Curriculares Nacionais para agrupar em um documento, intitulado de Base Nacional Comum Curricular (Brasil, s.d.), os fundamentos para o desenvolvimento de habilidades socioemocionais em instituições escolares de ensino básico.

Definido o conceito de "competência" como aquilo que mobiliza "[...] conhecimentos (conceitos e procedimentos), habilidades (práticas, cognitivas e socioemocionais), atitudes e valores para resolver demandas complexas da vida cotidiana, do pleno exercício da cidadania e do mundo do trabalho" Brasil, s.d., p. 6), participantes do Grupo de Desenvolvimento Integral do Movimento Pela Base, em colaboração com Michaela Horvathova, pesquisadora especialista do Center for Curriculum Redesign, descreveram os elementos mais relevantes de cada uma das Competências Gerais definidas pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC).

As dez categorias de Competências Gerais que a BNCC estabelece são assim agrupadas: Conhecimento; Pensamento científico, crítico e criativo; Repertório cultural; Comunicação; Cultura digital; Trabalho e projeto de vida; Argumentação; Autoconhecimento e autocuidado; Empatia e cooperação; e, Responsabilidade e cidadania.

Trabalho e Projeto de vida

A sexta Competência Geral da BNCC, Trabalho e Projeto de vida, conforme detalhado na publicação de Movimento e Center (Movimento pela Base Nacional Comum, 2018), visa valorizar a apropriação de conhecimentos e experiências que buscam a compreensão do mundo do trabalho e a elaboração de um projeto de vida que envolva escolhas alinhadas ao exercício da cidadania com liberdade, autonomia, criticidade e responsabilidade.

As duas dimensões - Trabalho e Projeto de vida - são desdobradas em sete subdimensões. A primeira, Trabalho, envolve a subdimensão da compreensão sobre o mundo do trabalho, assim como aquela que aborda a preparação para o trabalho. A segunda dimensão, Projeto de vida, agrupa em suas subdimensões os elementos relativos à determinação, esforço, autoeficácia, perseverança e autoavaliação (Movimento pela Base Nacional Comum, 2018).

A determinação de dimensões e subdimensões permite a explicitação de indicadores de desenvolvimento para a Competência Geral 6 da BNCC. Com isso, Movimento e Center (2018) definem quais são as expectativas do que um aluno deve alcançar até o final do 3º ano do Ensino Médio. Portanto, se estabelecem parâmetros de desenvolvimento a serem alcançados por cada aluno em uma certa etapa da vida. Isso equivale a se criar metas a serem perseguidas por educadores e especialistas, parâmetros a serem atingidos por todos os estudantes por volta dos 15 a 17 anos até o momento da conclusão do 3º ano do Ensino Médio.

Nesse sentido, em um contexto de crescente demandas associadas às complexidades da vida cotidiana, do pleno exercício da cidadania e do mundo do trabalho, as mencionadas metas e etapas de desenvolvimento são uma idealização do que seria desejável para um jovem desenvolver até uma determinada etapa da vida. Entretanto, é fundamental se apontar que, para a Psicologia do desenvolvimento, essas metas e etapas de desenvolvimento não representam uma realidade universal que será natural a todos (Martorell, 2014; Piletti & Rossato, 2017).

Ou seja, esse desenvolvimento não significa um esgotamento. Pelo contrário, sob um olhar da Psicopedagogia, o desenvolvimento de competência socioemocional não se esgota. Portanto, um adulto cursando uma graduação deverá continuar aprendendo novos conceitos e procedimentos; adquirindo habilidades práticas, cognitivas e socioemocionais; assim como, é desejável que ele continue refinando suas atitudes e valores relativos aos elementos agrupados nas dimensões Projeto de vida e Trabalho.

Portanto, havendo condições e incentivo, o processo de desenvolvimento subjetivo - diversificado, contínuo e incessante por natureza - expande e refina as competências socioemocionais que englobam determinação; esforço; autoeficácia; perseverança; autoavaliação; compreensão sobre o mundo do trabalho; e, preparação para o trabalho.

Avaliação de competência socioemocional

Observa-se que a avaliação de desempenho de alunos é amplamente considerada uma atribuição fundamental de todo professor em qualquer instituição de ensino. Atualmente, soma-se a essa expectativa a necessidade de se desenvolver e avaliar competência socioemocional. Tal entendimento pode ser observado entre algumas ações que buscam desenvolver conhecimentos, habilidades, atitudes e valores, registradas na forma de material didático (São Paulo, s.d.) ou vídeos disponibilizados no YouTube com títulos, tais como: Competências Socioemocionais para contextos de crise; Conversas que Aproximam - Competências digitais e inovação na educação; Projeto de vida em desenhos; O papel da escola na construção do projeto de vida dos estudantes; e, Habilidades Socioemocionais: como cada escola deve trabalhar com essa habilidade?

Desenvolver e avaliar são elementos há muito tempo vistos como complementares no campo educacional na medida em que a avaliação orienta e aperfeiçoa práticas pedagógicas que, junto com a transmissão de conhecimento, promovem o desenvolvimento de competência socioemocional - o que envolve, por exemplo: o controle de emoções; o alcance de objetivos; a capacidade de manter relações sociais positivas, sentir empatia e tomar decisões de maneira responsável.

Para Saul (2015), existe uma relação vital entre as práticas educativas e a avaliação que, tal como afirmava Paulo Freire, forçosamente compreende o diálogo com o outro para refletir sobre o processo de ensino-aprendizagem no intuito de melhorá-lo. Esse processo avaliativo envolve a conversa entre sujeitos participativos, o que possibilita a construção de dados e informações sobre processos e procedimentos instrucionais, aspectos do ensino que devem ser modificados, dificuldades e lacunas de aprendizagem, entre outros. Tais achados permitem o (re)estabelecimento de prioridades e a (re)orientação de práticas, o que é essencial para o andamento do processo pedagógico.

O processo avaliativo que compreende o diálogo com o outro pode ser, em certa medida, internalizado pela dinâmica de autoavaliação. De acordo com Movimento e Center (2018), autoavaliar envolve uma "[r]eflexão contínua sobre [o] próprio desenvolvimento e sobre [as próprias] metas e objetivos". Contida na dimensão Projeto de vida, a capacidade de se autoavaliar é estabelecida como meta para ser atingida até o 3o Ensino Fundamental (ou seja, por volta dos 15-17 anos), no sentido de que o aluno possa analisar de que modo sua capacidade de realizar tarefas e enfrentar desafios é impactada por suas características pessoais e habilidades. Ao lado disso, espera-se que o estudante possa considerar a devolutiva de colegas, professores e outros pares e adultos como um insumo para o desenvolvimento de novas habilidades e atitudes.

 

Objetivos

Este relato original de uma investigação objetiva contribuir com a definição de uma prática psicopedagógica que atua, junto aos alunos do curso de Licenciatura em Pedagogia, na promoção da compreensão, do desenvolvimento e da avaliação do fenômeno Projeto de Vida e Trabalho.

 

Método

Apoiada em referencial fenomenológico, a ação investigativa e de abordagem qualitativa, busca avaliar e desenvolver a Competência Geral 6 da BNCC para examinar, caracterizar e descrever as dimensões Projeto de Vida e Trabalho; assim como, as sua subdimensões: determinação, esforço, autoeficácia, perseverança e autoavaliação, compreensão sobre o mundo do trabalho e preparação para o trabalho. Isso será feito por meio da descrição do caminho metodológico percorrido para a produção de dados que, após serem analisados, subsidiam a elaboração de considerações finais em consideração aos objetivos da investigação e achados obtidos.

O caminho metodológico

O caminho metodológico que iremos descrever envolve uma investigação avaliativa que contou com a participação ativa de Cristiane e Karen, duas jovens de 22 e 23 anos, que moram com familiares no Rio de Janeiro e cursam o 3º período de uma Licenciatura em Pedagogia. Os nomes das participantes foram substituídos por pseudônimos para se preservar o movimento de introspecção (e não de exposição) que caracterizou os seus envolvimentos em uma série de iniciativas e ações, as quais foram promovidas entre os meses de setembro a dezembro de 2020 no ambiente virtual de aprendizagem da Faculdade Cesgranrio e em associação à troca de mensagens por correio eletrônico (e-mail) e aplicativo de bate-papo (WhatsApp) com os professores e coordenador do curso. Ao todo, esse processo aconteceu ao longo sete encontros virtuais de 90 minutos cada.

Essas dez horas e meia agregaram dados qualitativos produzidos em conversas, transcrições dos registros desses debates, leituras e releituras dessas transcrições. Após isso, a análise e agrupamento desses conteúdos nas dimensões do Trabalho e Projeto de Vida possibilitou a síntese e discussão desses dados. Essas ações se sucederam de modo complementar e não linear. Ou seja, cada etapa desse caminho metodológico pode ter sido processada sem necessariamente ter substituído a etapa anterior. No entanto, por motivação didática, elas são apresentadas no Quadro 1 como etapas que se sucedem linearmente.

A dinâmica processual apresentada no Quadro 1 pode ser adjetivada de "espiralada", pois cada estágio não ocorre um depois do outro. Ao contrário, muitas vezes as etapas dessa investigação se complementam na produção de dados que resultam de uma abordagem qualitativa apoiada em referencial fenomenológico.

A abordagem fenomenológica é muito utilizada no campo das ciências sociais desde o século XIX, quando Edmund Husserl definiu que um fenômeno é aquilo que intencionalmente nos chega à consciência por meio da experiência. O ato de compreender um fenômeno, para Japiassú e Marcondes (2006), envolve o conhecimento intuitivo e sintético de um objeto que chega à consciência de um sujeito por meio de uma ação que lhe atribui um sentido. Assim, a compreensão fenomenológica envolve uma interpretação subjetiva, o que é um modo de abordagem diferenciado do modo científico de se conhecer o mundo.

Os detalhes do método investigativo que se apresentam neste relato objetivaram impulsionar esforços para promover o desenvolvimento e a avaliação da Competência Geral 6 da BNCC (Trabalho e projeto de vida). De acordo com a orientação de Worthen et al. (2004), isso significa priorizar a experiência singular e agrupar uma multiplicidade de perspectivas para se produzir a descrição de um fenômeno.

Nessa opção, a tarefa crucial da avaliação foi compor um julgamento avaliativo capaz de expressar a complexidade de uma realidade social. E, sobretudo, possibilitar aos participantes da avaliação a expansão do seu entendimento sobre o fenômeno que julgaram.

Ou seja, de modo sistemático e intencional, avaliador e participantes procuraram interagir segundo uma pluralidade de critérios e juízos subjetivos. Guba e Lincoln (2011) proporcionam fundamento para inferirmos que o sentindo desse processo reside na produção do julgamento qualitativo que, uma vez articulado a uma situação social e política, dá visibilidade aos valores e necessidades dos envolvidos na avaliação.

Nessa direção, a investigação que relatamos, portanto, engendrou o desenvolvimento de competência socioemocional de modo intrinsecamente associado a um processo avaliativo. Para se conhecer o ponto de vista de cada sujeito sobre a temática, elaborou-se um Questionário de Autoavaliação das dimensões: Projeto de vida e Trabalho (Gerheim, 2021).

Esse questionário de autoavaliação inspirou-se em Silva (2012) para assumir o formato de uma Escala de Likert. Com 17 frases que descrevem atitudes, o respondente expressa o seu julgamento pela escolha de um grau de concordância para cada uma dessas afirmações. Assim, a apreciação avaliativa do respondente sobre as experiências que viveu (nas duas semanas que precederam aquele momento) se traduzem por um dos sete graus de opinião: (1) discordo totalmente; (2) discordo fortemente; (3) discordo parcialmente; (4) indeciso; (5) concordo parcialmente; (6) concordo fortemente; e, (7) concordo totalmente.

Os 17 itens elaborados para o questionário, fundamentados em Movimento e Center (2018), se referem às dimensões do Trabalho e Projeto de vida. A primeira dimensão, Trabalho, agrupa sete afirmações relativas ao mundo do trabalho e à preparação para o trabalho:

a) Eu mantive a minha visão ampla e crítica sobre dilemas, relações, desafios, tendências e oportunidades associadas ao mundo do trabalho na contemporaneidade.

b) Eu identifiquei um amplo espectro de novas práticas e possibilidades de desenvolvimento profissional.

c) Eu reconheci o valor do trabalho como fonte de realização pessoal e transformação social.

d) Eu analisei minhas aptidões e aspirações e assumi riscos e responsabilidades para realizar escolhas profissionais mais assertivas.

e) Eu demonstrei capacidade para agir e me relacionar de forma adequada em diferentes ambientes de trabalho.

f) Eu acessei oportunidades diversas de formação e inserção profissional.

g) Eu estabeleci metas para a vida profissional presente e futura, levando em consideração a sustentabilidade, a qualidade de vida e a realização de meus sonhos.

A segunda dimensão, Projeto de vida, compreende os itens relativos à determinação, esforço, autoeficácia, perseverança e autoavaliação:

a) Eu percebi minhas fortalezas e fragilidades como valores para influenciar resultados, mobilizando estratégias de interdependência para enfrentar desafios, obstáculos e realizar projetos presentes e futuros com confiança.

b) Eu analisei criticamente minhas estratégias de planejamento e organização, estabeleci e modifiquei metas de longo prazo e prioridades, e as exercitei em meus projetos presentes e futuros, em contextos pessoais, escolares e sociais, para criar alternativas viáveis para o alcance de meus objetivos.

c) Eu lidei com estresse, frustração, fracasso e adversidade como parte do processo para alcançar metas acadêmicas e projetos presentes e futuros.

d) Eu busquei e apreciei atividades desafiadoras, reconhecendo minhas habilidades para alcançar meus objetivos.

e) Eu construí redes de apoio para a superação de dificuldades e a realização de projetos presentes e futuros.

f) Eu considerei, refleti e construí novas atitudes e habilidades a partir da devolutiva de colegas, professores e outros pares e adultos.

g) Eu persisti, mantive o foco e cumpri compromissos de forma confiável.

h) Eu alcancei altos níveis de conquista, encarei obstáculos, desafios e adversidades como oportunidades de crescimento.

i) Eu investi na minha aprendizagem, desenvolvimento e melhoria constante, mantive o desejo de aprender e aceitei desafios que exigiam superação.

j) Eu construí redes de apoio para a superação de dificuldades e a realização de projetos presentes e futuros.

O fomento ao diálogo em torno dos graus de concordância que as respondentes atribuíram a cada afirmação objetivou conhecer os sentidos que atribuíam às dimensões e subdimensões que fundamentaram a sua autoavaliação.

A conversa sobre a intenção consciente de se autoavaliar possibilitou a apreensão de suas percepções sobre o fenômeno por meio de suas palavras. Essa ação as revelou no seu "movimento vivo dentro de sua situação" e em articulação às suas "relações com o mundo social e histórico" (Alvim & Castro, 2015, p. 8).

Os significados que as participantes atribuíram ao fenômeno propiciaram a interligação de uma amplitude de elementos observados pelos vários ângulos das suas experiências subjetivas.

 

Resultados

O diálogo estabelecido ao longo do processo avaliativo a respeito dos graus de concordância atribuídos aos itens do Questionário de Autoavaliação do Projeto de Vida e Trabalho gerou dados qualitativos.

Esse conteúdo discursivo foi analisado e a abordagem investigativa apoiada no referencial fenomenológico orientou a sua redução e agrupamento em eixos de sentidos.

Essa diversidade de elementos segue sinteticamente agrupada em cinco conjuntos que abordam: (1) Características e habilidades versus realização e enfrentamento; (2) Valores e necessidades dos participantes, (3) Novas atitudes e habilidades a partir de devolutivas; (4) Autoavaliação do fenômeno Projeto de vida e Trabalho; e, (5) Sentidos atribuídos ao fenômeno Projeto de vida e Trabalho.

Características-habilidades versus realização-enfrentamento

Inicialmente, as características e habilidades que as participantes desta investigação identificaram foram associadas ao enfrentamento dos desafios impostos pelas restrições aos nossos modos de ação e relacionamento social impostas pela pandemia da COVID-19.

Para Cristiane, essa experiência de encarar desafios em diversos níveis foi acompanhada da sensação de estar "correndo contra o tempo" para responder às demandas que se colocaram para ela de modo súbito e, em certa medida, inesperado. Contou que achou que não ia conseguir "de jeito nenhum; mas, mesmo assim, [deu seu] jeito de fazer [...]. Então, no meio do processo, [viu que ia conseguir porque tinha] que fazer".

A conversa sobre isso ampliou essa percepção, pois levou Cristiane a perceber que seus modos de superar dificuldades, contornar restrições e atender demandas estavam também relacionados às habilidades que lhe são próprias e, em alguns casos, anteriores àquele momento. Assim, ela identificou que possui habilidade para organizar trabalhos acadêmicos por exemplo. Admitiu que é "boa [em] ajudar o outro [que] está com uma dificuldade, [dando] suporte 'por trás dos bastidores' [porque é um pouco tímida]".

Karen, por sua vez, associou sua capacidade de enfrentamento das dificuldades surgidas no período da pandemia com sua habilidade para se "adaptar a qualquer situação". Ela relatou que "se as coisas [a] pegam de surpresa, [ela] não paro [e] consigo agir". Ela contou que, desde antes da pandemia, tem a característica de conseguir se adaptar e "fazer as coisas". Descreve que

às vezes, assim, não fica assim perfeito, do jeito que eu tinha planejado. Mas, assim, se chegar alguém amanhã e eu falar: eu estou fazendo isso; e, essa pessoa falar, você vai ter que mudar tudo! Eu vou ficar com raiva, mas eu vou fazer. Eu vou me adaptar e agir. Eu consigo agir. Assim, se for para falar eu público, eu consigo. As pessoas estão ali me olhando, me criticando; mas, eu não estou nem aí, eu consigo agir. Acho que sou assim em qualquer situação.

Assim sendo, quando as aulas presenciais foram trocadas por aulas no ambiente virtual de aprendizagem, Cristiane e Karen tiveram a capacidade de empenhar seus esforços, habilidade e características pessoais para enfrentar os desafios da mudança. Descreveram que, inicialmente, as dificuldades materiais associadas aos investimentos necessários para estudar on-line, os desafios tecnológicos e as demandas feitas pelos professores lhes provocaram uma sensação de sobrecarga. Entretanto, na medida em que foram ultrapassando cada um desses obstáculos, perceberam que obtiveram sucesso em razão de características e habilidades que lhes são próprias e lhes permitem perseverar e ser dedicadas aos seus projetos de vida e trabalho.

Valores e necessidades das participantes

A empatia é um valor muito apreciado pelas participantes desta investigação. Elas afirmaram que, durante uma pandemia, usar máscara é perceber as dificuldades e fragilidades dos outros e isso é ter empatia porque é pensar no mais frágil, naquele que pode ficar muito doente se pegar o vírus. Assim, enfatizaram que valorizam cada vez mais aqueles que observam os outros e que ajudam, por exemplo, um idoso a fazer suas compras. Karen contou que "não [aguenta] mais pessoas egoístas" e Cristiane "não [gosta daquelas] que são maldosas com os outros".

Acima disso, elegem como valor supremo o poder de produzir transformação social com o próprio trabalho. Cristiane afirma que ser pedagoga transforma a sociedade, pois, "sendo professora, a gente transforma muita gente, pelo menos umas 30 crianças por ano e também as famílias, né?!" Karen complementa que estudar também produz transformação social já que, ela explica, "entrou na faculdade de um jeito e vai [sair de outro jeito totalmente diferente, com pensamentos diferentes]". Para ela, esse fato é em si suficiente para promover transformação social, o que ela afirma valorizar mais por ser mais amplo do que realização pessoal.

Em outras palavras, suas elaborações sobre as dimensões do Trabalho e Projetos de Vida demonstraram o quanto elas valorizam um trabalho que tem o poder de produzir transformação social. O relacionamento com pessoas que admiram por serem empáticas e capazes de ajudar o outros foi outro valor que demonstraram apreciar.

Durante o processo avaliativo, identificaram, ao lado disso, o quanto valorizam a construção de redes de apoio. Como exemplo, contaram que, quando o isolamento social e as medidas de proteção contra a infecção começaram, a nova situação desorganizou de tal jeito suas vidas (acadêmicas, profissionais, familiares e sociais) que elas pensaram em trancar a matrícula na faculdade. Não fizeram, no entanto, porque tinham construído uma rede de apoio que foi se fortalecendo na medida em que todos tiveram muitas dificuldades para realizar seus projetos de estudo e "um sentia que tinha que ajudar o outro".

Karen explica que tal rede de apoio se fortaleceu quando "[entendemos] a importância [de ajudar o outro; já que, agora,] a gente [está] aqui, [mas] daqui a pouco a Internet de uma ou de outra cai; e, daí a gente entende que uma tem que apoiar [a] outra". Cristiane acrescenta que isso "foi uma boa surpresa". Na medida em que foram ajudando a ela, "[ela acabou que foi ajudando aos outros] e, assim, foi se criando uma rede e isso [faz muita] diferença [porque a gente fica mais forte]".

Por outro lado, descreveram ter tido muita dificuldade para realizar tarefas acadêmicas em grupo. Como causa possível causa para isso, mencionaram que estavam se sentindo atrapalhadas e com dificuldades para se concentrar naqueles dias. Suspeitaram que, por conta do estresse que viviam naquele momento, estavam precisando trabalhar em seus próprios ritmos porque estavam demorando mais para realizar as tarefas. Contaram ainda que, mesmo percebendo que a intenção era ajudar, se sentiram muito pressionadas quando um e outro professor solicitava ver um trabalho que ainda estava em processamento. Ao lado disso, disseram terem percebido que, "[ao receber] muita informação de uma vez, [ficavam] perdidas". Complementaram que diante de "um trabalho [com] várias fases, uma hora [não lembravam] mais o que [era] para fazer".

Desse modo, observaram que talvez necessitassem desenvolver mais suas habilidades de organização e planejamento para obter um ótimo desempenho nos próximos períodos da graduação. Cristiane sente que "o certo seria fazer tudo com mais antecedência", mas ela deixa "tudo para cima da hora". Karen acrescenta que é como se ela tivesse "um defeito" por não ser nem organizada nem "boa de fazer planejamento".

Karen acredita que, além organizar e planejar mais, "seria bom [pensar mais, ter mais calma]". Diz que talvez ela seja "assim" porque "[ela é] das coisas mais rápidas". Então, com frequência, "[muda de ideia. [Uma] hora [faz] uma coisa, depois [quer] outra". Ela acredita que precisa mesmo é aprender a "persistir" porque, por exemplo, [quando faz algo] errado, [quer desistir, não tenta] muito, [fica desmotivada e diz]: 'Ah, não quero mais!' [Rsrsrs...]".

Novas atitudes e habilidades a partir de devolutivas

Os relatos sobre novas atitudes e habilidades desenvolvidas pelas participantes a partir de demandas e devolutivas de professores ocorridas nos 15 dias que antecederam as suas respostas ao Questionário de Autoavaliação do Projeto de Vida e Trabalho surgiram associados às novas experiências vividas devido à imposição de estudarem remotamente. Dois exemplos foram descritos. O primeiro, foi o da apresentação de uma canção e um poema em libras - uma língua que aprendiam pela primeira vez - no auditório virtual para toda a comunidade da Faculdade. Como segundo exemplo, citaram o desafio de realizar um projeto acadêmico que envolvia o uso de uma tecnologia que elas desconheciam. Para Karen, descobrir que tem "jeito para [ser] designer de aplicativo" foi bom porque "[acabou sendo uma oportunidade] para realizar uma experiência inovadora que vai ser um diferencial" em termos de habilidade profissional. Ela notou que "estava olhando muito para a sala de aula, [mas agora está] vendo que tem também as novas práticas de tecnologia... não é mais só sala de aula!]". Ou seja, ela identificou um espectro novo e mais amplo de práticas e possibilidades de desenvolvimento profissional.

Enfim, as alunas contaram que puderam desenvolver novas atitudes e habilidades apesar do estresse, das frustrações, dos fracassos e das adversidades que constituíram aqueles períodos de suas vidas. Cristiane contou que aquelas semanas foram muito difíceis, ela ficou muito sobrecarregada "por causa de tantas coisas ao mesmo tempo". Ela ficou com "[ ...] aqueles tremeliques no olho, sabe?! Tipo, um nível absurdo de estresse. Daí [pensou]: 'Gente! Eu tenho só 20 anos, não era para estar assim! [Dá uma relaxada nesse quesito porque não] adianta querer fazer tudo' [...]". Ao "desacelerar um pouco" e se "colocar menos metas", "ficou mais calma", confiou mais nas devolutivas dos professores e colegas e, aos poucos, acreditou que conseguiria contornar os obstáculos.

Sentidos atribuídos ao fenômeno Trabalho e Projeto de vida

No primeiro momento do processo avaliativo, as participantes tomaram a proposta de avaliar as dimensões do Trabalho e Projetos de vida como um convite a ação de elaboração de um projeto de vida e trabalho. Elas não percebiam muito sentido nessa ação que equivaleria à ideia de se fazer um planejamento a longo prazo. Isso lhes parecia anacrônico, já que tudo estava mudando aceleradamente, tanto dentro quanto fora delas, especialmente naquele momento em que a pandemia da COVID-19 transformava suas rotinas de modo inesperado e imprevisto.

Para Cristiane, elaborar um projeto de vida e trabalho poderia até lhe causar frustração porque "[podia] ser que tudo [mudasse], que [ela] não [conseguisse] atingir as suas expectativas e que isso lhe [causasse] frustração". Acrescentou que, de certo modo, isso já estava acontecendo, pois ela se pergunta se "[está] com o projeto certo" no sentido de obter "reconhecimento financeiro do trabalho". Observou que faz vários cursos enquanto auxiliar de creche, participa de vários treinamentos, estuda e se dedica muito. Entretanto, se sente profissionalmente insegura, porque seu contrato é temporário e pode não ser renovado pela Prefeitura do Rio de Janeiro. Ponderou que "[pode] ser deprimente ter que rever [as] prioridades" depois de despender tantos esforços.

Em suma, para elas, a proposta de avaliação das dimensões do Trabalho e Projetos de vida equivalia à ideia de formular metas que poderiam não ser atingidas. Portanto, a elaboração desses objetivos teria a dimensão de mais um possível fator causador de frustração e decepção em suas vidas. Como exemplo, Karen contou que sua irmã "ficou um tempão estudando, se preparando; mas, aí, ficou grávida e tudo mudou na vida dela". Cristiane complementou que "não [se trata apenas do] medo da frustração". Há também "o não saber lidar com a frustração" que faz com que se procure evitá-la. Ela explica que, ao invés de tentar fugir das decepções, é preciso fazer projetos que considerem o caráter de instabilidade da realidade que estamos vivendo.

Assim, você planejou: ano que vem vou estar na faculdade, depois vou me formar. Quando terminar a faculdade, vou ter minha casa ou meu apartamento. Só que, eu acho, isso é um pouco irreal, eu acho. Você precisa assim, se falar: eu vou estudar, tal, não sei o quê, para um dia eu poder ter minhas coisas, um carro e tal, mas você não pode ficar focando só naquilo porque aquilo não depende só de você, depende de vários fatores. Então, eu acho que você precisa ser realista também, né?!

A partir de então, Cristiane e Karen começaram a conversar sobre a ideia de elaborar um projeto de vida e trabalho voltado para o presente. Para Karen, "[o seu] principal projeto hoje é de desenvolvimento profissional, [...] nada além disso!". Cristiane diz que "também [pensa] no [seu] desenvolvimento profissional e [planeja] fazer tudo para não ser demitida do trabalho [e] poder, um dia, conquistar [sua] casa, já que [seu] o principal projeto mesmo é o de ter uma família".

Em um último momento de reflexão sobre o significado da elaboração de um projeto de vida e trabalho, se disse que essa experiência seria muito boa se, no futuro, elas tivessem que conduzir uma proposta semelhante com seus alunos. Para Cristiane, seria ótimo

[] trabalhar [em um projeto de vida e trabalho com os alunos] desde pequenos. Porque, eles vão desenvolvendo essa capacidade de se autoavaliar, de pensar sobre o que eles querem. [Eles] vão, ao longo dos anos, pensar: 'eu quero ser médico ou bombeiro', e vão mudar de ideia; mas as mudanças que eles vão tendo [com] capacidade de se autoavaliar, [dá mais] autoconfiança para ir decidindo em função de se conhecer e entender o que [se quer].

Autoavaliação do fenômeno Trabalho e Projeto de vida

Algumas metas qualitativas para suas vidas profissionais redundaram do processo de se autoavaliar: considerar sustentabilidade, qualidade de vida e a possibilidade de realizar os próprios sonhos.

Cristiane afirma que isso envolve "fazer o que gosta, independente [do] amanhã. Até porque o que a gente gosta hoje não necessariamente vai ser o que eu vou gostar amanhã; assim, é importante não se prender pela comodidade, mas buscar fazer aquilo que você gosta". "Em termos de trabalho", isso significa para Karen: "ganhar bem", "ter paz espiritual", sem se acabar de tanto fazer "esforço" para ter uma boa "qualidade de vida".

Para Karen, a experiência de se autoavaliar não é inteiramente nova. Ela afirmou gostar de ter "mania de ficar se autoavaliando". Em Cristiane, ela suscitou a percepção de que "poderia se conhecer bem mais". Ela enxergou nesse processo "um norte para si mesma", pois permite que "você se [entenda mais]. E, ao longo do caminho, você vai entendendo o que é bom para você e vai alterando as coisas, fazendo as escolhas entendendo essas escolhas".

Nessa direção, Cristiane revelou ter gostado muito "de se autoavaliar". Ela contou que no início, ficou pensando assim: "Puxa! Eu não sei responder isso!" Porque, ela afirma, "[autoavaliação] é uma coisa que nunca foi trabalhada com a gente [na escola]".

Ela conclui que o processo de se autoavaliar - experimentado por ela pela primeira vez - é um dispositivo que pode auxiliar no crescimento pessoal, no sentido de nos levar a "prestar atenção no que a gente quer". Por promover autoconhecimento, Cristiane continua, isso pode até prevenir uma perda de tempo de vida do tipo: "[entrar] numa faculdade, aí [ver] que não é aquilo que [se quer]. Aí [tentar] outra coisa, mas também [ver que] não é aquilo. Então, assim, fazer isso é fundamental".

 

Considerações

A apresentação desse relato completo de uma investigação avaliativa demonstra, entre outros aspectos, que adultos são capazes de refinar atitudes e valores; e, ainda, eles podem se empenhar com afinco no aprimoramento de habilidades práticas, cognitivas, sociais e emocionais. Assim, exposição mostra que o movimento de desenvolvimento de aprendizagem de conhecimentos, procedimentos, habilidades, atitudes e valores não se esgota. Ao contrário, a dinâmica é reforçada pelo olhar da Psicopedagogia, que assinala que considera esse processo inerente ao entendimento de que o ser humano, quando visto de modo integral, tem a possibilidade de aprender (a conhecer e também de saber-fazer, saber-ser e saber-conviver) em todas as etapas de sua vida.

Tal olhar lançado sobre a temática ressalta a necessidade de se mediar e promover desenvolvimento e avaliação de competência socioemocional junto ao professor a fim de que, futuramente, ele possa fazê-lo com seus alunos. Iniciativas e ações intencionais, que tiveram a participação de um grupo de alunos de um curso de Licenciatura em Pedagogia e se deram em torno das dimensões do sexto eixo de Competência Geral estabelecido pela BNCC (Trabalho e Projeto de vida), afirmaram a relevância da avaliação como um instrumento capaz de propiciar o desenvolvimento de competência socioemocional.

Os julgamentos qualitativos produzidos sobre os itens compreendidos nas subdimensões e seus indicadores foram articulados ao contexto de crescentes demandas associadas às complexidades da vida cotidiana, do pleno exercício da cidadania e do mundo do trabalho no momento atual. Um conjunto diverso de elementos foram descritos e deram visibilidade aos valores e necessidades interligadas às experiências subjetivas dos participantes.

A opção pela prática da autoavaliação acompanhada de uma série de conversas possibilitou às participantes uma percepção mais aguçada de suas próprias características e habilidades. Todavia, destaca-se que tal caminho metodológico, por envolver tempo síncrono de interação entre "professor-avaliador" e "alunos-participantes", por impor limitações à aplicação do método por outros pesquisadores.

No todo, a proposta de avaliação das dimensões Trabalho e Projeto de vida assumiu o sentido de uma dinâmica para se conhecer melhor já que, segundo Cristiane, esse processo "[dá] um norte para [si] mesmo, [para a gente poder se entender] o que é bom para [se poder alterar as coisas e fazer] escolhas, entendendo essas escolhas." Ela conclui que o processo de se autoavaliar é um dispositivo que pode auxiliar no crescimento pessoal. Além disso, a aluna reforça a importância de ter tido essa experiência, já que autoavaliação de competência socioemocional "é uma coisa que nunca foi trabalhada com a gente [na escola]" e que lhe parece muito importante de ser trabalhada com os alunos desde o Ensino Infantil.

Ao lado disso, combinada à conversa a respeito do julgamento avaliativo, se autoavaliar implicou em conhecer melhor as próprias capacidades de realização e enfrentamento de adversidades em diversos níveis. Assim sendo, as participantes observaram que puderam "crescer" não apenas "por necessidade", mas também graças às qualidades que lhes possibilitaram vencer um conjunto de obstáculos associados às demandas e experiências vividas durante a pandemia. Entre esses atributos, destacaram suas habilidades de "organização de trabalhos acadêmicos" e de "adaptação a qualquer situação".

Em síntese, a escuta e a interlocução do outro que se estabeleceu em torno da avaliação propiciaram às participantes trazerem para o centro da sua percepção os atributos pessoais que contribuem para um bom aproveitamento de novas possibilidades de desenvolvimento profissional, permitindo a identificação da existência de um espectro de práticas profissionais até então inusitadas.

Com essa tomada de consciência, elaborar um projeto de vida e trabalho se afastou do sentido de ser um plano de futuro desconectado com o presente para assumir um sentido de estratégia de planejamento, organização, estabelecimento de objetivos, acompanhamento de metas e revisão de prioridades para a vida profissional presente.

O que inicialmente significava ser um "risco", por causa do seu potencial de causar "[frustração] por não [se] conseguir atingir as expectativas", assumiu um sentido de desenvolver estratégias para se lidar com as adversidades em um contexto de mudanças muito aceleradas e imprevisíveis, tanto dentro quanto fora de si.

Essa elaboração, de certo modo, mais voltada para o agora, foi articulada como um artifício para se evitar a "frustração". Esse foi um movimento que contemplou que é preciso, nesse momento, falar para si mesmo: eu vou estudar [para] um dia [poder ter as] coisas, um carro e tal; mas não [não vou ficar] focando só naquilo porque aquilo não depende só de você, depende de vários fatores. Então, eu acho que você precisa ser realista também, né?!"

Em associação a essa advertência quanto à necessidade de que se seja realista, as alunas trouxeram à consideração a valor que dão para a realização de seus sonhos em consonância com suas vocações. Entretanto, enfatizaram que entendem que "fazer o que se gosta" deve acontecer de um modo sustentável. Ou seja, juntamente com a manutenção de uma qualidade de vida que envolve uma remuneração pelo trabalho adequada sem haver perda da saúde; da paz espiritual; e, de outros valores que as participantes descreveram, tais como:

a) ser empático e sensível ao outro;

b) se conhecer bem;

c) entender o que se quer fazer;

d) saber se autoavaliar;

e) possuir autoconfiança para promover mudanças;

f) não se prender à comodidade;

g) ter uma rede de apoio fortalecida; e,

h) ser capaz de produzir transformação social.

Em síntese, sustentabilidade, qualidade de vida e autorrealização são algumas das metas qualitativas para a vida profissional que redundaram desse processo de autoavaliação. Sobre a última, autorrealização, destacamos que, para as participantes, o projeto de ser professora-pedagoga não é "só um trabalho", é "[aquilo] que você tem a vocação, que você gosta, sem ser uma obrigação".

Ainda, cabe frisar que, embora o percurso do método construído para a investigação que relatamos tenha sido dispendioso em termos de tempo, ele foi muito produtivo no sentido de promover o que as participantes afirmaram necessitar: estratégias para que elas possam "pensar mais", refletir com "mais calma", "desacelerar um pouco"; e, se colocar "menos metas" para abrir espaço interno para uma maior disponibilidade de para escutar as devolutivas dos professores e colegas.

Esse resultado é muito positivo, uma vez que esses feedbacks (mesmo que informais) podem sinalizar qualidades e atributos próprios que ainda não tinham sido percebidos. A partir disso, um processo pode ser disparado e promover tanto a persistência quanto outros atributos requisitados para o enfrentamento das complexidades da vida, das dificuldades do exercício da cidadania e dos desafios incessantes e imprevistos do mundo do trabalho atual.

Em vista do relato apresentado, ressaltamos que ferramentas como materiais didáticos e vídeos são válidas, mas não substituem o profundo caráter transformador da experiência vivida. Portanto, recomendamos que investimentos em desenvolvimento de competência socioemocional sejam acompanhados de:

a) participação ativa dos envolvidos;

b) autoavaliação;

c) encontros síncronos;

d) conversa com privacidade;

e) sigilo de conteúdo; e

f) escuta de qualidade.

Finalmente, sugerimos aos profissionais do campo da Psicopedagogia que se afastem de uma suposta isenção e impliquem os seus olhares nas etapas de outras investigações sobre a temática apresentada. Dessa maneira, aliamos o nosso saber multidisciplinar à responsabilidade de interferir no presente de estudantes e professores a fim de contribuir com a avaliação e o desenvolvimento de competência socioemocional que promove um futuro social mais receptivo aos nossos jovens.

 

Agradecimentos

Aos alunos do curso de Licenciatura em Pedagogia, pela participação ativa. Às Prof.as Dr.as Clarisse e Lucí Mary Araújo Hildenbrand, pelas sugestões e riqueza das trocas. À Faculdade Cesgranrio e às integrantes do seu Núcleo de Apoio Psicopedagógico, Regina Gudolle e Mary Galdino, por fomentarem o desenvolvimento socioemocional de professores e alunos.

 

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Endereço para correspondência:
Marcia Souza Gerheim
Rua Joana Angélica, 227/101 - Ipanema
Rio de Janeiro, RJ, Brasil - CEP 22420-030
E-mail: marciagerheim@gmail.com

Artigo recebido: 10/2/2022
Aprovado: 29/5/2022

 

 

Trabalho realizado no Curso de Licenciatura em Pedagogia, Faculdade Cesgranrio Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
Conflito de interesses: A autora declara não haver.

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