SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.39 issue120Family-school relationship in ABRAPEE'S publications: State of knowledge author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Revista Psicopedagogia

Print version ISSN 0103-8486

Rev. psicopedag. vol.39 no.120 São Paulo Sept./Dec. 2022

http://dx.doi.org/10.51207/2179-4057.20220035 

RELATO DE EXPERIÊNCIA

 

O jogo como estratégia para melhor convivência entre crianças e adolescentes acolhidos

 

The game as an strategy to better relationships between sheltered children and teenagers

 

 

Elaine Laumann

Graduação e Licenciatura em Psicologia (Associação Catarinense de Ensino), Mestrado em Educação (UNIVILLE); formação em Psicopedagogia Clínica e Institucional (Associação Catarinense de Ensino), Joinville, SC, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo relata a experiência de um estágio desenvolvido com crianças e adolescentes em acolhimento institucional na cidade de Joinville - SC. O objetivo do trabalho realizado foi estimular relações e vínculos socioafetivos nas crianças e adolescentes em acolhimento institucional, por meio de jogos. Participaram do grupo oito crianças e adolescentes entre 10 e 17 anos. Foram realizados três encontros, entre julho e agosto de 2019, sendo os dois primeiros para apresentação e reconhecimento do campo, e o terceiro para intervenção. A prática psicopedagógica institucional, dialética e coletiva, apresenta-se como um momento de troca entre o psicopedagogo e os sujeitos, um momento construído do coletivo, para o coletivo. Por meio de jogos, atividades lúdicas e coletivas, assim como a atribuição de papéis e responsabilidades, além de construir regras e combinados em conjunto, foi possível perceber algumas mudanças na relação entre os acolhidos.

Unitermos: Crianças e Adolescentes. Acolhimento Institucional. Jogos. Relações Socioafetivas.


ABSTRACT

This article reports the experience of an internship developed with children and teenagers sheltered in an institutional care in the city of Joinville - SC. The objective of the work was to stimulate relationships and social-affective bonds in children and teenagers in institutional care, through games. Eight children and teenagers between 10 and 17 years old participated in the group. Three meetings were held, between July and August 2019, the first two for presentation and recognition of the field, and the third for intervention. The institutional, dialectical and collective psychopedagogical practice presents itself as a moment of exchange between the psychopedagogue and the subjects, a moment constructed from the collective to the collective. Through games, recreational and collective activities, as well as the attribution of roles and responsibilities, in addition to building rules and add arrangements, it was possible to see some changes in the relationship between the hosted.

Keywords: Children and Teenagers. Institutional Care. Games. Socio-Affective Relationships.


 

 

Introdução

Diante das possibilidades de atuação da psicopedagogia institucional, o objetivo do presente artigo é apresentar as intervenções realizadas durante o estágio curricular obrigatório, requisito parcial para a obtenção do título de Psicopedagogo (a) Clínico (a) e Institucional. O estágio teve o intuito de trabalhar aspectos relacionais em um grupo de crianças e adolescentes acolhidos em uma casa lar na cidade de Joinville/SC, possibilitando o estabelecimento de uma ponte entre a teoria e a prática.

A instituição acolhe crianças e adolescentes que foram afastados da família temporária ou permanentemente, como medida de proteção. Conforme descrito no art. 98 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, 2019, p. 63):

As medidas de proteção à criança e ao adolescente são aplicáveis sempre que os direitos reconhecidos nesta Lei forem ameaçados ou violados:

I - por ação ou omissão da sociedade ou do Estado;

II - por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsável;

III - em razão de sua conduta.

Em seu art. 101, o Estatuto prevê que, em qualquer das situações descritas acima, as autoridades competentes devem determinar qual melhor medida de proteção a ser seguida. Dentre as medidas possíveis, encontra-se o acolhimento institucional.

A prática realizada foi dividida em dois diferentes momentos: o primeiro destinado ao reconhecimento dos acolhidos e do ambiente, e à compreensão sobre quais as possibilidades de atuação no campo; e o segundo momento foi destinado à aplicação de jogos para potencializar os relacionamentos entre os membros do grupo. A opção de trabalhar com jogos é decorrente dos encontros para o reconhecimento do campo de atuação, em que foram observados enfrentamentos e dificuldades em manter relacionamentos amistosos entre os acolhidos na instituição.

Este artigo tem a intenção de relatar ambos os momentos, assim como abordar aspectos teóricos relacionados ao acolhimento institucional e à utilização de jogos para desenvolver estratégias de convivência. A atuação focada na melhoria das relações entre os acolhidos tem como justificativa a convivência social em diferentes contextos, mesmo que não haja muita afinidade ou interesse. Também, esta temática mostra-se pertinente, pois muitos conflitos observados foram gerados com base em relacionamentos hostis entre os membros do grupo.

Por meio deste relato, acredita-se que será possível contribuir para a melhoria de práticas profissionais, bem como para a ampliação do campo de trabalho, levantando diferentes possibilidades de intervenção com o olhar psicopedagógico.

 

Acolhimento institucional de crianças e adolescentes: um campo de atuação para psicopedagogia institucional

Com o final do período do Governo Militar no Brasil (1964-1985), e o retorno do Estado democrático de direito, uma nova Constituição da República foi escrita, e os direitos dedicados à criança e ao adolescente tornaram-se mais amplos. O art. 227 da Constituição de 1988 (2016, p. 132), expõe que

É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Com as mudanças em relação à tutela dos menores, o conceito das instituições de acolhimento também sofreu alterações. Atualmente, em seu art. 92, o ECA (2019) determina que instituições de acolhimento devem seguir alguns princípios, como a reintegração familiar ou integração à família substituta, a não separação de irmãos, o desenvolvimento de atividades de coeduação, além de tentar sempre manter a permanência do menor na mesma instituição, garantindo sua participação na vida da comunidade local. Nesse sentido, as instituições de acolhimento devem ser ambientes de integração social e desenvolvimento para as crianças e adolescentes acolhidos.

As alterações no contexto de acolhimento aconteceram durante um longo período, e passaram por diferentes fases. Silva (1997) aponta cinco diferentes momentos do pensamento assistencial relacionado às crianças e adolescentes no Brasil: fase filantrópica (1500-1874); fase filantrópico-higienista (1874-1922); fase assistencial (1874-1964); fase institucional (1964-1990); e a atual fase da desinstitucionalização (1990-atualmente).

Serão abordados aspectos pertinentes à última e atual fase, a desinstitucionalização. Segundo o autor, este momento compreende que a institucionalização total da criança ou adolescente não traz vantagens a longo prazo para os sujeitos, e que ele tem o direito de viver em família e frequentar diferentes espaços sociais, conforme preconizado pelo ECA.

Diniz et al. (2018) apontam que atualmente existem quatro modalidades de acolhimento institucional: casas-lares (serviço prestado em unidades residenciais); famílias acolhedoras (famílias cadastradas recebem o menor em sua casa); repúblicas (destinadas a jovens vulneráveis, em processo de desligamento de instituições de acolhimento e sem perspectiva de retornar para a família ou promover próprio sustento); e os abrigos institucionais (destinados ao acolhimento provisório do menor, e caso o acolhido não possa retornar para sua família, será encaminhado para uma família substituta). À instituição em que a intervenção foi realizada é atribuída a modalidade de acolhimento institucional conhecida como casa lar.

Segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em maio de 2022 existiam 29.579 (vinte e nove mil, quinhentos e setenta e nove) crianças e adolescentes acolhidos no Brasil. O acolhimento pode acontecer por diferentes motivos, e ao contrário do que muitas pessoas acreditam, as crianças e jovens acolhidos possuem famílias, ou seja, não são órfãos.

Silva (2004 apud Diniz et al., 2018, p. 268) aponta que

[...] 87% das crianças e adolescentes possuem família e destas, 58% mantém o vínculo familiar, outros 22% não mantêm o vínculo familiar, embora conheçam e saibam sua localização, 5,8% possuem famílias, mas estão impedidas judicialmente de contatá-la e apenas 11,3% não possuem famílias ou estas encontram-se desaparecidas.

Sendo assim, o acolhimento institucional, em sua imensa maioria, está relacionado à negligência, ou diferentes tipos de violência, ou qualquer outra situação que ponha em risco a integridade da criança e do adolescente. Nesse sentido, conforme previsto no art. 98 do ECA (2019), o Estado deve promover medidas de proteção à criança ou adolescente que tenha seus direitos ameaçados ou violados, seja pela sociedade ou Estado, pelos pais ou responsáveis, ou ainda devido à conduta da própria criança ou adolescente. Neste trabalho, não serão discutidos aspectos relacionados a crianças e adolescentes em conflito com a lei. Será mantida a discussão sobre medidas de proteção para os casos em que há violação dos direitos da criança ou adolescente por um terceiro (responsáveis legais, sociedade, etc.).

O art. 19 do ECA (2019, p. 23), em seu primeiro parágrafo, expõe que "[...] a permanência da criança e do adolescente em programa de acolhimento institucional não se prolongará por mais de 18 (dezoito meses), salvo comprovada necessidade que atenda ao seu superior interesse, devidamente fundamentada pela autoridade judiciária".

Contudo, sabe-se que no Brasil muitas crianças e adolescentes passam um período bastante extenso de suas vidas em instituições de acolhimento. Weber (2005, p. 67) aponta que "Em um país como o Brasil [...] onde cerca de metade da população é negra ou mestiça, a maioria absoluta das crianças que são adotadas é branca, recém-nascida e saudável". Nesse sentido, crianças, mesmo que recém-nascidas, quando não atendem as preferências dos candidatos à adoção, podem passar toda a infância e adolescência em abrigos.

Quando acolhido, o sujeito passa a estabelecer novas relações socioafetivas, com todas as pessoas envolvidas no processo e no ambiente de acolhimento. Cada pessoa inserida no cotidiano de um sujeito é dotada de sua própria subjetividade, esta que é produto de experiências individuais e coletivas. Entretanto "[...] a subjetividade não é um dado prévio nem um ponto de partida, mas um ponto de chegada de um processo complexo, tal como um devir" (Birman, 2000 apud Prata, 2005, p. 108), ou seja, ela continuará sendo influenciada ao longo de toda a vida, como uma construção constante.

Assim, o sujeito em acolhimento passa a conviver com novas pessoas, e precisa formar novos vínculos socioafetivos, sendo constantemente influenciado em seus aspectos subjetivos, demonstrando a importância do ambiente para o desenvolvimento humano, haja vista que as pessoas, porque humanas, são sociais, e assim se constroem e se transformam.

Quando se fala em funcionamento intelectual, racionalidade e afeto caminham lado a lado, pois todo o comportamento é permeado por cognição e afetividade, sendo os aspectos cognitivos fortemente influenciados pelo afeto, que é o "[...] fator determinante para a escolha dos objetos e eventos sobre os quais a atividade intelectual se concentrará" (Wadsworth, 1997 apud Diniz et al., 2018, p. 272).

Com relação aos vínculos socioafetivos em instituições de acolhimento, Weber (2005) discorre que há dificuldade de vinculação por diferentes motivos, citando alguns exemplos como a rotatividade de funcionários, a transferência de internos para outras instituições, o tratamento massificado, e ênfase em rotinas, submissão e falta de autonomia.

Destarte, mesmo que tenha o intuito inicial de proteger, o acolhimento também influencia as habilidades de relacionamento, organização interna e vinculação socioafetiva e essa influência pode nem sempre ser positiva (Diniz et al., 2018). Portanto, apesar do conforto, bem-estar e possibilidades de desenvolvimento que as instituições de acolhimento legalmente devem proporcionar para as crianças, o ambiente possui particularidades que são, em muitos aspectos, distintas de um lar.

Por conseguinte, crianças acolhidas muito pequenas e que permanecem por vários anos abrigadas podem, em consequência, ter as oportunidades de uma convivência íntima e afetuosa com seus cuidadores e pares reduzida (Cavalcante et al., 2007 apud Diniz et al., 2018).

Grusec e Lytton (1988) apontam que o tempo de acolhimento e o favorecimento para a construção e manutenção de vínculos afetivos sólidos são fatores que podem modificar os efeitos do acolhimento institucional. Nesse sentido, foram pensadas atividades a fim de potencializar os vínculos afetivos entre os acolhidos, haja vista que, em sua maioria, a convivência entre eles era superior a um ano. Assim, conforme será destacado posteriormente, foram propostas atividades e jogos em que houvesse interação, confiança mútua, autonomia e trabalho em equipe.

A psicopedagogia, enquanto ciência que estuda, auxilia e potencializa os processos de aprendizagem, integra em sua prática os aspectos individuais e coletivos dos sujeitos que se envolvem em sua prática. Por meio das ideias de Porto (2011), pode-se dizer que a psicopedagogia institucional propõe intervenções estruturais e metodológicas de ensino-aprendizagem em instituições que apresentam dificuldades. Desde modo, a partir das demandas e dificuldades observadas no grupo de acolhidos, optou-se por trabalhar com a psicopedagogia institucional por meio de jogos. Assim, as intervenções foram pensadas a partir do coletivo, para o coletivo, por meio da realização de um diagnóstico inicial e posterior intervenção.

A atuação psicopedagógica institucional não é unilateral. Deve ser encarada e compreendida como dialética, como um momento de troca entre o psicopedagogo e os sujeitos de sua atuação. Dialética, pois quem ensina é também aprendiz, é agente e também sujeito, transforma e é transformado nas relações.

Nesse sentido, para além de trabalhar questões voltadas à aprendizagem formal - aquela que se dá nos muros da escola - a psicopedagogia institucional potencializa e atua em questões voltadas às relações e convivência entre grupos. Isto porque, alguns aspectos que podem prejudicar essas relações entram no escopo de atuação da psicopedagogia, e influenciam também no aprendizado escolar, como é o caso do baixo limiar à frustração, que será destacado adiante.

 

Os jogos como recurso psicopedagógico para o desenvolvimento de estratégias de convivência

A utilização de jogos e atividades lúdicas e dinâmicas é amplamente difundida em diferentes esferas e contextos. O emprego dos jogos pode variar desde situações educacionais, para potencializar o aprendizado e a assimilação de conhecimento formal, até em ambientes de socialização, para estimular o relacionamento entre os membros de um grupo. Isso porque, "[...] para jogar, necessita-se de outro, e um espaço de confiança" (Fernández, 1991, p. 167).

O mesmo jogo pode ser utilizado de diferentes maneiras, visto que sua usabilidade dependerá do objetivo proposto. Assim, segundo Kishimoto (2011), é difícil elaborar uma definição de jogo, pois todos apresentam características que podem, simultaneamente, aproximá-los ou distanciá-los. Gilles Brougère (1981, 1993 apud Kishimoto, 2011) e Jacques Henriot (1983, 1989 apud Kishimoto, 2011) atribuem três diferenciações para os jogos. A primeira está relacionada ao contexto social em que se joga determinado jogo, conforme o valor e modo de vida dos envolvidos, ou lugar e a época em que o jogo é utilizado. A segunda diferenciação está relacionada às estruturas sequenciais de regras atribuídas a determinado jogo, essas estruturas podem alterar a maneira como um jogo é jogado, ou até mesmo sua finalidade. E, a terceira e última diferenciação, diz respeito ao objeto que materializa o jogo.

A presença de regras independe da sociedade ou do tempo cronológico em que se está jogando, ou dos objetos que são destinados ao jogo, entretanto, é característica de todos os jogos, e fundamental para nortear os objetivos e a atuação dos jogadores. Segundo Moura (2011, pp. 106-107),

[...] um jogo não pode ser visto, apenas, como divertimento ou brincadeira para desgastar energia, pois, ele favorece o desenvolvimento físico, cognitivo, afetivo, social e moral. [...] As crianças ficam mais motivadas a usar a inteligência, pois querem jogar bem; sendo assim, esforçam-se para superar obstáculos, tanto cognitivos quanto emocionais. Estando mais motivadas durante o jogo, ficam também mais ativas mentalmente.

Além disso, o jogo também é dotado de natureza improdutiva: ao jogar, não há expectativa de geração de bens ou riquezas. O importante é o processo de brincar, pois nesse momento a criança não visa um resultado final, bem como não se preocupa com adquirir conhecimento ou desenvolver qualquer habilidade. Durante o jogo, não se sabe quais serão as atitudes de cada jogador, pois estas variam de acordo com fatores internos, motivações pessoais e estímulos externos (Caillois, 1958 apud Kishimoto, 2011).

Assim, conforme Macedo et al. (2007), brincar é visto como coisa séria, pois envolve diferentes aspectos que se relacionam entre sim, assim como a concentração para dar continuidade ao brincar. Para os autores (2007, p. 14), o jogar é "[...] brincar em um contexto de regras e com um objetivo predefinido"; se ganha ou se perde, existem delimitações e condições, há organização, papéis e posições demarcadas.

Deste modo, entende-se, para a realização deste trabalho, que os jogos são parte fundamental do desenvolvimento de crianças e adolescentes. Além de se apresentarem como uma importante ferramenta psicopedagógica, que favorece o aprendizado e desenvolvimento de habilidades socioemocionais em crianças e adolescentes.

 

Da demanda à intervenção: a construção do percurso

Esta vivência foi realizada por meio de estágio curricular obrigatório para a finalização do curso de pós-graduação lato sensu em Psicopedagogia Clínica e Institucional com Ênfase em Neurociência. O campo da intervenção é uma casa lar, situada na zona sul da cidade de Joinville, em Santa Catarina. No momento do estágio a infraestrutura da casa lar era composta por seis dormitórios, sala de estar, sala de jantar, sala de estudo, banheiros, cozinha, dispensa, área de serviço, área externa com quadra esportiva não coberta, brinquedoteca, sala de apoio técnico e administrativo.

A instituição é responsável pelo acolhimento, como medida de proteção, de crianças e adolescentes até que se complete 18 anos, tendo como capacidade máxima de atendimento 10 crianças e/ou adolescentes. No momento da intervenção, a instituição contava com 10 acolhidos, sendo que dois acolhidos - gêmeos - estavam com 4 meses, e os outros 8 tinham idade entre 10 e 17 anos. Os bebês não participaram das intervenções.

O campo de intervenção foi inicialmente visitado para reconhecimento e compreensão das demandas. Nesse primeiro momento, em contato com a equipe técnica responsável pela casa lar (psicóloga, assistente social e coordenadora), foram levantadas possíveis demandas de trabalho: a) dificuldades de aprendizagem escolar e individual; b) baixo limiar de frustração; c) dificuldade nos relacionamentos entre os acolhidos; d) falta de perspectiva. A primeira demanda apresentada foi direcionada para atendimento psicopedagógico clínico, visto que se trata de situações específicas e individuais.

Para compreender melhor as demandas apresentadas, conhecer os acolhidos e observar como se apresentam e se relacionam, foram realizados dois encontros iniciais, sem o intuito de realizar intervenções. No primeiro encontro, com a intenção aproximar os de iniciar uma conversa informal e criar laços afetivos, aos acolhidos foram levantados alguns questionamentos que deveriam ser respondidos livremente. Os questionamentos eram sobre suas rotinas, o que gostavam, o que não gostavam de fazer, quais as expectativas sobre a intervenção e para o futuro.

Nesta roda de conversa, foi perceptível a dificuldade que os acolhidos tinham em compreender as ideias e falas dos colegas, bem como em manter-se atentos ao outro está dizendo. Durante o bate-papo, os acolhidos trocaram algumas expressões desagradáveis entre si, atribuindo falas e características desagradáveis e pejorativas uns aos outros. Após o bate-papo, as crianças e adolescentes receberam materiais para que cada um fizesse a reprodução gráfica de um dia perfeito. Nesta atividade, grande parte dos acolhidos reproduziu uma quadra de futebol, tendo como referência a quadra que a casa lar possui, mencionando os dias sem atividade externa.

No segundo encontro, ainda sem o intuito de realizar intervenções, foram apresentados materiais como feltro, enchimento, fitas decorativas, etc., e solicitado que cada pessoa fizesse um emoji. No início da atividade, novamente verificou-se falas pejorativas e hostis entre os acolhidos. Entretanto, durante a realização das atividades, os membros do grupo foram percebendo habilidades desconhecidas em seus companheiros, e assim passaram a ajudar e a pedir ajuda, de maneira que a interação durante a realização da atividade foi se tornando mais harmoniosa.

Após cada membro do grupo finalizar sua a primeira produção, todos optaram por fazer uma segunda produção: cada menino confeccionou um segundo emoji relacionado com personagens de desenho ou filme, e as meninas optaram por confeccionar um quadro para ser colocado na porta do quarto. No final da atividade, cada um apresentou sua produção para o grupo e comentou sobre como foi a confecção de seu emoji e o porquê daquela figura ter sido escolhida.

Por meio destes encontros iniciais, observou-se a pertinência das demandas apresentadas pela equipe técnica da instituição. Também, algumas considerações foram ponderadas: há mais hostilidade entre os membros do grupo quando não há direcionamento para a realização de atividades concretas; todos os membros do grupo gostam de trabalhar com atividades expressivas; existe afeto entre os acolhidos, muitas vezes escondido em comportamentos hostis; referências vão sendo reconhecidas com base nas potencialidades que cada um apresenta. A partir destas considerações, um projeto de intervenção foi construído, com o objetivo de estimular os vínculos socioafetivos das crianças e dos adolescentes acolhidos.

O encontro intervenção foi dividido em três momentos, iniciando com alongamentos e uma brincadeira com a cantiga Escravos de Jó, ambos realizados na quadra da instituição; o segundo momento consistiu em um jogo da forca, sendo que as crianças e adolescentes foram divididos em duas equipes; e no terceiro momento todos foram convidados para jogar Eu Sou?

As ações propostas tinham o intuito de trabalhar as relações por meio de atividades dinâmicas e permeadas por interação entre os acolhidos, além de promover a autonomia dos participantes, o trabalho em equipe, o respeito e a empatia.

As atividades foram propostas às crianças e aos adolescentes em um clima de descontração, para estimular a participação de todos. O encontro de intervenção aconteceu em um sábado pela manhã, assim como os encontros para o reconhecimento do grupo. A proposta de iniciar o encontro com um alongamento foi acolhida, e justificada como um meio para "acordar e tirar a preguiça". Formou-se um círculo e com a intenção de envolver a todos, cada integrante do grupo foi convidado a ser responsável por um exercício de alongamento, sendo essa uma regra estabelecida e aprovada por todos.

Ao elegermos um responsável para cada exercício, todos os integrantes do grupo deveriam seguir os exercícios propostos, conforme as sugestões dos colegas, demonstrando responsabilidade e comprometimento com o acordo firmado. Neste momento, fomentou-se o respeito pelo colega, pois cada um precisou seguir as orientações e aguardar seu momento e propor os exercícios, executando as atividades propostas. Durante a realização do alongamento, caso alguém não seguisse o combinado, era lembrado por um ou mais integrantes do grupo, a fim de retornar à atividade, reforçando o acordo firmado inicialmente. Este comportamento coletivo remeteu à importância do estabelecimento de combinados com o grupo, contando com a aprovação da todos, pois deste modo os acolhidos se organizavam, recordando os acordos e seguindo com a tarefa proposta.

Após o alongamento, ainda em círculo, foi proposto ao grupo brincar com a cantiga "Escravos de Jó", sendo que em cada verso da música era necessário realizar um movimento diferente: passos pro lado, ou pra frente ou cruzados, ou no sentido contrário. Esses movimentos foram propostos a fim de estimular a concentração, coordenação motora e cooperação entre todos, pois em círculo era necessário que todos seguissem os comandos, caso contrário atrapalharia o colega ao lado. A cada término da cantiga, ela era iniciada novamente e com ritmo mais acelerado. A atividade foi escolhida, pois para sua conclusão, mais uma vez, se fez necessário a cooperação de todos, e o trabalho em equipe, favorecendo o estabelecimento de melhores relações e convivência entre os acolhidos.

Quando anunciado que a atividade seguinte seria um Jogo de Forca, o grupo já iniciou sua organização, dividindo as duas equipes de maneira que consideravam justa: conforme o período escolar, além de cada grupo contar com a participação de uma estagiária. Assim, quando os acolhidos finalizaram a divisão das equipes, baseando-se no que consideravam equilibrado, regras e foram estabelecidas e o jogo pôde iniciar.

Para a realização do jogo, foi utilizado um quadro branco para que todos pudessem ler e participar. As crianças e adolescentes se mostraram bastante ansiosos para sugerir uma letra e acertar a palavra oculta, muitas vezes fazendo sugestões sem consultar sua equipe. Este movimento foi sendo advertido sempre que acontecia, lembrando os acolhidos que estavam trabalhando em equipe, e que por meio da cooperação os resultados poderiam ser melhores. Após algumas falas e reforços sobre a importância da cooperação, os acolhidos passaram a se comunicar e consultar sua equipe antes de fazer sugestões impensadas e impulsivas.

Em seguida, os participantes foram convidados a jogar "Eu sou?". O jogo consiste em cada jogador utilizar um arco com uma carta na cabeça e, durante o tempo da ampulheta, tentar identificar qual é sua carta. Regras apresentadas e concordadas por todos, e a brincadeira começou. Durante esse jogo, um dos participantes, ao perceber a possibilidade de espelhamento da mesa, utilizou esse fato para acertar suas cartas. A primeira reação dos outros membros do grupo foi bastante hostil com o adolescente que estava acertando suas cartas indevidamente, então, por meio de conversa com todos, o jovem foi orientado a não mais utilizar essa artimanha e aos demais participantes foi solicitado que confiassem na palavra do colega. Deste modo, foi combinado que ninguém mais utilizaria dessa vantagem para alcançar seus acertos. Optou-se por trabalhar dessa forma, a fim de demonstrar ao grupo a importância da confiança nas relações, bem como o cumprimento dos combinados, demonstrando na prática que as boas relações e vínculos são estabelecidos com base em confiança mútua.

Ao conversar sobre confiança mútua e o estabelecimento de interações positivas entre os acolhidos e com outras pessoas, mesmo que externas à casa lar, um dos abrigados declarou que pareciam uma família, pois todos estavam se ajudando. Deste modo, todos foram cumprimentados pela interação e cooperação, reforçando a importância de compreender que falhas podem acontecer, de respeitar o outro, e de manter interações positivas para melhorar a convivência da casa e entre eles, tornando, assim, a rotina mais agradável, e potencializando outras e melhores relações nas diferentes esferas da sociedade.

 

Considerações

Quando acolhidos em uma casa lar, as crianças e adolescentes passam a conviver entre pessoas diferentes de seu convívio social e familiar, com suas diferentes experiências de vida, muitas vezes marcadas por histórias de negligência, abandono, violência e abusos. O convívio entre acolhidos e seus responsáveis nas instituições pode, ao contrário do que se espera, promover instabilidade na vida das crianças e adolescentes, potencializando dificuldades no estabelecimento de vínculos, e então a hostilização das relações interpessoais. Desta maneira, observou-se que trabalhar as relações e o estabelecimento de confiança entre os acolhidos possibilita o estabelecimento de vínculos positivos, potencializando melhores relações, proporcionando aos moradores do abrigo um espaço mais agradável e amistoso.

O trabalho com jogos apresentou um resultado positivo para as relações socioafetivas entre crianças e adolescentes acolhidos em uma casa lar, na cidade de Joinville/SC. O diálogo, a discussão e acordo sobre regras e normas em conjunto, assim como a atribuição de responsáveis e seus papéis no grupo, também revelaram que são potencializadores de relações mais cordiais e afetuosas. Deste modo, destaca-se a importância de potencializar cotidianamente o diálogo entre os acolhidos, assim como o estabelecimento de combinados e acordo entre todos.

Também, destaca-se a importância do reconhecimento da demanda de trabalho junto ao grupo concomitante à queixa da equipe técnica, pois deste modo foi possível direcionar o manejo psicopedagógico às necessidades apresentadas pelas crianças e adolescentes, não apenas à queixa apresentada por outra pessoa. Deste modo, o grupo de trabalho foi sendo ouvido e então as atividades construídas, pautadas nas necessidades observadas no grupo.

Durante os jogos, as relações tornaram-se mais positivas e o respeito mútuo foi sendo estabelecido, por meio da sensibilização dos acolhidos e promoção de empatia e reflexões acerca de comportamentos que podem agredir, ofender ou promover instabilidade nas relações. Destaca-se a importância deste trabalho e da atuação do psicopedagogo nas instituições de acolhimento para fomentar o estabelecimento contínuo de vínculos saudáveis, mesmo quando a rotatividade de acolhidos e colaboradores da instituição seja inevitável e rotineira.

A experiência de atuar com atividades lúdicas e jogos a fim de facilitar as relações e potencializar o estabelecimento de vínculos, é um trabalho que pode acrescentar à comunidade acadêmica, bem como à educação. Para além dos muros de uma casa lar, essas atividades podem ser levadas às escolas e outros espaços de convivência. Assim, fomenta ainda mais as discussões e pesquisas acerca do tema e sobre o papel da psicopedagogia.

 

Referências

Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. (2016). https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/518231/CF88_Livro_EC91_2016.pdf        [ Links ]

Diniz, I. A., Assis, M. O., & Souza, M. F. S. (2018). Crianças institucionalizadas: um olhar para o desenvolvimento socioafetivo. Pretextos - Revista da Graduação em Psicologia da PUC Minas, 3(5), 261-285. http://periodicos.pucminas.br/index.php/pretextos/article/view/15978        [ Links ]

Estatuto da Criança e do Adolescente. (2019). Lei Federal n. 8.069/1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. https://www.mdh.gov.br/todas-as-noticias/2019/maio/governo-federal-lanca-nova-edicao-do-estatuto-da-crianca-e-do-adolescente-eca/ECA2019digital.pdf        [ Links ]

Fernández, A. (1991). A inteligência aprisionada: uma abordagem psicopedagógica clínica da criança e sua família. Artmed.         [ Links ]

Grusec, J. E., & Lytton, H. (1988). Social development: History, theory and research. Springer-Verlag.         [ Links ]

Kishimoto, T. M. (2011). O jogo e a educação infantil. In Kishimoto, T. M. (Org.), Jogo, Brinquedo, Brincadeira e a Educação (14. ed., pp. 13-43). Cortez.         [ Links ]

Macedo, L., Petty, A. L. S., & Passos, N. C. (2007). Os jogos e o lúdico na aprendizagem escolar. Artmed.         [ Links ]

Moura, M. A. (2011). A séria busca no jogo: do lúdico na Matemática. In Kishimoto, T. M. (Org.), Jogo, Brinquedo, Brincadeira e a Educação (14. ed., pp. 91-97). Cortez.         [ Links ]

Porto, O. (2011). Psicopedagogia institucional: teoria, prática e assessoramento psicopedagógico (4. ed.). Wak.         [ Links ]

Prata, M. R. S. (2005). A produção da subjetividade e as relações de poder na escola: uma reflexão sobre a sociedade disciplinar na configuração social da atualidade. Revista Brasileira de Educação, (28), 108-115. https://doi.org/10.1590/S1413-24782005000100009        [ Links ]

Silva, R. (1997). Os filhos do governo: a formação de identidade criminosa em crianças órfãs e abandonadas (2. ed.). Ática.         [ Links ]

Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento. (2022, Maio). Cadastro Nacional de Crianças Acolhidas [Base de Dados]. Conselho Nacional de Justiça do Brasil. https://paineisanalytics.cnj.jus.br/single/?appid=ccd72056-8999-4434-b913-f74b5b5b31a2&sheet=e78bd80b-d486-4c4e-ad8a-736269930c6b&lang=pt-BR&opt=ctxmenu,currsel&select=clearall        [ Links ]

Weber, L. N. D. (2005). Abandono, institucionalização e adoção no Brasil: problemas e soluções. O Social em Questão, (14), 53-70. http://osocialemquestao.ser.puc-rio.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=245&sid=32        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
Elaine Laumann
Faculdade Guilherme Guimbala / Associação Catarinense de Ensino - Serviço de Psicologia
Rua São José, 490 - Anita Garibaldi - Joinville, SC, Brasil - CEP 89202-010
E-mail: elaine.laumann@gmail.com

Artigo recebido: 16/5/2022
Aprovado: 30/7/2022

 

 

Trabalho realizado na Faculdade Guilherme Guimbala / Associação Catarinense de Ensino. Joinville, SC, Brasil.
Conflito de interesses: A autora declara não haver.

Creative Commons License