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Revista Psicopedagogia

Print version ISSN 0103-8486

Rev. psicopedag. vol.40 no.121 São Paulo Jan./Apr. 2023

http://dx.doi.org/10.51207/2179-4057.20230001 

ARTIGO ESPECIAL

 

Repercussões sociais/culturais e psíquicas da linguagem escrita na aprendizagem do sujeito

 

Social/cultural and psychic repercussions of written language on the subject's learning

 

 

Edith Rubinstein

Psicopedagoga, Mestre em Psicologia pela UNIMARCO, docente convidada em cursos de Psicopedagogia, docente e Coordenadora do Centro de Estudos Seminários de Psicopedagogia - SP, Formadora Trainer de PEI, Ex-presidente da ABPp e conselheira nata, São Paulo, SP, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A linguagem escrita é uma ferramenta básica em nossa Cultura, pois ela permite resgatar e transmitir o patrimônio cultural através da História da Humanidade. Considera-se fundamental compreendê-la integralmente, levando em conta aspectos relacionados às quatro habilidades básicas: ler, escrever, falar e escutar, como fundamentado por Kenneth Goodman (1977) e Condemarin (1992). Aprender a ler e escrever é um "rito de passagem" que demanda experiências formais e informais, dentro e fora do contexto escolar. A produção da linguagem escrita abre espaço para a singularização, isto é, possibilita expressar e identificar-se aos valores e conceitos que contribuem para a formação individual e coletiva. Sendo considerada a "espinha dorsal da escolarização", muitas das queixas de Dificuldades de Aprendizagem podem ser relacionadas à sua fragilidade, tendo repercussões na constituição do sujeito aprendente. Este artigo tenta descrever a amplitude do que envolve a queixa escolar referente à produção de linguagem de maneira integral e integrada, apresentando enfoques teóricos que fundamentam a Psicopedagogia Dinâmica no que diz respeito ao desenvolvimento da linguagem.

Unitermos: Dificuldades de Aprendizagem. Rito de Passagem. Linguagem Integral. Repercussões no Processo de Aprendizagem do Sujeito Aprendente


ABSTRACT

Written language is a basic tool in our Culture, as it allows to rescue and transmit cultural heritage through the history of humanity. It is considered fundamental to fully understand it, considering aspects related to the four basic skills: reading, writing, speaking, and listening, as founded by Kenneth Goodman (1977) and Mabel Condemarin (1992). Learning to read and write is a "rite of passage" that requires formal and not formal experiences, both within and outside the school context. The production of written language opens space for singularization, that is, it makes it possible to express and identify oneself to the values and concepts that contribute to individual and collective formation. Being considered the "backbone of schooling", many of the complaints of Learning Difficulties can be reactivated to its fragility, having repercussions on the constitution of the learning subject. This article tries to describe the breadth of what involves the school complaint regarding the production of language in an integral and integrated way, presenting important theoretical approaches to broaden this reflection. presenting theoretical approaches that underlie Dynamic Psychopedagogy regarding language development.

Keywords: Learning Difficulties. Rite of Passage. Integral Language. Repercussions on the Learning Process of the Learning Subject.


 

 

Introdução

Uma das queixas escolares recorrentes tem sido a produção de linguagem de maneira integral e integrada, entendida nas quatro competências fundamentais: ler/escrever/falar e escutar.

A linguagem escrita é uma ferramenta básica em nossa cultura, pois ela permite resgatar e transmitir o patrimônio cultural através da História da Humanidade. O processo que compreende o ler e escrever é complexo, pois demanda a utilização de inúmeras habilidades de ordem cognitiva, linguística, psicológica, entre outras. Por ser modalidade simbólica é também manifestação estética e produtora de efeitos sobre a subjetividade do sujeito. Através dela tem-se a oportunidade de sublimar e elaborar conflitos.

Um texto sempre produz ressonâncias no leitor, nem sempre perceptíveis. Conseguir ler, compreender e articular o conhecimento transformando-o em saber modifica a relação do aprendente com a aprendizagem. O estudante que desde o início "sofre além da conta" para conectar-se com um texto escrito não aproveitará funcionalmente a relação com o aprender de modo a desencadear novas ideias. O demasiado esforço poderá, eventualmente, desencadear desinteresse e resistência frente o aprender e aos conteúdos acoplados.

A escrita requer muitos mecanismos: organizar o pensamento, para expressá-lo; compartilhando seu propósito; considerar o Outro imaginado; lidar com a opacidade da linguagem, a qual não garante que o Outro compreenda a intencionalidade do escritor.

Ao escrever, abre-se espaço para a emergência de um sujeito narrador que através das diferentes narrativas constrói sua identidade quando produz um texto. Seu estilo vai sendo construído no encontro com a escrita. A produção de um texto é efeito da polifonia, que é o produto da ressonância da diversidade de textos lidos e das experiências vividas. Esse processo está sempre em contínua e inacabada construção e desconstrução. Portanto, é na linguagem e através dela que o sujeito se constitui e se posiciona pessoalmente e culturalmente. Requer movimento de centrar-se no seu propósito e descentrar-se para se posicionar. Organizo esta reflexão nas seguintes seções: A queixa escolar, envolvimento do aprendente e a preocupação dos adultos; Escrita e letramento, suas ressonâncias; Possíveis causas das dificuldades de aprendizagem; Considerações.

 

A queixa escolar, envolvimento do aprendente e a preocupação dos adultos

Na experiência clínica percebe-se que a preocupação dos pais e das crianças está voltada para aspectos concretos: decodificação, no caso da leitura, e da grafia correta, no caso da escrita. Além disso, queixam-se de que as crianças não gostam de ler e não querem estudar. Os professores também queixam-se de que as crianças não leem e escrevem mal. Essas queixas/crenças manifestam a preocupação com os aspectos formais da linguagem escrita e com o desinteresse que vem junto. Por que será que essas são as maiores preocupações dos pais e professores?

Dificuldades na decodificação são de fato barreiras a serem consideradas, porém é necessário compreender as possíveis questões envolvidas com essa limitação. A decodificação é "primeira porta" das questões a serem identificadas na constituição do sujeito leitor. Produção de leitura/produção de conhecimento é complexo devido aos vários fatores presentes: a) a construção da necessidade de ler; b) sedução para desencadear desejo de ler; c) disponibilidade para tolerância à frustração diante da opacidade do texto, d) capacidade de espera no processo de compreensão; e) considerar aprender a ler e ler para aprender como componentes articulados; f) desenvolver a capacidade de parafrasear que expressa a competência de apropriação do conhecimento, transformando-o em saber, aqui o desenvolvimento de vocabulário está presente, o qual só acontece no processo leitor.

 

Escrita e letramento, suas ressonâncias

Do ponto de vista sociocultural, na sociedade urbana contemporânea dominar a escrita é condição de autonomia de pensamento, evitando manipulação presente na mídia. Dominar a linguagem escrita é exercitar a cidadania numa sociedade democrática. O cidadão leitor tem condição de escolher melhor seus representantes. O texto escrito favorece distanciamento e tempo para refletir a respeito dos desafios do cotidiano. Leitores mais experientes na relação com textos argumentativos terão maiores condições de argumentar e analisar as questões desafiadoras de seu universo cultural. Tenho considerado que "texto lido é um pré-texto e um pretexto para criar um texto", este, entendido como manifestação da singularidade. Enlaçar-se na Cultura como um leitor atuante na sua formação pessoal cotidiana é um modelo que contribui para a constituição de indivíduos autônomos, críticos e participativos.

O ser humano histórico se diferencia do ser humano a-histórico não só porque a escrita possibilitou-lhe escrever sua história e ter memória, mas também por essa forma diferente de pensar, já que o pensamento feito sobre a palavra escrita permite-lhe trabalhar sobre pensamentos anteriores, corrigi-los e acumulá-los, para que cada nova geração humana possa reelaborá-los (Paín, 1996, p. 5).

Na afirmação de Paín sobre a escrita está implícito que ela permite a nossa continuidade, uma vez que favorece o resgate da história de vida pessoal e coletiva. Está presente também a capacidade para, a partir da leitura, trabalhar sobre pensamentos anteriores e reelaborá-los, transformá-los. Sua afirmação aponta para aspectos macroestruturais, que podem também aplicar-se localmente na produção de um texto.

Para que o texto possa ser compreendido, o escritor deve se remeter constantemente às palavras já escritas (passado) com o objetivo de decidir quais serão as escritas no presente, que simultaneamente determinarão as futuras. Esse movimento demanda a revisão e negociação de sentido do escritor que visa a não somente organizar seu pensamento, mas preocupar-se com seu leitor. Embora nem sempre se tenha consciência desse movimento, é ele que permitirá organizar as frases em unidades significativas. A criança iniciante no processo da escrita só lida com o presente, sem observar o caminho já percorrido e sem antecipar ou projetar-se no futuro. As novas palavras dependerão dessa articulação com as anteriores, bem como com as que virão em seguida. Escrever como experiência traz à criança possibilidades de lidar simultaneamente com passado, presente e futuro, desenvolvendo e expressando através de sua orientação espaço temporal.

Entrar no mundo da escrita permitirá a ampliação de horizontes. Através dela é possível "visitar e conhecer lugares distantes", ou seja, transcender o tempo e o concretamente vivido. A criança pequena que tem acesso às informações de como vivem as crianças em outros países estará também vivendo uma experiência de ampliação do seu campo mental no sentido de que sua visão de mundo não se restringirá às suas experiências pessoais e concretas.

Escrever implica em pensar simultaneamente em si e no outro enquanto interlocutor virtual. Para poder escrever, é necessário certo distanciamento, um estranhamento no sentido de colocar se no lugar do outro que deverá ler o texto. Num encontro presencial entre duas pessoas, estão como mediadores o timbre da voz, os gestos, as expressões faciais, a repetição para obter reciprocidade; na escrita está o sujeito sozinho, sem nenhuma pista para saber, se foi ou não compreendido (feedback). Para escrever, é necessária solitude supondo presença virtual do outro.

Ao ler um texto, é preciso imaginação, colocar-se no lugar do escritor para adivinhar o que esse pretende dizer. Goodman (1997) compara a leitura com um jogo ao afirmar: "a leitura é um grande jogo de adivinhação". A palavra jogo implica em brincar, ser flexível, levantar hipóteses para confirmá-las. Para antecipar o sentido do texto, o leitor deve considerar conhecimentos prévios, suas crenças e suas hipóteses, que são elaboradas a partir da coleta de informações.

Um texto é na verdade um pretexto para a criação de um novo texto. Ou seja, ao ler novas articulações são feitas, levando-se em consideração as ideias e experiências passadas. Esta "visita ao passado" só é possível quando houver um diálogo interno do leitor/escritor. Esse diálogo implica em descentrar-se, colocando-se na perspectiva do outro, dialogar com o outro virtual e dialogar consigo mesmo. Essa possibilidade envolve simultaneamente amadurecimento cognitivo e emocional.

A experiência emocional de vivenciar ambivalência dos sentimentos propicia algum desconforto e às vezes até angústia. Para escrever, é necessário considerar a ambiguidade presente na construção do sentido. Outra fonte de ambiguidade é o fato de ter que estar consigo mesmo, pensando em como expressar suas próprias ideias e simultaneamente considerar outro/leitor. Aceitar as normas da escrita e simultaneamente usar a criatividade também cria um certo constrangimento. O escritor amadurecido e a criança que se inicia na arte de escrever aprendem através da escrita a se descentrar e a tolerar a frustração de ter que reescrever seu texto.

Do ponto de vista afetivo emocional, a escrita também poderá ter um efeito na subjetividade na medida em que através da literatura a criança pode elaborar conflitos intrapsíquicos. Gillig (1999) aponta para a função fantasmagórica do conto infantil afirmando que às vezes os materiais dos contos de fadas são o equivalente dos significados encontrados nos sonhos. Para esse autor, o conto de fadas produz efeitos profiláticos no imaginário da criança. Na experiência clínica e nas experiências educacionais sabe-se dos efeitos dos contos de fada no imaginário das crianças.

A linguagem escrita sendo representação da representação é por isso mesmo bastante complexa. Demanda a consideração de muitos fatores para utilizá-la adequadamente. Os benefícios advindos da aprendizagem e utilização da escrita repercutem tanto no macrossistema de uma sociedade como no desenvolvimento de cada pessoa, propiciando experiências de caráter emocional, cognitivo e social.

A abordagem da linguagem dentro de um contexto mais amplo, isto é, como constitutiva do sujeito e não só como forma de expressão do sujeito coloca o psicopedagogo diante de uma tarefa complexa, pela quantidade de variáveis a serem consideradas. Esse contexto mais amplo permite olhar para as dificuldades de aprendizagem e mais especificamente para as relacionadas com a linguagem escrita de uma forma dinâmica.

Ter o domínio da escrita enquanto conhecimento modifica substancialmente a relação do sujeito da aprendizagem consigo mesmo e com o Outro. Paín (1996) estabelece uma relação entre a constituição do sujeito e o conhecimento no sentido de que existe uma dialética entre conhecimento e sujeito: aquele que pode conhecer estará mais preparado para conduzir seu destino de forma mais independente. Essa posição implica uma posição política, no sentido de que através do conhecimento o ser humano tem mais condições de zelar pela sua autonomia.

O sujeito não é sujeito até que conheça. É sujeito porque conhece, e é sujeito a esse conhecimento... "Permitir à criança apropriar-se de um conhecimento é permitir-lhe fortificar seu ego, na medida em que ela pode se constituir em uma personalidade mais segura, mais dominante e mais responsável" (Paín, 1996, p. 15).

Como é que um sujeito se interessa por conhecer, pelo saber? O interesse pelo saber e pelo conhecimento é desencadeado pela falta (Kupfer, 1999). O conhecimento vem preencher um lugar vazio, o qual se engancha em algo que já existe para poder ser elaborado e reconstruído. O que moverá o sujeito em direção de um determinado conhecimento é a percepção de que é valioso, pois faz brilhar o olho do outro e por isso mesmo é provocativo no sentido de mobilizá-lo a ir em busca daquele conhecimento. O interesse nasce da falta: deseja-se o que o outro deseja e expressa como o objeto o completa.

Para algumas crianças com dificuldades de aprendizagem, as oportunidades de passar pela experiência de serem tocadas pelo brilho dos olhos do outro são limitadas. Para que a criança aprenda, será necessário que seja tocada por aquilo que tenha tocado a sua professora. Será que a professora ou seus pais estão atentos às suas possibilidades de mostrar algo que lhes toca? Quando o conhecimento é transmitido sem vibração, sem investimento amoroso, sem libido, pouca chance terá de ser capturado. Sempre há entre o aprendiz e o objeto de conhecimento um outro com quem se constrói uma identificação e que a partir dela nos introduz os objetos da cultura. O Outro é mediador entre a Cultura e o ser humano.

No trabalho com aperfeiçoamento de professores, tem se observado uma preocupação excessiva com o domínio de certas técnicas e com o pedido de "receitas" eficazes para fazer com que as crianças prestem atenção e aprendam. Nem sempre se tem consciente a ideia de que o aluno presta atenção quando está identificado com o que o professor lhe apresenta. Essa identificação não só depende da manifestação do professor, da sua identificação com o objeto de conhecimento em questão, mas também da "tolerância à frustração" de quem faz a mediação. Como suportar a demora e a lentidão da reciprocidade? Não é simples e não é fácil. A relação deve construir-se num contexto interessante, possivelmente desafiador para ambos: professor e aprendiz.

Considerar a singularidade do sujeito que aprende poderá contribuir para questionar a quantidade significativa de crianças com insucesso escolar, que, apesar de não serem reprovadas, sofrem pela condição de alunos tidos como "medíocres", ou desinteressados. Kupfer (1999, p. 65) lança uma pergunta: "Problemas de aprendizagem ou estilos cognitivos?" Muitas crianças aprendem de forma diferente ou mesmo expressam-se de acordo com sua singularidade, isto nem sempre é compreendido pela escola. Conforme essa mesma autora:

"A entrada em cena do sujeito, determinado por uma história bastante particular, efeito do seu encontro com a linguagem, faz pensar na necessidade de nos debruçarmos sobre a criança, na tentativa de acompanhar com ela seu modo peculiar de aprender ou de não aprender. Falar de modo é falar de estilo". (Kupfer, 1999, p. 72.)

Olhar para um estilo de aprender significa tomar distância da norma padronizada que tende a construir rótulos para identificar aqueles que não se "encaixam nas expectativas" do outro. Kupfer (1999) propõe olhar o sujeito da aprendizagem inserido na Cultura e na sociedade. A repercussão dessa posição implica em compreender o estilo cognitivo como expressão da inserção do sujeito na Cultura através de sua singularidade já que o sujeito é sujeito por ser "assujeitado", isto é, por ter se submetido ao discurso do outro a partir de seu estilo.

Este tipo de leitura permite aceitar um determinado estilo de lidar com o saber, sem que, necessariamente esse estilo esteja sendo visto como uma patologia. Uma criança mais inquieta não significa necessariamente que seja hiperativa; a mais lenta poderia ser mais introspectiva.

Muito embora possamos distinguir as dificuldades de aprendizagem como sintoma das dificuldades reativas, relativas a uma falha no processo educacional, a realidade mostra como é complexa essa distinção, devido mesmo à complexidade da constituição do sujeito da aprendizagem. A Escola representa um entre outros dispositivos que favorecem inserção na Cultura, muito embora a criança, antes de participar da Educação Infantil, ela se insere na Cultura pela ação e relação dos adultos significativos na Família.

Paradoxalmente, aprender, algo que é próprio à espécie humana, pois permite a sobrevivência da espécie, não transcorre naturalmente e espontaneamente. O fracasso escolar é uma das manifestações desses percalços. Infelizmente, na atualidade a dificuldade para aprender é bastante frequente e atinge todas as camadas da sociedade. Os sentimentos de fracasso e às vezes de impotência atingem diretamente o escolar, seus pais, mestres e os governantes.

A dificuldade para aprender na escola provoca sofrimento, podendo também ser a manifestação de um sofrimento independente da escolarização. O êxito escolar ocupa um lugar significativo em nossa sociedade, é condição de ascensão social. Não é simples distinguir claramente as origens dessa dificuldade, se ela é um sintoma ou se a própria escola é o sintoma, pois cada ser humano reage frente a uma situação de forma diferente. No entanto, a partir da ideia de que os adultos são importantes na constituição do sujeito e que esta constituição se dá a partir da relação com o outro, todos são tocados em maior ou menor grau por essa relação.

A própria forma como uma criança é introduzida na linguagem de forma geral pode em parte explicar suas possíveis dificuldades. A linguagem oral é aprendida num clima favorável à criança. Os adultos estão muito disponíveis para entendê-la, acolhê-la. Dificilmente ficam irritados se a criança erra quando fala, até acham graça. Goodman (1997) afirmava que se as crianças precisassem ir à escola para aprender a falar seriam todas gagas. Ele preconiza que o ensino da linguagem escrita deveria ocorrer no mesmo clima natural e acolhedor que ocorre quando se aprende a falar. Quando se trata da aprendizagem da escrita, toda essa disponibilidade parece se evaporar.

Considero fundamental o posicionamento teórico de Condemarin et al. (1992), que assinalavam a importância de pensar a linguagem na modalidade integrada, supondo ir além da proposta de Goodman da linguagem integral que propõe: integração entre: ler, escrever, escutar, falar, mas considerar a necessidade de sistematização. Condemarin et al. assinalam a importância da integração de dois modelos: holístico e modelo de destrezas.

Soares (2018) enfatiza a importância de se considerar a necessidade da aprendizagem sistemática, metódica no processo de letramento, pois não é uma aprendizagem que ocorra espontaneamente.

Apesar das diferentes concepções a respeito da aprendizagem da linguagem escrita, sabemos que ela não ocorre espontaneamente e facilmente para todos. É um bem cultural que demanda aprendizagem formalizada e bem conduzida. Apenas uma parcela muito pequena de crianças aprende sozinha. Feitas essas considerações gerais, é importante refletir sobre as possíveis causas para as dificuldades de aprendizagem a partir da experiência clínica e da experiência na formação continuada com professores.

 

Possíveis causas das dificuldades de aprendizagem

No seu artigo "Condições psicológicas necessárias para a aprendizagem da linguagem escrita", Diatkine (1984), psicanalista francês, se preocupou em denunciar aos educadores a visão distorcida que busca primordialmente os desvios, a patologia nas dificuldades de aprendizagem, especificamente as dificuldades relacionadas com a linguagem escrita. O colóquio sobre dificuldades e fracassos na aprendizagem da língua escrita, realizado em Paris em 1970, tinha como tema: "A dislexia em questão". Diatkine já apontava algumas condições psicológicas necessárias para que a criança aprendesse a ler e a escrever. Considera-se pontos levantados no colóquio fundamentais para aqueles que se identificam com a visão da Psicopedagogia Dinâmica, mesmo passado meio século do Colóquio realizado na França. Esse evento pode ainda ser considerado divisor de águas para compreensão das dificuldades de aprendizagem, contribuindo para a visão dinâmica da Psicopedagogia.

Diatkine denunciou o erro científico que se faz ao comparar o resultado das crianças bem-sucedidas com aquelas que fracassam. Justifica que essas aprenderiam em quaisquer circunstâncias, devido ao seu autodidatismo.

A capacidade de simbolizar, isto é, desenvolver a linguagem, está relacionada com certas condições psíquicas relacionadas com a constituição do sujeito que vive a experiência da linguagem como representação. No início da vida o bebê reage de maneira quantitativa frente à possibilidade de poder guardar os estímulos sensoriais auditivos e visuais. Já no segundo semestre essa diferença se transforma em qualitativa. Se no início o bebê reage negativamente frente à ausência da mãe, agora quando consegue distinguir a mãe da não mãe supõe-se que faça uma representação mental do objeto ausente.

A capacidade de representar o objeto amado ausente e de odiá-lo por sua ausência constitui uma das contradições fundamentais da vida psíquica. A representação pode provocar a aparição de um afeto depressivo ou ansioso ou de uma espera gozosa. Numa segunda fase o jogo das representações permite ao sujeito suportar a ausência real do objeto. A passagem das representações iniciais para as representações de representações é fundamental. O papel das imagens e da linguagem é essencial nessas transposições.

É preciso que a criança seja educada num ambiente onde ouça uma linguagem elaborada por parte das pessoas com as quais deseje se identificar. Identificar-se não é simples para a criança que começa a falar. A ambivalência da inversão das imagens parentais e a prevalência de pulsões parciais são um obstáculo à identificação. Somente os processos de identificação permitem à criança encontrar soluções transitórias úteis para suas contradições.

A atitude dos pais é fundamental no processo de identificação, seja quando permitem tais identificações ou quando as impedem mediante atitudes agressivas. Quando isso ocorre, a verbalização deixa de ser o processo defensivo mais eficaz para organizar o sistema pré-consciente da criança. A criança que ouve gritos dos pais vive experiências em que o adulto atua seus impulsos através das palavras. Essa criança poderá lidar com menos habilidade com a argumentação.

A produção da linguagem e a sua recepção se converte em objeto de prazer quando ela consegue distinguir o símbolo do simbolizado no domínio de seus temores, percebendo que a palavra não é jamais a coisa. Algumas crianças pré-escolares apresentam curiosidade metalinguística, o que é um indício e um prognóstico favorável à sua adaptação escolar futura.

Uma criança que tenha sido educada por pais não perturbados demais mentalmente e que não vivam em condições materiais limitadas que os impeçam ter tempo para se dedicar a seus filhos por prazer, poderá elaborar de forma satisfatória o prazer edipiano. Lidará satisfatoriamente com a ambivalência com relação às imagens dos pais, não projetando na professora a imagem da mãe maldosa, podendo se relacionar sem grande angústia com aquela.

O desenvolvimento da linguagem interior permitirá participar de experiência coletiva, como instruções para o grupo, como se fosse uma instrução individual. Essa linguagem interior é que dá à criança autonomia para poder tomar decisões de forma independente.

Os aspectos apontados por Diatkine (1984) que relacionam linguagem com a possibilidade de simbolização são decorrentes do processo de identificação com os adultos significativos. Está presente também a condição do bebê de poder internalizar a mãe. Freud (1920/2006), no episódio do "for da" exemplifica a relação da mãe com o bebê no jogo do carretel. Quando o bebê joga e pode recuperar o carretel estaria ensaiando a possibilidade de viver a experiência de separação da mãe. Paín (1996) lembra que a experiência de separação não é exclusiva do bebê, pois a mãe também deve aprender a separar-se dele. Essa mesma autora mostra que o jogo da presença/ausência é de caráter universal, pois é possível encontrá-lo em várias culturas.

Podemos observar outras condições psíquicas necessárias para que uma criança aprenda com menos sofrimento e maior tranquilidade o desafio da escolarização.

 

Curiosidade é fundamental para aprender

Curiosidade e inquietação pelo saber são compreendidas sob a ótica da Psicanálise como instinto de saber ou de investigar. Este conceito é desenvolvido por Freud no texto "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade" (1905/2002), quando se refere à sexualidade infantil. Esta pulsão não se encontra entre os instintos elementares e nem tampouco é exclusivamente subordinada à sexualidade, ela está mais relacionada com a possibilidade de sublimação. Algumas crianças são espontaneamente mais "perguntadoras" e argumentadoras do que as outras. Possivelmente, teriam tido experiências precoces de exploração do ambiente e teriam sido valorizadas justamente por isso.

 

É preciso saber estar só para aprender satisfatoriamente

Algumas crianças e adolescentes requisitam mais a atenção e os cuidados dos adultos que outras, pedem a ajuda constante dos pais para estudar e fazer os deveres, o que poderia ser explicado por uma decorrência de falha do superego relacionada com falha na superação do complexo de Édipo, tendo um funcionamento psíquico menos amadurecido. Essas crianças e adolescentes precisam sempre ser "pilotadas" para fazer suas lições. Diatkine (1984) levanta a hipótese de que o desenvolvimento psíquico está vinculado à capacidade de estar só, capacidade que só se adquire na presença de alguém: a mãe ou um substituto materno. Essa capacidade relaciona-se com a condição de conservar em seu interior os objetos internalizados para dessa forma poder viver a presença na ausência. Esse mesmo autor lembra a posição de Winnicott (1975) sobre a capacidade de estar só diante da mãe, a qual sugere a presença tranquilizadora e distanciada da mãe para que possam desenvolver-se esses jogos psíquicos que asseguram a autonomia.

 

A capacidade de ficar atento exige renúncia

A capacidade de ficar atento exige renúncia, isto é, deixar de lado outras solicitações, seja do mundo externo ou interno. É necessário um recolhimento, estar só consigo mesmo. Para isso, a "maturidade emocional" é necessária, entendida como a capacidade de poder investir narcisicamente no objeto de conhecimento. Implicaria também em poder lidar com o princípio da realidade. Para estar atento, é necessária a renúncia, no sentido de deixar de fora algo que possa estar chamando a atenção no plano inconsciente ou consciente. A distração afeta a capacidade de construir a representação estável do mundo, o que poderia ocasionar menos possibilidade de integração da personalidade, carência de integração de conceito de si mesmo, na representação de objetos e uma falta de adaptação do afeto e a impulsividade (Kernberg, 1980).

 

A estética está presente em toda manifestação humana

Exemplos do cotidiano: ao arrumar um prato de comida, fazer um pacote, encapar um caderno, ordenar um texto no caderno, arrumar objetos pessoais. Para que ato se torne estético, é necessário o contato visual que permita ver o todo e as partes para então perceber a harmonia entre elas. O contato visual fugaz dificulta a experiência estética, pois é necessário um movimento pendular: olhar e afastar-se para ver de novo, e a partir deste ver de novo reorganizar no sentido de torná-lo mais harmônico. Algumas crianças mais inquietas e impacientes não conseguem ter este olhar pendular: agem indiscriminadamente sem considerar a articulação entre as partes, o que faz com que em suas produções a estética não seja algo a ser incluído. Alguns estudantes investem com cuidado e carinho em seus trabalhos escolares e outros apresentam produções nas quais estética e ordem estão ausentes. O carinho e o cuidado são também manifestações de investimento narcísico no objeto do conhecimento. Nem sempre a sujeira ao redor incomoda, passando despercebida para algumas crianças, seus objetos pessoais estão sempre em desordem e são pouco cuidados.

 

Sonhar alto através de "espírito olímpico"

Sonhar alto através de "espírito olímpico" significa querer superar-se, para vencer. Alguns pré-adolescentes e adolescentes não têm ideais mais altos, aspirações, utopias. Tem-se a impressão de que estão muito indiferentes frente ao seu papel de aprendizes. Para eles, o êxito ou o fracasso são indiferentes. Aparentemente, algumas crianças não se incomodam com esta situação, "aceitando" ficar na marginalidade. A escola é algo análogo à função do trabalho para o adulto. Trabalhar permite a sobrevivência, além de tornar a pessoa digna de respeito para ser reconhecida no grupo. A criança que está à margem de seus pares está fadada à desvalorização e à marginalização. Kernberg (1980) aponta a necessidade de desenvolver um novo ideal de ego como fundamental para a aquisição de novas estratégias cognitivas e novas condutas de ações, fantasias e linguagem.

 

Possíveis efeitos da expectativa normatizada

Se aprender a ler e escrever não é uma experiência simples, ela poderá se tornar mais complexa também pela expectativa dos adultos. Quando crianças são comparadas a partir da "norma padrão", isto é, as crianças que vieram à escola apenas para aperfeiçoamento, o risco de fracasso inicial é significativo. O fracasso inicial no aprendizado da escrita geralmente marca e define a carreira do estudante.

Existem expectativas dos professores sobre o que é normal para uma faixa etária e o temor dos adultos frente a uma possível patologia da linguagem: dislexia, disortografia, disgrafia. Temos presenciado com frequência a preocupação de profissionais da área da educação com a patologia da aprendizagem, quando a criança troca letras; tem dificuldade na leitura e na escrita de textos; para resolver problemas ou mesmo ficar atenta. Quando as coisas vão mal na escola, a primeira coisa que se pergunta é qual é a limitação da criança, dificilmente buscam-se outras possíveis causas, ou mesmo onde essas crianças têm seus pontos fortes.

A expectativa do que é normal e a preocupação com a prevenção da patologia da aprendizagem às vezes funcionam como "nevoeiro", dificultando ou mesmo impedindo a visão. Continuando a metáfora de que o nevoeiro funciona como uma barreira que atrapalha a visão tanto do professor como da criança. O professor, a partir da expectativa de balizar-se pela norma padronizada, deixa de ver a singularidade do sujeito da aprendizagem, ao desconsiderar o estilo cognitivo da criança, tentando compreendê-lo em contexto. A criança que é balizada pela norma é vista sempre na sua limitação, provocando nela uma percepção de si mesma como limitada: vê nos olhos do outro o seu fracasso. Dirigir num nevoeiro é bastante arriscado. Embora não me identifique com a ideia de prevenção de problemas de aprendizagem, há que se considerar que é fundamental pensar nos riscos e na repercussão da adoção de uma política educacional fundamentada apenas em "normas e padrões" pré-estabelecidos, desconsiderando a singularidade do aprendiz em contexto.

 

A falta do "currículo oculto"

Outra explicação para as diferenças das crianças diante do aprendizado da escrita refere-se ao preparo anterior, o "currículo oculto", um currículo conjunto de conteúdos aprendidos em vários e diferentes espaços, que servirão para a construção de valores, normas e crenças transmitidas em diferentes ambientes sociais vivida pelas crianças fora da escolarização com os adultos significativos. Trata-se de um saber não acadêmico que propicia experiências mais ricas na relação com o ambiente. Esse currículo foi construído em parceria: crianças curiosas demandam adultos mediadores, disponíveis e enriquecedores de um saber significativo que sustentará o aprendizado escolar.

Há que se distinguir duas categorias de alunos no período da alfabetização: as crianças que vão à escola para se aperfeiçoarem, pois já adquiriram com os pais noções elementares básicas que a escola desenvolverá nessa etapa, e as crianças que precisam de estimulação para aquisição de noções básicas. As que sabem ler e escrever são "autodidatas". Outras vão para aprender o básico (Diatkine,1984). Entre as crianças que vão para aperfeiçoamento e as que vão para aprender o básico existe uma distância muito grande. Infelizmente, as expectativas dos professores levam em consideração os resultados daquelas que vão à escola para se "aperfeiçoar". Provavelmente, uma boa parte das dificuldades esteja vinculada a esta "visão míope" dos educadores, que desconsidera a história social e cultural da criança.

 

Dificuldades específicas no domínio da linguagem

As instruções verbais nem sempre são facilmente compreendidas pelos alunos. Esta situação poderá causar um sentimento de baixa estima devido à experiência de "não estar por dentro". É bom lembrar que a linguagem é uma grande fonte de mal-entendidos, devido a sua opacidade, não é "transparente". Faz-se necessário negociar os sentidos para chegar a um consenso. Essa ideia nem sempre está presente na mente dos envolvidos: o mestre pensa que explicou com clareza e o aluno nem sempre está disposto a manifestar que não entende, pois isto pode ser percebido por ele como ameaçador, causador de "perda de face".

Outra hipótese para essa limitação no domínio da linguagem poderia estar relacionada com a dificuldade de se descentrar-se, isto é, poder enxergar o outro na relação. Algumas crianças negam sua dificuldade para compreender o que o outro tem a dizer alegando que o outro não sabe dizer ou a questão está mal formulada. É possível pensar essa atitude como defesa narcísica, entendida como uma negação ou uma posição de superioridade: o outro é que não é claro na sua expressão.

Algumas crianças e adolescentes aparentemente se expressam bem, porém quando solicitadas formalmente a parafrasear, apresentam algumas dificuldades, às quais interferem na capacidade de leitura compreensiva. Kernberg (1980) aponta para as dificuldades na linguagem quando as crianças devem utilizar-se da linguagem dirigida, isto é, quando devem falar de um tema específico. Essas mesmas crianças podem não ter dificuldades na linguagem espontânea.

 

Efeitos de novas tendências educacionais mal aplicadas

Para compreender as dificuldades relacionadas com as condições pedagógicas e didáticas utilizadas pela instituição, caracterizadas por Fernandez (1990) como "problema de aprendizagem reativo", é interessante analisar, mesmo que superficialmente, já que não são objeto desse estudo, algumas tendências educativas atuais.

As novas tendências educacionais preconizam abordagens socioconstrutivistas, em que o professor deve provocar desequilíbrios cognitivos com a finalidade de que o aluno construa suas hipóteses. A interação entre os pares é fomentada pelo professor, que ocupa a posição de gerenciador. Essa tendência demanda pressupostos: a) preparo teórico-prático do professor; b) alunos "perguntadores"; c) professores capazes de orientar e organizar as descobertas.

No contato com professores em formação continuada, tem-se observado que a abordagem socioconstrutivista ainda não está suficientemente assimilada. Nem sempre os professores conseguem entender e identificar o funcionamento do aluno em processo de aprendizagem. Muitos professores foram "convidados" a abandonarem recursos pedagógicos que lhes davam maior segurança para adotarem uma nova didática mais inteligente, criativa e baseada em pressupostos de uma pesquisa científica. Porém, não se construiu ainda com os professores uma prática que lhes permitisse trabalhar com segurança a "nova" abordagem. Essa situação pode estar contribuindo para o fracasso escolar, pois a insegurança do professor gera também insegurança na criança.

As tendências educacionais demandam que professor e aluno se coloquem em posição de pesquisadores: o professor deve pesquisar as hipóteses que seus alunos levantam; o aluno deverá levantar hipóteses a respeito dos desafios que lhe são propostos. O que se percebe é uma situação solta, um "laissez faire", o aluno escreve do jeito que pode, do jeito que quer. Nem sempre o professor está preparado para desencadear outras hipóteses para que o aluno construa o conhecimento que não é espontâneo. Considerando que essa situação seja uma má interpretação da construção do conhecimento, pois a proposta educacional socioconstrutivista bem conduzida certamente contribuirá para que os alunos sejam mais questionadores e criativos.

Quando as convenções e normas da escrita não são adequadamente valorizadas, o aluno terá mais dificuldade para considerar que os aspectos formais da escrita são tão importantes quanto o processo de criação. As repercussões da aplicação inadequada do socioconstrutivismo podem também desencadear tendência ao desrespeito a norma culta. Quando o aluno diz que escreve do seu jeito, alguns professores silenciam-se julgando a intervenção como um impedimento para a construção. O mestre espera que através da interação com os pares mais evoluídos o aluno mudará suas concepções. Ora, nem todas as crianças são permeáveis a essa experiência de troca. Nem todas conseguem imitar seus pares ou aceitar outras hipóteses, nem todas sequer fazem perguntas ou lançam hipóteses.

A hipótese que se pode levantar é de que atitudes radicais de alguns professores que deixam unicamente por conta da criança a construção conceitual decorre de uma fase de implantação de "novas" metodologias e princípios teóricos. Essa atitude de "silenciamento" do professor para valorizar a fala do aluno talvez tenha ocorrido como uma reação à pedagogia tradicional, em que o aluno não tinha voz, quando desde o início deveria apenas imitar o professor para aprender, não tendo espaço para produções escritas não dirigidas.

Vale destacar a experiência com um garoto de 6 anos, que reagia diante do convite que escrevesse a seu modo, do seu jeito. A intencionalidade era observar suas hipóteses a respeito da escrita. Porém, diante dessa proposta ele se posicionou: "quem sabe escrever é você". Esse garoto anunciava: "não estou disponível para inventar um jeito próprio de algo que tem uma fórmula". Essa experiência nos leva a compreender e considerar o sujeito da aprendizagem no processo de apropriação. Nem todos aceitam jogar o jogo da invenção de algo já inventado. Esse episódio é um alerta para aqueles que consideram o ato de levantar hipóteses como condição "universal".

Algumas das consequências da dificuldade do início da escolaridade todos conhecemos: o contingente de crianças que demoram para aprender a ler e escrever, bem como as repercussões negativas no imaginário dos adultos significativos diante da ameaça do fracasso escolar. Esses são os alunos que não conseguem avançar no aprendizado da linguagem escrita, permanecendo na fase inicial, com poucas condições de atingir os níveis de desenvolvimento e aprimoramento. Continuam com dificuldades importantes no decorrer da escolarização. Dificuldades para atingir níveis suficientes para compreensão leitora contribuirão para o fracasso escolar, pois a linguagem é a espinha dorsal da escolarização. Lembrando que outro mal-entendido no processo de alfabetização é a desconsideração da necessidade de sistematizar através de práticas bem conduzidas.

Soares (2018) adverte:

A aprendizagem da escrita não é um processo natural, como aquisição da fala: a fala é um instinto, sendo inata, instintiva, é naturalmente adquirida, bastando para isso que a criança esteja imersa em ambiente que ouve e fala a língua materna. A escrita, ao contrário, é uma invenção cultural, a construção de uma visualização dos sons da fala, não um instinto.... A escrita precisa ser ensinada por meio de métodos que orientem o processo de aprendizagem do ler e do escrever. (Soares, 2018, p. 45)

Para que a criança aprenda a linguagem escrita, é necessário método e simultaneamente apresentar escrita significativa, portanto, é: isto e aquilo.

 

Considerações

A proposta dessa reflexão: "Repercussões sociais/culturais e psíquicas da linguagem escrita na aprendizagem do sujeito" pode favorecer a revisita da experiência profissional à luz de uma base teórica, contribuindo para compreender o processo de aprendizagem da linguagem a partir da visão dinâmica que abarca não apenas os aspectos funcionais, mas sua interlocução com a subjetividade.

Considerar a constituição do sujeito aprendente objetiva compreendê-lo a partir do conceito psicanalítico de identificação. Para que ocorra a identificação, são precisos movimentos tanto do exterior como do interior nos processos de aprendizagem.

Como foi tratado no item relacionado com os objetivos da intervenção psicopedagógica, a principal ação do psicopedagogo não é promover diretamente a adaptação através da melhoria das funções de ego, mas através da intervenção tem-se em vista que o sujeito da aprendizagem assuma sua palavra e encontre seu lugar. Assumir a palavra significa falar em nome próprio, podendo identificar aquilo que lhe diz respeito, que o representa. Encontrar o seu lugar significa poder desempenhar diferentes papéis que lhe são oferecidos e demandados com autonomia.

Acredita-se que a escrita ocupa uma função primordial como ferramenta a ser utilizada para que o sujeito da aprendizagem possa organizar seu pensamento e, neste processo constituir-se como sujeito aprendente que se apropria do conhecimento, transformando-o em saber (Rubinstein, 2003). Retomo a fala de Paín (1996, p. 15): "O sujeito não é sujeito até que conheça. É sujeito porque conhece, e é sujeito a esse conhecimento".

A escrita como ferramenta para conhecer, permite conhecer e reconhecer-se, conhecendo e reconhecendo o Outro, a partir de um diálogo interno. Reconhecer-se como autor ocorre a partir da construção de novos significados construídos pela mediação da palavra. A forma de tratar a palavra, no setting psicopedagógico de abordagem dinâmica diferentemente do contexto unicamente pedagógico, poderá ser mais um elemento facilitador de busca da identidade.

Por fim, essa reflexão apresenta uma breve discussão sobre a relação entre aprendizagem da escrita com o processo de identificação e adaptação na formação egóica. Ambas interagem dialogicamente influenciando na constituição do sujeito da aprendizagem através da linguagem.

 

Referências

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Paín, S (1996). Subjetividade e Objetividade: Relação entre Desejo e Conhecimento. CEVEC.         [ Links ]

Rubinstein, E. R. (2003). O estilo de aprendizagem e a queixa escolar: entre o saber e o conhecer. Casa do Psicólogo.         [ Links ]

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Bibliografia consultada

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Dabas, E. (1988). "Aprendizaje, creatividad y contexto social" In E. Dabas (Ed.), Los contextos del aprendizaje. Ediciones Nueva Vision.         [ Links ]

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Nasio, J. D. (1995). Lições sobre os sete conceitos cruciais da psicanálise. Jorge Zahar.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
Edith Rubinstein
Rua Rio Azul, 309
São Paulo, SP, Brasil - CEP 05519-120
E-mail: edithrubinstein@hotmail.com

Artigo recebido: 28/2/2022
Aprovado: 30/10/2022

 

 

Trabalho realizado no Centro de Estudos Seminários de Psicopedagogia, São Paulo, SP, Brasil.
Conflito de interesses: A autora declara não haver.

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