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Journal of Human Growth and Development

Print version ISSN 0104-1282On-line version ISSN 2175-3598

Rev. bras. crescimento desenvolv. hum. vol.15 no.1 São Paulo Apr. 2005

 

PESQUISA ORIGINAL RESEARCH ORIGINAL

 

Cuidar em família: análise da representação social da relação do cuidador familiar com o idoso*

 

Caretaking within the family: Social representation analysis of the relationship between the caretaker and the elderly

 

 

Márcia Maria Porto Rossetto MazzaI; Fernando LefèvreII

IDoutoranda do Departamento de Práticas em Saúde Pública da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo. End: Av Rouxinol, 201, apto 121, São Paulo, Cep: 04516000.Tel com. 30851134. e.mail r.mazza@uol.com.br
IIProf. Tit. do Departamento de Práticas em Saúde Pública da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo. End: Av. Dr. Arnaldo, 725, São Paulo-SP, Cep 01246-904. Tel: 30667718 e.mail flefevre@usp.br

 

 


RESUMO

O estudo se propôs investigar o cotidiano dos cuidadores familiares de idosos com idade a partir de 70 anos e com incapacidade funcional. Particularmente, o objetivo foi compreender o que é para esse cuidador familiar o ato de cuidar e como ele vê esse idoso objeto do cuidado. O universo da pesquisa abrangeu 17 cuidadores familiares de idosos, circunscritos na área de abrangência do Centro de Saúde Escola Geraldo Paula Souza da Faculdade de Saúde Pública da USP, do município de São Paulo, e participantes do "Projeto Capacidade," intitulado Programa de Assistência ao Idoso no Domicílio, fundamentado num Sistema de Vigilância à Incapacidade Funcional e Dependência. A metodologia de pesquisa utilizada foi a qualitativa e a estratégia metodológica para análise das entrevistas foi a do Discurso do Sujeito Coletivo (DSC). Diferentes representações sociais foram extraídas dos discursos desses cuidadores familiares. Podemos salientar que cuidadores do presente estudo cuidam de seus idosos com respeito e dignidade embora sintam-se, muitas vezes, desencorajados pelo desgaste e pelas dificuldades que, cotidianamente, têm de enfrentar no seu trabalho, sem a ajuda e respaldo necessários, solitários e desprovidos de atenção.

Palavras-chaves: Cuidador familiar. Idoso. Família. Envelhecimento.


ABSTRACT

The study aimed at investigating the daily routine of family caretakers who attend on elderly individuals aged 70 and over that are functionally incapable. More specifically, the objective was to understand what caretaking means for the caretaker and how he depicts the elderly under his care. The population encompassed 17 elderly family caretakers within the catchment area of the Centro de Saúde Escola (Health Center and School) Geraldo Paula Souza, of the School of Public Health - University of São Paulo, who participate in the "Capacidade" (Capacity) Project (Elderly Home Care Program, grounded on a Functional Incapability and Dependence Surveillance System). A cohort methodology was used and the Collective Subject Discourse was the strategy used for interview analysis. Different social representations were drawn from the discourse of these family caretakers. It can be pointed out that the caretakers in the present study look after their elders with respect and dignity, although they frequently feel discouraged by the weariness and difficulties they have to face in their work on a daily basis, without the help or support needed. They also feel lonely and lacking attention.

Key words: Family caretakers. Elderly. Family. Aging.


 

 

INTRODUÇÃO

A preocupação com a velhice e com o envelhecimento é tão antiga quanto a civilização. É do conhecimento dos estudiosos que, com o passar dos anos, há um aumento da mortalidade em conseqüência do aumento das doenças associadas ao fenômeno. À medida que a idade avança, ocorrem alterações estruturais e funcionais nos indivíduos, que são próprias do processo de envelhecimento normal, mas que podem variar de acordo com as características individuais de cada um1 .

Para se trabalhar com o envelhecimento, o enfoque deve necessariamente ser holístico, fato reforçado por Salas2 (1994), que refere: "A promoção da saúde e a atenção das enfermidades dos idosos deve levar em consideração a natureza biológica, psicológica e sociocultural destes em constante interação com o ambiente extensivo ao tempo e ao espaço." (p.330).

Segundo estudos epidemiológicos da população brasileira idosa3, a problemática do idoso no Brasil apresenta-se como um desafio para a Saúde Pública, que está a exigir uma ação imediata no sentido de diminuir as desigualdades, tanto sociais quanto de saúde, nos diferentes estratos dessa população, proporcionando um amparo adequado do sistema público e previdenciário.

A promoção da saúde na velhice - que engloba programas com enfoques multifacetados em que o autocuidado, a integração social, a atividade física, o controle de hábitos nocivos à saúde, a utilização do tempo livre e a prevenção de incapacidades são fundamentos que estão compreendidos nos princípios da saúde para todos, da Organização Mundial da Saúde - é agregar vida aos anos e não agregar anos à vida4.

Os programas de prevenção pautam-se em medidas de diminuição dos efeitos das enfermidades que na maioria das vezes são crônicas, na intervenção rápida para deter o processo da enfermidade, na investigação para a detecção precoce e nas medidas para minimizar os efeitos destas enfermidades, preservando assim a independência e a autonomia.

A filosofia básica para o atendimento aos idosos é a manutenção de sua autonomia e independência o maior tempo possível, proporcionando a este grupo vulnerável a possibilidade de sua inserção no sistema de saúde que não seja o pronto-socorro de hospitais de primeira linha, mas sim a Unidade Básica de Saúde, devidamente equipada e com pessoal treinado para fazer frente à problemática multiforme do idoso5 .

É urgente também a mudança do comportamento atual, centrado nos cuidados especializados realizados em instituições, baseado no fato de que, para podermos atender a massa da população mais idosa, são necessárias medidas que visem proporcionar condições de manter estes idosos, o maior tempo possível, em seus lares e ter a família como sustentação, para a manutenção tanto física como social deste grupo fragilizado.

De fato, uma das estratégias da Promoção de Saúde para o atendimento aos idosos é a assistência no domicílio, onde o objetivo maior é a permanência do mesmo no seu habitat e a preservação de sua autonomia e independência, proporcionando, deste modo, uma melhor qualidade de vida e bem-estar desta população.

Ao estudarmos o envelhecimento, a abordagem familiar é de fundamental importância para compreender como o fenômeno acontece e influencia este grupo específico.

Como sugerem Leme e Silva6, "efetivamente é de se desejar que aqueles que se interessam pelo estudo do envelhecimento e de suas causas e conseqüências possam aprofundar-se no estudo da família, habitat da pessoa humana, para um melhor conhecimento do idoso como um todo pessoal." (p.96)

Pelzer e Fernandes7 ressaltam: "A família é a esfera íntima da existência que une por laços consangüíneos ou por afetividades os seres humanos. Como unidade básica de relacionamentos é a fonte primária de suporte social, onde se almeja uma atmosfera afetiva comum, de aquisição de competência e de interação entre seus membros" (p.340).

É na família que o idoso tem o seu mais efetivo meio de sustentação e pertencimento, em que o apoio afetivo e de saúde se faz necessário e pertinente. Quando a família está impossibilitada de prestar assistência, o idoso fica exposto a situações de morbidade significativa sob vários aspectos tanto físicos como psíquicos ou sociais6.

Por isso, ao caracterizarmos o idoso saudável, o idoso doente e ou com incapacidade, é imprescindível que conheçamos a sua situação familiar, isto é, como se estabelecem as relações intrafamiliares e como é esta dinâmica de sustentação e de amparo ao idoso.

As recomendações da OPS8 colocam que ... "como a atenção dispensada pela família é o elemento básico do cuidado às pessoas de idade cuja saúde é frágil, os governos se verão obrigados a formular programas de respaldo às famílias em sua função de prestadoras de cuidados"(p.61).

No Brasil, o idoso e sua família podem ser vistos como mais um segmento excluído da sociedade, em especial o idoso dependente, pobre e sem recursos, tanto no âmbito da saúde como no das políticas sociais.

Nesse sentido, a atenção ao idoso está intimamente relacionada à presença do cuidador, ou melhor, da pessoa que, no espaço privado doméstico, realiza ou ajuda o idoso a realizar suas atividades de vida diária e atividades instrumentais de vida diária, com o objetivo da preservação de sua autonomia e de sua independência.

O perfil do cuidador familiar brasileiro não difere muito do perfil do cuidador de outros países. Geralmente, o cuidado é exercido pelos cônjuges e pelos filhos, particularmente as filhas, geralmente na faixa etária de 45 a 50 anos, sendo solteiras, casadas ou viúvas e geralmente já estão aposentadas. O comum é o cuidador familiar desempenhar suas atividades sozinho sem a ajuda de ninguém. É chamado de cuidador primário porque tem a responsabilidade total do cuidado9.

Neste cenário, a díade idoso-cuidador familiar configura-se como importante, pois só se conhece o cuidador quando nos inserimos em seu universo de vida e de cuidados.

Para os profissionais de saúde, cuidar do idoso implica promover a sua saúde segundo os critérios do paradigma adotado e não se centrar apenas na cura da doença. A meta, portanto, é reduzir os riscos previsíveis e possibilitar uma vida mais saudável aos idosos.

 

OBJETIVO

1. investigar o cotidiano dos cuidadores familiares de uma categoria de idosos;

2. investigar o que é, para esse cuidador familiar, o ato de cuidar, e como ele vê esse idoso objeto do cuidado.

 

MÉTODO

O objeto do estudo em questão foi o cuidador familiar, detentor e promotor do cuidado ao idoso com incapacidade funcional que habitava o mesmo espaço físico, quer dizer, a mesma moradia.

Buscou-se, neste estudo, a partir da realidade social dos cuidadores familiares de idosos, ver o mundo destes cuidadores através de seus próprios olhos.

O trabalho proposto em função de seus objetivos e propósitos implicou na utilização de metodologia de corte qualitativo.

Dentre as técnicas qualitativas, optamos pelo Discurso do Sujeito Coletivo que é uma estratégia metodológica com vistas a tornar mais clara uma dada representação social e o conjunto das representações que conforma um dado imaginário. Através dela podemos compreender de uma forma mais viva e direta o modo como os indivíduos reais e concretos pensam10.

A pesquisa abrangeu 17 cuidadores familiares de idosos, circunscritos na área de abrangência do Centro de Saúde Escola Geraldo Paula Souza da Faculdade de Saúde Pública da USP, do município de São Paulo, e participantes do "Projeto Capacidade," intitulado Programa de Assistência ao Idoso no Domicílio, fundamentado num Sistema de Vigilância à Incapacidade Funcional e Dependência.

Este N (=17) foi definido segundo os seguintes critérios de inclusão/exclusão:

Quanto ao idoso:

Idade a partir de 70 anos; ser portador de uma ou mais incapacidades funcionais (definida pelo Projeto Capacidade); possuir cuidador familiar; não morar só.

Dos portadores de incapacidades, segundo critérios adotados, foram excluídos:

portadores de mal de Alzheimer; portadores de mal de Parkinson; idosos que apresentaram episódio de AVC com prejuízo da cognição.

Quanto ao cuidador:

Ter relação de parentesco com o idoso: esposa, filhos, nora, genro, sobrinhos, irmãos, netos; morar com o idoso e ser responsável pelo seu cuidado; atender integralmente o idoso em suas necessidades de saúde.

Para a coleta de dados foi utilizado o instrumental "entrevista aberta semi-estruturada e individual"11.

Para a obtenção definitiva do Roteiro de Entrevista foi realizado um pré-teste com quatro cuidadores familiares que pertenciam ao universo dos 68 idosos visitados pela pesquisadora e que obedeciam aos critérios de inclusão/exclusão referidos anteriormente. Estes cuidadores foram: uma esposa e três filhas. A escolha destes cuidadores deveu-se ao maior número de filhas e esposas dentro do universo pesquisado, o que confirma a literatura sobre o assunto.

O pré-teste consistiu na realização de entrevistas abertas e gravadas com o objetivo de deixar estes cuidadores discorrendo livremente sobre sua experiência de cuidar de um idoso familiar e, a partir disto, compreender o significado que atribuíam ao seu ato de cuidar. As entrevistas foram realizadas no domicílio destes cuidadores e, posteriormente, transcritas pelo pesquisador.

Dos discursos obtidos e analisados, foi possível construir o Roteiro de Entrevistas que, após sofrer transformações e ajustes, foi pré-testado em um cuidador, obtendo desta forma finalmente um roteiro satisfatório.

A versão definitiva do Roteiro de Entrevista foi constituída de dados de identificação dos sujeitos entrevistados e de seis perguntas semi-estruturadas.

Os dados de identificação dos sujeitos tiveram o objetivo de definir o perfil do cuidador familiar do idoso, neste estudo.

As perguntas norteadoras foram elaboradas no intuito de identificar as representações sociais destes cuidadores familiares sobre o seu cotidiano de cuidados e sobre o seu ato de cuidar do idoso familiar.

Com o roteiro de entrevistas definitivo, as entrevistas foram realizadas no ambiente domiciliar destes cuidadores, porquanto era o local onde o cuidado acontecia e os relacionamentos se exacerbavam, tendo como objetivo também evitar constrangimentos, facilitar a oportunidade de entrevista e proporcionar um maior entrosamento entre pesquisador e pesquisado não dando margem, deste modo, a um viés indesejado.

Os depoimentos foram gravados em fita magnética, e tiveram a duração em média de 30 minutos.

A realização de todas as entrevistas transcorreu de forma harmônica e acolhedora, tanto por parte do pesquisador quanto dos pesquisados, apresentando, muitas vezes, um clima de emoção de ambas as partes graças ao estabelecimento de uma relação de confiança.

A coleta de dados teve a duração de três meses, com o total de 17 entrevistas.

A obtenção dos resultados foi possível por meio de perguntas norteadoras que tiveram como intuito identificar as representações sociais destes cuidadores familiares sobre seu cotidiano de cuidados e sobre o seu ato de cuidar do idoso familiar.

Escolhemos, para ilustrar o presente artigo, as questões:

1: Você gosta de cuidar do(a)...? Fale um pouco sobre os seus sentimentos;

2: Você acha que sabe cuidar do(a).....? e

5: O que você acharia de colocar o(a)... numa instituição do tipo asilo, casa de repouso?

... que correspondiam respectivamente aos enfoques afetivo, cognitivo e social.

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Diferentes representações sociais foram extraídas dos discursos desses cuidadores familiares. Nessa linha, os sentimentos (questão 1) que levaram esses cuidadores a se comprometerem com o cuidado ao idoso foram: preocupação de algo errado acontecer com o idoso; retribuição ao que recebeu na infância; possuir laços familiares com o idoso; desgaste e sobrecarga do cuidado; dever e obrigação; inversão de papéis na relação mãe-filho; ambivalência de sentimentos; cuidado como devoção; entre outros.

Para esses cuidadores, existem dois tipos de cuidados (questão 2): um técnico, em que o conhecimento, a obtenção de informação e o suporte e respaldo médico são necessários para o seu cotidiano de cuidado; e um saber leigo, em que o cuidado é o resultado da boa vontade, intuição, é saber desempenhar as Atividades de Vida Diária e também favorecer a independência e dar suporte ao idoso.

As representações extraídas dos discursos quanto à possibilidade do asilamento dos idosos (questão 5) foram: a família cuida melhor, pois ela impede que o idoso fique deprimido; a família lança mão da institucionalização quando não possui um familiar para cuidar do idoso, e quando o idoso está muito dependente necessitando de cuidados especiais; a institucionalização é entendida como maléfica, pois provocaria a morte do idoso não sendo aceita nem pelo idoso nem pelo cuidador.

Das três questões analisadas, obtivemos 28 representações sociais sobre o cuidado exercido pelos cuidadores: 13 representações referentes ao enfoque afetivo, 7 referentes ao enfoque cognitivo e 8 referente ao enfoque social.

Apresentaremos aqui três Discursos do Sujeito Coletivo (DSC). Cada um dos DSC será mostrado com números em sobrescrito, com a intenção de indicar a procedência da fala, ou seja, com que depoimentos o DSC foi constituído.

O primeiro discurso refere-se à questão 1, tendo como Idéia Central: O cuidado como retribuição do que recebeu

Discurso do Sujeito Coletivo

Gosto, (3) é um prazer (4) porque eu sendo filha e fui criada, ela cuidou de mim e não é porque é minha mãe que agora eu vou deixar ela de lado (3). Eu tenho um orgulho muito grande de minha mãe: ela sacrificou a vida dela, ela sacrificou tudo, tudo, e eu acho que o que eu fizer por ela eu estou fazendo muito pouco. Ela amou, toda mãe tem um amor por seus filhos, mas tem pessoas que têm alguma coisa a mais, e ela tem muito mais do que isso, então para mim eu acho que estou fazendo muito pouco; tudo o que eu puder fazer e estiver ao meu alcance eu vou fazer sempre. Isso faz parte da minha vida, a mãe da gente.(4) Ela tem os filhos dela, mas ela gosta de ser cuidada por mim, porque ela acha que eu sou a filha mais carinhosa, que mais dedica a ela, e tudo o que eu faço é em favor a ela; eu sou a única filha que consegue fazer uma lavagem, tenho cuidado, aquele carinho para fazer.(3) Os outros filhos moram aqui do lado mas nenhum vem saber se ela esta bem se não está, se ela quer um copo de água, uma xícara de chá, então eu que tenho que cuidar, eu que faço tudo (3 . Então é um retorno que eu dou porque quem não ama a mãe para mim não é nada (17); além de dar o melhor para ela, eu tou devolvendo um pouquinho da atenção que ela me deu quando eu era bebê. (17) Ela cuidou de mim praticamente a vida inteira, agora é a minha vez, tenho que fazer isso (8). É uma obrigação que eu tenho prazer em fazer, sem problema nenhum, eu vou fazer isso sempre. (4)

O discurso desta categoria foi construído com depoimentos somente de filhos, sendo duas filhas e dois filhos. Podemos observar que é um discurso carregado de um misto de obrigação e de retribuição da dedicação, do amor, dos cuidados prestados, do sacrifício que a mãe fez. O cuidado é visto como um retorno, como um fato normal, como uma conseqüência do que se recebeu.

O Cuidado como Retribuição do recebido na infância é o sentimento que aparece em muitas pesquisas feitas com cuidadores familiares de idosos12-17. O fato de terem sido alvo de cuidados no passado, exercido pelos pais, é fator determinante para que este cuidador se comprometa para o cuidado, no presente, ou em um futuro próximo.

Silva15 abordou este tema, em seu estudo, ao indicar que "as filhas em geral sentem que é preciso demonstrar às mães, mediante seus cuidados, que são gratas pelo que receberam no passado, e que nada mais justo do que assumirem os encargos daquelas que são incapacitadas, até para mostrarem essa gratidão e retribuir os benefícios recebidos" (p.158).

O segundo discurso refere-se à Questão 2: Idéia Central: O Cuidado visto como leigo

Discurso do Sujeito Coletivo

"Eu sei cuidar da minha maneira(3): eu dou banho(3,6,10), a roupa sempre limpa(5,6), a alimentação na hora certa(3,5,6,10),porque se passa do meio-dia ela já começa a falar. Na parte da tarde a janta é mais ou menos seis, seis e meia. Não dou mais nada depois da janta porque gente de idade não pode ficar comendo muito(10). Eu cuido dos pés dela(10), corto as unhas(10,13) corto as sobrancelhas(13), dou os remédios na hora certa(10), então tudo o que eu vejo que tem que fazer eu faço cuidadosamente e com carinho, não sou agressiva (13), dou principalmente o carinho(3,10,13). Se ela tem alguma dor eu procuro logo amenizar com remédio, com massagem, com o que for preciso(14). Nunca chega ao ponto dela pedir as coisas ou pedir para eu olhar no relógio a hora dos remédios(14), o banho se tivesse que dar eu dou(15). Para cuidar de uma pessoa precisa deixar ela sempre limpa(5,7). É a mesma coisa que uma criança, você não deixa o seu filho sujo, não é verdade?(7). Eu faço questão que ela ande, que troque de roupa sempre(5) e que os outros vejam que está bem cuidada, que não está como aquelas senhoras sem ter cuidados(7).

Eu acho então que tudo depende da boa vontade(15), a gente não é perfeita, eu cuido o melhor possível mas a gente nunca sabe profundamente(16). A vida e a vivência ensinam você a fazer tudo pela parte mais prática(14,15) e mais certa(15), mesmo que você não tenha feito nem um curso. Você vai fazer aquilo correto; poderá errar em alguma coisa, mas no fim você vai acertar(15). Eu cuido da melhor forma possível, respeito a idade, faço a vontade deles, faço se sentirem úteis porque é importante o idoso se sentir útil, ele não fica marginalizado na casa em que está; porque se você deixa ele num canto, não participando de nada, ele vai se sentir um estorno.

Mas eu acho que eles devem e podem se cuidar sozinhos, não fico paparicando, eu dou suporte pois não deixo-os sozinhos, deixo assim sozinhos se for uma saída rápida.... Então eu dou atenção sem ficar submissa a eles, eu ponho os meus limites e sempre falo os teus direitos, teus privilégios terminam na hora que vocês começam a avançar nos meus(9). Então, dentro do possível eu acho que estou correspondendo com ela, estou apta a tratar dela, tenho muita força(14), tenho capacidade(15) para tratar dela(14). Acho que com um pouco de sabedoria e experiência que tenho estou resolvendo e cumprindo com minha obrigação(14).

Como já mencionado anteriormente, para estes cuidadores existem dois tipos de cuidados: um técnico e um leigo.

Ao analisarmos estas representações, verificamos que o cuidado quando visto como leigo é permeado de cuidados essenciais para a manutenção da vida do idoso, somado à disponibilidade, à boa vontade, à prática cotidiana do cuidado, ao respeito à pessoa humana, em que o suporte e a independência ao idoso são valorizados sem haver espaço para a submissão de ambas as partes. O cuidado leigo é o cuidado do "dia-a-dia", como caracterizam com muita propriedade os cuidadores.

Marques13 também acredita que os cuidadores "são pessoas que se dispõem a desenvolver ações de cuidado para o outro visando suprir suas necessidades sem, no entanto, possuírem conhecimentos técnicos e científicos para isso, utilizando-se somente do senso comum e da solidariedade"(p. 156).

O terceiro discurso refere-se à questão 5 e tem como Idéia Central:A institucionalização é a solução para os idosos que não tem respaldo familiar e de um cuidador

Discurso do Sujeito Coletivo

"A não ser que eu não tivesse ninguém no mundo, se não tivesse filhos nem netos(2) , se não tivesse condições para cuidar(5,6,11), se ficasse sozinho com ela(15), nesse caso teria que ser tratada(11). Então depende muito da situação da família, porque se tem um único filho ou filha que trabalha e a pessoa vai ficar sozinha, é preferível estar numa casa de repouso pelo fato de ter pessoas da mesma idade conversando(4,9), ter medicamento na hora certa, ter um espaçozinho para andar. Dentro de casa a pessoa não tem com quem falar, o dia todo fica assim encucada, é ruim(4). Uma pessoa de idade precisa ter alguém que tenha uma dedicação, um cuidado, que esteja ali mais ou menos próximo para estar toda hora atento, porque se você deixar ela não come, não toma remédio(4), se cai um tombo precisa de uma emergência e ter quem socorra(9.),,então é complicado(4). Eu converso sempre com ela, vamos supor que eu morra primeiro, você tem que ir para um asilo porque suas noras têm o serviço delas, têm os filhos, seus filhos trabalham, o cotidiano de todo mundo(11). Então eu acho que tudo depende da situação da família: para uma pessoa de idade ficar sozinha o dia inteiro é preferível estar numa casa de repouso do que estar com a família(9)."

O discurso desta categoria foi construído com depoimentos de diferentes cuidadores, sendo eles: dois filhos, três irmãs, um genro e uma nora.

Neste discurso, podemos observar que a institucionalização é pensada como uma solução interessante para as famílias que, pela sua própria dinâmica, não dispõem de uma pessoa para cuidar do idoso. O fato de todos os membros da família trabalharem fora, de não ter uma pessoa responsável para o cuidado, de o idoso permanecer sozinho o dia inteiro em casa o expõe a sérios riscos prejudicando sua vida. Podemos observar também que esta situação está se tornando uma realidade comum nos dias atuais, transformando a dinâmica familiar e, desta forma, favorecendo o asilamento. Fica explícito, neste discurso, que a manutenção do idoso no seio familiar está intimamente relacionada com a presença constante e atuante de uma pessoa responsável por ele, sem isto fica impossível mantê-lo em sua casa.

Com o atual quadro econômico e social em que as exigências de sobrevivência são urgentes, as filhas, esposas, enfim, os potenciais cuidadores ingressam no mercado de trabalho, criando uma situação de impossibilidade de manter o idoso junto à família, porque ficaria sozinho e sem a assistência necessária.

Este discurso ilustra o que determinam Leme e Silva6 quanto à síndrome de insuficiência familiar: "Com a progressiva diminuição do tamanho das famílias, gerando a síndrome do filho único, seus membros ficam impossibilitados de prestar assistência necessária a seus idosos ... pois necessitam trabalhar, não podendo dar atenção em tempo integral que o caso exige (p.96)."

Reforçando estas considerações de autores e cuidadores, podemos apontar o que Silva18 retrata sobre o assunto: "...parece que os relacionamentos positivos entre pais e filhos se desenvolvem melhor nas famílias onde a atenção parental e as demandas são compartilhadas entre mais filhos ... o tamanho da família pode vir a ser um preditor importante da avaliação do nível de cuidados individuais para o idoso no futuro (p.77)."

Isto posto, gostaríamos de salientar que a riqueza destes depoimentos só foi possível de ser alcançada através das visitas domiciliares, no ambiente natural, ou seja, no domicilio desses cuidadores, onde as representações e os significados associados ao ser cuidador de idosos fragilizados emergiu de uma forma intensa e permeada de sentimentos.

Concordamos com Karsch19 quando reflete: "Conhecer esta figura oculta aos olhos da sociedade e com ela estabelecer uma parceria deveria ser o passo mais seguro para prestar assistência à saúde nos domicílios"(p.14), "locus onde o cuidado acontece sem quase nenhuma orientação que a situação de dependência exige"(p.13).

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O envelhecimento populacional brasileiro é uma realidade que se apresenta concreta e crescente, fazendo com que o estabelecimento de medidas governamentais de assistência social e de saúde se façam urgentes, para propiciar a manutenção da família enquanto unidade essencial provedora de cuidados ao idoso, seja ele autônomo e independente ou com pequenas fragilidades e dependente.

Em sendo a família a maior fonte de apoio para todos os seus integrantes, seja qual for a sua idade, é de fundamental importância o estabelecimento destas medidas.

As políticas públicas, em nosso país, ainda são excludentes e marginalizam as camadas mais pobres e carentes de nossa sociedade, onde os idosos se incluem.

Os idosos são dependentes destas políticas públicas na medida em, que ao permanecerem com suas famílias, necessitam de ajuda de seus membros e, desta forma, faz-se necessária a facilitação de estratégias de auxílio para estes familiares para que possam ter condições de prestar os cuidados que o idoso necessita.

Sem o devido respaldo, esses familiares, por incapacidade de prestar assistência, deixam de assistir os idosos de uma forma digna, obrigando-se a lançar mão da institucionalização.

Os "Discursos do Sujeito Coletivo" obtidos neste estudo nos fazem pensar que cuidar de outra pessoa implica olharmos além de nós mesmos, penetrarmos no mundo do outro, enxergá-los como seres únicos e detentores de qualidades e defeitos que suportaremos e superaremos no árduo trabalho cotidiano de auto-conhecimento e conhecimento do outro, para juntos construirmos uma nova relação a partir de conhecimentos prévios e preconceitos enraizados.

Os cuidadores do presente estudo cuidam de seus idosos com respeito, dignidade, embora sintam-se, muitas vezes, desencorajados pelo desgaste e pelas dificuldades que cotidianamente têm de enfrentar no seu trabalho, sem ajuda e respaldo, solitários e desprovidos de toda atenção.

O fato de estarem circunscritos e serem atendidos em uma Unidade Básica de Saúde, no caso o Centro de Saúde, mostra que estes cuidadores não possuem a estrutura adequada de respaldo de que necessitam, precisando na maioria das vezes lançar mão de recursos próprios para a assistência a seus familiares dependentes.

A necessidade de intensificação de esforços no sentido de amparar estas famílias na extensão de serviços do tipo: atenção domiciliar às famílias, suporte médico e de equipe multiprofissional de amparo tanto aos idosos como a seus cuidadores, sistema efetivo de referência e contra-referência às instâncias mais especializadas, como a realização de exames e a retaguarda hospitalar, quando necessária, são, a nosso ver, um começo para ajudar esses cuidadores a diminuir o stress a que estão submetidos.

 

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Recebido em 12/08/2004
Modificado em 11/02/2005
Aprovado em 12/02/2005

 

 

* Baseado na Dissertação de Mestrado apresentada ao Departamento de Práticas em Saúde Pública da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo em dezembro de 2002 para obtenção do título de Mestre em Saúde Pública sob orientação do Prof. Tit. Fernando Lefèvre.
Ver item Metodologia:Critérios de Inclusão/Exclusão.

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