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Journal of Human Growth and Development

versão impressa ISSN 0104-1282versão On-line ISSN 2175-3598

Rev. bras. crescimento desenvolv. hum. v.15 n.2 São Paulo ago. 2005

 

RELATO DE EXPERIÊNCIAEXPERIENCE REPORT

 

O estranho e o fantástico: uma intervenção terapêutica em um caso de adoção

 

The stranger and the fantastic: a therapeutical intervention in a case of adoption

 

 

Caroline Abreu Góis

Psicóloga, pós-graduação latu senso-especialização em Psicologia Conjugal e Familiar pela Faculdade Ruy Barbosa, Salvador, Bahia. carolgois@zipmail.com.br

 

 


RESUMO

O presente artigo tem como objetivo abordar o tema da adoção a partir da ilustração de um caso clínico e de perspectivas teórico - práticas utilizadas para a condução e encerramento do atendimento. Para lidar com o desafio de se deflagrar o segredo da adoção para uma criança, a técnica utilizada foi a ludoterapia, tendo como instrumentos os brinquedos, os jogos e as narrativas, fundamentado na Teoria Sistêmica. O artigo discute o significado da adoção para o adotando e sua família.

Palavras-chave: Adoção. Segredo. Família. Ludoterapia.


ABSTRACT

The present article aims to approach the theme of adoption based on the illustration of a clinical case and on theoretical-practical perspectives used to conduct and finalize the care process. To deal with the challenge of triggering the secret of adoption to a child, the technique that was used was ludotherapy (play therapy), having toys, games and narratives as instruments, supported by Systemic Theory. The article discusses the meaning of adoption for the adopted child and for the family.

Key words: Adoption. Secret. Family. Ludotherapy.


 

 

A literatura - ficção, romance, policial ou suspense -, propicia o encontro do leitor com o estranho e o desconhecido, mas também com o fantástico e com o inusitado na medida em que tende a desvendar, progressivamente, segredos escondidos ao longo da história. Um segredo ou um mistério, portanto, sugerem algo estranho mas também fantástico.

O processo de revelação de uma adoção pode ser lido nessa perspectiva. Contudo, o que o adotando e sua família relêem são as suas próprias histórias marcadas, muitas vezes, por segredos desconhecidos quanto à origem dos pais biológicos, da genética, e da construção das identidades familiares. Revelar uma adoção para uma criança implica deparar com a surpresa, assim como o desenrolar de uma leitura. É a leitura da vida, resignificada e reconstruída, através da busca do passado a fim de uma melhor compreensão do presente.

Filhos Adotados: (Re) significando a Constituição Familiar

A experiência da adoção

Maldonado1 divide os aspectos psicológicos de uma gestação em três fases: o primeiro trimestre (até os três meses) é o período da surpresa, das expectativas que são criadas em torno da criança gerada, da própria gestação e do futuro. Neste trimestre, geralmente surgem as perguntas: Será que o bebê vai se desenvolver normalmente? Será que ele não tem nenhum defeito? Como vai ser minha vida daqui para frente? Como vou educar essa criança? Será que vou ser uma boa mãe? Devo levar essa gravidez adiante?...

O segundo trimestre (até os seis meses) é o período de adaptação da mãe à gravidez. Neste momento, a gestante começa a traçar planos para o futuro e a ter um contato mais íntimo com o bebê (aprende a conhecer os seus movimentos, por exemplo). A última fase, a qual compreende o terceiro trimestre, é o período da consolidação do vínculo mãe - bebê, no qual a mãe se sente responsável pela sobrevivência, educação e formação de seu filho.

A elaboração e a vivência destes três períodos proporcionam a formação de uma nova constituição familiar, agora, sendo composta pela inserção de um bebê. Contudo não somente a experiência de uma gestação ocasiona num novo sistema familiar. A decisão de adotar uma criança implica também na vivência destas três fases, ou seja, no surgimento de expectativas quanto à escolha da criança (cor, origem, condições de saúde e etc.), quanto à capacidade de se criar, educar e principalmente de ser mãe; perspectivas futuras são dimensionadas, mesmo com relação ao comportamento da criança ser influenciado por fatores genéticos. Há, também, tal como numa gravidez, o período de adaptação e, por conseguinte, o fortalecimento do vínculo mãe - filho. Ademais, para os pais adotivos, todo esse questionamento quanto à origem da criança, geralmente, serve para despertar o tipo de angústia e dúvidas que ocorrem durante uma gestação.

Maldonado1 descreve o momento de crise que uma gestante passa quando ocorre um aborto espontâneo. Por se tratar de uma perda, podendo ter implicações psicológicas sérias (depressão, por exemplo), a autora defende que uma nova gestação, provavelmente, vem acompanhada de sentimentos compensatórios, tais como: "essa gravidez compensa todo o sofrimento e a dor da perda anterior" ou "ela irá preencher a minha vida, recuperando a alegria e o equilíbrio" ("todo mal agora será pequeno"). A escolha por adoção, após a ocorrência de aborto seguido da incapacidade de se gerar filhos, pode abarcar estes sentimentos. O resultado pode ser a constituição de um sistema familiar "disfuncional", onde a criança por ter muito poder, tomando decisões não condizentes com seu papel e sua idade.

Sendo assim, a autoridade parental* permanece subjugada pelas escolhas e atitudes da criança, a qual se "encarrega" de assumir as decisões referentes à sua própria vida. Uma pesquisa de Groza (apud2), realizada com famílias que possuem filhos adotivos devido ao fato de um dos pais ter dificuldades de reprodução, relatou que 60% dessas crianças tinham problemas em aceitar regras e limites, já que o histórico da educação dada pelos pais demonstrou uma inabilidade dos mesmos em impor restrições. O estudo concluiu que essa inabilidade decorre da idéia de que esse filho compensa o sofrimento anterior, resultante das tentativas fracassadas de se ter um filho por meios naturais.

Apresentação do Caso Clínico

O caso clínico esteve vinculado ao atendimento familiar, uma prática do estágio em Terapia Sistêmica, no Serviço de Psicologia da Faculdade Ruy Barbosa. A família em questão era composta pela mãe - Soraia - e pelo seu único filho - Diogo**, com 9 anos de idade. A demanda por terapia parte da mãe, cujo pedido principal foi uma ajuda, um suporte para revelar ao seu filho que o mesmo era adotado. Os atendimentos somaram 12 sessões, realizadas no período entre fevereiro e setembro de 2003, sendo efetuados por duas terapeutas, ambas observadas por uma equipe terapêutica. A mãe esteve presente em todos os atendimentos.

A terapia baseada nos fundamentos sistêmicos se define por uma proposta de tratamento na qual o indivíduo é visto como parte de sistemas múltiplos que se influenciam mutuamente3 e que funcionam de acordo com o contexto sócio-cultural.

Evolução do Caso

Para que a demanda fosse atendida e a adoção revelada a Diogo, inicialmente, foi necessário que as terapeutas e a equipe terapêutica fortalecessem Soraia, já que a mesma afirmava não se sentir segura e confiante o suficiente para contar ao filho a sua verdadeira história. Receava que ele pudesse abandoná-la quando soubesse a sua condição de adotando, devido à cliente já trazer um sentimento de rejeição e de não pertencimento quanto à sua família de origem. Esta a considerava uma pessoa desajustada e propensa, a qualquer momento, de perder o equilíbrio.

A família, de acordo com o relato da cliente, possuía esta crença devido a algumas situações vividas por Soraia: primeiro a cliente passou por três abortos e pela conseqüente notícia de que não mais poderia ter filhos. A partir desse episódio, começou a apresentar sintomas de depressão, cujo tratamento durou por quase dois anos. Neste período, a cliente passou a responsabilizar o marido pelos abortos, atribuindo a causa dos mesmos a um tipo de medicação que este usava (não foi especificada). Este foi o motivo pelo qual seu casamento acabou. Porém, seu casamento sempre foi marcado por discussões, conflitos e por mentiras - o ex-marido fazia uso de medicamento, sem informar a ela - contradizendo tudo que a cliente esperava de um relacionamento. Por conta destes acontecimentos, a família começou a tratá-la como uma pessoa doente e fracassada.

Com o intuito de retomar a sua vida, dando-lhe um sentido, além de satisfazer o seu desejo de exercer a maternidade, Soraia decidiu adotar uma criança. Para tanto, solicitou ao ex- marido que este se comprometesse a registrar o bebê a fim de facilitar o andamento do processo de adoção. A família da cliente, inicialmente, não concordou com a adoção por acreditar que Soraia não teria condições psicológicas para assumir os cuidados que uma criança demanda (segundo a cliente). Entretanto, após a adoção, a família se dispôs a colaborar nesses cuidados, sendo Diogo atualmente o neto mais próximo dos avós.

Ademais, Soraia relatou a pouca disposição do ex-marido em participar da revelação da adoção - objetivo terapêutico - , o que, por sua vez, poderia ser mais um reflexo de sua postura ausente como pai, tendo constituído uma nova família. Dessa forma, as intervenções realizadas visaram: primeiramente, o fortalecimento de Soraia e a aproximação dela e de Diogo ao tema da adoção e de seus significados, para, posteriormente, a cliente revelar a adoção ao seu filho. O pedido e os objetivos terapêuticos foram cumpridos com sucesso.

Suposições norteadoras da condução psicoterapêutica

A partir dos relatos da cliente, foram construídas as seguintes hipóteses:

· Soraia idealizou etapas de sua vida (casamento, maternidade, o exercício da paternidade do ex esposo...), sem incluir o outro. Dessa forma, quando suas expectativas não eram realizadas, ela se frustava e deprimia.

· Soraia desejava que o ex-marido não se comprometesse com a revelação da adoção, pois queria assegurar ser a única provedora de apoio e amor para seu filho (assim ele só a teria como suporte, não podendo recorrer ao pai), garantindo, desse modo, que Diogo não a abandonasse, além de seu reconhecimento. Logo, ao afastar o pai de Diogo desse momento, Soraia confirmava a funcionalidade de sua maternidade, sua função de mãe devota e dedicada.

· Soraia tentava compensar a falta de reconhecimento da família de origem com a constante busca do mesmo no exercício da maternidade.

· Ao revelar a adoção, Soraia receiava que Diogo não se sentisse acolhido na família, tal como ela própria e que, por conta disso, a abandonasse.

· Soraia depositava na função materna a responsabilidade de sua felicidade e satisfação pessoal, pois na condição parental e conjugal ela não obtivera isso.

· Ao se caracterizar como uma mãe dedicada, Soraia mostrava à família de origem o seu valor e, através do exercício desse papel, procurava ser por ela reconhecida; se não fora como filha, que fosse como mãe.

A intervenção terapêutica

O papel do lúdico por meio dos brinquedo, dos jogos e das narrativas foi fundamental para a eficácia das intervenções realizadas. Num primeiro momento, após o fortalecimento de Soraia, considerada a pessoa mais apropriada para contar à Diogo acerca de sua adoção, foi construída uma carta em conjunto pela equipe terapêutica e pela cliente. Nesta carta, foi mostrada a história de Diogo, de sua chegada à vida de Soraia. Esse recurso narrativo é muito utilizado por alguns terapeutas individuais e de família, os quais têm se voltado ao construtivismo e à narrativa como um modo de compreender o self e de auxiliar um processo terapêutico4.

A construção da narrativa da adoção se caracteriza como um instrumento poderoso, na medida em que possibilita que os adotados, numa participação conjunta com o terapeuta, reconstruam suas histórias e identidades familiares, a partir de uma compreensão a respeito de suas origens, ainda que os pais biológicos sejam desconhecidos.

Primeira Intervenção

Leitura da carta, que apresentava também ilustrações:

Diogo, convidamos você a ouvir uma história (ilustração - uma porta entreaberta). Uma história nova e diferente, mas muito especial! (ilustração - uma cartola de mágico). A história de alguém que chegou em primeiro lugar no coração dos pais (ilustração - um homem chegando em 1º lugar numa corrida).

Di, quando você me pergunta sobre a história de sua vida, me vem à cabeça que todas as crianças são como sementes que florescem para trazer felicidade à vida de suas famílias.

Meu jardim não tinha flores: vivia triste na minha casa, sem ter com quem conversar, brincar, sorrir, contar histórias e vivia pedindo à papai do céu para me ajudar a mudar essa situação de tanta solidão.

Então, resolvi pedir ajuda à dinda Lu para encontrar uma sementinha tão especial para ser a primeira flor do meu jardim. Foi aí que você apareceu, trazendo alegria, amor e felicidade para minha vida.

Dinda Lu te encontrou numa creche lá em Itabuna, e você com seu sorriso especial se destacou dentre tantas outras crianças. Logo, senti que você seria o meu filhinho do coração.

Agora você já está com 8 anos e percebe algumas diferenças: "eu sou preto, você é amarela; por que eu cresci tanto?" E por tudo isso tive a certeza que chegou a hora de dividir este segredo com você.

Agora você já imagina que é o filho que eu escolhi para dar alegria à minha vida. Resolveremos, portanto, juntos o que fazer com este nosso segredo.

Segunda intervenção

Os atendimentos posteriores à construção da carta tiveram como objetivo mostrar à Diogo dois tipos de constituição familiar: uma família, cujo filho decorre de uma gestação, e uma outra família, cujo filho é adotado em uma creche (tal como Diogo). Sendo assim, foram contadas duas histórias fictícias que narravam o nascimento de Danilo (fruto de uma gestação) e a adoção de Gabriel por parte de uma família, cuja mãe não podia engravidar (como no caso de Soraia). As histórias tinham o intuito de que Diogo se projetasse nelas e, consequentemente, se identificasse com aquela que fosse mais parecida com a sua própria história - inclusive, os dois nomes dos personagens principais foram escolhidos de modo a se assemelharem sonoramente ao nome não fictício da criança.

No decorrer das narrativas, Diogo se mostrou bastante interessado no que escutava, participando a todo momento por meio de inúmeras perguntas dirigidas às terapeutas acerca da origem de cada personagem: "Como é que Danilo come na barriga da mãe?"; "Por que a mãe de Gabriel não teve ele pela barriga?"; "Como é que o bebê fica na barriga da mãe?" etc.

As terapeutas respondiam às perguntas e explicavam cada idéia presente nas histórias, por exemplo: foram explicadas as etapas de uma gestação e a sua fase final (parto), o motivo da escolha por adoção, os motivos que as mães possuíam por desejar ter um filho, além de ter sido destacado o sentimento que cada família sente pelo seu filho: ambas amam suas respectivas crianças, independente da forma como eles nasceram.

Num segundo momento, foi mostrada à Diogo a representação das famílias dos personagens através de bonecos, de uma casa, identificada como um lar, e de um jogo de xadrez, cujo conjunto de peças representavam duas famílias distintas (indicadas pelas cores branca e preta), sendo uma delas caracterizada pela adoção de uma peça. As terapeutas discorriam acerca das implicações das duas famílias, procurando destacar para o cliente o fato de que ambas amavam seus filhos, independente destes serem ou não adotados. Após essa intervenção, Soraia revelou o segredo da adoção à Diogo.

 

DISCUSSÃO

A história dessa família pode ser articulada com a explanação teórica de Maldonado1, visto que o discurso de Soraia corresponde a vivência das três fases de uma gestação - ela contou dos enjôos e da ansiedade que sentiu, das expectativas que criou a respeito da criança e das dúvidas que surgiram a respeito da maternidade -, incluindo o período de adaptação e consolidação do vínculo mãe - filho. Ressalta-se que a opção por adoção foi realizada após Soraia ter sofrido três abortos e ter entrado em crise, na qual se instalou uma depressão grave.

Para Maldonado1, posteriormente à crise, pode ocorrer, numa nova gestação ou na adoção, a eclosão de sentimentos compensatórios, os quais propiciam a constituição de um sistema familiar, caracterizado pela inversão da hierarquia parental. Ou seja, a criança se constitui como principal mandatária das regras e leis que orientam a dinâmica familiar. Isto foi observado na narrativa de Soraia quando esta explicita que a adoção de Diogo compensou todo o tormento anterior ("ele é a razão da minha vida") e que o exercício da maternidade lhe assegurava a manutenção de seu equilíbrio. Como resultado, Diogo foi instituído de muito poder, e a autoridade era exercida de baixo para cima (do filho para a mãe), sendo as decisões tomadas de acordo com o seu desejo. Como exemplo, Soraia não desenvolvia um relacionamento afetivo com outros homens por seu filho achar que ela não precisava ("Diogo é o homem da casa").

Um outro efeito da disfuncionalidade desse sistema familiar estava na dificuldade de Soraia impor limites ao filho ("ele faz tudo que quer"), o que, por sua vez, pode ser reforçado pelo fato dele ser adotado, servindo como justificativa para o estabelecimento de uma maior proteção. Soraia permitia que seu filho tomasse "as rédeas" a fim de "garantir" a sua proximidade, "impedindo" o seu afastamento.

Tal hipótese emergiu do relato de Soraia, em que foi observado grande insegurança a respeito do exercício de sua maternidade, especialmente no instante em que o segredo da adoção fosse exposto. Entretanto, possivelmente o comportamento de Soraia perante o filho (insegurança e ansiedade), seria uma continuação e reflexo do modo como ela se posicionava e agia no mundo.

Entendendo a adoção sob a perspectiva do seu significado para a família

Quando uma família ou uma pessoa opta pela adoção, geralmente o motivo é a impossibilidade de gerar filhos por meios naturais. Logo, houve um histórico antecedente de sofrimento e sentimentos de fracasso, o que pode desencadear a criação de diversas expectativas relacionadas à criança e à nova possibilidade de ser mãe e pai.

A família, agora, recebe um membro que já traz sua própria história, caracterizada pelo abandono e pelas crenças que circundam os fatores genéticos a respeito de sua possível influência no comportamento da criança. Tudo colabora para produzir ansiedade nos pais que se preparam para absorver o novo significado que a adoção promove.

Desse modo, a família ou indivíduo que decide adotar uma criança, amplia as suas possibilidades de ação no mundo e no devir. Ela deixa de ser somente formada pelo casal e passa a se responsabilizar pelos cuidados e pela formação de uma criança. Além disso, o fato desta ser escolhida devido a um fracasso na reprodução propicia que os pais (re signifiquem o que para eles é ser pai e mãe, o que eles esperavam e sonhavam, as expectativas que tinham antes de saberem que não mais podiam ter um filho natural5.

Por meio de seu discurso, percebeu-se que Soraia sonhara e esperara engravidar e ser mãe, assim que casada. Entretanto, as expectativas acerca do casamento e da maternidade não se concretizaram e fracassaram, na medida em que ela se separou do marido e sofreu três abortos. A cliente, então, acreditava que tivesse perdido algo por não ter engravidado, sentindo-se incompetente como mulher. Dessa forma, a adoção permitiu que Soraia (re) narrasse a sua história, resultando na construção de um novo sentido para sua vida. Adotar Diogo significou recuperar a si mesma, dar um limite às idealizações e um "fim" à sua "loucura", além de propiciar que refazer seus objetivos e encontrar, no papel de mãe, as "delícias e a dor de ser o que é" (parafraseando uma música de Caetano Veloso).

Santos6 estudou o nível de satisfação que pais adotivos têm em relação aos seus filhos. O resultado revelou que, em comparação com pais biológicos, os que adotam possuem o mesmo grau de proximidade com os filhos. Isto mostrou que as famílias adotivas são tão cooperativas e amigas quanto as famílias biológicas, como também as possibilidades de que ocorram conflitos nas relações familiares são as mesmas. Portanto, o que diferencia essas famílias não é a existência de "laços de sangue", mas a qualidade do vínculo parental estabelecido desde o início. Afinal, será que Soraia investiria mais na função materna se seu filho fosse biológico?

O momento em que o filho sabe que foi adotado

Sabe-se que a adoção é um trabalho para a vida inteira - extremamente recompensador, mas, por vezes, difícil. A situação mais crítica, de certo, é o momento da revelação da adoção, notadamente marcado por angústia e ansiedade. Segundo Brazelton7 as perguntas mais comuns são: Qual a idade ideal para se contar à criança sobre a adoção?; E se ela quiser procurar os pais biológicos?; e Vou perder o amor de meu filho (a)? - inclusive esta questão foi apontada pela cliente. Quanto à criança adotada, essa é uma etapa em que ela se redefinirá na família, (re) construindo a sua história, a sua origem. Portanto, esse é um período de (re) significações não somente para a família, como também para a criança.

Outro ponto importante se refere ao ajustamento dos pais à situação de adoção. Esta situação suscita algumas dúvidas, principalmente com relação ao comportamento futuro da criança. A influência de fatores genéticos, em contraposição aos ambientais, é um dos questionamentos mais relevantes7. Desse modo, para os pais adotivos, há um grau extra de ajuste a ser realizado: o desejo de prever o futuro, tão comum em todos os pais, torna-se ainda maior em pais adotivos, pois os mesmos têm de enfrentar as incógnitas do passado de seu filho, incluindo as experiências intra-uterinas e o que aconteceu durante a sua estada num lar provisório.

Estas questões podem ser vistas no relato de Soraia, quando expressou a curiosidade de saber a respeito do passado de Diogo e que efeitos isto poderia ter sobre sua personalidade: "Será que Diogo sofreu enquanto esteve na creche?" e "Imagino o que ele deve ter passado quando foi deixado no lixo. Será que isso o influenciou de alguma maneira?". Há também o fato de Diogo ser negro o que, num primeiro momento, exigiu da família de Soraia um maior grau de ajustamento (ela afirmou que sua mãe lhe perguntara o porquê dela não ter adotado uma criança branca, de olhos claros, embora hoje não demonstre preconceito para com Diogo). Os pais adotivos têm ainda que se ajustar e se preparar para cumprir o objetivo de comunicar o "segredo" da adoção a seu filho, sem correr o risco de entrar em simetria com a confusão mental e ansiedade da criança. Dessa forma, é imprescindível que os pais estejam fortalecidos e seguros, a fim de poderem oferecer suporte e confiança a seus filhos2.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os filhos adotados e suas famílias têm ensinado muito aos profissionais da adoção e da saúde sobre o significado dos segredos em suas vidas. Eles nos ensinam, continuamente, como é ser um segredo e como é transmiti-lo a alguém que, possivelmente, acredita conhecer e saber acerca de suas origens. O revelar uma adoção implica no desenvolvimento de um novo paradigma, ou seja, na desconstrução de algo que era familiar ao adotando para o (re) narrar dos novos relatos que lhe são outorgados. É a vida que passa a ser orquestrada a partir de novas, diferentes e estranhas sinfonias, as quais irão se harmonizar segundo a criação de outros significados e registros de ação no e para o mundo. Se o terapeuta deseja ser o co-maestro dessa sinfonia, é válido que ele use o lúdico (principalmente se o caso se referir a uma criança), na medida em que este é um recurso que permite explorar o seu potencial criativo, simbólico e sua capacidade de recriar o diálogo com o cliente.

 

REFERÊNCIAS

1. Maldonado MT. Psicologia da gravidez. 16 ed. São Paulo: Saraiva; 2002.        [ Links ]

2. Ballone GB. Criança adotada e de orfanato. Psiquiatria Geral. Psiqweb 2002; 2 (1): 1-8. Disponível em http://www.psiqweb.med.br/ infantil/adoc.htlm Acessado em: 20 de novembro de 2003.        [ Links ]

3. Grandesso M. Sobre a reconstrução do significado. Uma análise epistemológica e hermenêutica da prática clínica. 1 ed. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2000.        [ Links ]

4. Imber-Black E. Os segredos na família e na terapia familiar. 1 ed. Porto Alegre: Artes Médicas; 1994.        [ Links ]

5. D'Andrea A. O casal adotante. In Andolfi M. A crise do casal: uma perspectiva sistêmico - relacio nal. 2 ed. Porto Alegre: Ed. Artmed; 2002. p.232-45.        [ Links ]

6. Santos NF. As possibilidades de satisfação na adoção. Psicologia, Teoria e Pesquisa 1988;.4(2): 102-12.        [ Links ]

7. Brazelton R. Cuidando da família em crise. 6 ed. São Paulo: Nova Brasília; 1996.        [ Links ]

8. Omer H. Autoridade sem violência. O resgate da voz dos pais. 1 ed. Belo Horizonte: ArteSã; 2002.        [ Links ]

 

 

Recebido em 04/04/2005
Modificado em 29/05/2005
Aprovado em 14/06/2005

 

 

* Conceito defendido por Omer8 definido pelas regras, normas, condutas e atitudes assumidas pelos pais frente à educação dos filhos.
** Os nomes citados são fictícios a fim de preservar a identidade dos sujeitos.

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