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Journal of Human Growth and Development

versão impressa ISSN 0104-1282versão On-line ISSN 2175-3598

Rev. bras. crescimento desenvolv. hum. v.16 n.3 São Paulo dez. 2006

 

PESQUISA ORIGINAL RESEARCH ORIGINAL

 

"Uma escola diferente": estudo psicossocial de jovens e seu contexto escolar

 

"A different school": a psychosocial study about youths and their school context

 

 

Kátia MaheirieII; Marcela de Andrade GomesII; Luiza Manoela Boell RovarisIII; Tahiana Pereira BrittesIII; Bianca Louise LemeIII

IProfessora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil (UFSC); e-mail: maheirie@cfh.ufsc.br. Endereço: Rua Rita Lourenço da Silveira, 325 Bairro: Lagoa da Conceição Florianópolis/SC Cep: 88062-060
IIAluna do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFSC
IIIPsicologia da UFSC

 

 


RESUMO

Este estudo se caracteriza por reflexões tecidas a partir de uma prática psicossocial em um contexto escolar de Florianópolis. A escola Sarapiquá foi constituída por um grupo de pais que buscavam uma escola alternativa aos modelos tradicionais existentes na capital de Santa Catarina no início da década de 80. Inicialmente, o trabalho pedagógico voltou-se para o ensino infantil e há cinco anos inaugurou o ensino fundamental II (5ª a 8ª série). Desde então, vem buscando estratégias para aprimorar a proposta político-pedagógica, e suas respectivas práticas, para um melhor atendimento das novas demandas emergidas a partir da inserção do público jovem neste contexto. Neste processo, os profissionais da escola vêm enfrentando desafios, incertezas e reflexões. Ao mesmo tempo em que novos projetos e idéias são elaborados, busca-se também conservar as marcas alternativas, marcando um movimento de permanências e transformações, na identidade do projeto político-pedagógico. Pretende-se investigar quais os sentidos que os jovens da 7ª série atribuem a este espaço, buscando analisar a relação psicossocial entre os sujeitos e o contexto escolar. Ao refletir sobre as formas de subjetivação e objetivação destes jovens em relação ao local onde estudam, pode-se propiciar mediações entre os interesses e motivações dos estudantes e da coordenadoria, participando na construção de sujeitos críticos e de práticas educacionais mais satisfatórias para ambas as partes, sem comprometer a identidade alternativa da escola.

Palavras-chaves: Psicologia Social. Escola alternativa. Jovens.


ABSTRACT

This study is characterized by reflections originated from a psychosocial practice at a school in the city of Florianópolis, state of Santa Catarina. The Sarapiquá school was constituted by a group of parents who were searching for an alternative school in comparison with the traditional models that existed in the capital of the state of Santa Catarina at the beginning of the 1980s. Initially, the pedagogical work focused on pre-elementary education, and five years ago, the school inaugurated the elementary education (5th - 8th grades). Since then, it has been searching for strategies to improve the political-pedagogical proposal and its respective practices, in order to meet the new demands that have emerged with the insertion of the young public in this context. In this process, the school professionals have been facing challenges, uncertainties and reflections. At the same time that new projects and ideas are elaborated, the school tries to preserve its alternative marks, producing a movement of continuity and transformations in the identity of the political-pedagogical project. This piece of research intends to investigate the meanings that the 7th grade youths attribute to that space, aiming to analyze the psychosocial relation between the pupils and the school context. Reflecting on the forms of subjectivation and objectivation of these youths in relation to the place where they study, it is possible to suggest mediations between the interests and motivations of the students and of the coordination, participating in the construction of more satisfactory educational practices for both parts, without jeopardizing the school's alternative identity.

Key-words: Social psychology. Alternative school. Youths.


 

 

INTRODUÇÃO

Este artigo visa refletir sobre uma prática psicossocial realizada em uma escola de Florianópolis a partir de teóricos da psicologia social, e de uma concepção sócio-histórica de sujeito e mundo. O projeto da escola Sarapiquá foi criado por um grupo de pais, em sua maioria, professores universitários e militantes de movimentos de esquerda, que buscavam construir um novo modelo de escola para seus filhos, diferente daqueles oferecidos pelas escolas tradicionais da cidade. A escola foi fundada em 1982 para atender crianças em idade pré-escolar. Diversas discussões, permanências e transformações ocorreram no projeto político-pedagógico e suas respectivas práticas no decorrer dos anos. A partir de 1997 o ensino fundamental foi sendo implantado gradativamente, logo, a escola iniciou as atividades destinadas a um novo público: os jovens. A inserção do ensino fundamental II (5ª a 8ª) trouxe novas reflexões, buscas, incertezas e desafios. Em 2004, a escola percebeu um movimento de descontentamento de alguns estudantes que julgavam a escola demasiadamente infantil. A partir desta queixa, a escola procurou o serviço de psicologia para auxiliar na compreensão dos processos de significação dos jovens com relação a este espaço educacional, a fim de aprimorar a proposta político-pedagógica, o espaço físico e as atividades para melhor atender à demanda juvenil. O trabalho realizado objetivou investigar os sentidos atribuídos dos jovens da 7ªsérie com relação a diversos aspectos constituintes da escola Sarapiquá com o intuito de mediar os interesses, desejos e motivações destes com a diretoria da escola, sem, no entanto, diluir a identidade político-pedagógica da escola.

Fundamentação Teórica

O sujeito, no presente artigo, é concebido a partir de uma base sócio-histórica, portanto, imbricado em uma rede complexa de relações sociais inseridas em um determinado contexto cultural.

A partir da base epistemológica do materialismo histórico e dialético, sob a vertente da Psicologia Histórico-Cultural de L.V. Vygotsky, concebe-se o sujeito como síntese das relações sociais, ou seja, pressupõe-se a gênese social da constituição do sujeito. Isto é, o desenvolvimento humano deixa de ser calcado nas determinações orgânicas e biológicas e passa a ser compreendido segundo suas experiências sociais, históricas e culturais.

Sob esta perspectiva, o sujeito se constitui mediado por relações dialéticas e dinâmicas com os outros e com seu contexto político, econômico, cultural e histórico. Contrariamente à visão dicotômica entre sujeito/sociedade, esta vertente concebe o sujeito produto e produtor de seu contexto social. Portanto, na medida em que o sujeito se constitui a partir de um contexto específico, este também é produzido pelo sujeito. Vygotsky explica esta co-construção entre sujeito e contexto a partir de um conceito chave em seu arcabouço teórico: a mediação semiótica. A linguagem, segundo Vygotsky, é a principal mediadora na constituição dos sujeitos, pois insere o indivíduo em uma rede de significados socialmente produzidos e compartilhados que se estabilizam na história de um determinado contexto. Estes significados socialmente produzidos orientarão os modos de ser, pensar e agir destes sujeitos. Ao discutir a constituição do sujeito e as relações entre atividade humana e linguagem, Smolka e Nogueira1 afirmam que a linguagem "...estrutura e constitui o funcionamento mental, afeta e redimensiona a atividade prática, viabiliza o planejamento, a organização, a regulação- das relações entre as pessoas, das ações de si próprio" (p.85).

Portanto, as funções psíquicas são vistas como internalizações das relações sociais mediadas pela linguagem, que é constituída e constituinte dos sujeitos presentes em um determinado contexto histórico e cultural.

Ao conceber o sujeito como ator social de seu contexto, este não apenas participa na construção destes significados como também na transformação dos mesmos. Vygotsky2 sugere duas esferas da mediação semiótica que constituirão as relações sociais e seus agentes envolvidos: os significados e os sentidos. Enquanto os significados estão relacionados a produções coletivas e a uma maior estabilidade ao longo da história de um grupo, os sentidos estão mais próximos da esfera individual e a uma maior mutabilidade ao longo da história do sujeito. Ao se apropriar de um significado coletivamente partilhado, o sujeito o torna próprio, produzindo um sentido individual, no entanto, não deixando de ser social, já que os processos individuais são construídos a partir de relações sociais mais amplas. De acordo com Vygotsky,

"...o sentido da palavra é a soma de todos os eventos psicológicos evocados em nossa consciência graças à palavra. O significado é só uma dessas zonas do sentido, a mais estável, coerente e precisa."3 (p.333)

Ao contrário do significado, segundo Zanella4, a dimensão do sentido é mais livre e singular, ainda que socialmente produzida, já que os participantes trazem a marca do contexto sócio-histórico em que se inserem e participam ativamente. Os sentidos guiarão o sujeito em suas práticas, nas formas de se relacionar com os outros, com o mundo e consigo mesmo, ou seja, mediarão as formas de objetivação e subjetivação do sujeito na realidade em que vive.

O desenvolvimento da consciência humana, segundo Vygotsky2, é eminentemente cultural e social. Ele critica as principais correntes de sua época que não consideravam o aspecto psicológico da linguagem e dicotomizavam as relações entre pensamento e linguagem.

Ao conceber significado e palavra como independentes, Vygotsky2 sugere que através dos processos de transformações dos significados e dos aspectos psicológicos vinculados a estes, mediados pelos instrumentos simbólicos e físicos, é que o sujeito constitui formas mais complexas do pensamento e da linguagem, construindo e ampliando sua capacidade de reflexão:

"...a lo largo del desarrollo histórico de la lengua varían la estructura del sentido del significado y su natureza psicológica...el significado, partiendo de las formas inferiores y más primitivas de generalización del pensamiento verbal, llega a formas superiores y de máxima complejidad que encuentram su expressión em los conceptos abstractos".2 (p.250).

Portanto, para Vygotsky2, a mediação semiótica é o eixo central da constituição do sujeito, concebida como constituinte e constituída pelo sujeito. Logo, sob esta vertente psicológica, esquiva-se de psicologismos ou sociologismos, permitindo conceber o sujeito como sujeito de sua história individual e coletiva.

A fim de ampliar as contribuições para uma concepção sócio-histórica, é possível trazer a compreensão do filósofo Sartre5 para a análise do processo de fazer-se sujeito. Para este autor, o sujeito se constitui por objetividade (corpo em ação) e subjetividade (relação), em constante construção, sempre em relação a algo ou alguma coisa. O sujeito é um tipo de ser que produz significações, para o mundo e para si mesmo, a partir das relações que estabelece com os outros, com as coisas, com o tempo e consigo mesmo.

Logo, tanto na concepção de Sartre quanto na de Vygotsky, as relações estabelecidas entre as subjetividades e objetividades são fundamentais na análise da constituição do sujeito. Para ambos autores, a presença do outro é que possibilita o sujeito ser reconhecido e se reconhecer, significar e ser significado pelo mundo. Vygotsky salienta a mediação semiótica neste processo, no qual o sujeito produz sentidos a partir de suas relações com os outros e com a rede de significados partilhada pela coletividade, dialeticamente, se constituindo e tornando-se sujeito de seu contexto histórico, cultural e político. Sartre também concebe o sujeito como produtor de significações, subjetivando a realidade e se objetivando nesta, e complementa esta visão de sujeito com o que denominou de "projeto de ser". Sendo assim, encara o sujeito como um ser sócio-histórico, permeado pelo projeto de ser, num movimento constante e dialético de vir a ser. O projeto de ser abarca as relações que o sujeito constrói com os outros, com a realidade e consigo mesmo. Trata-se das relações dialéticas estabelecidas entre a subjetivação da realidade, produzindo novas objetivações, que engendrarão outros processos subjetivos e assim sucessivamente. Portanto, o sujeito se insere em um movimento de transcendência da objetividade, buscando ir além de sua atual condição, em direção à objetivação de projetos em prol de viver em uma nova objetividade subjetivada5.

A transcendência da objetividade, através de escolhas, guiada pelo projeto de ser, constitui as formas do sujeito subjetivar e se objetivar, como descreve França6:

"Se a superação materializa-se pela ação, o sujeito está permanentemente em direção a algo fora de si, mostrando que, dentro do seu campo de possibilidades, ele escolhe. E em cada escolha, o sujeito está presente: em suas contradições, naquilo que recusa, conserva ou transforma. Assim, o projeto de ser é a singularidade se formando, na negação e conservação das condições sociais e históricas do contexto no/através do qual alguém chega a se constituir humano". (p.37).

Ao considerar que o sujeito se particulariza inserido em uma coletividade ao longo de sua trajetória pela cultura, torna interessante questionar no âmbito da psicologia, de que forma os sujeitos vêm se singularizando? Quais os significados veiculados na cultura e os sentidos produzidos pelos sujeitos? De que forma o sujeito vem subjetivando a realidade e se objetivando na mesma? Qual o projeto de ser do sujeito que o movimenta no mundo?

Neste caso prático, cabe perguntar quais os significados produzidos e compartilhados pela e na escola Sarapiquá? Quais os sentidos produzidos por estes jovens com relação à escola? Quais as dimensões envolvidas nesta produção? De que forma eles vêm se apropriando das propostas e práticas da pedagogia alternativa da Sarapiquá? Quais as possíveis transformações e necessárias permanências na proposta político-pedagógica denominada alternativa?

 

MÉTODO E PROCEDIMENTO

A partir destes questionamentos iniciou-se um trabalho psicossocial com a turma da 7ª série do ensino fundamental da escola Sarapiquá, composta por 17 jovens. Primeiramente realizou-se uma reunião com as coordenadoras da escola para ouvir sobre a história, o funcionamento, a estrutura e as propostas deste contexto escolar.

Após este primeiro encontro, a equipe decidiu realizar uma pesquisa exploratória em torno dos significados produzidos pelos jovens acerca de diversas esferas do contexto escolar. Por meio da aplicação de questionários com perguntas abertas, pretendeu-se investigar as opiniões destes jovens sobre os seguintes aspectos: a proposta político-pedagógica; as atividades desenvolvidas neste contexto (curriculares e extra-curriculares); o espaço físico, e a relação com os funcionários e entre os próprios estudantes. Também foi indagado quais as mudanças desejadas pelos estudantes, referentes a estes itens, e como eles as executariam. Esta pesquisa foi elaborada para orientar a segunda etapa do trabalho interventivo, no qual se realizou um grupo focal para cada turma do fundamental II, os quais tiveram duração de aproximadamente duas horas.

Os questionários foram analisados quantitativa e qualitativamente. As fitas dos grupos focais foram transcritas e analisadas segundo os objetivos da investigação. Para a análise qualitativa, utilizou-se a análise de conteúdo temática para aprofundar os discursos produzidos pelos sujeitos.

Este tipo de procedimento de análise é considerado possível e necessário, segundo Franco7, dentro de uma concepção epistemológica crítica e que reconhece o papel ativo do sujeito na produção do conhecimento. Para a autora, a análise de conteúdo não descarta os requisitos da objetividade, estes são utilizados, no entanto, de uma forma diferente dos modelos experimentais do positivismo.

A partir dos discursos veiculados nos questionários e nos grupo focais, construiu-se categorias a posteriori, que possibilitaram a análise de "...indicadores e unidades de sentido que possibilitam ao investigador compreender e analisar o processo de constituição do sujeito, as significações e ressignificações, das suas vivências e do contexto em que está inserido a partir das suas formas de expressão"8 (p.193).

A análise de conteúdo, segundo Navarro e Diaz (apud 8), se caracteriza por um trabalho interpretativo, baseado em uma fundamentação epistemológica, com a finalidade de relacionar as dimensões sintática, semântica e pragmática. Neste trabalho, utiliza-se um tipo de análise de conteúdo, considerada por Gonzáles Rey9, como crítica e contextualizada, pois concebe o sujeito inserido na perspectiva histórico-cultural, ou seja, analisam-se os discursos construídos na relação dialética com o contexto em que foram produzidos.

Após as reflexões das informações coletadas, traçou-se paralelos com as teorias psicossociais e com os pressupostos da pedagogia alternativa da Sarapiquá, construindo sugestões possibilitadoras de transformações nas práticas deste contexto, respondendo algumas perguntas e produzindo outras tantas.

 

DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

"...a gente sempre quer dar o melhor de si": os trabalhos em grupo

Os estudantes subjetivam esta forma de trabalhar como positiva e necessária; no entanto, estão insatisfeitos com a forma que estão conseguindo se objetivar nesta atividade, pois pela falta de tempo, não conseguem produzir os resultados almejados.

Na fala de Érica+ percebe-se que ela gostaria de ter mais tempo para se objetivar no trabalho de uma forma mais comprometida com a qualidade e a estética:

"...a gente não tá reclamando dos trabalhos, que é necessário, é a metodologia, a Sarapiquá adota esta questão do trabalho em grupo, só que, aí fica um monte de trabalho em grupo, não tem como a gente fazer... a gente entrega tudo assim meio às pressas, a estética feia...Fica uma coisa "capengona", sabe, não corresponde ao que a gente quer, entendeu? Dá pra exigir mais, dá pra gente ter um envolvimento bem maior..."(Érica)

Através das falas de Tatiana e Liana, nota-se que a vontade de se objetivar nesta atividade com um alto grau de envolvimento é vista como uma característica desta coletividade constituída pelos estudantes da 7ª série:

"....é que todo nosso grupo quer sempre dar o melhor de si, muitos até falam que a gente extrapola, só que é a gente, a gente é assim, a nossa identidade, a gente sempre quer fazer o melhor trabalho pra ficar perfeito...." (Tatiana)

" É uma questão do nosso grupo isso, os professores sempre pontuam que a gente sempre faz a mais do que foi pedido, a gente sempre quer dar o melhor de si né....só que aí em tão pouco tempo como é que a gente vai fazer isso? Mesmo o básico, nem sempre o básico dá pra preparar, entendeu?" (Liana)

Ao considerar que as formas de pensamento e da linguagem se constituem a partir de relações dialéticas entre o sujeito e os outros presentes no contexto, pode-se dizer que as relações de ensinar e aprender são qualificadas por meio dos trabalhos em grupo. Isto pode ser explicado por propiciar a criação de novas formas de linguagem e de novos processos de significação, assim como os processos psicológicos vinculados a estes, que não seriam possibilitados com o trabalho individual, pois isola o sujeito de diversas relações sociais.

Ao enriquecer as dimensões objetivas (por exemplo, materiais coletados por cada integrante do grupo) e subjetivas (sentidos e práticas de cada sujeito), há maiores possibilidades de diversificar a produção e a transformação de significados e sentidos dos sujeitos envolvidos, possibilitando novas formas de subjetivar a realidade e se objetivar na mesma. O movimento de transcendência da objetividade, como sugere Sartre, é enriquecido pela presença dos outros no contexto. Dessa forma, os estudantes conseguem produzir novas formas de se lançarem no futuro a partir das relações com os colegas de grupo, pois permitem novas formas de significarem as coisas em si e se significarem.

A partir da fala de Tatiana verifica-se o descontentamento quando o trabalho em grupo é fragmentado pelos integrantes devido à falta de tempo:

"...aí tem esse pouco tempo de espaço pra gente fazer este trabalho grande, aí a gente acaba dividindo na equipe... fragmenta o trabalho depois no dia da entrega reúne tudo e aí cada pessoa na verdade tem um conhecimento limitado, não conhece o geral do trabalho. Aí depois tem uma prova sobre isso, como é que a gente vai fazer? Acaba nos prejudicando né?" (Tatiana)

A concepção de ação e atividade é discutida por Zanella10 a partir dos escritos de Leontiév11. A autora ressalta que a apropriação da ação se delineia pela internalização das etapas da atividade em si, ou seja, o sujeito apenas "sabe fazer", contrariamente, ao apropriar-se da atividade no qual o sujeito "compreende e sabe fazer". Isto é, a apropriação da atividade permite o sujeito contemplar o processo como um todo e realizar a leitura das múltiplas relações que extrapolam os limites das ações em si. Ao fragmentar o trabalho entre os integrantes do grupo, o sujeito não consegue abarcar a totalidade desta atividade e apropria-se apenas da ação, dificultando a construção de conhecimentos autônomos e integrados. Nessa forma de apropriação, acaba-se limitando os processos criativos nas formas de subjetivação da temática do trabalho, e nas respectivas formas de se objetivar nas práticas cotidianas, em prol de transcender e transformar a realidade presente. Logo, pode-se dizer que os objetivos presentes na proposta metodológica da Sarapiquá, com relação aos trabalhos em grupo, não estão se concretizando de uma forma satisfatória devido a uma ineficaz distribuição destes trabalhos ao longo do ano letivo.

Logo, nota-se que os trabalhos em grupo são subjetivados enquanto atividades satisfatórias, entretanto, reivindicam uma melhor distribuição ao longo do calendário escolar para que possam se concentrar e se envolver de forma mais integral nestas propostas.

"...aqui temos mais opções": proposta teórico-metodológica propiciadora de diversas formas de subjetivação e objetivação dos estudantes

Um sentido fortemente atribuído à metodologia gira em torno da apreciação de uma metodologia que fornece abertura para os estudantes subjetivar a realidade e se objetivarem na mesma. Citam a existência de espaços para debates como nas Assembléias e nas aulas de Regência, assim como a abertura de diálogo com os professores. Desde a fundação da Sarapiquá, quando ainda era uma associação-escola organizada pelos pais, a proposta teórico-metodológica propõe relações menos hierarquizadas e mais democráticas entre os professores e estudantes. Tal como afirma Bastiani12 em seu livro sobre a história da construção deste espaço educativo:"A forma pretendida para a associação-escola girava em torno da idéia de uma escola na qual as crianças e adultos tivessem liberdade e expressão...e pudessem participar da vida pedagógica, dentro de uma lógica oposta àquela utilizada pelo sistema hegemônico". (p.145).

A proposta pedagógica das pedagogias alternativas, de acordo com Bastiani12, busca propiciar espaços físicos e simbólicos para a participação e expressão dos estudantes.

Através da análise dos questionários, percebe-se que estes pressupostos teóricos são objetivados na prática escolar, e se constituem como um aspecto atraente para os estudantes:

"Eu gosto da proposta pedagógica desta escola, principalmente da relação 'aberta', de poder expressar nossas idéias..."

"Eu gosto bastante da pedagogia da escola, pois eu acho que aqui temos mais opções, um diálogo mais livre e amplo com os professores..."

As relações menos assimétricas entre estudantes e professores, adicionadas pela ênfase em atividades grupais, tornam a mútua constituição das relações de ensinar-aprender mais qualificadas em termos pedagógicos e psicológicos. Segundo Vygotsky2, o pensamento é mais complexo que a linguagem verbal, e este sempre se transforma quando é pronunciado pelo sujeito. Portanto, pode-se dizer que a aprendizagem se constitui fundamentalmente do exercício dialógico, da transformação do pensamento na linguagem, que é objetivada aos outros, construindo a capacidade afetiva e reflexiva crítica do sujeito em relação a outros sujeitos e ao mundo.

"...todo pensamiento tiende a unir algo con algo, tiene movimiento, corriente, desarrollo, crea una relación entre algo y algo, cumple una funcin, hace una tarea, resuelve un problema...Las unidades del pensamiento y las unidades de la lenguaje no coinciden. Ambos procesos descubren su unidad, pero no su identidad. Están ligados entre si por complejas transiciones y transformaciones, pero no se confunden uno con otro como dos líneas rectas superpuestas".2 (p. 339).

A proposta político-pedagógica se caracteriza pela priorização das relações sociais, fornecendo espaço, instrumentos e atividades para a criação de múltiplas formas de subjetivação e objetivação dos estudantes, contribuindo na construção dos processos criativos, imaginativos e reflexivos críticos.

"Aqui não precisamos decorar...": uma forma mais crítica de construir o conhecimento.

Outro sentido fortemente enaltecido é a não necessidade de decorar os conteúdos das disciplinas; os estudantes se apropriam desta característica metodológica de forma positiva. Os discursos apontam formas não tradicionais de mediação para a construção do conhecimento, caracterizadas por viagens, saídas de campo, utilização do teatro e da música. Significam estes meios e modos metodológicos, assim como as relações menos assimétricas entre professores e estudantes, enquanto incentivadores e facilitadores nas relações de ensinar e aprender. Segundo a resposta de um estudante ao questionário, este modo de ensino "deixa os alunos opinarem, demonstrando sua opinião, e debatendo sobre o mesmo, assim aprendendo mais fácil e não precisando de "decorebas"(questionário).

A posição ocupada pelo professor, segundo Bastiani12, é uma questão central na contraposição das escolas alternativas às tradicionais. Enquanto que as escolas tradicionais colocavam o professor como o detentor do saber, "... que transmitia conteúdos sem significados para o aluno e que tinha na memorização mecânica e acrítica dos conteúdos pedagógicos o seu principal método de trabalho" (p.51), as escolas alternativas surgem buscando uma forma mais participativa do aluno na construção dos conhecimentos e da escola como um todo: "Pode-se dizer que participar, no sentido de estar dentro da escola formulando-a teoricamente e praticando-a, era uma espécie de pré-requisito para todos aqueles considerados parte constitutiva da comunidade escolar".12 (p.51)

Uma metodologia que exige decorar princípios, fatos, datas, nomes, etc., parte de um conjunto de significados escolhidos a priori como importantes e acabam por serem impostos aos estudantes, constituindo um ensino mais disciplinar e menos relacionado o contexto sócio-cultural específico dos estudantes.

Na escola Sarapiquá, percebe-se que a metodologia se volta para uma maior participação dos estudantes na construção daquilo que é necessário conhecer e aprender. Esta flexibilidade na disciplinarização é apropriada como uma forma mais agradável e eficiente na relação de ensinar e aprender. Torna-se importante ressaltar que não se trata de uma metodologia sem regras e limites, na qual os estudantes escolhem o que bem entendem, ao contrário, a partir de um conteúdo que precisa ser apropriado, é possível propiciar que eles se tornem sujeitos críticos, mediados também pela afetividade, na relação que envolve o ensinar e aprender.

A metodologia da Sarapiquá, caracterizada pela flexibilização dos conteúdos disciplinares, pela maior participação dos alunos na construção do conhecimento, repleto de atividades estéticas calcadas em uma ética, constituída por atividades e espaços para os estudantes objetivarem suas idéias, pensamentos e projetos, está preocupada com a potencialização dos estudantes, transcendendo as barreiras da conscientização. Ao diferenciar o conceito de conscientização e potencialização, Sawaia13 aponta para a importância deste último para a construção de sujeitos que transcendem a realidade e suas pressões sociais. Conscientizar está relacionado com a produção do conhecimento reflexivo e explicativo; contrariamente, potencializar o sujeito abarca as dimensões racional, afetiva e corporal de forma dialética.

"Acho legal estudar em uma escola diferente das tradicionais...": uma escola diferente

Os estudantes se apropriam da Sarapiquá como uma escola diferente e significam as demais escolas como tradicionais. A subjetivação da escola em torno de algo que é diferente, objetivado nas falas e nas respostas dos questionários, mostra-se ser preponderante para a escolha dos estudantes em estudar na Sarapiquá. Algumas das respostas sobre a questão "O que você acha da proposta político-pedagógica da Sarapiquá" exemplificam esta afirmação:"Uma das melhores coisas da escola", "o principal motivo de eu estar aqui", "esse é um dos pontos fortes de nossa escola", "eu gosto desta 'abertura' no diálogo entre os alunos e professores, os conteúdos e a forma como ele é passado", "não é presente em nenhuma outra escola".

O "diferente" é significado em relação a diversos aspectos que constituem a escola: a relação mais simétrica com os professores, o espaço físico e, fundamentalmente, ao aspecto mais atrativo e diferenciador desta escola: as atividades desenvolvidas, tais como as Olimpíadas, viagens de lazer e de estudos, o Sarapirock, o Grêmio Estudantil, as Assembléias...

Estas atividades são consideradas estéticas por romperem com uma tradicional forma de se relacionar com o mundo mediada por processos reflexivos-afetivos, possibilitando ao sujeito criar novas formas de pensar, sentir e agir. Sobre as atividades estéticas, Vygotsky14 (2001) afirma que:

"...pode efetivamente ampliar nossa concepção de algum campo de fenômenos, levar-nos a ver esse campo com novos olhos, a generalizar e unificar fatos amiúde inteiramente dispersos...cria uma atitude muito sensível para os atos posteriores e, evidentemente, nunca passa sem deixar vestígios para o nosso comportamento" (p.342).

O autor ressalta que, por meio da reação estética o sujeito não repete uma situação real, mas a supera e transforma. Ao estudarem em um contexto que utiliza diversas mediações estéticas no cotidiano escolar - tais como a música, teatro, viagens, enfim, experiências e vivências diversas- estes sujeitos são possibilitados a construírem uma posição mais sensível e crítica frente à vida, tendo em vista que as atividades estéticas possibilitam a superação da alienação do cotidiano por atingirem diretamente a dimensão afetiva dos sujeitos envolvidos.

As atividades estéticas no contexto escolar tornam-se importantes na relação que envolve o ensinar e aprender pois estão mais voltadas para a vivência concreta. A dimensão afetiva é de suma importância para este processo, no entanto, é freqüentemente negligenciada nos espaços educacionais. Ainda vive-se os vestígios das escolas de massas, criadas no período de urbanização e industrialização, que se voltam para uma formação racionalista e tecnocrata, excluindo a dimensão afetiva dos processos de aprendizagens.15.

Sawaia13 aponta para o paradigma da estética vivenciado atualmente, que enaltece a afetividade, no entanto, sem uma ética sustentadora, pode ser embebido pela individualidade. Diz ela: "o paradigma estético desmistifica a ordem da razão instrumental, indica a importância dos sentidos na vida social e apresenta o compromisso ético..." (p.23).

As atividades estéticas realizadas na Sarapiquá, que envolvem os processos afetivos, imaginativos e criativos, estão de acordo com o paradigma estético baseado em uma ética emancipatória do sujeito, tal como Sawaia13 propõe: voltada para a esfera individual e coletiva, e não para relações estéticas pautadas em uma ética individualista, tal como é a hegemônica na contemporaneidade.

As interfaces entre uma escola infantil e uma escola diferente:

Pode-se verificar que alguns estudantes produzem significações acerca da Sarapiquá enquanto um espaço educacional voltado para a infância.

"Acho que as crianças aproveitam mais do que a gente...acho que as crianças curtem mais o espaço que a gente...até a 4ª série eu aproveitava, ia pra sala de artes...tipo, aproveitava um monte. Agora pra cá, a gente só fica na sala, vai um pouquinho na rua, mas, a gente não curte de verdade". (Tânia)

Entretanto, outros sujeitos se contrapõem a estas significações e revelam outros sentidos atribuídos à escola, como exemplifica o discurso de Regina:

"Não tenho esta opinião (de achar a escola muito infantil),mas eu acho que não é questão da escola ser mais infantil ou não, acho que só então o pessoal tá querendo o padrão, como outras escolas entendeu, de ser prédio, de ter um monte de gente assim, escadas, colégio bem grande, mais tradicional, sei lá, não dá pra falar que escola é daquele jeito né, então eu não concordo com esta opinião..." (Regina)

Esta aluna relaciona os sentidos produzidos pelos colegas, acerca de uma escola voltada para crianças, com o interesse destes sujeitos em transformar a Sarapiquá em uma escola mais próxima ao modelo tradicional. Ou seja, para ela, estes alunos significam alguns aspectos das escolas tradicionais (número maior de estudantes, prédios maiores, maior área de construção, abolição do lanche coletivo...) como fatores mais ligados ao que é ser adolescente. A fala de Regina simboliza uma apropriação dos pressupostos de uma escola alternativa enquanto um diferencial do modelo tradicional, não os relacionando características de escolas voltadas, unicamente, ao ensino infantil.

A construção do espaço físico da Sarapiquá foi elaborada a partir dos pressupostos ideológicos, metodológicos e teóricos da proposta desta escola. A escola Sarapiquá, de acordo com Bastiani12, preocupa-se em manter um espaço voltado para a aprendizagem, concebida enquanto engendrada pelas relações interpessoais, e para valores como solidariedade e coletivismo. A partir disso, compreende-se os motivos pelos quais a Sarapiquá é uma escola cujo número de estudantes por turma é menor, o ambiente é composto por árvores, plantas, animais, até mesmo uma cachoeira, apresentando um projeto de construção civil em uma estrutura diferenciada de "prédio", e realiza lanches coletivos, nos quais os estudantes trazem o lanche de casa e este é compartilhado pelo grupo, ao invés da tradicional cantina onde os alimentos são vendidos para consumo individual.

Entre o alternativo e o tradicional

A partir dos discursos produzidos nos questionários, nota-se que os estudantes ao mesmo tempo em que apreciam os aspectos alternativos, também requerem outros tradicionais. Alguns apreciam o número reduzido de estudantes, o espaço mais próximo da natureza, relações mais flexíveis com os professores, trabalhos em grupos, isto é, aspectos mais próximos de uma escola alternativa: "Eu gosto de turma menor, com poucas pessoas... acaba nos deixando mais unidos..." (Tatiana), ou então "Eu não queria ficar num prédio cheio de estrutura, não acho que seria saudável pra ninguém" (Érica). Outros, segundo os questionários, prefeririam que a escola tivesse um número maior de estudantes: "Eu queria que a escola fosse maior, tivesse mais gente, tivesse uma cantina"; que ampliasse a área de construção civil "(...) mais quadras, mais salas, mais turmas..."; que tivesse salas maiores e adotasse apenas a prova como forma de avaliação acadêmica, em detrimento dos trabalhos em grupo e outros.

Nota-se, portanto, o desejo tanto por modos tradicionais como alternativos no projeto idealizado por estes jovens em relação à Sarapiquá. Ao conceber estes modelos como tese e antítese, tornam-se compreensíveis os discursos dos estudantes, uma vez que ambos são constituidores dos modelos de ensinar e aprender, mesmo que contraditórios. As relações dialéticas estabelecidas entre o sujeito e seu contexto são mesmo contraditórias, e os processos de significações são dinâmicos e não lineares. Neste caso, as significações ora se aproximam do tradicional, ora se aproximam do alternativo, sendo diferentes em diferentes sujeitos, em um mesmo contexto, podendo também se transformar no mesmo sujeito, ao longo de sua história.

Ao tentar responder à questão central "o que é uma escola alternativa?", Bastiani13 tece uma reflexão que muito colabora na compreensão das dificuldades encontradas para se implantar, na prática, uma escola com os ideais opostos ao sistema econômico, político e cultural contemporâneo, pois afinal de contas, por maiores esforços que se façam para se distanciar dos valores da competitividade, do individualismo, do acúmulo de bens e da produção, estes sujeitos também são históricos, são produtos e produtores deste contexto. Neste sentido, Bastiani12 diz:

"Talvez a grande questão seja saber em que reside a diferença, uma vez que ser diferente coloca necessariamente um campo relacional, de forma que a linha a separar um posicionamento do outro, primeiro pode ser vista como um abismo; porém, muitas vezes, é quase tão tênue, que nem a avistamos. Pelo contrário, caminhamos sobre ela"(p.173).

Pode-se dizer que a identidade político-pedagógica da escola Sarapiquá é uma superação dos valores e das práticas tradicionais, no sentido da construção de relações de ensinar e aprender pautadas na ética e na estética emancipatórias do sujeito. Este movimento de construção, que se faz dialético por condição, se caracteriza pela apropriação e pela negação daquilo que não mais interessa construir, rumo ao que ainda não foi feito. Percebe-se que não há uma cristalização da identidade alternativa na Sarapiquá; ao que indica, a escola trabalha na relação com a alteridade e promove uma fluidez da identidade entre os aspectos que vislumbra e os que busca superar, qualificando suas propostas e marcando seu perfil político-pedagógico.

Por meio da análise da história da Sarapiquá, podemos dizer que esta instituição se configura, em termos psicossociais, pedagógicos e físicos, em um movimento de totalização, no qual o projeto e as práticas estão em permanentes transformações. A concepção de comunidade discutida por Sawaia14 auxilia a refletir sobre este movimento da Sarapiquá. A autora propõe : "...olhá-la (a comunidade) como apta à transformar-se em algo diverso, na relação com a alteridade e como processo dinâmico, resultante da tensão permanente entre homogeneização disciplinadora da ordem social e a rebeldia da polissemia da vida social"13 (p.23).

Ao tentar se aproximar deste ideal de comunidade, em um movimento de totalização, processo aberto e ininterrupto de permanências e transformações, é que a Sarapiquá vem conseguindo produzir novos valores e discursos para trilhar caminhos que correspondam às motivações e os interesses dos jovens, em prol de melhores condições psicossociais e pedagógicas para este público nas relações de ensinar-aprender e na construção de sujeitos mais críticos no contexto contemporâneo.

Um dos sentidos atribuídos, coletado no questionário, está em torno da postura ética desta instituição enquanto formadora de cidadãos: "Acho que esta escola é especial principalmente neste ponto da 'formação de cidadãos'.

Ao refletir sobre a práxis da psicologia social comunitária, Sawaia13 foca a questão da ética na sustentação destas práticas a fim de evitar um fundamentalismo identidário da comunidade avesso às diversidades. A autora propõe encarar a comunidade como o lugar dos "bons encontros", com respeito a igualdades e a diferenças, calcada no paradigma ético e estético da existência.

Por meio da fala dos estudantes, nota-se que a Sarapiquá está próxima desta concepção proposta por Sawaia13, pois se volta para as relações estéticas constituídas e constituídoras de uma ética que abarque o bem estar individual e coletivo, na ausência de uma identidade fundamentalista, permitindo o processo de totalização que contempla a ambigüidade do fazer-se diferente.

Ao discutirem sobre onde poderia ser construída uma nova quadra, um aluno sugere que desmate o bosque para implantar este projeto. Na fala de Fernanda, percebe-se uma postura ética em relação à natureza: "Estragar a natureza também não, mas talvez a gente usasse ali alguma coisa legal que desse pra fazer com a natureza, ali, sem tirar as coisas..." (Fernanda)

No discurso de Carolina, é possível notar uma ética em relação à natureza e à alteridade, quando sugere a construção da quadra em um espaço subutilizado, respeitando a natureza e as outras pessoas presentes no contexto, no caso, as turmas do ensino infantil:"(...) acho que talvez nós poderíamos cercar aquilo e aproveitar aquele espaço que tá totalmente fechado. Aquilo, a gente poderia melhorar, mas acho que não é necessário a gente destruir algo que é utilizado pelos menores pra fazer algo para nós" (Carolina)

Os sentidos atribuídos por Fernanda e Carolina apontam para uma postura ética que transcende a esfera individual e abarca a dimensão coletiva. Estes sentidos podem ser ancorados no compromisso ético da comunidade, proposto por Sawaia14, que não se realiza por persuasão ou racionalização, e sim como um desejo, uma necessidade, uma motivação do sujeito, "configurados e reconfigurados na intersubjetividade"13 (p.23). A Sarapiquá se caracteriza por um espaço intersubjetivo com uma proposta pautada por alguns valores que se diferem daqueles sustentadores das escolas tradicionais, como cita Bastiani12: "...autonomia, cooperação, criticidade, solidariedade e participação serviam de base para marcar o contraponto, uma vez que a escola tradicional prezava a competitividade, a obediência e a reprodução dos conhecimentos..." (p.144).

Trabalhar na proposta de uma educação que visa a construção de um sujeito mais crítico e criativo é apostar na dimensão ético-afetiva do aluno, apontando para a ampliação dos horizontes de significação acerca do universo, criando, ao mesmo tempo, possibilidades no pensar, no agir e no sentir como inexoravelmente unificados. O futuro, para quem se compromete com esta postura ético-estética, se abre em possibilidades que ampliam as alternativas do viver.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Construir uma escola sustentada em valores, propostas e práticas alternativas daquelas homogêneas da sociedade capitalista contemporânea mostra-se uma tarefa árdua, marcada por contradições e desafios. Porém, não é utópico construir e manter um espaço educacional que esteja preocupado na construção de cidadãos éticos, críticos e solidários com as questões da sociedade. A Sarapiquá vem concretizando este projeto há mais de vinte anos e vem conseguindo construir sujeitos críticos frente aos valores do capitalismo ocidental moderno, promovendo abertura para novas formas de os estudantes subjetivarem a realidade e se objetivarem nela. As atividades que propiciam as relações estéticas, o espaço para os alunos se expressarem, criarem e opinarem, as relações menos assimétricas entre os professores e estudantes, as formas de construir o conhecimento que se distanciam das "decorebas", a preocupação na construção da cidadania, entre outros aspectos, contribuem para a constituição de sujeitos éticos, participativos e críticos com a história constituída e constituinte destes atores sociais, tanto no contexto escolar como na história coletiva de um contexto mais amplo. Como toda e qualquer escola, seja alternativa ou tradicional, as práticas são permeadas por avanços e recuos, relacionados por processos dialéticos e contraditórios. O trabalho da psicologia social no âmbito escolar pode contribuir significativamente na mediação dos interesses dos sujeitos envolvidos e das possibilidades deste contexto, propiciando a construção de sujeitos mais satisfeitos e críticos em suas trajetórias particular e coletiva. Por meio deste trabalho psicossocial, pôde-se propiciar avanços nas práticas que se sustentam em valores da proposta político-pedagógica, satisfazendo alguns objetivos pedagógicos, subjetivos e políticos deste contexto escolar. As relações de ensinar-aprender são qualificadas por meio das intervenções nas relações intersubjetivas, nas sugestões referentes à organização pedagógica, às atividades desenvolvidas e ao espaço físico do contexto. Este trabalho ilustra as contribuições que um trabalho psicossocial pode construir junto a um espaço educacional para que os caminhos tortuosos das práticas escolares sejam frutíferos para os atores sociais envolvidos neste processo.

 

REFERÊNCIAS

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Enviado em:12/09/2006
Modificado em: 03/10/2006
Aprovado em: 10/10/2006

 

 

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