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Journal of Human Growth and Development

Print version ISSN 0104-1282On-line version ISSN 2175-3598

Rev. bras. crescimento desenvolv. hum. vol.16 no.3 São Paulo Dec. 2006

 

PESQUISA ORIGINAL RESEARCH ORIGINAL

 

Emoção e experiência corporal na trajetória da conversão: um estudo de caso+

 

Emotion and corporal experience in the trajectory of conversion: a case study

 

 

Lívia Fialho CostaI; Christine JacquetII

IAntropóloga. Universidade Católica do Salvador (Mestrado em Família na Sociedade Contemporânea). Universidade do Estado da Bahia (Mestrado em Educação e Contemporaneidade). Email: livia.fialho@ig.com.br
IISocióloga. Universidade Católica do Salvador (Mestrado em Família na Sociedade Contemporânea). Universidade Estadual de Feira de Santana. Email: jojokiki@ig.com.br

 

 


RESUMO

O texto tem por objetivo discutir a articulação existente entre doença, corpo e emoções nas narrativas de cura religiosa. Partimos de casos concretos de mulheres convertidas ao neopentecostalismo que contam ter encontrado nos ritos e rituais religiosos uma alternativa para lidar com sofrimentos e aflições pessoais e/ou familiares. As histórias de conversão relatam uma vida caracterizada por um sentimento de desvalorização de si e a conversão ocorre durante um episódio de crise ou de uma experiência extraordinária que quebra o curso normal da trajetória de vida. As convertidas são quase unânimes em afirmar que a conversão foi resultado da busca de uma solução para uma doença; no entanto, a doença relatada pelas fiéis não é senão um quadro genérico no interior do qual são organizadas evidências que visam deslocar a atenção daqueles que as escutam para o caráter eficaz dos rituais religiosos. A motivação inicial da conversão não estava assim ligada unicamente à doença, mas a um conjunto de situações problemáticas.

Palavras-chave: Corpo. Emoção. Religião. Gênero. Família.


ABSTRACT

This article discusses the relationship that exists between illness, emotions, and the body in narratives concerning religious cures. The point of departure are concrete cases of women who have converted to neo-Pentecostalism and who relate how they discovered an alternative to dealing with their afflictions and suffering through religious rites and rituals. Their stories of conversion revolve around lives characterized by loss of self-esteem, and their subsequent conversions took place during moments of crisis or as a result of extraordinary events that interrupted the normal course of their lives. The converted women are almost unanimous in affirming that their conversions came about as the result of a search for the cure for an illness. However, the illness they refer to is a generic view beneath which lies evidence that shifts the listeners' attention to the efficient nature of the religious rituals. Thus, their initial motivation in seeking for conversion was not related solely to their illnesses, but to a prior series of problem situations that went beyond the actual physical ailments in themselves. Inspired by an anthropology of emotions, this text aims to analyze how religious conversion helped these women to better face their personal and family conflicts, creating a self-awareness that helped them to reemerge from the depths of their despair.

Key words: Body. Emotions. Religion. Gender. Family.


 

 

INTRODUÇÃO

Discutindo a ritualização dos corpos, David Le Breton1 lembra que a experiência corporal, os sinais corporais manifestos aos outros, assim como o partilhar comum dos ritos que levam à sociabilidade, são condições que dão possibilidade à comunicação, à constante transmissão do sentido, no interior de uma dada sociedade. Paradoxalmente, para o autor, essa familiaridade parece apagar/anular o corpo, fazendo-o desaparecer do campo da consciência, diluído no quase-automatismo das ritualidades do dia-a-dia. A ausência do corpo da consciência do indivíduo seria, dentre outras coisas, motivada pelo próprio estado de saúde, responsável pela 'vida no silêncio dos órgãos'. Esta concepção nos faz pensar que, então, a consciência do corpo se delineia a partir do estado doentio. Ora, esta perspectiva, muito restritiva, não leva em consideração que o corpo é o espaço onde se inscrevem as emoções; ele é o operador de todas as práticas sociais e de todas as trocas entre os atores, e que a necessidade da sua "ausência" ou "presença" dependerá de um contexto de interações.

O desaparecimento do corpo do centro da ritualidade cristã se origina no contexto teológico e moral da igreja medieval, onde o corpo é concebido como matéria decaída, a parte material e perecível da pessoa humana. Na cristandade medieval, a diferença, ou mesmo oposição, estabelecida entre corpus e anima assinala a existência de uma hierarquização dos valores entre os componentes da pessoa: corpus, nas suas emoções, é o lugar por excelência do pecado; anima é a dimensão imortal que se projeta na eternidade.2

Observando os cultos da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), dois aspectos parecem nunca escapar aos olhos até mesmo de um espectador menos atento: o primeiro deles é a ênfase que é dada ao corpo nos diferentes rituais; o segundo, é o discurso que contrapõe a todo tempo o bem ao mal, o demônio ao Espírito Santo, a saúde à doença, a miséria à prosperidade. Se é verdade que esta forma maniqueísta de representar a realidade não é exclusiva do neopentecostalismo, a alternativa formulada por esta denominação para alcançar o Bem lhe é bastante característica: o exorcismo público do corpo possuído pode ser uma das vias de acesso ao Bem e a toda sorte de prosperidade material ou espiritual. Mas o corpo na Igreja Universal não é apenas o receptáculo do demônio, como é evidenciado nos cultos entusiastas da Sexta-feira da Libertação. Nas narrativas, ou « testemunhos » públicos dos fiéis, o corpo é igualmente lembrado a todo momento: os convertidos relatam verdadeiras trajetórias de perseguição a doenças incuráveis, que mobilizavam o indivíduo, quando não toda a família, em prol da cura. Estas experiências corporais, que os convertidos descrevem sob o rótulo de "sofrimento", têm um papel significativo dentro da trajetória de conversão. Assim, de um lado temos a doença, o sofrimento e o Mal como temáticas que emergem no discurso dos fiéis enquanto impulsionadoras da conversão; do outro, uma liturgia que não só abre espaço para a emergência de todas estas referências, como também torna o corpo o centro do seu ritual (a libertação).

A emoção e a experiência corporal constituem o eixo sobre o qual são baseados numerosos rituais da igreja. Isto nos convida a várias indagações: que lugar ocupam na vida cotidiana dos fiéis as emoções construídas no interior do templo? Como é trabalhada e estimulada a linguagem corporal na IURD? De que forma pode o corpo ser o receptáculo do Espírito e o ponto de distribuição dos infortúnios para o indivíduo e para a sua família? Analisamos aqui a forma como fiéis constroem suas trajetórias de aproximação com Deus : um tipo de contato que se legitima através de sinais corporais. Tais sinais, definidos pelo fiel como o « toque do espírito », representado em forma de louvores, gritos, choros, lamentações, são decorrentes de valores construídos e partilhados socialmente e de inspirações de cunho teológico. Todos esses elementos formam um caleidoscópio de experiências, não contraditórias, segundo as quais o convertido passa a orientar a sua conduta e o seu estilo de vida.

Na Universal, o corpo pode ser possuído (pelo demônio) ou preenchido (pelo Espírito Santo). Seja uma coisa ou outra, o fato é que estes fenômenos são lidos como orientadores e responsáveis pela fabricação do indivíduo, da pessoa. Um indivíduo possuído garante ligações com um mundo repleto de incertezas e falta de prosperidade; um indivíduo preenchido pelo Espírito justifica, através de sua experiência corporal, suas atitudes de quebra de relações com o mundo da rua, melhorando sua relação com a família e com a rede de relações mais ampla. O « Toque do espírito », conjunto de experiências corporais (lágrimas, suor, alegria incontrolável, risos) e morais (se sentir encorajado, desejo de transformar a vida), verdade legitimada na medida em que fazem parte de um conjunto ritualmente estruturado que informa o sentido último da libertação, torna mais evidentes as razões do sucesso da pedagogia ritual que disciplina o corpo para o recebimento do espírito. Na Igreja Universal, estes sinais de transformação se revelam diferentemente de outras denominações pentecostais, nas quais o dom de falar em línguas (glossolalia) é normalmente a expressão mais evidente da transformação do indivíduo pelo espírito -ou do ser escolhido pelo espírito. Necessário lembrar que essas expressões devem ser compreendidas também dentro de uma análise que privilegie a forma mediante a qual os corpos são submetidos a um regime, controlado pela voz, pelos cânticos, pelo ritmo das orações, pela força dos testemunhos. A experiência de estar possuído nasce também com a familiaridade dos símbolos ali circulados, que reforçam sentidos.

Este estudo parte da análise de casos de mulheres crentes (obreiras) que se converteram e se engajaram na Igreja Universal, encontrando nos seus ritos e rituais uma alternativa para lidar com sofrimentos e aflições que fazem parte do quotidiano feminino. "Pare de sofrer. Visite imediatamente um templo da Igreja Universal" é o slogan desta denominação pentecostal que parece vender a prosperidade seguindo uma lógica de marketing e mercado muito própria aos dias atuais. As histórias de conversão relatam geralmente uma vida caracterizada por um sentimento de desvalorização de si, de exclusão social, de ausência de perspectivas. A maioria dos casos de conversão ou de adesão ocorre durante um episódio de crise ou num momento de uma experiência extraordinária, que quebra o curso normal da trajetória de vida da mulher. Perguntadas sobre a descoberta da Igreja ou escutadas nos programas televisivos, estas mulheres são quase unânimes em afirmar que a conversão foi resultado da busca de uma solução para uma doença. A partir da interpretação de diferentes casos e narrativas de conversão à Igreja Universal, observamos que a doença relatada pelas fiéis não é senão um quadro genérico no interior do qual são organizadas evidências que visam orientar a atenção dos que as escutam para o caráter eficaz dos rituais da Universal; ao mesmo tempo, as narrativas de doença e cura buscam tornar pública a dimensão do milagre ("Jesus cura!"), fortemente presente no discurso elaborado pela instituição. No entanto, analisados na sua complexidade, os depoimentos sobre a conversão estão, normalmente, associados a outros temas. Isto revela que o sentido inicial da conversão não estava ligado unicamente à doença, mas, antes, a um conjunto de situações problemáticas, cujos contornos se imbricam aos significantes socioculturais do indivíduo. À luz de uma antropologia das emoções, pretende-se analisar como a conversão colabora com um melhor enfrentamento de conflitos vividos por mulheres, viabilizando um autoconhecimento que as ajuda a sair do "fundo do poço" e a encontrar uma forma aceitável de lidar com o sofrimento, sem que sejam ausentes ou distantes do mundo, como na orientação do pentecostalismo clássico. A fim de ilustrar o processo de conversão, parte-se, nesta comunicação, do exemplo de uma fiel, que conta o seu percurso de idas e vindas à Igreja até a descoberta, através de sensações corporais e espirituais, de Jesus; o seu corpo deixa de ser possuído pelo demônio, para dar lugar ao preenchimento pelo Espírito.

O encontro com Jesus e os dons do Espírito Santo

Eliana tem 41 anos de idade, é dona de casa, tem dois filhos de 6 e 10 anos e a sua trajetória religiosa será aqui tomada como exemplo de perfil de fiel que se converte à IURD. Nascida numa família de espíritas - o pai era coordenador de um Centro - ela foi morar junto com Jailson, o pai de seus filhos, quando tinha 22 anos, união que se deu pelo fato de ela ter ficado grávida. Jailson é criado numa família sem "muita tradição religiosa", como diz Eliana. Sua mãe freqüenta terreiros de candomblé e suas irmãs oscilam entre igrejas de crentes, grupos batistas e salões de Testemunhas de Jeová. Eliana se desliga do espiritismo mesmo antes de se casar, devido a desilusões crescentes com a religião de sua família:

Meu pai morreu sem conhecer a luz. Se espiritismo fosse coisa boa ele não tinha morrido definhando daquele jeito. Meu irmão teve acidente de carro. Meu ex-namorado, também espírita, vivia cheio de encosto, ouvindo vozes, morreu numa estrada aqui perto, de acidente. Morreu sozinho, sem luz [...] larguei tudo isso.

Com o nascimento dos filhos e uma difícil vida financeira, Eliana se afasta totalmente da religião, dado que a sua prática depende também de um certo investimento de tempo. Esporadicamente, ela vai a um terreiro de candomblé do bairro, a fim de encomendar algum trabalho visando a melhora espiritual da família, em particular do marido. Na época do nascimento do segundo filho, a situação familiar torna-se ainda mais caótica, por conta do alcoolismo crescente e incontrolável de Jailson, que, no momento desempregado, abre um bar junto com um cunhado. As dívidas e a quase falência do negócio obrigam Eliana a tomar a frente do bar, deixando seus filhos sob a responsabilidade cotidiana da avó. Os conflitos neste período, conta Eliana, davam a tônica de todas as relações familiares. Quando lhe sobrava tempo, tinha como diversão sentar-se à beira da calçada, à noite, e ouvir as pregações das crentes em trabalho de evangelização:

O que mais me admirava naquelas mulheres era a força das palavras. Mesmo que elas também fossem sofredoras, como eu, elas tinham algo que eu não tinha: a fé na mudança. E falam com vontade de mudar. [...] Primeiro foram as Batistas que vieram aqui e até fiquei amiga de uma delas. Mas lá na reunião deles, que eu fui, né, achei tudo bom, mas não fiquei assim tocada, não senti diferença em mim [...] Aí um dia vieram as obreiras da Universal e me convidaram, foi um dia que eu estava assim no fundo do poço, a minha vida não tinha sentido. Era meio dia de domingo, a rua assim vazia e as panelas tudo emborcada no fogão. Os meninos na rua brincando, Jailson no jogo e na cachaça e eu sozinha, numa tristeza que se você visse você dizia: vixe essa mulher tá morrendo e não tá notando!

A imagem da situação que chega ao fundo do poço mistura-se, no discurso de Eliana, com a imagem da autodeterminação e da descoberta do Mal. Toda esta trajetória de sofrimento é interpretada por Eliana como importante para a descoberta da verdadeira fé. Assim são os sinais concretos da destruição (social, familiar, psicológica), provocada pelo demônio, que vão colaborar para o despertar da sua fé: uma espécie de provação, situações que Jesus colocou no seu caminho a fim de testar a sua crença na salvação pela fé.

Aí, eu tava assim sozinha, levantei, botei uma roupa, saí assim meio cega, meio dopada, fui andando por aí em direção à estação. Olhei prá Universal que tem ali e ouvi as músicas e fui entrando, como um chamado. Quando eu vi, a primeira coisa que vi foi os olhos do pastor, que disse: ô, irmã, venha, a gente está esperando por você! Aquele homem que nunca me viu disse aquilo. Ai eu sentei, chorei, chorei mais de um hora, quando eu parei o templo tava vazio, todo mundo já tinha terminado as orações, tinha só a obreira e o pastor [...]. Eu não vi nada, meu corpo tremia e eu sentia que Jesus estava dentro de mim: era o Espírito Santo, o pastor me explicou. Aquela vontade de sorrir, de abraçar [...]. Já voltei prá casa diferente. [...] Nos dias seguintes, fiquei só pensando naquilo que aconteceu, não voltei mais lá. Eu não queria apostar mais uma vez na minha vida e errar na decisão. E se aquilo não fosse um 'chamado' coisa nenhuma? O pior é que eu tinha gostado.

Por mais que a conversão indique uma escolha, aceitar o novo caminho, o de mulher crente, não foi uma decisão tomada sem resistências e contradições. Tornar-se crente significava para Eliana aceitar um novo comportamento, uma nova ética, em que ela não parecia estar disposta a arriscar. O medo de não corresponder às expectativas da sua nova identidade era um desafio que podia descambar em mais uma frustração. Novos eventos na vida de Eliana, como a descoberta de uma doença, ajudaram-na a rever sua posição e, num movimento de negociação consigo própria, ela retornou ao templo da Universal, decidida a buscar aquilo que Jesus tinha reservado para ela e em que o demônio a impedia de acreditar.

Eu saí assim decidida: ô, meu Deus, é agora ou nunca! Entrei, me sentei, orei com os outros irmãos, como se fosse minha verdadeira família. Nunca me senti tão bem. Entreguei meu corpo a Jesus [...] comecei a chorar, sem parar, sem parar, me joguei no chão e não vi mais nada. Só sentia aquele preenchimento de felicidade, aquilo que transbordava. Minhas pernas não obedeciam e eu gritava: obrigada, Senhor! Ali foi minha salvação. O meu coração cheio, cheio de felicidade. Não sentia mais dor, não pensava em mais nada de ruim, a única coisa que eu tinha certeza era que o Espírito Santo era o único que podia me salvar. [...] Ia prás reuniões da Saúde e da Família e no domingo não perdia a reunião de louvor ao Espírito Santo. Fui libertada na Universal. [...] sou evangélica com muito orgulho e Jesus vem fazendo milagres na minha vida desde aquela dia, todos os dias. [...] Deixei tudo, aprendi a conviver com os meus verdadeiros amigos, os irmãos do templo. Aprendi a observar as leis de Jesus Cristo.

A mudança brusca, incentivada pelas orientações vindas do templo, dificulta socialmente a passagem, mesmo que esta seja pessoalmente facilitada pelo reconhecimento de elementos rituais que se sobrepõem e se "bricolam" num trabalho sincrético que mescla elementos de diferentes tradições.

Analisando a conversão: corpo como lócus de negociação das emoções

O tema da conversão não é novo nas ciências sociais. Fala-se de absorção de novos valores, de escolhas, de hibridização das crenças, de passagens3. Propõe-se, neste artigo, que a interpretação do processo de conversão deva partir de uma compreensão do tema das emoções analisado do ponto de vista antropológico.

Emoções e sentimentos organizam a nova identidade marcada por valores relacionados ao grupo e, sobretudo, baseada nos "modelos" construídos a partir do templo. Analisar a fabricação de emoções no percurso da conversão não significa, assim, procurar uma explicação para os mecanismos mentais que desempenham nele um papel importante. Ao contrário, partir de um estudo destas emoções e destes sentimentos significa compreender o vivido dos fiéis, tentando desvendar os efeitos de um discurso ritual centrado na transformação da pessoa e, por assim dizer, de suas emoções. Uma transformação que tem início quando os fiéis incorporam em sua vida o discurso religioso, mas também quando seu corpo e seu vivido quotidiano confirmam a dinâmica da transformação. A emoção é um fenômeno ligado ao pensamento e ordenado culturalmente.

Metaforicamente, pode-se dizer que a cultura funciona como uma espécie de bússola, encarregada de orientar a expressão pública dos comportamentos dos indivíduos. Com efeito, cultura e comportamento são fatos públicos, imbricados, construídos e partilhados socialmente5. Este mesmo princípio interpretativo pode ser aplicado à religião, elemento de cultura que governa de algum modo a organização dos pensamentos, dos comportamentos e das atitudes. Neste sentido, pode-se pensar que, na modernidade, a religião tem por papel ajudar o indivíduo a "pensar em conjunto o que na realidade apresenta-se separado, diferenciado e até mesmo conflituoso"6. Neste desafio, que consiste em procurar imagens estáveis numa existência caracterizada pela sensação de desenraizamento generalizado - própria da modernidade - e pelo desejo de criar seu mundo, o indivíduo se encontra diante de diferentes opções de re-enraizamento. Tais opções o envolvem num esforço de classificação, organização e interpretação dos elementos engajados neste processo. A adesão a uma religião qualquer é uma situação que, inicialmente, se apresenta ao sujeito como um leque de contradições aparentes e choques. Trata-se de uma espécie de convite à digestão de novas formas simbólicas propostas, num movimento de "bricolagem permitido"*. Neste sentido, não é por acaso que, nos testemunhos de algumas mulheres sobre seu percurso de adesão à Igreja Universal, surgem relatos sobre as dificuldades de aceitação da religiosidade neopentecostal - ainda que várias dentre elas tenham sido batizadas na água muito pouco tempo depois do primeiro encontro com a Igreja. Em suas explicações, a religiosidade neopentecostal aparece como algo diferente de tudo o que viveram anteriormente: a Igreja Universal do Reino de Deus se revela como uma religiosidade mais permissiva, teológica e liturgicamente mais leve. Constrói-se, assim, uma concepção de fé e de religião que se opõe ao tradicionalismo das igrejas pentecostais clássicas: a fé deve ser praticada, deve ser útil. No entanto, este tipo de religiosidade inspira, antes, a desconfiança dos participantes, pois, ainda que plena de inovações, a religiosidade neopentecostal incorpora em sua cosmologia elementos emprestados de outras religiões que, em alguns casos, já são conhecidos dos que aderem à IURD. Não há dúvida de que este aspecto - queira-se híbrido, sincrético - desempenha um papel bastante importante no processo de "sedução" de novos adeptos. Porém, estudando casos concretos de conversão, notamos que, se por um lado esta inovação ritual proposta pela IURD pode encorajar a adesão, por outro ela é, a priori, também um fator de desestímulo, na medida em que cria, para alguns fiéis, a sensação de ser o ritual um diálogo com muitas frentes de combate, perdendo assim o foco, que é o Espírito Santo. Com efeito, trata-se de uma das razões invocadas por vários ex-fiéis para explicar o abandono da Igreja Universal, mesmo que ela se tenha mostrado capaz de curar ou libertar. Para os que continuam e que vivem o bricolage permitido, a religiosidade neopentecostal lhes oferece, a partir de seu conjunto "híbrido", uma espécie de suporte à realização de si, baseado numa ruptura parcial com as vivências anteriores. O neopentecostalismo erra entre as diferentes fronteiras e, por esta razão, permite aos participantes encontrar, através da maleabilidade de sua mensagem, fragmentos de diversas religiões; ao mesmo tempo, sua mensagem se endereça às diferentes incertezas sociais vividas pelos indivíduos (a fome, a miséria, a violência, o medo, etc.). Em seus cultos temáticos, cada um encontra a valorização de seu problema pessoal, expondo-o publicamente em forma de emoção e teatralidade. Os ritos e os rituais da Igreja Universal são marcados pelo clima de uma época que valoriza todos estes aspectos: a experiência emocional, o entusiasmo - a emoção não é apenas o que se experimenta no interior do corpo, antes, é o que nos motiva.

A palavra conversão pode oferecer exatamente a idéia de uma mudança que se efetua a partir da substituição de certos códigos por outros. Como se opera esta substituição? O processo que permite a compreensão da conversão é similar ao da compreensão da vida emocional dos povos: ele implica um problema de tradução6. A conversão a não importa qual sistema religioso é um fato que se inscreve num quadro onde se associam emoções, formas de experiência e conotações de percepções. Todas as imagens deste jogo são inspiradas pelo pensamento. Estudar os elementos que estão em jogo no processo de organização e de harmonização das supostas contradições vividas por aqueles que aderem a um novo modelo de religiosidade, tal é o projeto que deve ser concebido para se apreenderem a adesão e a conversão. Em primeiro lugar, é importante pensar que razão e emoção não são pólos estanques, podem operar conjuntamente, num movimento de retroalimentação que vai justificar, em última instância, a conversão e a permanência numa religião. O desejo de mudar de estilo de vida pode ser racional e a motivação que leva ao ato de mudar pode ser emocional.

Sobre o tema das emoções

Num artigo sobre o pensamento antropológico e as emoções, Vincent Crapanzano7 utiliza as palavras de Catherine Lutz e Lila Abu-Lughod8 para recolocar em questão o debate sobre o caráter interior e irracional das emoções. O autor ressalta que, durante muito tempo, as pesquisas sobre emoção apresentaram o fenômeno como sendo a dimensão da experiência humana a menos controlada, a menos construída, a menos pública e a menos passível de ser submetida a uma análise em termos de sociedade e cultura7. Tradicionalmente, o estudo das emoções pertence aos domínios da filosofia e da biologia: a primeira, interessando-se pela própria natureza das emoções e por suas relações com as paixões e os sentimentos, tomando como base a diferença existente entre a emoção e a vida racional; a segunda, interessando-se sobretudo pelas modificações e pelos mecanismos que estão na base das reações emocionais. Os estudos sobre as emoções seguiram, durante muito tempo, estas tradições, influenciando posteriormente diferentes correntes da psciologia.

Em 1921, Marcel Mauss observa o caráter pouco individual dos sentimentos. A expressão obrigatória dos sentimentos coloca em cena a discussão sobre a expressão da interioridade dos indivíduos, sua relação com o mundo exterior, ou seja, o mundo social9. Mauss, através do estudo do ritual oral dos cultos funerários australianos, analisa o contexto de aparição das lágrimas, seu papel e o modo a partir do qual os nativos australianos exprimem seus sentimentos frente à morte.

M. Mauss queria mostrar que as manifestações emocionais veiculadas durante a cerimônia funerária obedeciam a certos critérios de expressão que não são critérios exclusivamente biológicos, incontroláveis. Assim, a emergência de certos sentimentos e de certas emoções pode ser tornada obrigatória por uma orientação social. Os sentimentos podem ser interpretados, então, como instrumentos de coesão social, suscitados pelo engajamento em uma determinada situação ou ritual. As concepções de M. Mauss, fundadas sobre idéias funcionalistas, formuladas no seio da tradição durkheimiana10, são criticadas mais tarde por conta de seu caráter reducionista: a expressão individual sendo transformada e tornando-se uma espécie de "funcionária" do coletivo. No entanto, a contribuição sociológica deste autor é, sem dúvida, notória, podendo ser-lhe creditada a origem das primeiras pesquisas sociológicas que motivaram a discussão sobre o caráter socialmente controlado da expressão de estados tidos até então como eminentemente privados e interiores ao indivíduo. Além disto, a originalidade dos trabalhos de Mauss repousa no fato de representarem uma inovação nas abordagens sobre estes temas que, à época, sofriam grande influência da filosofia.

Assim, temas como emoções, afetos e sentimentos, durante muito tempo privilegiados das pesquisas em psicologia e psiquiatria ocidental, tornam-se objetos de pesquisa de antropólogos e sociólogos. A idéia de pensar estes temas a partir de um olhar das ciências sociais dá lugar ao surgimento de um campo específico de pesquisa, comumente chamado de "antropologia das emoções". Apenas na década de 80, o tema das emoções vem ocupar um lugar importante entre cientistas sociais. Em 1983, um número especial da revista ETHOS é dedicado ao tema self e à emoção10. Em 1986, Catherine Lutz e Geoffrey White publicaram em The annual review of anthropology um capítulo intitulado "The anthropology of emotions", onde propõem uma crítica ao tipo de abordagem ocidental das emoções. De acordo com os autores, é necessário recontextualizar o termo emoção, acentuando a dimensão pública, social e cognitiva da experiência afetiva, ao invés de partir de um a priori que opõe, por exemplo, racional e irracional, público e privado, social e individual. Os trabalhos de Robert Levy12 e Michèle Rosaldo13 fundam, em conseqüência, uma nova forma de pensar o tema, acentuando a necessidade de tomar as emoções enquanto construções mentais ou idéias agenciadas diferentemente segundo as culturas. Enquanto construções mentais, as emoções podem ser definidas "como medidas de relações entre o eu e o mundo, e, assim, responsáveis pelo fornecimento de um meio de apreender a cultura". Conceber emoções segundo esta perspectiva significa admitir que elas são construções, cujas colorações são dadas pelo contexto e pelo domínio discursivo no qual se inscrevem. Isto equivale a pensar as emoções como um discurso introjetado, que reflete, no final das contas, a diversidade das representações do moi, observáveis e desejáveis socialmente. Certamente, as emoções possuem características intrínsecas do eu, mas tais características são também conferidas por um Outro, ou seja, a expressão das emoções movimenta, ao mesmo tempo, imagens do privado e do público.

No caso da conversão ao neopentecostalismo, este movimento, que mistura imagens do privado e do público, do sentido de si e da introjeção dos valores sociorreligiosos construídos nos rituais, é, principalmente, representado pelo sentimento de ser tocado por Deus - que poderia ser concebido como um processo puramente mágico/irracional, se interpretado segundo um esquema tradicional que opõe emocional a racional. Ser tocado por Deus, no discurso dos fiéis, não parece ser uma experiência que se esgota uma vez cessada a sensação de ser escolhido e tocado física e emocionalmente pela divindade, ou seja, não se apresenta apenas como experiência ligada ao momento ritual. Pelo contrário, o evento inaugura (ou lhe dá continuidade) o processo de reflexão e tomada de decisões racionais perante a vida quotidiana. A conclusão que se impõe então é que, no tipo de emoção proposta pela igreja, uma parte desta experiência se prolonga para além do sensível e garante o desejo de continuar a integrar a comunidade de fiéis; estas experiências se prolongam para a experiência quotidiana, fora do templo, e se cristalizam enquanto vivências legítimas: é necessário provar através de atos e de comportamentos que o sentimento íntimo de ser tocado é corroborado por valores aprovados pelo grupo religioso. Assim, encontramos, por trás dos depoimentos sobre a conversão, não apenas referências à importância do entusiasmo, das emoções provocadas nos rituais, da sensação de ser tocado, mas também referências à necessidade de se inaugurar uma nova forma de agir, de administrar as emoções, uma maneira de ser crente. Aliás, a Igreja trabalha numa lógica discursiva que articula dois conteúdos (mágico e ético) que estão sempre em relação de complementaridade. Compreender esta articulação exige uma investigação que privilegie uma antropologia do corpo, dos gestos e das posturas. Nos seus rituais de libertação e cura, a Igreja Universal adota uma atitude frente ao corpo que o torna passível de ser "tocado" pelo sobrenatural: ele é o lugar privilegiado para a ação do demônio; ele pode ser o receptáculo do Espírito Santo; pode tornar-se fraco ou forte, segundo o contexto de interações ao qual está submetido no dia-a-dia. Assim, possessão, cura, milagres, batismo no Espírito Santo e revelações confirmam não somente a importância acordada ao corpo, mas também a centralidade que este tem na liturgia da IURD. Neste artigo, consagrado ao lugar das emoções no processo de conversão, parte-se da constatação de que o culto neopentecostal é baseado, de um lado, numa hipervalorização do sensível, o que pode ser corroborado a partir das observações do jogo ritual da estimulação dos fiéis (através de orações, danças, controle respiratório seguido de explosão de gritos, etc.); por outro lado, observa-se que mais os fiéis estão engajados na Igreja, mais valorizam atitudes racionais frente à vida quotidiana. Neste sentido, não é simplesmente a cura mágica, imediata, ou o êxtase propiciado pelos cultos que garantem a conversão do fiel: é, antes, uma valorização de si e a busca de soluções práticas e estratégicas - atitudes apreendidas na medida em que o fiel se sente tocado pela experiência do alívio do sofrimento vivido - que asseguram a sua permanência. Neste sentido, trata-se de uma comunidade de fiéis centrada na emoção   - com objetivos terapêuticos (restituição da saúde através da libertação/exorcismo) e, ao mesmo tempo, num compromisso ético - a restauração física e moral do indivíduo não se pode realizar senão a partir de um engajamento efetivo, racional, que compreende um estilo de vida "crente": administrar o mal consiste em extirpar todos os traços contrários a um ideal de vida digno de redenção, cujos atributos são desenhados e elaborados no seio da Igreja e partilhados pelos membros.

A discussão acerca do caráter dialético da emoção - uma emoção é, ao mesmo tempo, um olhar sobre um objeto e alimentada pelos seus atributos - ajuda-nos a compreender o discurso dos fiéis sobre o Espírito Santo, sobre o apoio oferecido pela Igreja, sobre o alívio do sofrimento, sobre a libertação. Enquanto experiência sincera, a emoção pode ser vivida com intensidade e "aprisionar" o indivíduo e seu corpo num novo sistema de relações com o mundo social.

 

REFERÊNCIAS

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4. Geertz C. Bali: interprétation d'une culture. Paris: Gallimard; 1983.        [ Links ]

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9. Mauss M. L'expression obligatoire des sentiments (rituels oraux funéraires australiens). Paris: Minuit; 1969.        [ Links ]

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Recebido em: 24/09/2006
Modificado em: 30/09/2006
Aprovado em: 10/10/2006

 

 

+ Parte da tese de: Costa LF. Qu' est-ce qui fait crier les crentes? Émotions, corps et délivrance à l' Église Universelle du Royaume de Dieu [tese]. Paris: EHESS ; 2002. Baseado também na pesquisa em andamento «Socialização das crianças e pluralidade religiosa na esfera conjugal », coordenação Lívia Fialho Costa e Christine Jacquet, CNPq e Fapesb.
* A expressão "bricolagem permitido" se refere aqui à maneira mediante a qual o indivíduo organiza, para ele próprio, a experiência de uma realidade criada a partir de empréstimos de diferentes materiais (às vezes, opostos), transformando-a em "realidade aceitável", onde estes elementos, aparentemente disparatados, são unidos num espectro harmoni oso. Esta idéia faz alusão ao conceito de bricolage elaborado por Levi-Strauss (Ver Levi-Strauss C. La pensée sauvage. Paris: Plon; 1962).

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