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Journal of Human Growth and Development

versão impressa ISSN 0104-1282versão On-line ISSN 2175-3598

Rev. bras. crescimento desenvolv. hum. v.17 n.2 São Paulo ago. 2007

 

PESQUISA ORIGINAL RESEARCH ORIGINAL

 

A criança com deficiência e as relações interpessoais numa brinquedoteca comunitária

 

Children with mental deficiency and interpersonal relationships in a community toy library

 

 

Vanessa A. CaldeiraI; Fátima C. OliverII

IEsse artigo faz parte da pesquisa monográfica de conclusão de curso realizada em 2002 no Curso de Terapia Ocupacional do Depto de Fisioterapia, Fonoaudiologia e Terapia Ocupacional da Faculdade de Medicina da USP, sob o título: "O desenvolvimento do brincar entre crianças com e sem deficiência numa brinquedoteca comunitária". vanecald@gmail.com
IIProf Doutora em Saúde Pública. Docente no Departamento de Fisioterapia, Fonaudiologia e Terapia Ocupacional pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. fcoliver@usp.br

 

 


RESUMO

A sociedade contemporânea tem limitado o brincar das crianças sendo que as crianças com deficiência enfrentam, ainda, barreiras psicossociais. Uma brinquedoteca comunitária pode ser um local de enfrentamento das limitações ao brincar. O objetivo deste estudo foi descrever as relações interpessoais entre crianças com deficiência e crianças sem deficiência num contexto de brinquedoteca comunitária, e como esta pode influenciar essas relações. Observou-se durante 10 encontros um grupo de crianças sendo duas delas com deficiência mental. Utilizou-se como foco de coleta a descrição da situação lúdica que envolvesse a questão da deficiência, utilizando como categorias de coleta: tipo de brincadeira, estilo de interação e seu caráter social. Comparou-se um episódio com outro que envolvessem os mesmos participantes buscando identificar transformação ou não do tipo de interação de caráter social ou agonístico. Identificamos três contextos de interação que se mostraram significativos: de passagem, em brincadeiras paralelas e nas brincadeiras com o outro. As interações de passagem mostraram potencializar mais interações agonísticas, enquanto brincadeiras paralelas, mais interações pró-sociais. As situação de brincadeira de escolinha, de fantasia e jogos potencializaram mais interações pró-sociais, pelos próprios integrantes escolherem as brincadeiras e seus companheiros. As brincadeiras em que todos participavam, embora dessem visibilidade e participação grupal às crianças com deficiência, mostraram maior quantidade de interações agonísticas e pró-sociais. Concluiu-se que as crianças com deficiência conquistaram um lugar.

Palavras-chaves: Brinquedo. Relações interpessoais. Crianças portadoras de deficiência. Brinquedoteca comunitária.


ABSTRACT

Contemporary society has been limiting the play activity of children. Children with mental deficiency also have to face psychosocial barriers. A community toy library can be a place where it is possible to face limitations while playing. The objective was to describe the interpersonal relationships among children with mental deficiency and children without deficiency in a context of community toy library, pointing out how this context can influence these relationships. Basic procedures were a group of children was observed during ten meetings. In this group, two children had mental deficiency. The description of the play situation that involved the issue of deficiency was used as collection focus. Categories of data collection were: type of game, interaction style and its social character. An episode was compared with another involving the same participants, aiming to identify transformation or not of the type of interaction of social or agonistic character. We identified three significant interaction contexts: passage interactions, interactions in parallel games and interactions in games with another child. It seems that the passage interactions potentialized more agonistic interactions, while the parallel games potentialized more pro-social interactions. Situations of school play, fantasies and games seemed to potentialize more pro-social interactions, because of the fact that the members of the group chose the games and their companions. Although games in which all children participated gave visibility and group participation to children with mental deficiency, they showed a larger amount of agonistic and pro-social interactions. As conclusions, Children with mental deficiency have conquered a place. A place to go, to play, to find children, to transform themselves, their relationships and the relationship of the others.

Key-words: Toy. Interpersonal relationships. Children with mental deficiency. Community toy library.


 

 

INTRODUÇÃO

As crianças com deficiência têm o direito de brincar, mas muitas vezes encontram dificuldades para exercer esse direito principalmente pelas mudanças sócio-culturais de nossa sociedade. Uma das dificuldades enfrentadas por todas as crianças, aquelas com e sem deficiência, é que as brincadeiras contemporâneas apresentam transformações que têm afetado as oportunidades de exercer essa atividade, a relação da criança com o contexto sócio-cultural, e o seu desenvolvimento social, físico, emocional e cognitivo. As crianças com deficiência enfrentam, ainda, as barreiras físicas e psicossociais que dificultam a circulação, acesso a diferentes instituições e a relação social. Este artigo pretende discutir as relações interpessoais frente à deficiência, buscando descrever como se manifestam e se transformam numa brinquedoteca comunitária.

O Direito de Brincar

Diversos autores destacam a importância do ato de brincar na infância. Winnicott1 escreveu sobre brincar enfocando sua contribuição para o desenvolvimento da personalidade, do vínculo e da constituição do "eu". Piaget2 descreve o processo de desenvolvimento da inteligência da criança através da brincadeira. Para Vygotsky3, a criança, ao brincar, reflete sua cultura, apreende e reelabora seus valores na realidade compartilhada. Na área terapêutica, em geral, a brincadeira é destacada como meio para aquisição de habilidades para crianças com dificuldade comportamental, emocional, cognitiva e/ou física. Parham e Fazio4 discutem a importância da recreação na terapia com crianças, sob dois enfoques: a recreação vista como um meio de enfatizar o desenvolvimento e a aquisição de habilidades ou a recreação como objetivo da intervenção. Recentes discussões e pesquisas têm trazido essa idéia de que a brincadeira em si deve ser valorizada como tendo um fim em si mesma, não apenas como meio para a criança adquirir habilidades para o futuro, mas como algo que dá significado e prazer no presente. Sua privação pode trazer conseqüências presentes e futuras. Nossa sociedade reconhece a importância do brincar, garantindo-o por lei.

No Estatuto da Criança e do Adolescente5, é explicitado o direito ao lazer, à diversão e a serviços que respeitem a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento. Na Convenção sobre os direitos da criança6, o artigo 31.º afirma que "1 Os Estados Partes reconhecem à criança o direito ao repouso e aos tempos livres, o direito de participar em jogos e atividades recreativas próprias da sua idade e de participar livremente na vida cultural e artística." O artigo 23 afirma que "3 Atendendo às necessidades particulares da criança deficiente, (...) para que tenha efetivo acesso à educação, à formação, aos cuidados de saúde, à reabilitação, à preparação para o emprego e a atividades recreativas, e se beneficie desses serviços de forma a assegurar uma integração social tão completa quanto possível e o desenvolvimento pessoal, incluindo nos domínios cultural e espiritual". Todos os direitos estão em um mesmo nível de igualdade. O brincar não vem depois do direito à saúde, à escola ou o direito a ser respeitada e amada. O direito de brincar é simultâneo aos demais direitos e sendo o direito uma questão ética, inquestionável, está assegurado por lei a todos os seres humanos.

No entanto, apesar de conquistas legais, na prática, há muitos impasses e entraves para o exercício do direito de brincar que promova o bem estar e o desenvolvimento das crianças. Essas dificuldades podem ser observadas quando refletimos sobre o modo de brincar contemporâneo que traduz valores de nossa época.

O Brincar Contemporâneo e a Brinquedoteca Comunitária

As transformações sócio-históricas do brincar refletem valores hegemônicos de nossa sociedade. Os valores contemporâneos têm afetado as relações humanas, diminuindo o valor de singularidade dos seres humanos e aumentando o individualismo. Meira7, tendo como eixo as contribuições de Walter Benjamin8, reflete acerca do brincar e da infância na contemporaneidade. Benjamin realiza uma "leitura" histórica das transformações dos brinquedos e sua ligação com a cultura, sociedade e seus valores em que a industrialização dos brinquedos e sua massificação conduzem a um processo de globalização das culturas, homogeneizando imagens, símbolos, valores, destituindo a singularidade dos brinquedos, costumes e histórias familiares. A indústria do consumo acaba por destituir o valor afetivo do brinquedo devido à sua possibilidade de troca inesgotável. Conforme Meira7, "a exaltação do objeto eleva minúsculos brinquedos à extrema potência, para dali a alguns dias serem substituídos por outros, novas versões tecno do mais avançado, do melhor" (p.75). A autora conclui que o brincar, como um processo de criação produzindo subjetividade, encontra-se em crescente subtração.

Essas características do brincar/brinquedo na infância contemporânea nos fazem refletir sobre como os brinquedos influenciam determinados valores, modos de agir, pensar e como a sociedade determina/revela nos brinquedos esses fatores.

Outra característica que tem influenciado o brincar, que não envolve necessariamente o brinquedo, é a falta de oportunidades lúdicas discutida por Friedmann9. A falta de espaço, tempo e de companheiros para as brincadeiras têm dificultado a conquista do direito de brincar.

A falta de espaço para a brincadeira se dá, principalmente, por escassos e precários espaços públicos, pela violência nas ruas e a vida nos apartamentos. O ritmo das cidades, a realização de inúmeras atividades consideradas produtivas (como natação, inglês, escola e balé) faz com que o tempo para brincadeira fique reduzido e deixado em segundo plano. Em relação aos companheiros, as crianças têm brincado cada vez mais sozinhas. As famílias não são mais numerosas e há menos influência de outros para incentivar a brincadeira. A relação social com os vizinhos, amigos e parentes tem sido cada vez menos valorizada pelo cultivo da idéia de auto-suficiência e independência. Além da falta de tempo na relação das crianças com os pais, há um distanciamento marcado pelos brinquedos pré-fabricados. Antigamente, as crianças e pais produziam juntos os brinquedos, propiciando uma oportunidade lúdica incentivada pela relação, vinculando ao brinquedo um valor afetivo.

Apesar deste contexto, - falta de oportunidades lúdicas e valores negativos agregados ao brinquedo - hoje o brincar é reconhecido como importante para as crianças. Essa busca pela real valorização da brincadeira no cotidiano das crianças está presente na organização escolar, no atendimento terapêutico, nas reivindicações de uma comunidade, nas leis e diretrizes de diversas áreas. Esses grupos e áreas reconhecem a necessidade de ampliar as oportunidades lúdicas para as crianças, assim como de incentivar brincadeiras que transmitam valores mais cooperativos e resgatem o brincar como linguagem de expressão e elaboração e de troca cultural. É através da aproximação da criança aos seus pares e ao repertório lúdico-cultural que o brincar contribui como uma possibilidade de manter a ligação da criança, com seu mundo e a cultura.

Uma brinquedoteca comunitária pode ser um meio para ampliar as oportunidades lúdicas das crianças de uma determinada localidade com destaque neste artigo para as crianças com deficiência - pois proporciona espaço, valoriza o tempo para brincadeira, tem brinquedos e companheiros que instigam a brincar. E uma brinquedoteca consciente dos direitos das crianças e das dificuldades para esse exercício no mundo contemporâneo, pode se constituir como um recurso de conquista de direitos, a partir da flexibilidade, adaptação e constante questionamento da sua dinâmica.

A falta de oportunidade lúdica e de qualidade nas brincadeiras está colocada para crianças de muitas comunidades, e as crianças com deficiência ainda enfrentam as dificuldades de acessibilidade, colocadas, principalmente, pelas barreiras arquitetônicas e psicossociais. As barreiras arquitetônicas são aquelas que impedem o deslocamento e acesso físico das pessoas com deficiência a instituições, serviços, a casa dos vizinhos e amigos. As barreiras psicossociais são aquelas de ordem psicológica na medida em que o desencadeante do processo é de cunho emocional e cultural onde a produção cultural sobre a deficiência tende a perpetuar representações cristalizadas inscritas no imaginário coletivo. As barreiras psicossociais são consideradas por Amaral10 as mais difíceis de serem enfrentadas, pois envolvem fenômenos psicossociais de alta complexidade. Amaral10 afirma que se desde crianças as pessoas estivessem acostumadas a conviver com pessoas com deficiência, diminuir-se-iam as reações de estranhamento e, conseqüentemente, os preconceitos e as barreiras atitudinais.

Assim, além de aumentar as oportunidades lúdicas das crianças de uma região, uma brinquedoteca comunitária que incentive, valorize e garanta a participação de crianças com deficiência também pode vir a ser um instrumento de transformação da imagem da deficiência nesta comunidade. Ao possibilitar um lugar de encontro das diferenças, a partir de interações sociais interpessoais, pode ser um momento de enfrentamento das barreiras psicossociais frente à deficiência.

Brincar: a importância e a dinâmica da relação social interpessoal

Consideramos relação social interpessoal (Hinde apud11) aquela em que há várias interações entre duas pessoas de forma que o comportamento de um leva em consideração o outro.

Brincar com o outro é um momento de interação interpessoal importante para o desenvolvimento social das crianças. Para Vygotsky3, a criança apreende sua cultura e forma seus valores no contexto sócio-cultural onde ocorre uma reelaboração, por parte dos indivíduos, dos significados que lhes são transmitidos pelo grupo cultural. A relação social é um meio de troca e a brincadeira faz parte do patrimônio lúdico-cultural que transmite e traduz valores, costumes, formas de pensamento e ensinamentos, mas também reflete os valores de quem brinca. Esses valores podem ser reconstruídos diante da realidade compartilhada com outras crianças e adultos. Assim, a brincadeira é um importante modo de interagir, inserir-se culturalmente e socialmente.

Muitas brinquedotecas possuem um espaço para que as crianças brinquem. Esse espaço abre a possibilidade de brincar com outras crianças, com adultos, muitas vezes intermediado por um brinquedo ou brincadeira como um momento de interação social. Uma brinquedoteca para todas as crianças da comunidade que valorize, incentive e facilite a participação daquelas com deficiência pode ser um espaço de valorização da linguagem infantil, de acesso à cultura, de transformação de valores e de aceitação da diferença.

Como afirma Friedmann9, "a criança que convive em uma comunidade ou instituição vai, progressivamente, através das trocas com outros, interiorizando os valores e idéias daquele grupo. Como a criança virá a incorporar esses elementos na sua personalidade dependerá do caráter dessas interações sociais, assim como da natureza e variedade de transações sociais disponíveis a ela. A brincadeira tem um papel especial e significativo na interação criança-adulto e criança-criança. Através da brincadeira as formas de comportamento são experimentadas e socializadas" (p.25).

Aranha11, em sua pesquisa sobre as relações sociais interpessoais em uma creche com crianças com deficiência e crianças consideradas normais, conclui que as relações interpessoais complexas e duradouras entre as crianças não dependem de suas habilidades ou competências. Diferentemente do que a literatura especializada sugeria, confirma e reintegra os estudos recentes no campo da educação infantil brasileira e os estudos italianos em que se observa que as atividades, interações, relações entre as crianças nestes espaços não dependem de seus níveis de competências ou habilidades, sejam elas lingüísticas, cognitivas, motoras ou perceptivas. Essa conclusão, conforme Prado12, transgride a divisão etária proposta no contexto das creches e aquela utilizada em todo o sistema escolar, que parte de uma concepção de infância como algo que se compartimentaliza em fases tão delimitáveis que, quase naturalmente, coloca às crianças um modelo definitivo e definidor na construção do seu desenvolvimento e de sua identidade social, reforçada pelas teorias etapistas de desenvolvimento infantil e por pré-noções em relação à infância como, por exemplo, que as crianças maiores machucam as crianças menores ou que crianças maiores e menores não sabem brincar juntas, dentre tantas outras. A autora considera que "a percepção que cada parceiro tem das interações passadas e/ou como as imagina, aliada a como se predispõe para outras futuras também pode afetar o curso da relação". (p.13)

Diversos autores 3,10,12,13 trazem a idéia de que a diversidade é um elemento potencializador de relações interpessoais e de desenvolvimento. Com base nesses autores partimos do pressuposto de que a variedade dos elementos idade, sexo, habilidades e personalidade se constituem em maiores possibilidades de relações sociais complexas e duradouras.

Conhecer como se apresenta a questão da deficiência na relação social interpessoal entre crianças consideradas normais e crianças com deficiência num contexto de brincadeira pode oferecer elementos para discutir estratégias de participação social de pessoas com deficiência nos diversos espaços, nas relações cotidianas. Assim, essa pesquisa buscou analisar a relação interpessoal entre as crianças em uma brinquedoteca, sua transformação ao longo dos encontros e que elementos do contexto da brinquedoteca contribuíram ou dificultaram essa relação.

Percurso Metodológico

Acompanhou-se durante 10 encontros um grupo com número aproximado de 15 crianças entre 6 e 15 anos sendo duas delas com deficiência mental. Esse grupo era acompanhado pela pesquisadora desde o início de sua implantação, quando, no 3º mês, teve início este estudo. Participou também como brinquedista desse grupo um adulto, morador do bairro. Os encontros foram realizados na brinquedoteca da Associação Cultural União de Bairros (Jd. Imperial, Jd. do Lago e Jd. D'Abril) das 9 as 11h aos sábados.

Para coleta de dados, optamos pela observação participante que permite apreender da realidade, de forma mais natural, suas transformações ao longo do tempo e identificar que elementos do contexto contribuem ou dificultam as relações sociais interpessoais.

Utilizamos como foco de coleta a descrição da situação lúdica e o comportamento e ações das crianças frente à deficiência. Para descrição das relações interpessoais nesta situação, utilizamos como categorias de coleta de dados: tipo de brincadeira, estilo de interação e caráter social, utilizadas por Carvalho, Alves e Gomes14 que, em seu estudo, analisam as relações existentes entre o contexto das instituições educativas e o comportamento de brincar. Incluímos, ainda, outras categorias para apreender a questão da deficiência neste contexto.

Categorias de Análise das Brincadeiras

1. Tipo de brincadeira: os tipos de brincadeira foram caracterizados como:

a)

Faz-de-conta: brincadeira em que há a substituição/transformação de um objeto por outro ou de uma pessoa por uma personagem, com a qual a criança utiliza sua criatividade e sua imaginação.

b)

Jogos: conjunto de brincadeiras que envolvem regras pré-estabelecidas.

2. Estilo de interação: modo como os sujeitos interagem no episódio de brincar:

a) solitário: quando as crianças brincam longe umas das outras, concentradas no que fazem, sem dar atenção ao que as outras crianças estão realizando;
b)

independente: quando duas ou mais crianças estão brincando próximas umas das outras, não havendo tentativa de influenciar a brincadeira do outro;

c)

assimétrico: quando duas ou mais crianças estão brincando separadamente, havendo uma tentativa de estabelecer algum contato entre si, envolvendo ou não um terceiro, adulto, e existindo uma tentativa de influência recíproca, porém sem complementaridade das ações;

d)

complementar: quando duas ou mais crianças estão brincando juntas, havendo influência recíproca e envolvendo ou não um terceiro; a ação de uma é complementada pela ação de outra.

e)

passagem: foi incluído um estilo de interação "de passagem" por terem sido verificados momentos significativos de interação durantes as observações: se caracterizado por nenhum, ou apenas um, dos participantes estar brincando, e não haver continuidade de permanência de um dos participantes no local ao término do episódio.

3. Caráter social: abrange uma regulação mútua entre os organismos, ou seja, estes possuem a propriedade de regular e de serem regulados.

a)

agonístico: tipo de relação em que duas ou mais crianças, independentemente do contexto do brincar, desempenham ações de agressividade, lutas, disputas, etc.;

b)

pró-social: tipo de relação em que duas ou mais crianças, independentemente do contexto do brincar, desempenham ações que envolvem amizade, cumplicidade, confiança, afinidade, etc.

Para identificar como a questão da deficiência é trazida pelas crianças e suas modificações, utilizamos o referencial teórico de Vygotsky3 que afirma que é na relação sócio-cultural que a criança apreende valores sobre o mundo, reflete sobre eles e os reelabora. Assim, no contexto da brinquedoteca comunitária, as crianças poderão apreender valores, refletir sobre eles e reelaborá-los frente à questão da deficiência. Para observar valores apreendidos optamos por comparar dois episódios significativos quanto à questão da deficiência, que envolvessem os mesmos participantes.

Para analisar que elementos do contexto contribuem ou dificultam as relações sociais interpessoais, utilizaremos o contexto da situação lúdica e suas categorias assim como destacaremos elementos que influenciaram determinada transformação e/ou manutenção de tipos de interações frente à deficiência.

 

RESULTADOS

A Brinquedoteca Comunitária e as Crianças – Contextualização

A brinquedoteca comunitária é mantida pela Associação União de Bairros, em região periférica de São Paulo, com o apoio do Programa de Reabilitação com ênfase no Território do Curso de Terapia Ocupacional da Universidade de São Paulo, e por alguns profissionais da Unidade Básica de Saúde da região. A brinquedoteca foi criada para responder a uma necessidade da comunidade que questionava o fato de não haver lugares para as crianças realizarem atividades recreativas. Para a estruturação da brinquedoteca foi realizado um curso de preparação para moradores da região que se interessassem em ser brinquedistas. Com o apoio de uma empresa que subsidiava o aluguel de uma casa para diversas atividades da Associação, um dos quartos foi transformado em brinquedoteca. Com uma verba recebida pelo programa da universidade foram adquiridos brinquedos e organizou-se o espaço físico em diversos cantinhos temáticos. Apesar do espaço interno da brinquedoteca ser pequeno, foi possível criar os cantinhos: da leitura, da atividade artística, da fantasia, da casinha (feita de madeira com espaço suficiente para a criança entrar) e uma estante aberta de alumínio com diversos brinquedos nas prateleiras permitindo maior acesso as crianças. A brinquedoteca ainda possuía um banheiro e uma pia. No espaço externo, havia um quintal utilizado para as brincadeiras de bola, corda, corrida e roda.

Com o apoio da Universidade, houve também o incentivo para participação das crianças com deficiência nesta brinquedoteca. Duas dessas crianças se vincularam à brinquedoteca de modo significativo à época desta pesquisa: dois irmãos, Gabriel+, 7 anos e Gabrielle, 15 anos com diagnóstico de deficiência mental com diferentes graus de comprometimento mental. Os dois são filhos de Maria que também tem deficiência mental e trabalha como catadora de papelão. Os irmãos são praticamente criados pela avó que, quando soube que seus netos poderiam participar da brinquedoteca, agradeceu enfaticamente dizendo que, "pelo menos uma vez na semana, teria um pouquinho de paz em casa". Assim, Gabriel e Gabrielle se tornaram assíduos na brinquedoteca.

O sábado era o dia mais solicitado para inscrição na brinquedoteca, não sendo possível atender toda demanda. Entretanto, algumas crianças, mesmo não inscritas, apareciam no sábado. Muitas vezes, antes da chegada das brinquedistas, já havia crianças brincando na rua, aguardando a abertura da casa. Aos sábados procurávamos fazer uma brincadeira de roda com todas as crianças para marcar o início e o final grupo. Neste meio tempo, as brincadeiras seguiam livres conforme interesse das crianças que se agrupavam ou por afinidade pessoal ou por atividade. As brinquedistas - a brinquedista fixa, pesquisadora, e a profissional da Universidade - estavam presentes. Havia um empenho das brinquedistas em incentivar a brincadeira que interessava à(s) criança(s) e brincar junto conforme a experiência de cada brinquedista e das crianças. As brincadeiras mais realizadas foram de: bola, corda, pega-pega, fantasia, de "escolinha", jogos, pintura e desenho.

O Desenvolvimento do Brincar das Crianças com Deficiência

Apesar de não ser o foco da pesquisa, relações sociais interpessoais entre as crianças se deram nesse processo de desenvolvimento do brincar das crianças com deficiência.

Gabriel, com uma deficiência mental mais grave do que Gabrielle, não falava e babava continuamente utilizando uma fralda enrolada no pescoço. No início dos encontros, Gabriel se dirigia direto ao armário de brinquedos e jogava tudo no chão, andava por cima dos brinquedos de maneira não intencional. Parecia não entender o sim e o não. Algumas vezes Gabriel puxava o cabelo de um dos participantes. Depois de um tempo, Gabriel se dirigia direto ao armário para pegar um brinquedo em que pudesse enfiar um pauzinho de madeira nos vários buracos e brechas dos brinquedos. No início e no final do grupo, incorporamos às brincadeiras o repertório trazido por Gabriel - como as músicas "Parabéns pra você" e "Atirei o pau no gato" às quais, aos poucos, foi prestando mais atenção até participar do movimento de roda de mãos dadas.

Gabrielle, por sua vez, sempre sorrindo, falava pouco, observava muito as brincadeiras das outras crianças e estava sempre disposta a ajudar quando solicitada, mas não buscava, espontaneamente, brincar com as outras crianças. Ao final das observações, Gabrielle estava mais comunicativa e se aproximava de algumas crianças na intenção de ser chamada para brincar.

Relações Sociais Interpessoais e a Deficiência

A mediação do adulto foi importante como parâmetro de atitudes para as crianças em relação à deficiência.

"Gabriel pegou um pau e trouxe para a mesa onde estavam outras crianças desenhando. Cristina disse que era para ele lhe dar o pau porque era perigoso. Ele não o deu e ela recorreu a Marlene que tentou convencê-lo. Marlene acabou pegando o pau e Gabriel protesta puxando seu cabelo. Marlene nomeia o que está acontecendo. Cristina acompanhou toda essa negociação observando" (1º. Registro).

"Ele (Gabriel) não queria dar um dos brinquedos para guardar. Algumas crianças conversavam com Gabriel falando que ele não podia levar o brinquedo. Elas recorreram à brinquedista para solucionar o problema. Estávamos neste processo quando chega a mãe de Gabriel e tira o brinquedo de sua mão e bate nele: - 'Pra ele aprender', diz ela" (1º. Registro).

Nas duas situações acima observamos a mediação do adulto e a participação das crianças na intermediação - ou solicitando a presença da brinquedista ou convencendo Gabriel para que não levasse o brinquedo para casa - que se comportavam e falavam coisas que haviam visto nas intervenções das brinquedistas. Entretanto a mãe de Gabriel lida de outra forma com a situação: com agressividade. A relação da avó e da mãe para com Gabriel e Gabrielle é bastante tensa. Freqüentemente, presenciamos agressões físicas e/ou verbais para com os irmãos quando trazidos para a brinquedoteca. As atitudes e ações dos adultos, inclusive da mãe e da avó, são parâmetros para as crianças, como foi observado ao identificarmos as crianças utilizando os mesmos argumentos utilizados pelas brinquedistas para convencer Gabriel a devolver o brinquedo. Por outro lado, também se observava as crianças agirem de formas mais agressivas com Gabriel, como as utilizadas por sua família.

"Na hora de arrumar a brinquedoteca, Gabriel não queria dar os dois brinquedos que estava segurando parar guardar. Eu tentava convencê-lo quando Giovana tirou um brinquedo de sua mão, dizendo que ele não poderia levá-lo. Ele ficou olhando e estendeu a mão na tentativa de alcançar o brinquedo que estava indo embora na mão de Giovana, mas não foi atrás dela. Quando pedi o outro brinquedo ele deu" (4º. Registro).

Interações nas Brincadeiras Paralelas (tipo independente)

O brincar paralelo mostrou-se como contexto potencializador de interações sociais.

"Gabriel está sentando junto com outras crianças que usam pincel e tinta. Ele tenta pegar o pincel de alguém. David diz que Gabriel quer pincel e tinta. Gal (brinquedista) pergunta para Gabriel se ele quer uma folha de papel. Sem resposta, Gal dá papel, pincel e um pouco de tinta. Gabriel só pega o pincel e tenta colocá-lo em um vão do brinquedo que estava em sua mão" (1º. Registro).

Nesta situação de brincadeira há uma interação independente, pois as crianças brincam próximas, mas independentemente. O brincar do outro ou o material utilizado na brincadeira do outro (pincel) causa em Gabriel uma reação (tentativa de pegar o pincel). David se sensibiliza com a situação que observa interpretando e intermediando o desejo de Gabriel. O estilo de interação na brincadeira passa de independente para uma interação interpessoal (assimétrica ou simétrica) de caráter pró-social.

"Gabriel permaneceu o tempo todo sozinho. Resolvi perguntar para ele se queria um lápis. Karine que estava do lado pegou um lápis e ofereceu para Gabriel. Ele não pegou o lápis e nem desviou o seu olhar dos brinquedos" (2º. Registro).

Situação semelhante à anterior, em que se observa a atitude da criança sem deficiência estabelecendo uma relação de caráter pró-social. Embora no primeiro caso Gabriel concorde, em certo sentido, com a interpretação e intermediação de David, pois aceita o pincel, no segundo caso, não responde ao oferecimento de Karine, pois não pega o lápis. David e Karine são crianças de 5 e 7 anos respectivamente e mesmo havendo crianças mais velhas participando das atividades, são essas, as mais novas, que interagiram com Gabriel. A interação do adulto na situação (antes ou depois da participação da criança sem deficiência) nos parece um elemento significativo já que sua presença pode ter estimulado a interação das crianças.

"Praticamente todo o tempo da brinquedoteca eu, Dayelle, Daiane, Gabrielle e Giovana ficamos brincando de um jogo chamado Imagem e Ação (um jogo onde um dos integrantes do grupo desenha algo para o outro adivinhar). Como Dayelle, Daiane e Gabrielle não sabiam ler, elas me davam a ficha escolhida com uma palavra e eu falava no ouvido de uma delas o que tinham que desenhar para sua dupla adivinhar. Gabrielle adivinhou muitas figuras que Dayelle desenhou. Na hora de Gabrielle desenhar teve dificuldade e Dayelle dividiu as tarefas: 'Eu desenho e você adivinha.'" (3º. Registro)

Gabrielle aproximou-se do grupo por intermédio de um adulto que adapta a brincadeira para que todas pudessem participar. Do grupo apenas Giovana sabia ler. Saber ler era um limite para a maioria das crianças, mas não inviabilizou a brincadeira. Quando Dayelle percebeu que Gabrielle se dava melhor adivinhando do que desenhando, ela mesma dividiu as tarefas: 'Eu desenho e você adivinha'. A própria criança, percebendo as dificuldades e habilidades de cada um, adapta a brincadeira.

"Quando estávamos na mesa, Cristina fazia flores, Giovana seu boneco, Gabriel tentava encaixar um pauzinho no brinquedo e eu propunha para ele um outro material: encaixar palitos de plástico nos buracos do brinquedo. Sem sucesso começo a cantar uma música bem conhecida de Gabriel. Ele cantou uma parte da música. Giovana comenta que não sabia que Gabriel falava. Cristina fala: é claro que ele fala, ele tem língua. Digo que ele fala algumas palavras, mas é difícil entender o que ele diz. Giovana e Cristina começam a fazer perguntas para ele. Gabriel não responde. Cristina comenta: "Fale com a voz, não com a imaginação". Diante das tentativas frustradas, sugeri que contássemos os números, pois ele sabia alguns. Gabriel falou "cinco, seis". Pareceu gostar que contássemos os números, pois nos olhava e sorria". (8º. Registro)

Novamente o brincar paralelo foi o contexto de início da interação. No relato acima, a percepção das crianças em relação a Gabriel é pequena, pois Gabriel já havia falado algumas palavras em outras circunstâncias (como cantado "Parabéns pra você") e só neste momento é que Giovana diz ter reparado. Mesmo quando Cristina fala 'é claro que ele fala, ele tem língua' ela parece não ter uma percepção real de Gabriel, pois ele fala, mas poucas palavras que, na maioria das vezes, não têm relação com o contexto do momento. Por outro lado, ela parte do pressuposto que ele fala ("pois tem língua") e que parece que ele só precisa ser incentivado, e começa a fazer perguntas. Quando diz 'fale com a voz e não com a imaginação', ela nos sugere que acredita que, embora Gabriel não fale, ele está pensando no que falar. Acreditar na potencialidade de falar de Gabriel leva as crianças a incentivarem sua ação, por meio de perguntas.

Interações de Passagem

Por outro lado, observamos as interações de caráter social agonístico, em geral nas interações de passagem.

"Gabriel e Gabrielle acabam de chegar e vêm até a sala. Gabrielle me disse oi e começou a observar o jogo entre Priscila e eu. Priscila falava bem baixinho: 'Sai, sai. Não vem não'. Gabriel passa por Priscila e ela dá um pequeno soco nele dizendo: 'Sai daqui'. Gabriel não reage. Perguntei-lhe por que não gostava de Gabriel. Disse que na festa junina ele havia puxado seu cabelo" (7º. Registro).

Nessa interação vemos claramente uma atitude e uma ação de caráter agonístico de agressão. A justificativa de Priscila para agressão é que ele, anteriormente, tinha sido agressivo com ela. Ao acompanharmos o comportamento de Priscila na brinquedoteca vemos que ela procura chamar atenção dos adultos, contesta regras, agride companheiros. Esse tipo de interação com Gabriel é mais recorrente por ser alguém mais frágil e entendemos seu comportamento como agressão frente à deficiência.

"Na mesa ao lado Cristina e sua Laura estavam desenhado. Quando Gabriel entrou na sala, Cristina disse para amiga: 'Ó o seu namorado aí, o Ricardo'. Sua amiga pede para calar a boca. Chega Gabrielle. Cristina diz 'Olha a sua amiga, a irmã do seu namorado, a Tânia'. Laura responde: 'Cala boca'. Cristina continua querendo irritar sua amiga e pergunta para Gabrielle se ela não chama Tânia. Gabrielle responde: 'Não eu me chamo Gabrielle'. As Cristina e Laura riem..." (7º. Registro).

Novamente observamos um encontro de passagem. Em diversas situações colocadas, Gabrielle está de passagem e vivencia situações como essa. Isso porque Gabrielle está numa fase em que observa as diversas brincadeiras dos outros. Segundo Aranha11, as interações com parceiros se iniciam pelo estágio de "contatos centrados em objetos" onde a criança assiste o brincar do outro. Vemos que as interações entre Gabrielle e Cristina são diversas entre pró-social e agonística. Essas diversas interações estabelecem o que consideramos uma relação social interpessoal. Observamos, por exemplo, que Gabrielle escolhe Cristina na brincadeira 'Quem roubou pão'. Em outro momento, Cristina procura estabelecer uma conversa com Gabrielle, ou entendê-la, como será posteriormente mostrado.

Observamos também interações agonísticas frente à deficiência como algo que deve ser ignorado.

"Rodrigo acha duas partes de um geladeirinha. Sugiro que ele encaixe as duas partes. Ele diz que faltam partes. Gabrielle acha outras partes e entrega para Rodrigo. Ele pega sem olhá-la e sem lhe agradecer. Ele começa a tentar montar. Gabrielle acha mais uma parte. Ele pega e continua o encaixe" (8º. Registro).

Nesta situação Gabrielle novamente pára para observar o brincar do outro. A interação entre ela e Rodrigo é do tipo agonístico, pois Rodrigo ignora Gabrielle, embora, há quatro semanas, tenha dado um beijo no seu rosto na brincadeira "Verdade ou Desafio".

Interações nas Brincadeiras

"Para finalizar a brinquedoteca brincamos de 'Verdade ou Desafio' que foi sugerido por uma das crianças. Gabriel e Gabrielle sentaram na roda. Um dos desafios para o David foi beijar uma figura do 'capeta' desenhada nos muros do quintal da brinquedoteca. Ele beijou e todos se surpreenderam. Gisele deu um desafio para Gabrielle: de beijar o mesmo 'capeta', mas na boca. Ficou uma expectativa grande. Mas Gabrielle, decidida, levantou e deu um beijo na boca do 'capeta'. A roda ficou animadíssima. O desafio colocado para Rodrigo foi dar um beijo no rosto de Gabrielle. Houve uma breve expectativa. Rodrigo deu o beijo. Outro desafio para Gabrielle era dar um beijo em Giovana. Ela deixou mas depois 'limpou' o beijo. Chegou a vez de Gabrielle, mas como tem dificuldade para articular as palavras as crianças iam tentando adivinhar. 'Desafio? Na Marlene? Não... não, ela disse Alessandra'". (4º. Registro)

A brincadeira caracteriza-se como um jogo com regras estabelecidas. O caráter da relação varia de agonística a pró-social. A brincadeira se configura como teste e desafio. Mas a centralidade do desafio passa a ser na interação da e com a criança com deficiência. A criança com deficiência reage bem ao desafio na situação de brincadeira e há mútua diversão, brincadeira que é requerida em outros dias da brinquedoteca. A partir dessa brincadeira Gabrielle passou a ser mais respeitada pelas crianças. A brincadeira, tomada como brincadeira, foi que permitiu seu desenrolar; rir do outro, colocar ao outro um desafio e isso ser recebido como brincadeira. A brincadeira permite experimentar papéis o que na realidade do cotidiano pode ser menos permitido. A brincadeira possibilitou interações significativas e o exercício de relação com a deficiência e com a sexualidade por meio de dar e receber beijos e de buscar entender a vontade (a fala) de Gabrielle.

"Algumas crianças brincavam de se fantasiar e um dos meninos vestiu uma saia. Gabrielle diz: 'Menino usando saia?!' Ela e Gisele começaram a rir juntas". (2º. Registro)

No relato acima, Gabrielle e Gisele compartilham da idéia sócio-cultural que menino não deve usar saia. O tipo de brincadeira é o faz de conta e o estilo de interação é independente. A identificação com essa idéia aproxima as duas. Gabrielle e Gisele são pré-adolescentes e apesar de realizarem, muitas vezes, a mesma atividade (como desenhar e pintar) nestes momentos não foi observado interação entre elas. Entretanto havia uma atitude de interesse de Gisele para com Gabrielle, como observado na brincadeira "Quem roubou pão" quando esta escolhe Gabrielle, ou ainda com a brincadeira "Verdade ou Desafio" em que Gisele testa se Gabrielle aceitará os desafios.

"Para finalizar brincamos de Quem roubou pão. Nesta brincadeira, Gisele escolheu Gabrielle para passar a bola e Gabrielle escolhe Cristina apontando com o dedo. Gabriel foi o último a ser escolhido naquela tentativa de lembrar quem ainda não havia brincado". (10º. Registro)

Neste episódio, Gabriel foi esquecido pelo grupo porque a brincadeira requeria uma habilidade que as crianças acreditavam que ele não tinha. Em outros momentos Gabriel era lembrando, quando, por exemplo, as crianças diziam que ele ainda não tinha chegado, ou que estava indo embora com um brinquedo.

A única brincadeira que Gabriel participava junto com outras crianças era das cantigas de roda onde todos cantavam 'Atirei o pau no gato' e 'Parabéns pra você', pois eram músicas que ele falava algumas sílabas nos finais das palavras. As músicas eram propostas para que Gabriel participasse da roda. Havia um movimento das crianças mais velhas de fugirem de dar a mão para o Gabriel enquanto as crianças mais novas aceitavam mais facilmente, apesar de, muitas vezes, se mostrarem incomodadas, ou porque Gabriel não dava a mão direito ou porque soltava. Esse incômodo foi diminuindo com o tempo. Na brincadeira de pular corda, as brinquedistas estimulavam a música 'Com quantos anos eu vou me casar' que tinha contagem e que Gabriel contava os primeiros números. Por um lado as crianças se surpreendiam com a participação de Gabriel, por outro reclamavam da repetição das músicas. Esses eram momentos que todas as crianças viam Gabriel, suas estranhices e suas habilidades, o que deixava de acontecer com a dispersão das crianças em outras brincadeiras, quando Gabriel deixava de ser percebido.

"As duas estão brincando de escolinha. Karine se surpreende com Gabrielle dizendo GATO. 'Nossa! Ela tá aprendendo falar, ela disse gato'. Desenhamos e escrevemos: bandeira, gato, sapato, bola. Karine pede o apagador emprestado, Gabrielle atende ao pedido e a Karine agradece. Karine ajuda Gabrielle: 'Agora o 'O' e o 'L'. Algumas crianças passavam pela lousa para mostrar que sabiam escrever, como Rodrigo e Giovana". (4º. Registro)

As duas crianças estavam brincando de escolinha: Karine era a professora e Gabrielle a aluna. Embora Karine e Gabrielle estejam numa mesma fase de alfabetização, é Karine que se coloca no papel de professora. Gabrielle parece gostar do seu papel de aluna. Ou gostar do fato de estar brincando com Karine. Mesmo sabendo escrever algumas palavras, espera que Karine ensine para depois copiar. Nesta situação, a linguagem de Gabrielle surpreende Karine. A linguagem (escrita e falada) é algo valorizado pelas crianças como aquisição.

 

DISCUSSÃO

Nesta pesquisa pudemos observar as interações sociais interpessoais entre crianças com e sem deficiência numa brinquedoteca e os elementos do contexto que influenciaram essas interações.

Identificamos três contextos de interação que se mostraram significativas para interações entre crianças com e sem deficiência: de passagem, em brincadeiras paralelas e nas brincadeiras com o outro. As interações de passagem mostraram potencializar mais interações agonísticas, enquanto brincadeiras paralelas, mais interações pró-sociais. As situação de brincadeira de escolinha, de fantasia e jogos mostraram potencializar mais interações pró-sociais devido aos próprios integrantes escolherem as brincadeiras e seus companheiros. As brincadeiras em que todos participavam, embora dessem visibilidade e participação grupal às crianças com deficiência, mostraram maior quantidade de interações agonísticas e pró-sociais.

Em relação às interações sociais entre crianças com e sem deficiência e o contexto concluímos que:

  • as crianças menores, que pareceram mais predispostas à relação com pessoas com deficiência, colocaram-se mais na situação de imaginar o desejo e dificuldade do outro;
  • as crianças maiores e com atitudes de cuidado, colocavam-se no papel de cuidar da criança com deficiência para não se machucarem ou não machucarem os outros, mas poucas vezes brincavam juntos;
  • não houve predominância de interação pró-social segundo a idade ou tipo específico de brincadeira, e sim em situação de complementariedade de papéis sociais, cumplicidade numa situação ou de se colocar no lugar do outro proporcionada por um contexto de interação;
  • a atitude afetiva da criança com menos deficiência contribuiu para que crianças menores se aproximassem dela;
  • durante a brincadeira as crianças sem deficiência decidiam as regras do jogo, distribuindo papéis, segundo a competência dos participantes, buscando estratégias de participação da criança sem deficiência;
  • as crianças sem deficiência se surpreenderam positivamente com habilidades das crianças com deficiência;
  • como transformações em relação à questão da deficiência por crianças que tinham atitudes agonísticas de agressão, estas passaram a ignorar e observar, sem que, no entanto, passassem a apresentar atitudes positivas;
  • os valores dos adultos foram incorporados pelas crianças, observados por meio de atitudes e falas;
  • nas brincadeiras de início ou finalização do grupo, em que todas as crianças participavam, as crianças com deficiência eram mais visualizadas e consequentemente eram foco de mais interações pró-sociais como também para testar sua capacidade ou promover a ridicularização;
  • observamos mais interação pró-social entre a criança com maior deficiência e outras crianças quando havia um brincar paralelo, independente da brincadeira;
  • as brincadeiras de roda conectaram a crianças com deficiência ao seu repertório cultural de músicas e surpreendiam as crianças sem deficiência.

A criança com deficiência mais grave:

  • passou a ficar mais tranqüila com o decorrer de sua freqüência à brinquedoteca. Antes, era agitada e dificilmente evitávamos que jogasse todos os brinquedos no chão,
  • deixou de pegar todos os brinquedos ao mesmo tempo e passou a brincar com um brinquedo predileto, embora não tenhamos observado um aumento na exploração das possibilidades do brinquedo predileto, apenas repetição,

A criança com menos deficiência:

  • passou a interagir quando solicitada e depois a esperar ser solicitada para a brincadeira. Antes apenas observava outras crianças brincando;
  • passou a falar mais;
  • passou a copiar letras escritas por uma criança mais nova assumindo um papel na relação professor/aluno.

As brincadeiras de roda, jogos de regras, escolinha, fantasia foram as que mais mostraram interações pró-sociais entre as crianças com e as sem deficiência. O brincar paralelo também foi fonte de interações pró-sociais importantes. Por outro lado, as interações agonísticas aparecem mais na dinâmica geral da brinquedoteca, na passagem da criança de um lugar para outro e na organização do brincar. As crianças mais novas ou aquelas que tinham uma atitude de cuidados com outras crianças (não só com aquelas com deficiência) foram as que mais se relacionaram positivamente com a criança com deficiência mais grave. As agressividades verbais e físicas diminuíram em todas as crianças e nos cuidadores (mãe e avó) das crianças com deficiência.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Embora a pesquisa tenha como foco as relações sociais interpessoais entre crianças com e sem deficiência, não podemos perder de vista o contexto desse foco.

Primeiramente poderia ser discutida a função da brinquedoteca comunitária, o que representa ou pode representar uma brinquedoteca em uma comunidade em relação às necessidades das crianças (com e sem deficiência) e o que ela pode possibilitar de transformação e conquistas. Essa brinquedoteca não é só um local que tem brinquedos mas também um local que tem valores e princípios no seu funcionamento e busca transformar a realidade do brincar e da vida das crianças dessa comunidade, em especial, das crianças com deficiência. É dialogando com a comunidade sobre esses valores e princípios que há transformação para um cotidiano mais solidário, aberto à diversidade das pessoas e rumo à conquista de direitos.

Ao focarmos, neste contexto, a participação de crianças com deficiência no espaço da brinquedoteca, encontramos várias barreiras, mas também vários recursos: barreiras físicas e psicossociais que enfrentam as crianças com deficiência, que nem chegaram a freqüentar a brinquedoteca; a falta de calçadas transitáveis; a falta de valorização da pessoa com deficiência e do brincar; a falta de tempo dos adultos para levar a criança à brinquedoteca em razão das tarefas domiciliares ou do trabalho para manter a família: a indisponibilidade pessoal em não abrir brechas para que outras pessoas questionem ou perguntem sobre problemas familiares e/ou relacionais; o medo de "expor" a criança com deficiência a olhares; a vergonha de ter na família alguém com deficiência.

Por outro lado, há brinquedoteca, profissionais e familiares/comunidade interessados em que as crianças com deficiência participem e há, principalmente, a vontade de brincar das crianças. Há famílias que tentam burlar e/ou resolver as dificuldades, mas que necessitam de apoio para renovar e/ou efetivar essa vontade por diferentes meios. As crianças, que querem brincar, buscam parceiros para as brincadeiras e tentam estabelecer interações e relações. Os recursos parecem limitados, mas podem ser construídos frente às necessidades e dificuldades colocadas pelos indivíduos desta comunidade.

As crianças com deficiência mostradas nesta pesquisa conquistaram um lugar. Lugar para ir, brincar, encontrar o outro, transformar a si, suas relações e, quem sabe, também transformar o outro.

 

REFERÊNCIAS

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Recebido em 06/11/2006
Aprovado em 23/04/2007

 

 

+ Os nomes de todos os participantes são fictícios.

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