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Journal of Human Growth and Development

versão impressa ISSN 0104-1282versão On-line ISSN 2175-3598

Rev. bras. crescimento desenvolv. hum. v.17 n.2 São Paulo ago. 2007

 

PESQUISA ORIGINAL RESEARCH ORIGINAL

 

Distúrbios de conduta em crianças do ensino fundamental e sua relação com a estrutura familiar

 

Behavioral disorders in elementary school children and their relationship with family structure

 

 

Marcelle PaianoI; Batina B. AndradeII; Eliane CazzoniIII; Jackeline J. AraújoIV; Maria Angélica P. WaidmanV; Sonia S. MarconVI

IEnfermeira do Hospital Psiquiátrico de Maringá. Mestranda em Enfermagem na Universidade Estadual de Maringá-UEM
IIEnfermeira. Professora do Curso de Enfermagem da UNIPAR, Umuarama-Pr. Mestranda em Enfermagem na UEM
IIIEnfermeira. Professora do Curso de Enfermagem da UNOPAR, Arapongas-Pr. UEM
IVEnfermeira. Professora do Curso de Enfermagem da UNIPAR. Umuarama-Pr. UEM
VEnfermeira. Professora do Curso de Enfermagem da UEM. Doutora em Filosofia da Enfermagem. Membro do NEPAAF- Núcleo de Estudos, pesquisa, assistência e apoio à família
VIEnfermeira. Doutora em Filosofia da Enfermagem. Coordenadora do Mestrado em Enfermagem da UEM. Coordenadora do NEPAAF

 

 


RESUMO

O aumento da incidência do distúrbios de conduta em crianças e adolescentes é um fator de preocupação para os profissionais de saúde. Durante as atividades de estágio de alunos de enfermagem em uma escola pública foi detectado que 15 alunos do ensino fundamental apresentavam diagnóstico médico de distúrbios de conduta e/ou tomava medicação controlada. O presente estudo teve como objetivo caracterizar estes alunos, identificar a existência de fatores de risco para problemas de saúde mental e sua relação com a estrutura e a característica familiar. Os participantes foram 11 pais de alunos que concordaram em participar do estudo. Os dados foram coletados por entrevista semi-estruturada realizada no domicílio da criança. Os resultados mostraram que o transtorno mental está presente em crianças / adolescentes de ambos os sexos e em diferentes faixas etárias. A maioria das famílias era do tipo nuclear e a renda familiar média era de 3 a 5 salários-mínimos. O diagnóstico médico mais freqüente era de transtorno de déficit de atenção/hiperatividade (TDAH); a maioria das crianças (76%) possuía antecedentes familiares de transtorno mental e apresentavam dificuldade escolar (72%); e boa parte das crianças era exposta a situações de humilhação. Conclui-se que as características das famílias estudadas podem ser consideradas um fator de risco para o distúrbio de conduta, especialmente em relação aos antecedentes familiares e a práticas educativas inapropriadas. Há necessidade de novos estudos sobre o tema que possam subsidiar a elaboração de políticas públicas de saúde mental.

Palavras-chave: Saúde mental. Família. Criança. Escola.


ABSTRACT

The increase in behavioral disorders in children and adolescents is a factor of concern for health professionals. During the internship of nursing students in a public school, it was observed that 15 elementary students presented a medical diagnosis of mental disorder and/or were taking controlled medication. The present study aimed to characterize those students, and to identify the existence of risk factors for mental health problems, as well as their relationship with family structure and characteristics. The informers were 11 parents of students who agreed to participate in the study. Data were collected in June 2006, through a semi-structured interview that was conducted in the child's home. Results showed that the mental disorder is present in children/adolescents of both sexes and in different age groups. Most of the families were of a nuclear type and the average family income was of 3 to 5 minimum wages. The most frequent medical diagnosis was ADHD, 76% of the children presented family antecedents of mental disorder, 72% had difficulties at school, and a great number of them was exposed to humiliating situations. It was concluded that the characteristics of the studied families can be considered a risk factor for behavioral disorders, especially in relation to family antecedents and to inadequate educational practices. Further studies are needed on the theme in order to subsidize the elaboration of public policies of mental health.

Keywords: Mental health. Family. Child. School.


 

 

INTRODUÇÃO

Estima-se que a prevalência de problemas mentais seja de 10% da população geral, sendo que uma grande parcela desse contingente é composta por crianças1. Estudos feitos na década de 1990 demonstram a prevalência de doenças psiquiátricas na infância entre 14% e 20%. 2-4

Do número total de casos, 2% são considerados casos graves, 8% casos moderados e os demais são tidos como casos leves 5,6. Uma em cada cinco crianças apresenta algum tipo de transtorno mental, uma em dez está seriamente comprometida e apenas metade destas está recebendo tratamento em centros especializados em transtornos mentais 7.

Há variações nas taxas de prevalência de transtornos psiquiátricos em crianças e adolescentes. Apesar das limitações metodológicas de estudos que investigam a prevalência desses transtornos em diferentes culturas (instrumentos, definições de transtornos), vários estudos epidemiológicos indicam taxas entre 9% e 16% em países desenvolvidos.1 Na Inglaterra, um estudo recente com 10.500 famílias encontrou uma prevalência de 10% de transtornos psiquiátricos na infância 8.

Há poucos estudos realizados em países em desenvolvimento, mas estes sugerem que as taxas são, no mínimo, semelhantes.9 Na década de 1980 foi desenvolvido no Brasil um questionário de rastreamento para pais (QMPI) e aplicado em 829 crianças entre 5 e 14 anos, tendo sido identificados 15% de problemas de saúde mental na população estudada. 10

Outro estudo, utilizando o mesmo instrumento, revelou a associação de problemas de saúde mental na infância com problemas de saúde mental materna. 11

Estudo recente realizado no Brasil - em 2001 - encontrou taxas de aproximadamente 10% em áreas urbanas de classe média e em áreas rurais carentes (agricultura de subsistência), semelhantes às da população de classe média dos países desenvolvidos. Entretanto, áreas urbanas e carentes (favelas) apresentaram taxas mais elevadas - em torno de 20% - sugerindo a presença de outros fatores socioculturais, além do econômico, que diferenciam as duas populações de baixa renda estudadas, como a área rural de subsistência e a favela 12.

São vários os problemas de saúde mental na infância e adolescência, sendo os mais comuns os de conduta, de atenção, de hiperatividade e os emocionais. 12, 13

Estudos já descreveram que um dos fatores determinantes do transtorno mental em crianças e jovens é a correlação entre as características da estrutura familiar ou problemas relacionados às questões familiares, bem como o número de adultos presentes no lar, a educação e a atividade laboral dos pais e o bem-estar das crianças; por isso alguns autores 14-16 associam a saúde mental a condições familiares.

O conceito de família coloca esta como o primeiro ambiente de socialização do ser humano, sendo ela descrita como uma estrutura social objetiva onde o processo de socialização é iniciado.17 Na socialização primária a criança interioriza o mundo familiar como sendo o seu mundo. Por iniciar na família, este mundo está repleto de emoções, e, dependendo da forma como essas emoções são conduzidas no ambiente familiar, podemos verificar entre os membros familiares a saúde ou o transtorno mental.

A família, como agente primário de socialização, destaca-se por possuir valores, crenças e costumes que muitas vezes são transmitidos de geração para geração. 18 Vale destacar, pela nossa experiência, que não só valores bons são transmitidos dentro do ambiente familiar, mas também a violência, a mentira, o desrespeito e tantos outros valores que prejudicam a formação da personalidade da criança e podem comprometer a saúde mental desse ser humano no futuro.

Por família entende-se uma instituição primária, passível de vários tipos de arranjo, mas basicamente com a função de socialização das crianças, sendo que "a necessidade de apoio familiar depende da etapa do desenvolvimento e do estado de saúde do indivíduo" 15.

Destarte, a família é a principal instituição responsável pelo apoio físico, emocional, educacional e social de seus membros; assim, compreender os aspectos relacionados ao crescimento e desenvolvimento da criança e a realidade da família deve ser um dos focos de atenção do profissional de saúde.

O profissional tem papel fundamental no cuidado à família, principalmente nas ações de promoção da saúde mental de todo o núcleo familiar e em todos os níveis de atenção; e ele deve ainda pensar a família não só como aliada no processo de cuidar, mas também como uma unidade que precisa ser cuidada. 19 No cuidado oferecido aos membros familiares e à família como um todo, o profissional precisa assumir o papel de agente socializador e integrador, favorecendo o bem-estar de seus membros e a saúde emocional de todos, de forma menos preconceituosa, mais reflexiva e participativa. 19

Outro fator de grande influência no desenvolvimento mental do ser humano está relacionado à questão da violência familiar. Os cuidados prestados por alguns pais mudam de uma cultura para outra, influenciados por diversos fatores característicos daquela população, e por isso o que é considerado violência em determinada comunidade pode não o ser em outra16. Mesmo assim, acreditamos que os profissionais de saúde devem estar atentos para que não haja violação da integridade física nem mental do membro familiar inclusive e principalmente nos casos de crianças.

Para vários autores16, quando os maus-tratos estão presentes podem ser observados prejuízos à criança a curto e longo prazo, incluindo danos à saúde em geral (fraturas, lacerações, lesões cerebrais) e problemas de saúde mental (ansiedade, depressão, isolamento social, suicídio, abuso de drogas, transtorno de conduta, delinqüência). Outras conseqüências da violência física contra as crianças incluem atrasos no desenvolvimento cognitivo, déficit intelectual e fracasso escolar, além de violência e criminalidade na adolescência e na vida adulta 16.

Não obstante, muito além da estrutura familiar, as atitudes de seus membros são determinantes para o bem-estar geral da família e de cada membro individualmente. Todas as atitudes que contribuem para relações mais harmoniosas, que resultam em maior tolerância e compreensão, na tentativa de construção ou reconstrução da família, parecem contribuir para a sensação de bem-estar de todos os membros.

A gravidade das repercussões dos transtornos mentais na infância e adolescência, aliada às altas taxas de tais transtornos em regiões carentes, indica a necessidade e a importância da implantação de serviços de saúde mental dirigidos a essa população. 13

É preciso ainda que os serviços de saúde mental sejam instituídos com maior eficácia e efetividade e se implementem pesquisas referentes ao tema, a fim de que elas possam subsidiar as ações dos profissionais, de forma a conduzir as políticas públicas de saúde mental dirigidas a essa população. De acordo com a bibliografia consultada, os estudos nesta área ainda são incipientes e em quantidade insuficiente para subsidiar uma intervenção adequada.

O interesse em desenvolver este estudo surgiu da experiência de uma das autoras em exercer suas atividades profissionais em uma escola pública e observar que havia um número razoável de crianças e adolescentes que faziam uso de psicotrópicos. A necessidade de conhecer essa problemática levou ao desenvolvimento do presente estudo, que tem por objetivos: a) caracterizar os escolares com diagnóstico médico de transtorno mental e/ou usuários de medicação psiquiátrica; b) identificar fatores de risco para problemas de saúde mental nestes escolares; c) identificar possível relação destes diagnósticos com a estrutura e a característica familiar.

 

MATERIAL E MÉTODOS

O estudo é de caráter exploratório-descritivo de natureza qualiquantitativa e foi realizado com famílias de crianças e adolescentes do ensino fundamental de uma escola em um município do Noroeste do Paraná. A escola é pública, possui 976 alunos matriculados no ensino fundamental e constitui campo de estágio de um curso de graduação em enfermagem que, em suas atividades de ensino prático, presta atendimento à saúde dos escolares.

Os dados foram coletados no mês de junho de 2006, utilizando-se como instrumento a entrevista semi-estruturada gravada, e como estratégia, a visita domiciliar. O instrumento utilizado na coleta de dados foi o roteiro semi-estruturado elaborado pelas pesquisadoras.

Para localização das famílias que fariam parte do estudo, foi feito um levantamento das fichas de saúde preenchidas no início do período letivo de 2006, sendo identificados aqueles alunos com diagnóstico de transtorno mental e/ou usuários de medicamentos. Foram identificados, ao todo, 15 alunos.

O primeiro contato com os familiares dos alunos selecionados para o estudo foi realizado através de uma carta enviada aos pais/responsáveis, por intermédio dos próprios alunos. Os pais que concordaram em participar do estudo forneceram um número de telefone para contato. Através deste contato foram agendadas visitas domiciliares de acordo com a disponibilidade dos pais ou responsáveis e das pesquisadoras.

Apesar de terem sido selecionados 15 alunos, somente 11 famílias fizeram parte do estudo, pois 04 não aceitaram participar da pesquisa.

As entrevistas foram transcritas e posteriormente foram analisados os conteúdos das falas dos entrevistados de acordo com as convergências e divergências das respostas.

Vale destacar que foi levado em consideração todo o postulado da Portaria 196/96 do CNS MS, que dispõe sobre pesquisa envolvendo seres humanos, e o projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de ética envolvendo seres humanos da Universidade Paranaense-UNIPAR/sede.

 

RESULTADOS E DISCUSSÕES

Dentre as 11 famílias entrevistadas, a maioria era do tipo nuclear (81,8%), constituída de 4 membros (72,7%) e com uma renda familiar de 3 a 5 salários-mínimos (81,8%). Em todas as famílias do estudo as mães eram as principais responsáveis pelos cuidados. Elas tinham, em média, 40 anos de idade, e uma parcela considerável delas tinha, no máximo, o ensino fundamental (5); a maior parte (6) trabalhava fora.

É possível verificar que em 5 famílias havia antecedentes familiares para portadores de transtornos mentais. Em relação a isso, é importante considerar que algumas situações podem agravar os riscos quanto à manutenção da saúde mental dos adolescentes, como, por exemplo, a de pais com severos transtornos mentais, a de convivência com situação de violência doméstica ou comunitária e situações de ruptura ou enfraquecimento de vínculos familiares.20

Um estudo longitudinal realizado nos EUA, envolvendo 550 adolescentes estudantes com idades entre 11 e 17 anos, constatou que no início da adolescência o ambiente familiar é um preditor de sintomas depressivos mais importante do que os eventos estressores da vida 21.

Uma pesquisa realizada em Londrina - PR avaliou a presença de transtornos psiquiátricos em pais de indivíduos entre 7 e 18 anos de idade e encontrou uma predominância de transtornos de humor, especialmente depressão maior e distimia, confirmando a importância do fator familiar na vulnerabilidade das depressões na infância e adolescência.22

 

Quadro 1

 

 

Quadro 2

 

Neste estudo, por suas limitações, não foi possível observar uma relação direta entre a presença de transtornos, a renda familiar e a escolaridade da mãe, até porque todos as famílias tinham baixo poder aquisitivo e as mães, com exceção de uma, baixa escolaridade. Contudo, o fator econômico tem sido apontado como desencadeador de frustrações e desentendimentos familiares. Um estudo realizado nos Estados Unidos pelo National Institute of Mental Health (MECA study), em 1998, encontrou associação entre transtornos mentais em jovens com baixa renda familiar e idade materna menor de 18 anos por ocasião do nascimento destes. Por outro lado, identificou que a presença de pais biológicos casados constitui fator protetor para transtornos psiquiátricos.23

Em relação às características da própria criança, é possível inferir que, grosso modo, gênero e idade não parecem caracterizar o portador de transtorno mental, pois este diagnóstico esteve presente em crianças de diferentes faixas etárias e apresentou distribuição por sexo próxima da homogênea. Cabe destacar, no entanto, que, ao que parece, é a partir da entrada na adolescência que o problema tende a se agravar e a levar os pais a procurar ajuda.

A adolescência é um período particularmente rico em possibilidades desestabilizadoras, já que é um momento de definições diversas - nos campos sexual, profissional, familiar etc., lançando questões a que alguns jovens não têm condições de responder positivamente, determinando o sofrimento psíquico e a eclosão de quadros psicopatológicos20.

Das 11 famílias entrevistadas, 09 confirmaram o uso de medicamento psiquiátrico e 03 relataram que no momento o jovem já não o estava utilizando. É comum, no caso de TDHA, as crianças cessarem o uso do medicamento no período de férias, conforme relatado por duas mães.

Quando observamos os diagnósticos apresentados por essas crianças e adolescentes, chama a atenção a alta freqüência (63,6%) do transtorno de déficit de atenção/hiperatividade (TDAH). Estudos nacionais e internacionais situam a prevalência do transtorno de déficit de atenção/hiperatividade (TDAH) entre 3% e 6%, sendo normalmente realizados com crianças em idade escolar24. Além disso, existe alta taxa de comorbidade entre o TDAH e os transtornos disruptivos do comportamento (transtornos de conduta e transtorno opositor desafiante), situada em torno de 30% a 50%.25

O comportamento manifestado pela maioria das crianças correspondeu ao transtorno mais encontrado, que foi o dos sintomas compatíveis com o TDHA. Em relação às alterações de comportamento apresentadas pela criança, sete mães informaram que seus filhos não prestam atenção; seis, que eles são inquietos; duas, que os jovens não respondem às perguntas feitas; duas, que eles não possuem limites; e uma, que a criança briga muito. Cabe ressaltar que na maioria das vezes uma mesma criança/adolescente apresenta manifestação de mais de um sintoma.

Na percepção das mães, a necessidade do uso de medicamentos está atrelada a diversos fatores, quais sejam: alterações de comportamento escolar e dificuldade de aprendizagem (sete mães); mudança de comportamento do jovem - nervosismo e irritabilidade (quatro mães); controle das crises convulsivas (três mães); e mudanças no ritmo do sono insônia (uma mãe).

Quando questionamos as crianças sobre o profissional procurado para iniciar tratamento, verificamos que, na maioria dos casos (7), elas foram avaliadas inicialmente por neurologistas, seguidos do psicólogo (3); e que a queixa inicial normalmente foi algum tipo de dificuldade escolar. Cabe destacar que atualmente todas as crianças usam medicação psiquiátrica e estão sendo acompanhadas ou por neurologista ou por psiquiatra. No entanto, se tomarmos como base as queixas apresentadas e os diagnósticos realizados nos serviços de saúde mental da rede pública de saúde, perceberemos que a grande maioria deles se refere a "problemas de aprendizagem" ou escolares, comprometimentos esses que não necessariamente exigem intervenção de um profissional de saúde mental.26

De qualquer forma, o impacto desse transtorno na sociedade é enorme, considerando-se seu alto custo financeiro, o estresse das famílias, o prejuízo nas atividades acadêmicas e vocacionais, bem como efeitos negativos na auto-estima das crianças e adolescentes, sem contar o risco aumentado de essas crianças desenvolverem outras doenças psiquiátricas na infância, adolescência e idade adulta25.

Em relação às atitudes relativas à educação dos filhos, observamos que 72% afirmam tomar decisões em comum acordo (pais), dado que se contrapõe aos encontrados em relação à presença de brigas na família, onde o relacionamento familiar foi citado com presença de brigas por 06 famílias e apenas 03 negaram presença de brigas. Os problemas vivenciados pelas famílias normalmente são discutidos por todos os membros em seis famílias; somente pelos adultos, em duas; e 3 referiram não discuti-los.

É possível perceber certa dificuldade em expressar as experiências vividas pelos familiares, evidenciando dificuldade dos entrevistados em revelar situações de fragilidade familiar, como citado pela mãe da C1:

..."Aqui em casa quem decide é eu e meu marido, porque queremos uma boa educação pra ele..."

Não obstante, a mesma mãe (C1), quando questionada sobre a presença de brigas familiares, relatou:

..."Vixi, aqui em casa é um brigueiro só, cada um quer uma coisa, às vezes fica difícil..."

Na estrutura familiar do portador de transtorno mental é comum os membros da família invadirem constantemente os sentimentos e pensamentos do outro (Teixeira (1997). Nestes casos, os membros não falam entre si, mas detêm verdades sobre os outros construídas a partir de suas próprias verdades.

As medidas educativas utilizadas pelos pais são prioritariamente a conversa, ou seja, os pais tentam se fazer entender através do diá<-logo, e por fim, nos casos de resultado não satisfatório, referiram tentar outra forma de punição, recorrendo normalmente ao castigo de perda. Alguns entrevistados citaram que em algumas ocasiões chegam a utilizar medidas consideradas não educativas, como chinelo, cinto, palmada, o que justificam pelo esgotamento da paciência e pelo estresse ocasionado por estas situações consideradas cansativas para os pais.

 

Quadro 3

 

 

Quadro 4

 

Outras características familiares e métodos educacionais adotados pelos pais também mostraram associação principalmente com transtornos emocionais e de comportamento: os jovens com transtornos recebiam dos pais menos supervisão, mais castigos e punições corporais23.

É possível observar nos resultados encontrados que, embora os pais tenham consciência das medidas educativas aplicáveis sem prejuízo emocional para o adolescente, muitas vezes lançam mão de medidas por eles próprios condenadas, evidenciando que nem sempre é possível a resolução de problemas sem a perda da paciência por parte dos pais. As falas demonstram que comumente a família não sabe lidar com o comportamento alterado do doente, gerando-se assim uma situação de conflito, o que a leva muitas vezes a deixar prevalecer a vontade do doente, para evitar maiores aborrecimentos:

..."Chega uma hora que não tem conversa que dê jeito, é preciso dar umas chineladas, senão eu não agüento..." (mãe da C3)

Esses dados confirmam o que foi identificado por Waidman 27, quando constatou que, na tentativa de diminuir os conflitos, a família não impõe os limites necessários, deixando o portador dominar o ambiente familiar. É nesse momento que o profissional precisa acompanhar e amparar a família para que ela perceba a situação e encontre a conduta adequada.

A respeito desse assunto, alguns autores28,29 explicam que, pela perspectiva biopsicossocial, a família deve ser considerada como uma unidade funcional, na qual o impacto de uma enfermidade repercutirá em cada membro e em todos os relacionamentos familiares.

Os dados referentes à dificuldade escolar foram relatados por 08 famílias. Destas famílias, 04 mães referiram ajudar a criança nas dificuldades, 02 se negavam a ajudar, 02 eram ajudadas por terceiros enquanto 01 criança não aceitava ajuda. A maioria dos informantes (06) relatou que as crianças são castigadas pelos pais por desobediência, enquanto 02, por brigas na escola.

Em relação às dificuldades apresentadas pelas crianças na escola, (8) 72% apresentam dificuldades de aprendizagem. Estudo realizado sobre qualidade de vida na epilepsia infantil demonstrou que 33% das crianças apresentam dificuldades acadêmicas e de relacionamento com os colegas. Entre as crianças com escolaridade adequada, houve queixas de memória em 19% dos casos30.

No mesmo estudo, é sugerido que o uso de drogas antiepilépticas pode comprometer o dia-a-dia das crianças, porque seus efeitos afetam o comportamento e as funções cognitivas, podendo causar irritabilidade, problemas de aprendizagem, hiperatividade, ansiedade e desordens de conduta 30. Não obstante, a maioria dos estudos concorda quanto à importância de variáveis psicossociais como determinantes dos problemas de comportamento.31-33

O comportamento das famílias em relação à aceitação do uso de medicamento pela criança foi positivo em 06 famílias e negativo em 05, como mostram as falas a seguir:

..."No começo meu marido não concordou, eu tive que dar o remédio escondido, mas hoje em dia ele aceita numa boa..." (mãe da C9)

..."Eu tive muito medo de dar o remédio, tinha medo dele viciar..." (mãe da C2)

Destaca-se ainda um outro aspecto: por uma questão cultural, entre outras, o encaminhamento da criança ao serviço de saúde mental traz em si o preconceito ou estigmatização, tanto por parte de pais e professores como também - muitas vezes - por parte do próprio profissional de saúde mental.26 Dito de outra forma, a criança é encaminhada ao serviço de saúde mental porque supostamente tem um problema, mas no momento em que é atendida podem surgir novos problemas, de ordem preconceituosa. Isto fica claro quando observamos que 45% dos alunos sofrem com brincadeiras humilhantes e reagem com choro e irritação. A humilhação está presente nas brincadeiras sofridas por 5 das crianças, sendo o xingamento a principal forma de humilhação - imposta por irmãos e colegas (02), primos, tios e pais (01), mãe adotiva (01) e madrasta (01). A reação apresentada pelas crianças, na maioria das vezes, é o choro (03) e nervosismo (04).

A maioria das mães (6) considera seu filho diferente das outras crianças, aparecendo como causas a imaturidade (02), egoísmo (01), não-aprendizagem (01), necessidade de chamar a atenção dos outros (01) e falta de concentração (01).

..."Eu acho que meu filho é diferente sim, porque eu preciso ficar sempre por perto pra ver se ele faz direito as tarefas, se está indo bem na escola. Se fosse outra criança eu acho que não precisava de tanta atenção assim..." (mãe de C3)

..."Eu acho que às vezes ele quer chamar a atenção, e isso não é muito normal, mas eu já acostumei...." (mãe de C8)

Os informantes consideram que a necessidade de tomar medicamentos se deva a cefaléia, irritação (01), transtorno bipolar (01), melhora na aprendizagem (02), melhora na aprendizagem e insônia (01), hiperatividade/déficit atenção (02), não estar convencido da necessidade de tomar medicação (03), crise convulsiva (03).

Alguns estudos, referem que há mudanças nas relações e rotinas familiares com a presença de um portador de transtorno mental, por isso a manutenção da realização de algumas atividades em família é uma forma de manter a união familiar.19, 34

Ao serem indagados os entrevistados sobre as atividades que realizam em família, as mais lembradas foram o almoço (08), o passeio (08), as compras (07), ida à igreja (06), os afazeres domésticos (04) e brincar (03). É interessante observar que atualmente, mesmo com os compromissos impostos pelo próprio trabalho, o almoço em família ainda está sendo mantido como o momento em que a família tem de se comunicar. Considerando-se que a cidade em estudo pode ser considerada uma cidade interiorana, ainda é possível se deslocar nesse horário e rever a família.

Neste aspecto, é importante ressaltar que a família, mesmo enfrentando problemas, consegue ser agente de socialização, e nela os valores, as crenças e costumes são transmitidos de geração para geração.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os resultados revelaram que a maioria das crianças do estudo apresenta transtorno de conduta e que a indicação do uso do medicamento parece ser apropriada, uma vez que, na percepção dos pais, todas as crianças apresentavam manifestações comportamentais compatíveis com o diagnóstico clínico e que todas as famílias, em menor ou maior grau, apresentavam fatores de risco importantes para o surgimento de transtorno mental em crianças e adolescentes.

Dentre os fatores de risco identificados destacamos os antecedentes familiares de transtorno mental, que aparecem como uma característica forte nas famílias pesquisadas. Todas as famílias pertenciam à classe econômica menos favorecida, e uma parcela considerável delas faz uso de práticas educativas percebidas como inapropriadas para a educação dos filhos. A maior parte das crianças é submetida a formas diferenciadas de violação de sua integridade física e mental, pois sofrem com humilhações relativas ao seu modo de ser, o que, provavelmente, é um fator determinante de baixa auto-estima.

A dificuldade escolar aparece nos resultados como a razão principal da procura dos pais pelos serviços de saúde. A participação da escola no processo diagnóstico é fundamental, uma vez que pode reforçar a percepção familiar e contribuir para um enfrentamento mais objetivo do problema.

As políticas de saúde mental direcionadas a esta faixa etária são totalmente incipientes, determinando ausência de referência ao tratamento dessas crianças e criando muita insegurança para suas famílias. De fato, as famílias se mostraram confusas e inseguras em relação ao tratamento e à conduta a ser tomada com seus filhos. Todas as mães entrevistadas expressaram dúvidas, angústias e a necessidade de uma rede de apoio institucionalizada para ampará-las.

 

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Recebido 05/12/2006
Modificado em 21/04/2007
Aprovado 25/04/2007

 

 

Autor para correspondência. Rua Jailton Saraiva, 526. Jardim América. Maringá PR. CEP: 87045-300. E-mail: soniasilva.marcon@gamil.com

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