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Journal of Human Growth and Development

versão impressa ISSN 0104-1282versão On-line ISSN 2175-3598

Rev. bras. crescimento desenvolv. hum. v.17 n.3 São Paulo dez. 2007

 

RELATO DE EXPERIÊNCIA EXPERIENCE REPORT

 

O médico e o curador: a pedagogia da dádiva de Valentin no universo da saúde*

 

The doctor and the healer: the pedagogy of the gift IN the health universe

 

 

Ondina Pena Pereira

Professora da Universidade Católica de Brasília (UCB), Programa de Pós-Graduação em Psicologia

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo tem por objetivo analisar – tendo como base a experiência de Valentin, curandeiro da periferia de Brasília - as tensões contemporâneas entre o moderno e o tradicional, detectadas no universo de trocas entre o saber da biomedicina e o saber tradicional das comunidades populares sobre saúde, tendo como suporte a teoria da dádiva de Marcel Mauss e das trocas simbólicas de Jean Baudrillard.

Palavras-chave: Saúde. Dádiva. Troca simbólica. Moderno. Tradicional.


ABSTRACT

This article aims to analyze – based on the experience of Valentin, a healer from the periphery of Brasília - the contemporary tensions between the modern and the traditional, detected in the universe of exchanges between biomedicine knowledge and the traditional knowledge of popular communities about health. The study is supported by Marcel Mauss' theory of the gift and Jean Baudrillard's symbolic exchanges.

Keywords: Health. Gift. Symbolic Exchange. Modern. Traditional.


 

 

INTRODUÇÃO

Na periferia de Brasília-DF, é evidente a tensão na relação entre a medicina oficial e as formas alternativas de obtenção de cura fora dos consultórios médicos. O universo alternativo é bastante amplo e variado: cultos afro-brasileiros, centros espíritas, igreja católica, na sua ala Renovação Carismática e muitas outras formas que escapam a uma classificação tão clara.

É justamente entre essas formas menos classificáveis que se destaca Valentin, "curandeiro" que habita e atende um enorme público na cidade Satélite do Gama e que mantém relações bastante singulares com alguns segmentos da medicina oficial.

Em torno da sua órbita gravitam pacientes, tanto aqueles que tomam a iniciativa da busca de ajuda paralela, quanto os que são indicados pelos próprios médicos, os quais reconhecem a importância da presença do curador na vida dos pacientes. Além disso, há médicos, praticantes da medicina oficial, que dedicam algumas horas de sua semana trabalhando na sustentação e no apoio periférico ao autodenominado curador-analista, dando total crédito aos efeitos curativos do seu método terapêutico.

Pretende-se aqui analisar esse universo de trocas entre o saber hegemônico e o saber tradicional das comunidades populares sobre saúde, tendo como suporte Marcel Mauss e sua teoria da dádiva1, assim como Jean Baudrillard e sua teoria das trocas simbólicas 2,3,4.

No universo tradicional, no qual opera o dom do curador, a resposta a essa dádiva é sempre uma contra-dádiva, garantindo o fluxo contínuo dos processos de troca simbólica. No universo moderno – onde se instala o aparato médico oficial – não se trata mais de dom, pois a troca simbólica é substituída pela troca econômica. A reunião dos dois universos na área de saúde dá um conteúdo específico às duas formas de troca.

Trata-se, assim, de refletir sobre as conseqüências pedagógicas desse encontro, isto é, os efeitos transformadores que o contato com a forma da dádiva – na figura do curador - realiza sobre a forma econômica – na figura dos médicos. Pretende-se também refletir sobre as transformações pelas quais passa o universo da dádiva e da contra-dádiva, próprio das trocas simbólicas, para sobreviver à instalação das trocas econômicas.

A teoria da dádiva

Em seu Ensaio sobre a dádiva, Mauss descreve e analisa o que ele nomeia como "fenômeno social total" encontrado na cultura escandinava, dentre outras, nas quais "as trocas e os contratos fazem-se sob forma de presentes, em teoria voluntários, na realidade obrigatoriamente dados e restituídos"1 (p. 53)

Trata-se de um tipo de troca inelutável, na qual não há gratuidade, mas uma reciprocidade rigorosa, segundo a qual a cada dom deve corresponder um contra-dom. A obrigação de dar e a obrigação de restituir constituem-se como a regra de reciprocidade obrigatória fundamental entre os grupos. Dela, Mauss extrai a inteligibilidade dos fenômenos sociais, nos quais se "exprimem ao mesmo tempo e de uma só vez todas as espécies de instituições: religiosas, jurídicas e morais – e estas políticas e familiares ao mesmo tempo; econômicas – e estas supõem formas particulares de produção e de consumo, ou antes, de prestação e distribuição (...)" 1 (p.53)

O importante a resgatar para os objetivos deste artigo é que não se trata, ao contrário das sociedades ocidentais modernas, de troca de riquezas ou produtos, nem de trocas realizadas entre indivíduos. São as coletividades (tribos, clãs, famílias) que se enfrentam, opõem-se, obrigam-se mutuamente na troca de gentilezas, banquetes, ritos, serviços militares, mulheres, crianças, etc. Se há também circulação de riquezas, esta é somente um termo de um contrato muito mais geral.

Mauss encontrou entre os grupos do noroeste americano o modelo mais puro desse "sistema de prestações totais". À troca de dádivas entre esses povos, submetida ao princípio da rivalidade e do antagonismo, Mauss chamou potlatch, palavra chinook que significa "nutrir, consumir".

A partir de um vasto material etnográfico e principalmente de depoimentos dos informantes maori, o autor dá a ver a diferença fundamental entre essa forma arcaica de troca e a troca moderna, mercantil, na base do contrato individual. Nas palavras de um dos informantes maori, citadas por Mauss, a idéia fica mais clara:

"Os taonga e todas as propriedades rigorosamente ditas pessoais têm um hau, um poder espiritual. Vocês dão-me um, eu dou-o a um terceiro; este dá-me um outro, porque é forçado pelo hau do meu presente; e eu sou obrigado a dar-vos essa coisa, porque é preciso que eu vos devolva o que é, na realidade, o produto do hau do vosso taonga" 1(pp. 66/67)

O que salta aos olhos no depoimento acima é o fato de não haver inércia nas coisas trocadas. O espírito delas – hau – as faz circular, além de conservá-las ligadas ao doador, que já foi e em breve também será donatário. O espírito das coisas confere ao seu fluxo uma força tal que impede sua retenção, transformando doadores e donatários em intermediários do fluxo. Estes se vêem obrigados a reconhecer essa propriedade intrínseca das coisas, não importando o valor que possam lhes atribuir.

Baudrillard 2,3,4 inspira-se nesse ensaio de Mauss para construir a sua definição de simbólico, assim como para delinear a diferença entre o mundo tradicional e o mundo moderno. Diante da descrição e análise desses grandes sistemas de troca que não se traduzem em uma troca econômica, ou, pelo menos, onde a instância econômica, tal como compreendemos modernamente o conceito, não é determinante, está demonstrada, para o autor, a existência de um tipo de troca onde os objetos trocados não se submetem ao "equivalente geral" de um sistema de valor econômico, mas são trocados pela troca em si mesma.

Fica exposta, assim, a diferença entre a troca moderna e a troca "primitiva". Enquanto a primeira é econômica, a segunda é simbólica, ou seja, agonística, marcada por uma rivalidade dispendiosa onde o que está em jogo não é a mercadoria, não é o valor, mas a reversibilidade da obrigação ritual. A grande contraposição se dá, então, entre troca de diferenças concretas, por um lado, e, por outro, troca de valores referidos a um equivalente geral, ou seja, troca de abstrações.

No próximo item, será examinada a forma como essas contraposições se realizam no universo da saúde, isto é, na relação entre a medicina oficial e os processos tradicionais de cura, aqui representados por Valentin, que atua no Gama, cidade satélite de Brasília.

O universo tradicional de Valentin

O local onde Valentin recebe as pessoas que o procuram está sempre cheio, pelo menos nos dias e horários previstos para os atendimentos. A primeira chegada à casa foi surpreendente: cerca de duzentas pessoas aguardavam a sua vez na fila e, ironicamente, do lado da casa, vazio, um posto de saúde. Assim, a questão levantada, a da relação entre o moderno e o tradicional, revelou-se profícua. Nas visitas posteriores, pôde-se constatar que, aos sábados, o número de pessoas ia além de mil.

Dentro da casa, muitos atendentes, pessoas vestidas de branco, recebiam os pacientes, davam informações, encaminhavam-nos a uma fila de pessoas que aguardavam em um corredor que dava para uma sala onde se viam algumas macas (em torno de sete). Em todas elas já havia pessoas deitadas. O atendimento era rápido: ouviam-se algumas palavras, um clique de tesoura, e, em seguida, já se observava a pessoa se levantar e ser substituída por outra na mesma maca.

O primeiro contato com Valentin foi inesperado. Nessa sala, em uma conversa entre uma ajudante sua e uma estagiária da pesquisa, ao ouvir a expressão "curandeiros do DF", ele reagiu veementemente, interferindo na conversa e dizendo não ser um "curandeiro", mas um "analista". A partir desse momento, a entrevista se deslocou inteiramente para a sua fala, que explicava a origem do seu dom e como atuava com ele.

As suas primeiras palavras indicam a gratuidade da sua atividade:

Pra início de conversa eu não sou curandeiro. A minha cura é provada dentro da medicina, no Brasil e fora do Brasil. Eu não sou curador, porque se eu fosse, igual se fala por ai, eu seria milionário. Eu seria mais rico que Silvio Santos.Eu não cobro minhas consultas. Nada.

Uma atividade de cura gratuita, na sociedade econômica, está na contra-corrente da acumulação, é dispêndio luxuoso, portanto, necessita ser atestada por algum tipo de procedimento:

Nós temos aqui uma corporação onde a cura é feita e é registrada em cartório. Pra cura ser registrada em cartório é porque nós a fizemos. Tem uma coisa pra mim que é a força de vontade, isso é que é fundamental. Eu fiquei catorze anos numa cadeira de rodas e fiquei bom debaixo de um pé de mangueira, só e Deus. Minha cura tá ai (aponta para uma pilha de pastas catalogadas com o comprovante de cura) é comprovada em cartório, confirmada por vários médicos, eu curo e provo.

No entanto, tal gratuidade é aparente. Vista sob o ângulo da sociedade da dádiva, ela já é uma contra-dádiva, em pleno acordo com a exigência de reciprocidade nas trocas. A diferença é que, aqui, ao contrário da dádiva analisada por Mauss, a origem do dom transcende o mundo social. O primeiro doador teria sido Deus. Tendo recebido a graça, Valentin está obrigado a restituí-la sob a forma de cura a outros. Não pode, pois, submetê-la ao princípio das trocas econômicas, pois isso comprometeria o circuito simbólico:

Fui cego e aleijado e fiquei bom debaixo de um pé de mangueira só e Deus, depois de rezar e pedir.Eu fui desenganado em várias clínicas de todo canto do Brasil.. Então, se eu fui doente e cego em cima duma cadeira catorze anos e fui curado só e Deus eu queria ver se a verdade era verdade.Eu já tenho quarenta e oito anos quase cinqüenta anos de trabalho e se eu cobrasse um real da humanidade eu tava milionário, não tava?! Mas eu tô aqui pra fazer minha missão. Eu tô aqui pagando a missão que recebi. Se eu fizer uma cura aqui cobrada, eu deixo de fazer ela.

Na troca-dádiva de Valentin, a saúde é o que se recebe e que se dá. Nos seus termos, não é possível ler a "doença" como a diagnostica a medicina oficial, através de exames de laboratório, porque estes teriam um significado funcional, isto é, os aparelhos têm a função de verificar se algo no corpo que escapa a uma ordem compreendida como saúde. Já aqui, a noção mesma de saúde, de doença e de cura é questão de desafio e de troca. Valentin tem não a função, mas, sim, a obrigação simbólica de restituir o dom recebido. Assim, não conhece, nem reconhece o exame que acusa uma doença, mas, simplesmente, recebe aqueles que dizem estar doentes:

Qualquer coisa de exame que você jogar aqui dentro eu não sei nem do "a". Traga um exame e diga o que tem e nós vamos ver se tem ou se não tem. Eu quero mostrar o que é doença e o que doença não é. Eu duvido e desafio. Eu sou nessa medida, por isso você nunca encontrou nenhuma pessoa igual a mim. Eu não descobri nada. Eu fiz e provei.

A forma da cura não tem como se revelar, algo permanece como mistério. E parece que é assim que tem que permanecer. Mas, estando em uma sociedade da qual o mistério foi abolido e na qual tudo deve ser decodificado e traduzido em cifras, o mistério deve, pelo menos, submeter-se a uma prova burocrática:

Aqui não se toma um comprimido, uma raiz de pau, uma garrafada, uma água fria. Se você chegar num dia de sábado ou dia de segunda ou dia de quarta, você vai ver gente aqui curada de câncer provado dentro da medicina. Eu faço a cura e mando pro médico. Se não tiver os exames feitos lá e provados lá, eu não curei. Não é fé. Você tem que entender o que eu vou te dizer: é força de vontade. Se você está com uma doença aqui, você tem que ter força de vontade pra curar ela. Você tem que resistir a ponto de você dominar ela e ela não te dominar. Ai você cura ela. A força de vontade tem que ser minha. Agora o que eu mando dizer pro povo é que tenha força de vontade e coragem.

Ao receber os doentes, Valentin, movido pela sua vontade, lhes transfere o dom recebido. Os que o recebem haverão de ter força de vontade e coragem para continuar a fazer circular o dom, na forma de testemunhos da cura efetuada pela vontade de Valentin. A força de vontade, no entanto, só é real se está desvinculada dos bens materiais e da acumulação capitalista:

É isso que eu te digo e aqui é eu só, é eu que faço isso. Não interessa comprar mansão e enricar, não me interessa comprar carro zero km nem fazendas. Não tenho nada, entendeu bem?! O que eu tenho é uma casa e duas moças formadas, mais nada. Agora, o que eu quero dizer é que eu tô cumprindo uma missão e essa missão eu tenho que cumprir ela até o fim. Eu nem sou contra religião, mas eu só acredito em Deus. Não é a fé que cura, é a força de vontade e as suas lutas. Eu não chamo isso aqui de medicina não, eu sou um analista. Eu não posso substituir o poder do médico. Eu não tiro remédio de médico, eu não tiro exame de médico e eu não tiro consulta de médico. Vá! Faça! O médico desenganou e disse que não tem cura?! Então venha pra cá que eu vou fazer sua cura.

Há espaço, pois, para as duas formas terapêuticas. Atuando no interior de um mundo de trocas econômicas, o desafio da dádiva dá lugar a uma espécie de conciliação, onde a função do dom aparece principalmente no limite das possibilidades da medicina oficial. Valentin não é, pois, contra a medicina. Há até mesmo médicos que trabalham com ele aos sábados:

Se um médico passa um remédio, eu vejo se o remédio do médico serve. Se serve, serve. Nós somos de carnes humanas. Nós temos que ir (morrer). Eu tenho que ir, você tem que ir, todo mundo tem que ir. Agora, o poder está entre nós e a força de vontade está entre nós. Os médicos não curam e não morrem?O poder da força é você próprio. Agora, eu conheci quem sou eu. Eu, dentro de mim, tenho força, dentro de mim eu tenho poder. Tenho poder e força de curar seu coração e você a força de me ajudar. Entendeu caboclinha?!. O que adianta é você conhecer propriamente os seres humanos.

A conciliação não impede, entretanto, que Valentin desafie resultados de exames e diagnósticos médicos, quando lhe parece ser necessário, o que acontece sempre que a abstração do exame não se concretiza na "pessoa" presente:

Se você chegar aqui na corporação com um exame médico e esse exame estiver errado, eu te digo "Esse exame aqui tá errado, pode mandar o médico pedir outro, porque esse exame aqui tá errado. Aqui (na pessoa) não consta essa doença que fala no exame".Isso já aconteceu muitas vezes aqui: Eu mandei voltar porque a doença que tinha no exame tava errada, não constava na pessoa. Eu mandava voltar e ela fazia outro exame e ficava provado que eu tava certo. O mistério tá aí.

Para se fazer compreender, Valentin insiste sobre as idéias centrais do seu sistema, da sua corporação, como ele nomeia. É importante dizer e reafirmar a ausência do dinheiro no circuito. Para ele, não existe cura quando alguém precisa pagar por ela:

Se eu te curo e você me paga, mesmo se o dinheiro não é para mim, mas para a corporação, não é mais cura.

É uma outra coisa, não nomeada. Sua concepção de cura está ligada ao circuito de trocas, no qual o dinheiro não tem função. A presença do dinheiro colocaria em risco o próprio trabalho de cura, que depende unicamente da vontade, assegurada pelo circuito do dom e do contra-dom, no qual Valentin foi curado um dia, em troca de curar os outros que respondem também ao dom, através do contra-dom do testemunho, o qual faz crescer o circuito.

Nós temos curas atestadas aqui. As pessoas que trabalham aqui foram curadas, ou de câncer, ou de outra doença grave. Entre eles, existem muitos médicos.

Na narrativa de Valentin, há um instrumento utilizado para a cura, que foi a concretização do recebimento do dom. Assim, além das curas que obteve, Valentin recebeu o instrumento-signo da sua vontade de curar. Instrumento-signo porque não é imprescindível:

Eu não curo com as mãos. Eu tenho a minha tesoura. Eu não tô dizendo que eu gosto é da verdade, que minhas curas são tudo registradas em cartório? Porque Deus não veio no mundo fazendo cura cobrada. u uso a mesma tesoura há 48 anos. Se você roubar essa tesoura, você não consegue fazer nada. O segredo está em mim e na tesoura, recebida debaixo dum pé de mangueira só eu e Deus. Se eu quiser curar sem ela, eu curo sem ela. Visto uma capa preta, um chapéu preto ou sem a capa e sem chapéu e curo. É a mesma coisa, curo de qualquer jeito.

Dessa forma, elementos que poderiam ser considerados rituais têm importância secundária no processo de cura realizado por Valentin. Os pacientes apostam na força de vontade sustentada pela sua figura, sem que este lance mão dos apetrechos habituais em terapias não-oficiais. A forma terapêutica não é revestida de signos religiosos, mas dos signos da assepsia médica mesma. Assim como seus ajudantes, Valentin se veste de branco. E é através dessa apresentação que o processo de cura aparece como uma possibilidade aos olhos dos pacientes, os quais, mesmo sem serem solicitados, vêm dar sustentação ao "mestre", prestando espontaneamente seus depoimentos, pois é sua vez de dar passagem ao fluxo contínuo do dom e do contra-dom. Talvez por isso Valentin insista que não se trata de fé, mas de força de vontade. Assim, não se trata também de um milagre.

Não é a fé que cura. Tô dizendo que é a força de vontade. Se você chega aqui da noite pro dia eu te passo uma coisa, você vai embora e não volta mais, sua força de vontade não te curou. Pode ser um tratamento demorado. Tem gente que é curado da primeira vez. Tem doença, como o câncer mesmo, que precisa queimar a célula todinha de riba a baixo. Se você não curar as células todinhas, elas sobem em outro canto. Depois deste discurso e desta exigência quase biológica, Valentin retoma o viés secreto de sua visão: Quando vou curar, eu não preciso perguntar qual é a doença. Se você estiver doente eu sei o que você tem. Eu nunca achei quem me desafiasse, queria achar.

A partir daí, os pacientes presentes começam a pedir a palavra para contar suas experiências. A maioria dos testemunhos estava ligada às questões que se tornaram insolúveis para a medicina oficial. Alguém tinha necessidade de uma cirurgia, mas uma anemia profunda e incurável a impedia. Valentin curou a anemia e preparou o paciente para a cirurgia. Outras pessoas com doenças graves procuraram Valentin depois de receber do médico a notícia de que não havia cura possível. O que fica exposto em todas as narrativas é a existência de uma relação anterior com médicos, na qual os limites da abordagem da biomedicina se tornaram evidentes. Da mesma forma, apareceram os limites da própria relação médico-paciente, na qual a dificuldade de comunicação entre os envolvidos impede a eficácia do tratamento.

As narrativas, entretanto, não se limitam a mostrar a eficácia do tratamento de Valentin. É preciso sempre lançar mão dos dispositivos da medicina enquanto provas finais, sejam estas os exames registrados em cartório, ressonâncias magnéticas, hemogramas, raios X, todo esse vocabulário que traduz a troca-dom na linguagem da troca econômica e a erige em cifra.

A medicina moderna no universo tradicional de Valentin

A presença de alguns médicos nos corredores e nas salas do centro de Valentin teria passado desapercebida, não fosse seu próprio desejo de confirmar as palavras de Valentin, já que naquele lugar eles não se distinguem dos demais ajudantes.

O universo da dádiva, atuando dentro dos limites do mundo onde a função econômica é hegemônica, contamina alguns dos praticantes da medicina oficial. Estes não conseguem dar de ombros à vontade de Valentin, que atua ali onde o discurso da biomedicina se reconhece impotente. O depoimento que se segue é de uma cirurgiã plástica ali presente, que procura explicar, com muita dificuldade, a sua compreensão, do ponto de vista de quem fez muitos estudos médicos, os eventos dos quais ela participa ao lado de Valentin. Sua primeira abordagem é a questão do mistério, seguido da idéia de dom:

Existe um provérbio que diz assim: "entre o céu e terra existem muito mais coisas do que a nossa vã filosofia pode imaginar" você está entendendo como que é?! Se o médico soubesse empregar além do aprendizado que ele teve, se ele soubesse empregar o que ele tem na mente, o que o ser humano traz na mente... A máquina cerebral, o cérebro, nunca foi decifrada. Então eu encaro da seguinte forma: Deus trouxe ao mundo tudo, tem até medicação que a gente encontra nas plantas.

Na perspectiva da médica, aos poucos, o que nos foi dado, ao ser traduzido em linguagem científica, vai sendo recebido. Assim, colocando-se entre a medicina oficial e a dádiva, a médica busca uma coerência na articulação entre as duas formas. Sua "intuição" valida a forma de cura de Valentin e esta pode vir a ser oficialmente aceita um dia, desde que a ciência possa testá-la com seus métodos modernos:

Pode ser que algum dia a ciência venha a comprovar o que o Valentin realiza aqui, por exemplo, se você puser na sua cabeça "ah, hoje eu tô fraca, doente, você fica doente. Se você põe na sua cabeça: hoje eu estou ótima, hoje eu estou alegre, eu estou feliz", através do seu próprio pensamento você pode estar passando pra você toda essa energia. Se você estiver depressiva, se você deitar aí (e aponta pra maca) ele (o Valentim) tira tudo de você. A energia que ele traz é uma energia muito forte.

Eis a forma através da qual a médica consegue realizar uma compreensão do que acontece no universo de Valentin. A noção de energia, tal como é compreendida pelo senso comum, tem a função, nesse discurso, de fazer a tradução possível dentro desses limites. O dom, entregue a uma tradução precária, dá-se a ver como energia:

Eu trato pessoas. Elas chegam no meu consultório com todos os tipos de energia. Às vezes, eu sou contaminada por energias ruins. E isso independe da crença. Faz parte do nosso cotidiano. Enquanto cirurgiã plástica, as pessoas que chegam em meu consultório estão deprimidas, porque estão gordas, ou têm o peito grande e esse fator passa para mim. Mas passa não é porque eu absorvi o fator delas, não. Passa porque eu tirei um pouco do sofrimento delas. Aprendi isso aqui e me libero.

Assim, no contato com o mundo moderno, o tradicional sai do plano metafórico, perde o mistério e adquire uma expressão positivamente científica, isto é, uma expressão de inteligibilidade imediata. Não se trata mais de troca simbólica, mas de autoridade médica.

Para a ajudante-médica, da mesma forma que para Valentin, aqui ninguém é contra médico. Os dois trabalhos se associam, como foi o que aconteceu com Cleide, que, vivendo no Japão, teve um problema de aneurisma cerebral associado a um tumor no cérebro. Ela veio para cá, começou o tratamento aqui com o Sr.Valentin, até chegar o momento de realizar a cirurgia material, com médicos. No caso dela, então, o tratamento do Valentin não era suficiente, era uma espécie de prévia, de preparação.

Por que ela precisou dos dois tratamentos? Porque ninguém é dono do mundo e ninguém sabe o que é o mundo. Por exemplo, seu Valentin te vê além da sua visão externa. Eu sou médica, sou médica cirurgiã, eu entendo de medicina material. Ela (e aponta para a mesma moça) esteve no hospital dezesseis dias com uma meningite pós-cirúrgica, você está entendendo? Ela pegou uma infecção nas meninges. Eu fui lá no hospital e vi. Eu peguei o prontuário. Minha filha, impossível uma pessoa que tirou um tumor no cérebro, um aneurisma cerebral não ter nenhuma seqüela... E ela está equilibrada.

A essa altura, a paciente da qual se falava e que agora se integrou à corporação de Valentin, veio confirmar depoimento da médica. Segundo a paciente, ela estava impedida de fazer um vôo do Japão até aqui, por causa da sua condição. Mas, com o apoio de Valentin, ela suportou o vôo, não teve problemas.

Como esse último depoimento apenas confirmava uma intervenção paralela, complementar, de Valentin, não testemunhando seu poder curador, a ajudante-médica, procurou, então, trazer à tona casos em que o tratamento foi inteiramente feito por Valentin, sem necessidade de intervenção da medicina oficial, esclarecendo o que é o procedimento de curador:

Isso aqui tem autorização do próprio CRM pra funcionar. Aqui não se dá remédio, entendeu? Não se distribui garrafada e nem se corta. Ele só passa a tesourinha e a energia vai através do fluxo sanguíneo. No caso de Aldrina, ela foi completamente curada aqui dentro, não precisou de ir ao médico.Já a Fátima (e aponta uma senhora no canto da sala) tinha um problema respiratório grave e sua médica lhe deu apenas alguns meses de vida. Mas ela está aí há vinte e três anos.

Essa diversidade de narrativas pode ser compreendida dentro do quadro seguinte : há aquelas em que os pacientes procuraram Valentin após várias tentativas fracassadas dos médicos; outras relatam a história de pacientes que o procuraram por indicação de seus próprios médicos e outros ainda só o procuraram depois de terem sido convencidos por seus próprios médicos, já que eles não podiam acreditar na possibilidade de cura com Valentin.

No meio dessa variedade de problemas de saúde, histórias de vida e relações entre a medicina e a cura alternativa, aparecem também as diferentes posições dos médicos diante da notícia de cura dos seus pacientes em trabalhos com Valentin: há os que recebem a notícia com ceticismo, os que encorajam os pacientes a procurarem Valentin e até mesmo aqueles que, a partir do relato dos pacientes, tornam-se interessados em conhecer o curador-analista. Eis alguns exemplos:

Eu tinha artrite reumatóide. Você pode perguntar pra qualquer médico que ele vai dizer que é incurável, eles dizem que as dores nunca mais param na vida, foi o que eu ouvi por muito tempo de muitos médicos antes de vir aqui. "Nunca mais você vai parar de ter dor, nunca mais você vai parar de tomar remédio". Eu não tenho mais dor e não tomo mais remédio nenhum. Mas os médicos não acreditam. Eles dizem que se eu realmente tive artrite reumatoide, eu não estou curada, porque artrite reumatóide não tem cura.

Outra paciente conta:

Quando estava fazendo o tratamento aqui, cheguei a voltar no médico, fiz exames. O médico se surpreendeu muito com o resultado, porque a doença tinha regredido bastante, numa proporção assim de mil. Ele comentou: "esse seu caso é impressionante, geralmente o que acontece com as pessoas é o corpo começar a deformar, a pessoa começa a ter tanta dor que não consegue mais andar..."Eu falei, então, que estava me tratando com o Sr. Valentin, mas ele encarou como sendo uma coisa de religião e disse que não queria saber disso, sabe?!

Outra ainda:

Meu médico me deu cinco anos de vida. Ele sabia que eu vinha aqui e sua reação era de desconfiança. No momento em que ele constatou que eu estava curada, ele veio encontrar Valentin.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O que se constitui como pedagógico nesse encontro entre a cultura moderna e a tradicional é a relativização dos valores ou, de outra forma dito, a possibilidade de desnaturalização de práticas culturais que tendem a aderir à pele de seus adeptos, transformando-se, para eles, em verdades superiores.

A maioria das pessoas encontradas no universo de Valentin, pacientes e ajudantes, médicos ou não, manifestou, de alguma forma, um estado de admiração, de espanto (no sentido do tháuma grego) diante de um evento que não se deixa reduzir à dimensão econômica do mundo. E por econômico entende-se aqui não somente o sistema de trocas de bens, enquanto tal, mas as demais trocas que se dão também no plano da comunicação, assim como no plano das relações humanas.

No plano da comunicação, a linguagem usada no universo de Valentin tende a engajar o paciente no processo de cura porque, apesar da sua aparente onipotência, expressa na sua afirmação categórica "eu faço e provo", o que se observa é que essa frase apresenta-se como desafio à medicina oficial. Frente aos pacientes, o uso de signos fortes dá lugar a signos de encorajamento e de responsabilização. Tais signos não se confundem, de forma alguma, com a idéia moderna de certeza, articulada à de prova científica. Não havendo nada a ser erigido como evidência, conta-se unicamente com o testemunho concreto de pessoas que, por terem sido curadas ou por terem conhecido pessoas que se curaram, desejam narrar, isto é, dar a conhecer o dom. No entanto, as narrativas conservam a expressão de admiração frente a algo que não se pode traduzir na linguagem axiomática da ciência, ou seja, não se pode dar como discurso objetivo.

Embora essa forma de narrativa tenha se repetido nas histórias contadas pelos pacientes, ela toma outra direção no depoimento da médica-ajudante. Nesse último, aparece o compromisso com a positividade da linguagem científica, ainda que seja apenas uma promessa futura. Ao tentar compreender a linguagem indeterminada do universo de Valentin lançando mão de recursos próprios à determinação objetiva da ciência, a informante constrói uma espécie de arranjo logo-mítico, onde a forma da dádiva perde sua potência própria e se transforma em um momento de precariedade da ciência.

No plano das relações humanas, percebe-se, entre os pacientes, a possibilidade de desenvolvimento de uma postura irônica frente ao poder médico. Na economia das relações entre médico e paciente, tal como se dão no mundo moderno, esse último tende à passividade e à aceitação inconteste do saber do primeiro. E como já esclareceu Foucault 5, a análise do poder é um instrumento capaz de explicar a própria produção dos saberes. Nesse sentido, há uma correlação fundamental entre poder e saber: o poder para exercer-se é obrigado a formar e a pôr em circulação aparelhos de saber. Assim, a constituição do saber médico é a própria constituição do poder médico, consolidado através da instituição hospitalar, a qual não é apenas local de cura, mas também instrumento de produção, acúmulo e transmissão de saber" 6.

Nada dessa economia se realiza no universo de Valentin e o seu poder de curar não se relaciona a qualquer conhecimento analítico do corpo biomédico, sobre o qual, ele mesmo disse "não saber nem do a". Seu poder se articula, na verdade, com a redistribuição de uma potência, ao fazer circular a dádiva recebida. Trata-se de uma ação (como nas suas palavras: eu faço e provo) cuja inteligibilidade escapa de todos, inclusive de si mesmo e cujos efeitos independem de "saber". Nesse circuito coletivo, o saber da medicina moderna em face da saúde e da doença revela seus limites, assim como o poder do médico é relativizado em face da potência do paciente em relação ao cuidado de si.

 

REFERÊNCIAS

1. Mauss M. Ensaio sobre a dádiva. Lisboa : Edições 70; 1988        [ Links ]

2. Baudrillard J.L'échange symbolique et la mort. Paris : Gallimard; 1976.        [ Links ]

3. Baudrillard J. De la seduction. L'horizon sacré des apparences. Paris : Galilée; 1979.        [ Links ]

4. Baudrillard J. La transparence du mal. Essai sur les phénomènes extrêmes. Paris : Galilée; 1990.        [ Links ]

5. Foucault M. Microfísica do Poder. 3ª. ed. Rio de Janeiro (RJ): Graal; 1982.        [ Links ]

6. Foucault M. Naissance de la clinique. 4ª. ed. Paris: Quadrige/Presses Universitaires de France; 1994.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
SQN 404 – Bloco O – apto. 207
Brasília (DF) 70.845-150
ondinapena@brturbo.com.br ondina@pos.ucb.br

Recebido em: 15/03/2007
Aprovado em: 20/08/2007

 

 

* Trabalho parcialmente apresentado no III Seminário Internacional Educação Intercultural, movimentos sociais e sustentabilidade: perspectivas epistemológicas e propostas metodológicas e I Colóquio da Association Internationale pour la Recherche Interculturelle na América Latina. Florianópolis – SC, 14 de novembro de 2006

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