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Journal of Human Growth and Development

Print version ISSN 0104-1282On-line version ISSN 2175-3598

Rev. bras. crescimento desenvolv. hum. vol.19 no.2 São Paulo Aug. 2009

 

RELATO DE CASO CASE REPORT

 

Parto cesárea em gravidez decorrente de estupro

 

Cesarian section in pregnancy after rape

 

 

Maria Auxiliadora Figueredo VertamattiI,II; Jonathan Vinicius Lourenço SouzaI; Silvia VieiraII; Ana Paula OhataII; Mauro SancovskiI; Luiz Carlos de AbreuII; Caio Parente BarbosaI, II

IEquipe Médica do Departamento de Ginecologia e Obstetrícia da Faculdade de Medicina do ABC - FMABC
IIEquipe Multidisciplinar do Programa de Atenção a Violência e Abuso Sexual de São Bernardo do Campo - PAVAS/SBC

 

 


RESUMO

A violência sexual é um dos mais ultrajantes tipos de violação dos direitos humanos, e além de suas conseqüências psicológicas, expõe a vítima ao risco de traumatismos genitais, extragenitais, doenças sexualmente transmissíveis e gravidez. Esta última traz um fardo ainda maior à mulher vitimada, que se depara com a difícil decisão sobre a manutenção ou não da gestação. A literatura tem demonstrado que na maioria dos casos que evoluem para o parto, a via mais recorrente tem sido a cesárea, o que nos motiva a discutir as razões envolvidas nesta prática.
RELATO DE CASO: M.C.F.L., 32 anos, natural de Pernambuco, procedente de São Bernardo do Campo, quatro gestações anteriores (três partos vaginais e um cesárea). Vítima de agressões físicas e sexuais pelo pai de seus filhos, fugiu para morar com parentes em Pernambuco, onde foi estuprada por homem desconhecido. Retornou então para São Bernardo, descobrindo estar grávida do agressor, e passou a ser perseguida pelo ex-marido. Neste cenário a paciente, na 37ª semana de gestação, é atendida pelo Programa de Atenção à Violência e Abuso Sexual da Faculdade de Medicina do ABC (PAVAS-SBC), manifestando o desejo de não enfrentar o processo de parto por via vaginal, visto tratar-se de um filho que não consegue aceitar como seu.
COMENTÁRIOS: a maioria dos casos de gestação decorrente de abuso sexual ocorre em adolescentes, sendo indicada a cesárea pela desproporção cefalopélvica e imaturidade para compreensão do trabalho de parto. A evolução de uma gestação, incluindo o momento do parto, exigem grande estabilidade emocional da mulher, condição esta minimizada ou ausente naquela agredida sexualmente, o que explica o grande sofrimento trazido pela paciente em questão, fator determinante na indicação de cesárea. É preciso valorizar o contexto social e psicológico em que essa paciente está inserida, a fim de compreender suas angústias e frustrações.

Palavras-chave: violência sexual; estupro; gravidez; cesárea.


ABSTRACT

Sexual violence is one of the most outrageous situations against human rights and beyond its psychological consequences it exposes the victim to genital and extragenital traumas, Sexual Transmitted Diseases (STD) and pregnancy. This last one still brings a higher responsibility to woman, who become pushed to a difficult decision regarding to maintaining or not the gestation. The clinical practice has demonstrated that cesarean section has been the choice of delivery in most cases, and it motivates the authors to argue the reasons of this practice.
CASE REPORT: M.C.F.L., 32 years old, born in Pernambuco, proceeding from Sao Bernardo do Campo, four previous gestations (three vaginal deliveries and one cesarean section). Victim of physical and sexual aggressions from the father of her children, after the last childbirth, she ran away to live with her relatives in Pernambuco, where she was raped by unknown man. Back to Sao Bernardo, she discovers to be pregnant the rape, and started to be pursued by the former-husband. In this scenery, the patient, in the 37st week of gestation, was examined at the Program of Sexual Abuse Treatment (PAVAS-SBC), revealing the desire to not face the process of labor and vaginal delivery, even with physical conditions, because she wasn´t able to accept the child as her sam.
COMMENTS: according to literature, rape and naturally its consequences, like pregnancy, is more common among adolescents and the choice of cesarean section for delivery is about the physical, pelvic and psychological immaturity to face the labor and childbirth. The evolution of a gestation, including the moment of the delivery, demands great emotional stability, which is minimized or just absent in a violence situation, like this patient and her painful situation made us to decide for a cesarean section. It is necessary to know the social and psychological context in order to understand their distress and frustrations.

Keywords: sexual assault; rape; pregnancy; cesarean.


 

 

Introdução

A violência sexual é um dos mais ultrajantes tipos de violação dos direitos humanos. Abrange de maneira indistinta qualquer etapa da vida da mulher, estando universalmente presente em todas as culturas, etnias e religiões, independente dos níveis de desenvolvimento socio econômico, constituindo dessa forma um grave problema de ordem social e pública.1,2 Além de suas conseqüências psicológicas, tal violência remete-nos a importantes questões de saúde, como o risco de traumatismos genitais, extragenitais, doenças sexualmente transmissíveis (DST) e gravidez.3,4,5 Esta última traz um fardo ainda maior à mulher vitimada, que se vê às voltas com uma difícil decisão sobre a manutenção da gravidez ou a opção pelo abortamento.

Apesar de pequeno número de publicações a esse respeito, a prática clínica tem demonstrado que na maioria dos casos que evoluem para o parto, a via mais recorrente tem sido a cesárea,3,4,6 em especial nas pacientes adolescentes. Em casos de mulheres adultas e multíparas, não há relato na literatura, o que nos motiva a discutir as razões envolvidas nesta prática.

 

Relato de caso

M.C.F.L., sexo feminino, 32 anos, branca, casada, do lar, 1º grau incompleto, natural de Pernambuco, procedente de São Bernardo do Campo, católica. Apresenta como antecedentes obstétricos quatro gestações, sendo os três primeiros partos normais e o último uma cesárea, há cinco anos. Nega histórico de abortamento.

A paciente sofria agressões físicas e sexuais por parte do pai de seus quatro filhos, com idades entre nove e cinco anos, quando após o parto do último, decidiu fugir levando consigo as crianças, indo morar com seus pais em Pernambuco. Há cerca de oito meses, foi abordada por desconhecido enquanto trabalhava na roça, que a estuprou. Após o episódio, ela e os filhos foram expulsos de casa pelos pais.

Retornou então para São Bernardo do Campo, onde descobriu estar grávida do agressor. Sem dinheiro para subsistência, solicitou pensão financeira ao ex-marido, que passou a persegui-la e ameaçá-la de morte. Dessa forma, passou a viver escondida, necessitando da solidariedade de conhecidos.

Neste cenário, a paciente, então na 37ª semana gestacional e sem dados relevantes no exame físico e obstétrico de entrada, atendida pelo Programa de Atenção à Violência e Abuso Sexual da Faculdade de Medicina do ABC em São Bernardo do Campo (PAVAS-SBC), manifestou o desejo de não enfrentar o processo de parto por via vaginal, visto tratar-se de um filho que não consegue aceitar como seu.

Após avaliação, a equipe multidisciplinar recomendou o parto cesárea, que foi de fato realizado no Hospital Municipal Universitário de São Bernardo do Campo. Sem complicações, a paciente ainda não está certa se deseja deixar o filho para adoção, mas parece inclinada a ficar com o recém nascido. O caso em discussão foi contemplado pela aprovação do protocolo nº 100/2008 do Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina do ABC.

 

Discussão

A agressão sexual não é um simples ato libidinoso, mas sim uma manifestação cruel em que o sexo é utilizado como mero instrumento. Constitui um dos delitos de maior gravidade, representando um atentado à liberdade sexual da mulher2. O sistema paternalista de desigualdade social em que a mulher está inserida permite explicar porque elas são mais vulneráveis à violência intra-familiar e sexual.7

A verdadeira incidência dos crimes sexuais ainda é obscura e apenas estimada, havendo poucos dados disponíveis para estudo, visto ser dependente de denúncia por parte das vítimas1,3,5. Entre os motivos que levam a mulher a não procurar os órgãos públicos após este tipo de agressão estão o medo de represália, vergonha, constrangimento, sensação de culpa e humilhação e falta de credibilidade do sistema judicial1,4,5. Algumas chegam ao ponto de não compartilharem com ninguém a agressão sofrida, escondendo em si mesmas as suas dores8. Dessa forma, estima-se que as ocorrências registradas correspondam a aproximadamente 50% do verdadeiro número

A agressão sexual propicia repercussões físicas, psicológicas, sociais e familiares, tanto imediatas quanto a longo prazo na vida da mulher vitimada.1,4 Quando se trata de saúde, os danos e agravos de tal delito são expressivos e intensos, particularmente sobre as áreas sexual e reprodutiva.5 Entre estes, a gravidez quando produto de estupro se destaca pela multiplicidade de reações e sentimentos que provoca, tanto para a vítima como para a sociedade. Na esfera emocional, a violência sexual é capaz de produzir efeitos complexos e devastadores, muitas vezes irreparáveis, visto que suas implicações trazem grande impacto à vida da paciente, sendo citadas principalmente a ansiedade, depressão, perda da auto-estima, transtornos do sono, culpa, vergonha, dificuldade de estabelecer relações interpessoais tendendo ao isolamento social e alto risco para o consumo de álcool e drogas.1,2,4,6

De acordo com a literatura2,3, a maioria dos casos de gestação decorrente de abuso sexual ocorre em adolescentes. A adolescência corresponde a um período de transição entre a infância e a idade adulta, com conseqüentes mudanças físicas e emocionais, num organismo que se encontra imaturo sexual e psicologicamente.2 Corresponde a uma fase de busca pela identidade e autonomia, que permitirá a este indivíduo incorporar-se ao mundo dos adultos. Se não existirem condições favoráveis a esse desenvolvimento, o adolescente poderá sofrer conflitos que irão atrapalhar essa etapa de transição, como por exemplo uma gravidez precoce.4,8

Adolescentes grávidas como conseqüência de estupro apresentam maior morbimortalidade durante o período gestacional, trabalho de parto e puerpério, o que pode ser explicado principalmente pelo fato de que as adolescentes aderem menos aos procedimentos e consultas pré-natais.4

A atitude manifestada pela adolescente grávida por estupro frente ao nascimento da criança é de desprezo pelo filho em 68% dos casos versus 8,7% naquelas dentro da mesma faixa etária e não vitimadas sexualmente,4 não vitimadas sexualmente, visto que a agressão gera uma gravidez indesejada, sendo alta a probabilidade de a vítima repudiar o filho. Essa situação gera renúncia e privação de expectativas e projetos para a vida futura, tais como ideais de virgindade, casamento, filhos, anos de estudo, profissão, entre outros. Tal confusão se dá ao longo de nove meses, culminando com um filho não desejado, fruto de uma relação involuntária, ilícita e agressiva, com perspectivas de um futuro desfavorável.7,9

A relação da mãe com seu filho já começa na gestação e será a base da relação que estabelecer-se-á após o nascimento e ao longo do desenvolvimento da criança. Para que seja possível uma troca afetiva favorável entre essa díade durante a gravidez, a mãe necessita estar apta a estabelecer este vínculo, o que só será possível a partir de uma boa vivência de suas experiências relacionadas à vida sexual e reprodutiva, gestação e puerpério.9

Quando a gravidez é indesejada, o elo de afetividade entre mãe e bebê não é construído, causando na gestante um sentimento de culpa vivenciado, decorrente da rejeição sentida em relação ao feto. Estão também presentes sentimentos de raiva, angústia, auto-depreciação e tristeza. A rejeição pela gravidez é uma realidade extremamente difícil e conflituosa para a mãe, agravando-se ainda mais quando decorrente de agressão sexual.8,10

Para quase todas as mulheres grávidas, o parto é considerado um momento de extrema importância, especialmente aquele em que a mãe tem oportunidade de tocar seu bebê pela primeira vez.

Sabe-se que o processo do trabalho de parto exige grande estabilidade e maturidade emocional da mulher, uma vez que à medida que este progride, as contrações tornam-se mais intensas, acompanhadas da dilatação progressiva do colo uterino, e neste momento observa-se elevação dos níveis de dor, raiva, medo, tristeza e cansaço, diminuindo a intensidade das emoções positivas.10 Segundo a literatura, 82,3% das grávidas queixam-se de dor moderada a intensa durante o trabalho de parto vaginal.10

Porém, quando a gestação é planejada e o filho desejado, a mulher enfrenta com boa aceitação o processo doloroso. Em comparação, o estudo de Barbosa e colaboradores11 aponta que 75,5% das gestantes entrevistadas não manifestaram desejo pelo parto cesárea, tendo como principal razão, entre outras, a recuperação mais difícil e lenta.

Em adolescentes grávidas, após abuso sexual ou não, a indicação da cesárea tem sido defendida principalmente pela desproporção cefalopélvica e imaturidade para compreensão do trabalho de parto.6,7

Há fatores importantes que amenizam o estresse do trabalho de parto, fortalecendo emocionalmente a parturiente, como o desejo de ter o filho nos braços e a presença do cônjuge ou outra pessoa querida ao seu lado no centro obstétrico.9,10

No caso da paciente abordada neste estudo, consideramos que a mesma encontra-se psicologicamente abalada, acometida de instabilidade emocional pelo trauma vivenciado, e as condições positivas citadas acima estão ausentes, o que dificulta sua aceitação do processo, assim como a própria evolução do parto. Apesar das argumentações da equipe de profissionais a respeito de seus partos vaginais anteriores e das ótimas condições de atendimento em hospital-escola, foi decisivo para a indicação o grau de sofrimento que a paciente trazia, o que, naquele momento, parecia anuviar sua compreensão e detê-la na certeza de que não suportaria o trabalho de parto desta vez.

Com o crescimento dos serviços de assistência às vítimas de estupro no Brasil, esperamos que a literatura torne-se mais rica em alguns anos, em especial no que diz respeito ao seguimento e resolução das gestações daí advindas. É preciso valorizar o contexto social, psicológico, familiar, religioso e econômico ao qual a paciente abusada está inserida, visto que tais condições interferem diretamente na opção pela manutenção da gravidez e na qualidade do debate com a equipe obstétrica para escolha da via de parto.

 

REFERÊNCIAS

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Recebido em: 16 de março de 2009.
Aceito em: 12 de julho de 2009.

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