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Journal of Human Growth and Development

versão impressa ISSN 0104-1282

Rev. bras. crescimento desenvolv. hum. vol.20 no.1 São Paulo abr. 2010

 

PESQUISA ORIGINAL ORIGINAL RESEARCH

 

Passagens

 

Going through

 

 

Paulo César Sampaio

Psiquiatra, Coordenador de Saúde do Sistema Prisional de São Paulo

Correspondência para

 

 


RESUMO

O artigo resgata parte da memória de um passado recente - da década de 80 até a atualidade, de ações que se tornaram significativas tanto a âmbito nacional quanto no Estado de São Paulo, sobre o movimento em defesa dos pacientes internados nos antigos manicômios judiciários. Pretende, também, através destas passagens, refletir brevemente sobre a complexidade que é tratar do tema, apesar dos avanços da legislação em saúde mental no Brasil, tendo como referencial algumas experiências no Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico Professor André Teixeira Lima, de Franco da Rocha, Estado de São Paulo.

Palavras-chave: manicômio judiciário; reforma psiquiátrica; Hospital de Custódia de Franco da Rocha.


ABSTRACT

The article presents some memory of the recent past - the 80's until today, the stock that became significant at both the national and the state of São Paulo, on the movement in support of hospitalized patients in the old forensic psychiatric hospitals. It also intends, through these passages, a brief review of the complexity of dealing with the issue, despite advances in legislation on mental health in Brazil, taking into consideration some experiments at the Hospital of Custody and Psychiatric Treatment Professor André Teixeira Lima, Franco's Rocha, State of Sao Paulo.

Key words: old judiciary psychiatric hospital; psychiatric changes.


 

 

Discorrer sobre a questão dos manicômios judiciários no Brasil geralmente é tarefa complexa, muitas vezes controversa, porém desafiadora quando se pensa que avanços na legislação brasileira na área da saúde mental têm possibilitado a abertura para um diálogo entre as diversas áreas do saber envolvidas nesse tema.¹ Se as marcas das internações em hospitais psiquiátricos comuns sempre foram, no mínimo, sombrias, nos hospitais de custódia, mais conhecidos como manicômios judiciários, elas foram ainda mais estarrecedoras.

Recorrendo à memória de movimentos e ações que vêm acontecendo desde a década de 80 não apenas no Estado de São Paulo, bem como em outros estados do Brasil, destaca-se, por exemplo, a I Conferência de Saúde Mental, realizada em 1988, em Brasília, quando foi tratada, talvez timidamente, a necessidade dos pacientes dos hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico terem direito a um tratamento de saúde como qualquer outro cidadão brasileiro.

Passados quase dez anos, em 1996 foi realizado em Vitória/ES, o I Encontro Nacional dos Hospitais de Custódia que, em seu encerramento, apresentou a Carta de Vitória com algumas propostas, sendo que se destacaram as seguintes:

a) Criação da Vara de Execuções Criminais Privativa de medida de segurança;

b) Autonomia do tratamento com inclusão de saídas terapêuticas, alta progressiva, trabalho externo, hospital noite, etc.;

c) Credenciamento dos Hospitais de Custódia junto ao SUS;

d) Pareceres multiprofissionais;

e) Mudança nos códigos civil e penal no que tange às medidas de segurança.

Além da apresentação da Carta, foi consenso entre os participantes que outros temas deveriam ser debatidos no encontro seguinte, tais como o regime de pensão conveniada protegida e a internação de portadores de transtornos mentais em hospitais comuns.

Naquela ocasião recebeu destaque o trabalho realizado no Hospital de Custódia de Pernambuco por seu vanguardismo, uma vez que 12 casais de pacientes podiam ter encontros conjugais com autorização judicial.

Após dois anos, em 1998, foi realizado em Maceió o II Encontro Nacional dos Hospitais de Custódia, quando se discutiu sobre as dificuldades na concretização das propostas anteriores e foi formulada a Carta de Maceió trazendo novas alternativas:

a) Alteração da medida de segurança para medida de tratamento;

b) Criação de cursos específicos de capacitação para as equipes multidisciplinares;

c) Credenciamento dos Hospitais de Custódia pelo SUS.

Nessa ocasião foi apresentada a situação do Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico "Professor André Teixeira de Lima", de Franco da Rocha/SP que, em 1988, sofria total abandono pela escassez de recursos humanos, o que impossibilitava o atendimento mínimo aos pacientes (faltavam médicos, psiquiatras, psicólogos, assistentes sociais, entre outros profissionais).

Por conta desse cenário, o Hospital foi denunciado várias vezes na imprensa, mas alguns setores da sociedade civil mobilizaram-se junto ao Poder Executivo e Judiciário tentando reverter aquele cenário. Constatou-se que este abandono acontecia, sobretudo em função da exclusão do Hospital em questão do Sistema Único de Saúde (ou seja, das pessoas em medida de segurança) como já era de direito pela Constituição Federal. Finalmente, em caráter de urgência, houve a integração do Hospital ao SUS, porém sem credenciamento de seus leitos.

Com a integração e após tais denúncias, o Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico Professor André Teixeira de Lima conseguiu melhorar a assistência prestada aos pacientes, tornando o tratamento mais humanizado; nesta ocasião os trabalhos desenvolvidos passaram a ter destaque na imprensa, desta vez de forma positiva.

Um dos resultados dessa integração ao SUS possibilitou, por exemplo, o processo de supervisão institucional por equipes, desencadeando maior envolvimento dos profissionais da Instituição e tendo como fio condutor o tratamento e a assistência aos pacientes. Foram incluídos projetos terapêuticos como o TANTAN CLUB, "pichações" terapêuticas, olimpíadas esportivas, exposições e teatro, entre outros.

Esse novo paradigma de atenção ao paciente em medida de segurança nessa Instituição possibilitou também o início da inclusão social de pacientes e acredita-se que a abertura gradativa do Hospital favoreceu para que a sociedade, mesmo em um universo restrito à cidade de Franco da Rocha, passasse a ter uma visão menos estigmatizada sobre o "louco infrator".

Os resultados satisfatórios apresentados incentivaram alguns profissionais a darem continuidade a esse processo de humanização; em 1988 foi implantada a Colônia de Desinternação Progressiva e pacientes em medida de segurança passaram a ter autorização, por exemplo, para visitar seus familiares, trabalhar fora do Hospital e fazer compras na cidade.

Considerado naquela época como modelo por alguns setores do judiciário e de profissionais da saúde, entendeu-se que a concretização desse projeto só foi possível devido à integração do Hospital ao SUS.

A repercussão da Colônia de Desinter-nação foi de tal ordem que em 1998 ela recebeu o Prêmio Franz de Castro da OAB - Ordem dos Advogados do Brasil/SP, por ocasião da comemoração do 50º. Aniversário da Declaração dos Direitos Humanos no Brasil.

Já no III Encontro Nacional de Hospitais de Custódia, realizado em São Paulo, em abril de1999, outro avanço significativo se deu: foi criada uma identidade jurídica com comissão técnica permanente, regimento interno e membros eleitos por aclamação. Nesse mesmo ano, em dezembro, também foi firmada parceria com a Universidade Cruzeiro do Sul, situada em São Paulo, com o objetivo de aproximar a academia e o corpo discente, visando à promoção de ações que pudessem ampliar medidas terapêuticas de ressocialização e inclusão. Há 10 anos, portanto, alunos e professores de vários cursos dessa Universidade têm participado de atividades intra e extra muros, o que possibilitou, por exemplo, a criação do Projeto de Acompanhamento Terapêutico² que passou a atender pacientes com mais de 10 anos de internação, sem respaldo familiar e com quadros crônicos. Esse Projeto, de autoria de Margarida Mamede, recebeu recentemente, em 12 de dezembro de 2009, o Prêmio Madre Cristina, promovido pelo Conselho Regional de Psicologia de São Paulo, por ter sido considerado inovador dentro das práticas terapêuticas que a sociedade e a cultura atuais exigem.

Apesar desses avanços e de algumas mudanças ao longo desses anos, a luta pela inserção dos pacientes em medida de segurança na rede de saúde mental do país continuou. Cuidar de uma população duplamente estigmatizada, qual seja, a de loucos e de infratores, mesmo com todas as conquistas advindas dos movimentos da reforma psiquiátrica, tem, ainda, se mostrado um trabalho desafiador, não só a nível nacional, quanto, principalmente, no Estado de São Paulo.

Voltando ao III Encontro, de 1999, a Carta de São Paulo trouxe as seguintes propostas:

a) Que o Hospital de Custódia deve ser espaço de acolhimento e não de abandono;

b) Na área jurídica deveria haver a criação de vara específica para medida de tratamento, a exclusão da periculosidade presumida e a fixação de prazos mínimos e máximos para a medida de segurança, vislumbrando o ante-projeto da Comissão Especial da Reforma da Lei das Execuções Penais;

c) Os portadores de transtornos mentais deveriam ter direito à visita íntima;

d) Integração definitiva de todos os hospitais de custódia ao SUS.

Ainda nesse III Encontro representantes do Rio de Janeiro mostraram o trabalho desenvolvido no Hospital Henrique Roxo, onde foi criada a moradia para pacientes sem suporte social. Essa iniciativa pode ser entendida como a premissa para a criação das residências terapêuticas, que oficialmente passaram a existir a partir da Portaria/GM no. 106/2000. Nesta época, aquele Estado também estava integrado ao SUS.

Logo depois, em 2001, foi promulgada finalmente no Brasil a Lei Federal nº. 10.216³, mais conhecida coma a Lei da Reforma Psiquiátrica.

Mas os hospitais de custódia não foram citados com clareza, embora se possa interpretar que eles estão devidamente incluídos a partir dos artigos 3º e 5º. que afirmam:

Artigo 3º: - "É responsabilidade do Estado o desenvolvimento da política de saúde mental, a assistência e a promoção de ações de saúde aos portadores de transtornos mentais, com a devida participação da sociedade e da família, a qual será prestada em estabelecimento de saúde mental, assim entendidas as instituições ou unidades que ofereçam assistência em saúde aos portadores de transtornos mentais."

Artigo 5º - "O paciente há longo tempo hospitalizado ou para o qual se caracterize situação de grave dependência institucional, decorrente de seu quadro clínico ou de ausência de suporte social, será objeto de política específica de alta planejada e reabilitação psicossocial assistida, sob responsabilidade da autoridade sanitária competente e supervisão de instância a ser definida pelo Poder Executivo, assegurada a continuidade do tratamento, quando necessário."

Em 2003 tivemos a criação do Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário4, promulgado por ação conjunta dos Ministérios da Saúde e da Justiça prevendo a inclusão da população penitenciária no SUS e os hospitais de custódia foram contemplados como unidades básicas. Entende-se que, com isso, a qualidade do tratamento prestado aos pacientes internados nos HCTPs continua precária. O Artigo 8º. deste Plano afirma que estes hospitais serão beneficiados pelas ações previstas nesta portaria e "em função de sua especificidade, serão objeto de norma própria". No entanto, até o momento essas normas não foram criadas e este é um dos motivos que leva à reflexão sobre a necessidade de se reunir experiências exitosas que vêm se desenvolvendo Brasil afora, de modo que se possa, finalmente, transformar realidade tão inóspita. Por exemplo, se há 12 anos a Colônia de Desinternação Progressiva foi considerada um avanço, hoje pode ser entendida como um modelo que precisa de revisões, ou mesmo deveria ser substituído, uma vez que a Legislação atual em Saúde Mental preconiza o atendimento ambulatorial, mesmo para os pacientes submetidos à medida de segurança.

Quanto ao Plano Nacional, têm-se notícias de que vários órgãos da Sociedade Civil, do Poder Judiciário e do Poder Executivo já solicitaram a correção da inconstitucionalidade no parágrafo anterior e como até o momento isso não se consolidou, os pacientes em medida de segurança continuam sem acesso ao SUS. Em São Paulo, em 2008 conseguimos cadastrar apenas o HCTP II de Franco da Rocha como hospital, mas sem cadastro de leitos.

Também em 2008 o Ministério Público Federal, via Procuradoria da República no Estado de São Paulo, promoveu reuniões com o objetivo de acompanhar a execução do Plano Nacional de Saúde do Sistema Prisional em São Paulo. Nelas estavam representantes da Secretaria de Estado da Saúde, da própria Secretaria de Administração Penitenciária/SP, da Correge-doria dos Presídios, da Pastoral Carcerária, da Associação Juízes pela Democracia, do Conselho Estadual de Saúde, da Defensoria Pública, do Conselho Penitenciário do Estado, do GT do Sistema Prisional da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão e da Área Técnica de Saúde no Sistema Penitenciário, do Ministério da Saúde5.

Nessas reuniões foram estabelecidas metas para o cumprimento da utilização dos recursos do SUS priorizando a agilização por parte do Conselho Estadual de Saúde. Ao final dos encontros houve o consenso entre todas as entidades representadas que o SUS e a rede de atenção à saúde mental devem se responsabilizar pelo tratamento da pessoa submetida à medida de segurança.

Como dificuldades neste universo sempre desafiam aqueles que nele se mostram envolvidos, o Hospital de Franco da Rocha passou por um período novamente sombrio, quando, em 2005, assumiu a direção um agente de segurança penitenciário. Durante os três anos que se seguiram todas as atividades antes consideradas terapêuticas foram extintas e prevaleceu a ideologia carcerária, afastando pacientes e profissionais da saúde do que preconiza a Lei 10.216. Novamente o Hospital foi alvo de denúncias e no início de 2008, com a mudança na Coordenadoria de Saúde da Secretaria de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo, aconteceu também a mudança na direção geral do Hospital, o que possibilitou o resgate do paradigma da saúde dentro da Instituição.

No início de 2009 estabeleceu-se parceria com juízes corregedores responsáveis pelas medidas de segurança no Estado de São Paulo e uma das primeiras medidas tomadas foi a realização de mutirão, na tentativa de avaliar a situação de pessoas já submetidas à medida de segurança que estavam nos presídios aguardando vaga nos HCTPs. De uma média de 700 indivíduos, 300 foram encaminhados para esses Hospitais. Foi realizado também mutirão com pacientes internados e de uma média de 150, 60 receberam autorização para desinternação e tratamento em rede externa. Vale registrar que nesse âmbito as dificuldades também não são poucas: para encaminhamento de tratamento ambulatorial destes pacientes, tem-se encontrado mais respaldo nas equipes de saúde mental do interior do Estado do que na Capital, onde o número de CAPS e de residências terapêuticas mostra-se insuficiente para atender a toda a demanda.

Finalmente, a partir dessas iniciativas, foi proposta a criação do SAIPEMS - Sistema de Atenção Integral à Pessoa em Medida de Segurança, pautando-nos nos exemplos do PAI-PJ (Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário) de Minas Gerais e do PAILI (Programa de Atenção Integral ao Louco Infrator), de Goiás, ambos premiados nacionalmente pelos avanços e pela mudança de paradigmas na atenção a essa população. O Projeto de São Paulo está em curso e conta com o respaldo da Corregedoria dos Presídios, da Defensoria Pública e da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo.

Como parte do SAIPEMS foi inaugurada a Unidade para Adictos no HCTPI de Franco da Rocha e está em curso o projeto de reestruturação da Colônia Feminina, com a ampliação da assistência terapêutica às pacientes observando-se as necessidades específicas de cada uma.

Entende-se que há muito ainda por fazer para que as pessoas em medida de segurança sejam tratadas dentro das diretrizes da Lei 10.216/01 e para o cumprimento dela há a necessidade de um exercício permanente de atenção, de reflexão e, sobretudo, de capacitação dos atores envolvidos, incluindo não apenas a esfera da saúde, mas principalmente a da justiça. Enquanto não houver definitivamente a mudança de paradigma e a conscientização para a assistência aos pacientes em medida de segurança dentro das diretrizes da referida Lei, entende-se que se continuará caminhando na contramão da história.

 

REFERÊNCIAS

1. Manual de Legislação em Saúde Mental, 2004: Ministério da Saúde. Brasília, DF.         [ Links ].

2. Mamede, M.C, 2006: Cartas e retratos: uma clínica em direção è ética. Curitiba/São Paulo, Altamira/FAPESP.         [ Links ]

3. Lei Federal 10.216/2001. Ministério da Saúde. Brasília, DF        [ Links ]

4. Portaria Interministerial 1777/2003: Ministério da Saúde, Ministério da Justiça. Brasília, DF.         [ Links ]

5. Reforma Psiquiátrica e Manicômio Judiciário: Relatório Final do Seminário para a Reorientação dos Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico, 2002. Brasília, DF.         [ Links ]

 

 

Correspondência para:
pcsampaio53@yahoo.com.br

Recebido em 22 de agosto de 2009.
Modificado em 02 de janeiro de 2010.
Aceito em 30 de janeiro de 2010.

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