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Journal of Human Growth and Development

versão impressa ISSN 0104-1282

Rev. bras. crescimento desenvolv. hum. vol.20 no.1 São Paulo abr. 2010

 

PESQUISA ORIGINAL ORIGINAL RESEARCH

 

Reforma psiquiátrica nas medidas de segurança: a experiência goiana do paili

 

Psychiatric reform of the security measures: the experience of paili in goiás

 

 

Haroldo Caetano da Silva

Promotor de Justiça - Mestre em Ciências Penais pela UFG. Autor dos livros Execução Penal (Porto Alegre: Magister, 2006); Embriaguez e a teoria da actio libera in causa (Curitiba: Juruá, 2004); Ensaio sobre a pena de prisão (Curitiba: Juruá, 2009). Vencedor do VI Prêmio Innovare (2009), na categoria Ministério Público, com a prática PAILI - Programa de Atenção Integral ao Louco Infrator

Correspondência para

 

 


RESUMO

A Lei nº 10.216/2001 humaniza o atendimento à saúde mental, transferindo o foco do tratamento para serviços comunitários e abertos. A Lei da Reforma Psiquiátrica ou Lei Antimanicomial, como é conhecida, alcança a internação compulsória determinada pela justiça criminal como medida de segurança. Agora, deve o juiz preferir o tratamento ambulatorial, somente optando pela internação "quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes", caso em que será precedida de "laudo médico circunstanciado que caracterize os seus motivos". A figura da periculosidade perde força. A medida de segurança não tem natureza retributiva. A permanência do paciente em cadeia pública ou em manicômio judiciário configura crime de tortura (Lei nº 9.455/97). O Programa de Atenção Integral ao Louco Infrator contempla a execução das medidas de segurança de acordo com a Lei nº 10.216, acolhendo os seus pacientes nos serviços de saúde. Com autonomia, as equipes de saúde colocam em prática a melhor terapêutica, sem a necessidade de prévia deliberação judicial. O Programa leva a pessoa submetida à medida de segurança para o ambiente universal do Sistema Único de Saúde, o que favorece sobremaneira a inclusão à família e à sociedade, funcionando como experiência exitosa no resgate da dignidade dos pacientes submetidos à medida de segurança.

Palavras-chave: psiquiatria, psiquiatria comunitária, medidas de segurança, internação compulsória, competência clínica.


ABSTRACT

The law n. 10.216/2001 humanizes the mental health care, and shifts the focus of treatment towards community and open services. The Psychiatric Reform Act or Anti-asylum Act, as it is known, reaches the compulsory hospitalization determined by the criminal justice as a security measure. Now, the judge must prefer ambulatory treatment, only opting by hospitalization "when the extra-hospital resources are insufficient", in which case will be preceded by "detailed medical report which characterizes their motives". The figure of dangerousness loses strength. The security measurement has not retributive nature. The remaining of the patient in the public jail configures the crime of torture (Law n. 9455/97). The Program for Integral Attention to Demented Lawbreakers concerns the implementation of security measures according to the Law n. 10.216, receiving their patients in health services. With autonomy, the health teams put into practice the best treatment without the necessity for prior judicial determination. The Program takes the subject to the Universal Health System, what greatly favors the inclusion of family and society, working as a successful experience in rescuing the dignity of patients undergoing a security measure.

Key words: psychiatry, community psychiatry, security measures, compulsory hospitalization, clinical competence.


 

 

PARTE I: REFORMA PSIQUIÁTRICA E MEDIDAS DE SEGURANÇA

A Lei nº 10.216/2001 (Lei Antimanicomial ou Lei da Reforma Psiquiátrica) veio contemplar o modelo humanizador historicamente defendido pelos militantes do movimento conhecido como Luta Antimanicomial, tendo como diretriz a reformulação do modelo de atenção à saúde mental, transferindo o foco do tratamento que se concentrava na instituição hospitalar para uma rede de atenção psicossocial, estruturada em unidades de serviços comunitários e abertos.1

Esse novo modelo assistencial em saúde mental alcança a hipótese de internação determinada pela Justiça, caso em que é chamada de internação compulsória pela Lei 10.216 (art. 6º, parágrafo único, III), conhecida no meio jurídico como uma das modalidades das medidas de segurança.

Impõe-se agora uma nova interpretação das regras relativas às medidas de segurança, tanto no Código Penal quanto na Lei de Execução Penal, parcialmente derrogadas que foram pela Lei da Reforma Psiquiátrica. Ao submeter o agente inimputável ou semi-imputável à medida de segurança, deve o juiz dar preferência ao tratamento ambulatorial, somente determinando a internação "quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes" (art. 4º, caput). De tal sorte, mesmo que o fato seja punível com reclusão, deve o juiz preferir o tratamento ambulatorial, diversamente do que prevê o art. 97 do CP.1,2,3

Entretanto, havendo indicação para a internação, esta deve obedecer aos estritos limites definidos pela Lei da Reforma Psiquiátrica, sendo obrigatoriamente precedida de "laudo médico circunstanciado que caracterize os seus motivos" (art. 6º, caput), vedada a internação, mesmo como medida de segurança, sem a recomendação médica de sua real necessidade. A figura da periculosidade, como se percebe, perde força enquanto fundamento para a fixação da medida imposta.1,2,3

Diferentemente da pena imposta ao indivíduo imputável, a medida de segurança não tem natureza retributiva e visa exclusivamente ao tratamento deste, e não à expiação de castigo. Tal objetivo é agora reforçado pela Lei da Reforma Psiquiátrica que, dentre outras regras, estabelece que "o tratamento visará, como finalidade permanente, a reinserção social do paciente em seu meio" (Art. 4º, § 1º), sendo expressamente vedada a internação em instituições com características asilares e que não assegurem aos pacientes os direitos enumerados no parágrafo único do art. 2º da mesma Lei (art. 4º, § 3º).2,3

Diante da Lei 10.216, sequer se cogita do recolhimento do paciente submetido à medida de segurança em manicômio judiciário, hospital de custódia psiquiátrica, cadeia pública ou qualquer outro estabelecimento prisional. Tal situação, muitas vezes tolerada face à não implementação de políticas públicas de atenção à saúde mental, além de violar frontalmente o modelo assistencial instituído pela Lei da Reforma Psiquiátrica, constitui ainda crime de tortura, na modalidade prevista no art. 1º, § 1º, da Lei nº 9.455/97, por ele respondendo também aquele que se omite quando tinha o dever de evitar ou apurar a conduta (§ 2º), que é agravada quando praticada por agente público (§ 3º).2,3

Nesse novo contexto, sobressai a responsabilidade da autoridade penitenciária, do juiz e do órgão do Ministério Público, pessoas que devem fazer valer as disposições afetas à Lei 10.216, zelando pelo efetivo respeito aos direitos e à dignidade da pessoa portadora de transtornos mentais submetida à medida de segurança, sob pena de, não o fazendo, responder criminalmente pela conduta, mesmo que omissiva.

 

PARTE II: A EXPERIÊNCIA GOIANA DO PAILI

A partir dessa nova realidade normativa, abriu-se espaço então para um redesenho das medidas de segurança, não mais reguladas com exclusividade pela legislação penal.

Pressionado pela vedação legal ao recolhimento de pacientes psiquiátricos em prisões, bem como pelas iniciativas do Ministério Público (desde 1996) e do trabalho incansável de entidades ligadas à saúde mental, o Estado de Goiás institui o PAILI (Programa de Atenção Integral ao Louco Infrator) no âmbito da Secretaria de Estado da Saúde.2,3

O PAILI surge inicialmente, em 2003, com o propósito de fazer o censo das medidas de segurança em execução no Estado de Goiás. Embora tímida a proposta inicial, não deixou de ser um bom começo pois, realizado o levantamento dos dados e elaborados os relatórios correspondentes, o Programa não poderia simplesmente ser dissolvido.

Tem início então o trabalho articulado pela Promotoria de Justiça da Execução Penal de Goiânia, com o suporte do Centro de Apoio Operacional de Defesa da Cidadania, para o redimensionamento do PAILI. Para tanto se fez necessário o diálogo com diversas instituições, especialmente as Secretarias de Estado da Saúde e da Justiça, Secretaria da Saúde do Município de Goiânia, Procuradoria Geral de Justiça, Tribunal de Justiça, Conselho Regional de Psicologia, Forum Goiano de Saúde Mental, rede de clínicas psiquiátricas, entre outras.

Se a medida de segurança não tem caráter punitivo - e de direito não tem - a sua feição terapêutica deve preponderar. Eis o argumento elementar levado à mesa de discussões. Muda-se o paradigma. A questão deixa de ser focada unicamente sob o prisma da segurança pública e é acolhida definitivamente pelos serviços de saúde pública.2,3

Não será a cadeia, tampouco o manicômio, o destino desses homens e dessas mulheres submetidos à internação psiquiátrica compulsória. A imagem do sofrimento e da exclusão dos imundos depósitos de loucos - ainda recente na memória dos goianos e presente em outros cantos do país - não mais tem espaço nesta época de proteção aos direitos fundamentais dos que padecem de transtornos psiquiátricos. Será o Sistema Único de Saúde (SUS) o espaço democrático de atendimento a esses pacientes. Esta era a proposta que poderia ser implementada com o redimensionamento das funções do PAILI, desde que houvesse boa vontade e disposição de todos os partícipes chamados ao debate.2,3

E o diálogo deu frutos. Assim se fez e o PAILI assumiu oficialmente no dia 26 de outubro de 2006 a função idealizada pelo Ministério Público.

A assinatura, naquele dia, do convênio de implementação do PAILI, em solenidade realizada no auditório do Fórum de Goiânia, registrou o marco inicial do resgate de uma grande dívida para com a dignidade dos pacientes psiquiátricos, mediante a construção não de um novo manicômio, agora dispensável, mas sim mediante a construção coletiva de um processo visando à implementação da reforma psiquiátrica nesse campo historicamente caracterizado pela violação de direitos humanos fundamentais.

Com autonomia para ministrar o tratamento nesse modelo inovador, os médicos e as equipes psicossociais das unidade de serviços abertos e das clínicas conveniadas ao SUS determinam e colocam em prática a melhor terapêutica, acompanhados de perto pelos profissionais do PAILI, cuja atuação é marcada pelo contato contínuo com os familiares dos pacientes e pela interlocução e integração com todo o sistema de saúde mental, especialmente os Centros de Apoio Psicossocial (CAPS) e as residências terapêuticas.2,3

O processo de execução da medida de segurança continua jurisdicionalizado, mas não será o juiz quem determinará o tratamento a ser dispensado ao paciente, pois é o médico o profissional habilitado a estabelecer a necessidade desta ou daquela terapia. Aliás, é a Lei 10.216 que exige laudo médico circunstanciado como pressuposto elementar para a internação psiquiátrica. A proteção jurisdicional é garantia constitucional do cidadão na esfera da execução penal e, na presidência do processo executivo, o juiz acompanhará o tratamento dispensado ao paciente e decidirá sobre eventuais excessos ou desvios, até final extinção da medida de segurança.

Também o Ministério Público permanece, nesse novo panorama, com sua atuação fiscalizadora, acompanhando o desenrolar do procedimento judicial e, fundamentalmente, o tratamento dispensado aos pacientes pelas clínicas psiquiátricas e o regular funcionamento do PAILI.2,3

A conformação deferida ao Programa de Atenção Integral ao Louco Infrator, agora responsável pela execução das medidas de segurança no Estado de Goiás, é inovadora. O PAILI coloca a pessoa submetida à medida de segurança no ambiente universal e democrático do Sistema Único de Saúde sem distinção de outros pacientes, o que favorece sobremaneira a almejada inclusão à família e à sociedade.

Resultado da conciliação, num verdadeiro concerto entre os diversos órgãos envolvidos com a matéria, em ambiente que contou com a participação ativa da sociedade, o PAILI já é realidade e tem tudo para ser uma experiência a cada dia mais exitosa no resgate da dignidade e dos direitos humanos fundamentais dos pacientes submetidos à medida de segurança, e cujo modelo vem despertando o interesse de outros cantos do país.

 

REFERÊNCIAS

1. Araujo, Renata Velloso de. Relato de experiência da criação, atuação e contribuições do Programa de Atenção Integral ao Louco Infrator - PAILI, no contexto da reforma psiquiátrica. In: Tecendo redes em saúde mental no cerrado. Brasília: Universidade de Brasília e Ministério da Saúde, 2009.         [ Links ]

2. Silva, Haroldo Caetano da. Execução Penal. 3ª ed. Porto Alegre: Magister Editora, 2006.         [ Links ]

3. Silva, Haroldo Caetano da. Implementação da Reforma Psiquiátrica na Execução das Medidas de Segurança. Goiânia: Escola Superior do Ministério Público do Estado de Goiás, 2009.         [ Links ]

 

 

Correspondência para:
haroldocaetano@gmail.com

Recebido em 22 de agosto de 2009.
Modificado em 02 de janeiro de 2010.
Aceito em 30 de janeiro de 2010.

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