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Journal of Human Growth and Development

versão impressa ISSN 0104-1282

Rev. bras. crescimento desenvolv. hum. vol.20 no.2 São Paulo ago. 2010

 

PESQUISA ORIGINAL ORIGINAL RESEARCH

 

Vivências de familiares de crianças e adolescentes com fibrose cística

 

The daily experiences of families with children and adolescents with cystic fibrosis

 

 

Anne Shirley Menezes CostaI; Murilo Carlos Amorim BrittoII; Sheva Maia NóbregaIII; Maria Gorete Lucena de VasconcelosIV; Luciane Soares de LimaV

IFisioterapeuta. Mestre em Saúde da Criança e do Adolescente pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)
IIDoutor em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP). Docente do Programa de Pós-Graduação em Saúde Materno Infantil do Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira (IMIP)
IIIDoutora em Psicologia Social. Professora Adjunta do Departamento de Psicologia da UFPE
IVDoutora em Enfermagem pela Universidade de São Paulo. Docente do Departamento de Enfermagem (UFPE) e da Pós Graduação em Saúde da Criança e do Adolescente da UFPE
IVDoutora em Ciências Pneumológicas pela Universidade Federal de São Paulo UNIFESP/EPM. Docente do Departamento de Enfermagem (UFPE) e da Pós Graduação em Saúde da Criança e do Adolescente da UFPE. Email: luciane.lima@globo.com

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

OBJETIVO: conhecer e descrever as vivências de familiares de crianças e adolescentes com fibrose cística.
MÉTODO
: estudo qualitativo que apresenta as vivências das famílias ao cuidar da criança e do adolescente com diagnóstico de fibrose cística. Foi realizado no Instituto Materno Infantil Professor Fernando Figueira, em Pernambuco, no período de janeiro a maio de 2006, sendo a coleta de dados feita através de questionário para caracterização do cuidador, entrevistas gravadas e aplicação do teste de associação livre de palavras. Foram entrevistados 13 familiares. As falas foram transcritas na íntegra e submetidas à análise de conteúdo, modalidade temática.
RESULTADOS: dos dados emergiram quatro temas: o diagnóstico e o impacto da doença, alteração do cotidiano familiar, perseverança e esperança na divulgação da doença e cura apoiada pela crença e fé. As palavras obtidas no teste de associação estiveram de acordo com as vivências obtidas na análise dos temas (cura, esperança, tristeza, cansaço, medo...), Desta maneira, os familiares necessitam ser mais ouvidos e valorizados, facilitando assim o diagnóstico e evitando peregrinações aos serviços de saúde. São marcantes as alterações do cotidiano dessas famílias, bem como os casos de desestruturação dentro da família e no convívio social. A esperança de cura baseada em uma força maior ficou evidente em todo o estudo, assim como na ciência e divulgação da doença. A participação da família no cuidado desses pacientes é de fundamental importância, sendo necessária a sensibilização dos profissionais de saúde, o que poderá favorecer o diagnóstico e o tratamento interferindo positivamente no enfrentamento da doença por essas famílias.

Palavras-chave: fibrose cística; família; criança; adolescente; cuidado.


ABSTRACT

OBJECTIVE: the objective of this study was to learn and describe the daily experiences of families with children and adolescents with cystic fibrosis.
METHOD:
This is a qualitative study that shows the daily experiences of families with children and adolescents with cystic fibrosis.The study was carried out at the Fernando Figueira Child-Maternal Institute in Pernambuco, from January to May 2006. Data were collected through questionaires to characterize the care gives, taped interviews and a test of free association of words. Thirteen family members were interviewed. The words of the family members were transcribed completely and submitted to a content analysis in the thematic modality.
RESULTS: from the data four themes emerged: the diagnosis and the impact of the disease, alteration in the family's daily life, perseverance and hope in the outcome of the disease and cure based on belief and faith. The words obtained from the association test were in agreement with the experiences obtained in the theme analysis (cure, hope, sadness, tiredness, fear...). This way, the family members need to be valued and listened to which would help with the diagnosis and avoid many visits to the health services. The changes in the daily routine of the family are immense as well as cases of breakdown of the family and in the social environment. The hope for a cure based on faith became evident hirong out of the study as well as with science and the outcome of the disease. The participation of the family in the care of these patients is of fundamental importance. It is also necessary to improve the sensitivity of health professionals which would improve the treatment and consequently provide better attendance.

Key words: cystic fibrosis; family; child; adolescent; care.


 

 

INTRODUÇÃO

A fibrose cística (FC) ou mucoviscidose é uma doença autossômica recessiva, letal, que afeta especialmente indivíduos de raça branca, produzindo principalmente manifestações clínicas gastrintestinais (diarréia crônica, com fezes volumosas, gordurosas, pálidas, desnutrição crônica, íleo meconial, prolapso retal, insuficiência pancreática, constipação, refluxo gastroesofágico) e respiratórias (produção de muco espesso e viscoso, infecção crônica de vias aéreas, doença pulmonar obstrutiva crônica progressiva, pneumotórax, hemoptise, pólipos nasais)¹.

A afecção, que dizimava a maioria de seus portadores antes dos dois anos de idade, determina uma sobrevida, hoje, em centros estrangeiros, de aproximadamente 30-40 anos1.

No Brasil, seu diagnóstico é frequentemente atrasado (a idade média é de 4,7 anos), diminuindo a sobrevida, apesar de sintomas como pneumopatia e/ou manifestações gastrintestinais crônicas estarem presentes ainda ocorre a morte de muitas crianças sem diagnóstico2,3. Para o diagnóstico o profissional deve conhecer previamente a doença e valorizar o relato do cuidador quanto aos sinais e sintomas.

Para confirmação diagnóstica é necessária a presença de sintomas sugestivos, ou antecedentes na família, e dois testes do suor por estimulação com pilocarpina, com valores anormais2.

É importante que se inicie precocemente o tratamento da insuficiência pancreática e da desnutrição, bem como a fisioterapia respiratória, que é essencial desde o diagnóstico, na prevenção de dano respiratório progressivo. A doença acarreta alterações no cotidiano familiar, pela exigência de vigilância constante do paciente.2,3

Os profissionais de saúde, ao longo da vivência com os familiares, têm se tornado sensíveis às mudanças no modelo de atenção, observando o cuidado que envolve também a família, respeitando o momento que ela está passando, oferecendo informações claras e direcionadas ao grau de preocupação e de entendimento que os pais têm sobre a condição do filho4.

A família constitui o alicerce social e é a partir desse referencial que são conduzidos todos os procedimentos durante a aceitação da enfermidade, tratamento e a recuperação do paciente. Neste contexto, cada cuidador possui experiências diferentes sobre cada situação, dependendo de uma série de fatores: dinâmica familiar, valores culturais e condições socioeconômicas5.

Logo, ao se pensar em cuidado humano como uma forma de estar, de ser e de se relacionar, as mulheres podem ser consideradas cuidadoras por excelência. Resgatar o cuidado humano em cada um de nós é importante, em virtude de estar ocorrendo mudança de paradigma (envolvimento da família no cuidar) e deveria constituir um imperativo moral na equipe de saúde, fazendo aflorar sentimentos de solicitude, respeito, paciência e consideração como base de um bom relacionamento6. O envolvimento familiar no cuidado a um de seus membros exige atualmente uma participação ampliada, pois a mulher atua em diversos setores da sociedade, inclusive como provedora financeira do núcleo familiar, podendo a sobrecarga de responsabilidades ou o abandono do emprego e atividades sociais em função do papel de cuidadora colaborar para a desestruturação familiar.

Os fundamentos teóricos do cuidado centrado na família ampliam as possibilidades do cuidado considerando o papel primordial que a família desempenha na vida e no bem estar da criança. Nesta perspectiva o profissional planeja suas intervenções considerando a vivência familiar e não apenas a criança doente sob seus cuidados7. O olhar do profissional de saúde ampliado à família se constitui como uma estratégia inovadora na prática clínica8.

A atenção em tempo integral faz com que os responsáveis pelo cuidado necessitem conhecer a doença e a terapêutica para possibilitar a assistência desejada. No entanto, apenas o saber clínico é insuficiente, é importante conhecer como e quanto a família foi afetada, em todos os seus aspectos (sociais, emocionais e financeiros)6, 9.

A família deve ser vista como parte responsável pela saúde de seus membros, necessitando ser ouvida, valorizada e estimulada a participar em todo o processo de cuidar/curar. A partir do momento em que a família se conscientiza que tem que fazer algo, inicia-se uma série de decisões e de ações orientadas a um novo fim, ou seja, não deixar o filho morrer10,11. Ela deve constituir o foco central, para qual os profissionais de saúde provêm ajuda, desenvolvendo estratégias de apoio emocional, de fortalecimento e de informações12.

Diante do contexto, o objetivo é descrever vivências de familiar es de crianças e adolescentes com fibrose cística.

 

MÉTODO

Trata-se de uma pesquisa qualitativa que incorpora o significado e a intencionalidade, presentes nos atos, às relações e às estruturas sociais, e que, ao levar em conta os níveis mais profundos das relações sociais, não pode operacionalizá-los em números e variáveis13. Para este estudo, adotou-se como referencial teórico o cuidar da criança e do adolescente com doença crônica no contexto familiar7.

O estudo foi realizado no Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira (IMIP), centro de referência de pacientes com fibrose cística em Pernambuco, vinculado ao Sistema Único de Saúde (SUS).

Pelos critérios de seleção, foram incluídas crianças e adolescentes (com diagnóstico confirmado de fibrose cística) com idades entre dois e 17 anos, cujos familiares eram cuidadores por, no mínimo, seis meses, e tendo como critério a amostragem intencional, com delimitação pela saturação dos dados13. Este critério considera que a existência de redundância identificada nas falas dos participantes em relação aos objetivos do estudo indica que a inclusão de novos participantes não trará contribuição significativa para a reflexão. De acordo com esse critério, foram entrevistados 13 familiares (11 mães, um pai e uma avó). Dez crianças eram do sexo feminino e três do sexo masculino. As idades dos familiares variaram entre 24 e 63 anos.

A técnica utilizada para coleta das informações foi a entrevista semi-estruturada, guiada pelos seguintes instrumentos: questionário, para caracterização do cuidador (Tabela 1), teste de associação livre de palavras14 e um roteiro utilizando a seguinte abordagem: "Fale a respeito da doença de seu (sua) filho(a)". Durante a entrevista, o(a) cuidador(a) deveria abordar as seguintes questões:

 

 

1. O quê mudou na sua vida e de sua família depois que seu filho(a) ficou doente?

2. Como seu filho(a) reage em relação à doença?

3. O que é mais difícil no "cuidar da criança" com fibrose cística?

4. O que faz o seu filho(a) ficar melhor?

5. Quais as situações em que percebe que seu filho(a) fica feliz?

6. O que espera do futuro?

Os familiares responderam ao teste de associação livre de palavras, cujo resultado foi confrontado com os temas que emergiram das falas. O teste de associação livre de palavras foi estruturado a partir de cinco questões indutoras. Foi solicitado aos entrevistados que dissessem as palavras que lhes viessem à mente no menor espaço de tempo possível quando as frases ou questões descritas no Tabela 2 lhes foram colocadas.

 

 

A aplicação do teste de associação livre de palavras, o questionário de caracterização do cuidador e as entrevistas foram realizadas em salas previamente reservadas, em dias e horários agendados, sem a presença da criança ou do adolescente. Foram gravadas em fitas magnéticas, com autorização dos familiares, no período de janeiro a maio de 2006.

As falas dos participantes foram submetidas à análise temática de conteúdo proposta por Bardin15.

Este estudo foi iniciado após o parecer favorável do Comitê de Ética em Pesquisas com Seres Humanos do Instituto Materno-Infantil Professor Fernando Figueira, sob o número 708/2006.

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A partir da análise das falas emergiram quatro temas: o diagnóstico e o impacto da doença; alteração do cotidiano familiar; perseverança e esperança na ciência e na divulgação da doença e cura apoiada pela crença e fé.

O diagnóstico e o impacto da doença

A doença, para os familiares de crianças e adolescentes, se constitui num caminho longo, cheio de dúvidas, medos e angústias, com muitas idas a médicos, hospitais...Quando se certificam do diagnóstico, lembram do desespero, angústia e dor.

De acordo com os depoimentos, ficou caracterizado que, apesar de os familiares terem identificado que algo diferente acontecia com a criança, desde o nascimento, o diagnóstico veio tardiamente, o que demonstra a pouca valorização das informações pelos profissionais de saúde, além da dificuldade do acesso ao serviço de saúde:

...as unhas...toda redondinha...as unhas dela era diferente...eu mostrava... a família num tem...barriga alta, enorme, eu mostrava...(E 2)

...eu levava pr'o hospital, levava muito carão ... a doutora me deu um carão enorme, que eu fiquei calada... me deu um grito; "mãe! Essa menina 'tá desnutrida, de terceiro grau, mãe! A senhora 'tá forte aí e sua filha se acabando!... mas eu não sabia que ela tinha fibrose cística ...(E 3, mãe)

...não via melhora...até que uma prima falou que tinha um caso na família que tinha falecido com quatro anos...e que minha filha tinha todos os sintomas... aí eu perguntei pr'a médica e ela disse : se você não fala...a gente não ia chegar nela nem tão cedo...(E8, mãe)

A identificação do diagnóstico é difícil e demorada, são necessárias idas a vários serviços, muitas consultas e exames até que, por fim, o paciente seja encaminhado para uma equipe especializada16.

Das onze famílias que participaram deste estudo somente três tiveram o diagnóstico de fibrose cística antes dos três anos de idade da criança esta dificuldade para o diagnóstico pode ter contribuido para a insegurança e conflitos envolvendo o cuidador e a família, conforme relato:

... meu esposo mais minha sogra, às vezes não acreditavam que a menina estivesse doente, eles diziam que era descuido meu e sempre tinha aquele problema e quando eu descobri a doença dela, apesar de saber da gravidade do problema, eu me senti aliviada...(E8, mãe).

Muitos fatos desagradáveis poderiam ter sidos evitados num diferente contexto, no qual as mães pudessem ser ouvidas, informadas, acolhidas, sem necessidade de peregrinação e, enfim, receber, para elas e para suas crianças, adequada assistência, a que têm direito como cidadãs. É fato também a dificuldade de acesso aos serviços e sobre a relação com os profissionais de saúde, marcada pela falta de comunicação e pouca valorização dos sentimentos manifestados pelos entrevistados em relação a saúde de seus filhos17. Alguns apontando sinais e sintomas relacionados a doença que poderiam contribuir para aumentar a suspeita do diagnóstico, sendo necessário o conhecimento prévio pelo profissional de saúde de uma patologia de baixa incidência1,2 e pouco divulgada, que ampliaria a qualidade da assistência ao usuário do serviço de saúde.

A hora do diagnóstico é um momento em que os sentimentos de desespero, medo, desamparo e a sensação de impotência tornam-se evidentes:

... na época do diagnóstico eu quase pirei,...sentei ali no chão, no meio-fio, ali na rua...bem suja...só eu e ela, ela tinha dois anos e meio, ela dizia: "chora não, mainha, levanta!" e eu chorava descontroladamente ... (E 6, mãe)

...desde daquele dia eu não sou mais a mesma pessoa, não consigo sorrir igual antes..estou vivendo em cima de um muro em que alguém está dizendo: olha você vai cair!...(E7, mãe).

...eu senti um impacto né, disse meu Deus meu filho tem uma doença dessa, eu nunca vi essa doença, será que ele vai morrer, eu mesmo botava na minha cabeça, feito meu pai diz que ele num vai viver muito ...(E13, mãe).

Nem sempre os familiares compreendem o que está sendo dito pelo médico, sentem-se assustados diante de um prognóstico que prevê pouco tempo de vida para os filhos, chegando a experimentar sentimentos de desespero e medo. Posteriormente, os sentimentos de tristeza e culpa prevalecem junto com manifestações de não aceitação da realidade16.

A constatação da presença de uma doença letal predispõe ao aparecimento de transferência de culpa, abandono dos filhos, sobrecarga de tarefas, dificuldades financeiras, aspectos relatados pelas mães e o único cuidador do sexo masculino. Este assumiu por questões financeiras o cuidado com o filho, tornando-se a mãe provedora da família:

...os hábitos da família mudou, muita coisa mudou...o relacionamento em casa, as vezes se torna complicado...no começo a gente tinha uma diferença muito grande...a gente procurou dar toda atenção a ela, deixando os outros...(E1, pai)

... a minha vida é muito sofrida, é, estou separada há mais de dez anos, num tenho ajuda alguma, três filhos, é muito difícil mesmo...(E4, mãe)

...ele tem asma...já fui cansada quando era criança, aí eu achei que fosse minha e dele a culpa ela ter nascido desse jeito (E11, mãe)

...minha filha mais velha diz: "mãe, porque só p'ra Célia e não p'ra mim"...(E8, mãe)

...aí minha menor fica: "Ah, só quer ser filha de Luisa, Luisa é quem pode, só fica na atenção com Luisa, eu é que me vire se eu quero comer!"...(E12, mãe)

A família percebe a desestruturação no ambiente doméstico, que em virtude da total assistência ao filho (a) doente ocasiona o abandono do filho (a) sadio, causando inveja e ciúme.18,19

Alteração do cotidiano familiar

O cuidado com o paciente com fibrose cística exige uma atenção maior da família, principalmente do cuidador, que, na maioria das vezes, é a mãe, havendo sobrecarga de tarefas, sendo a doença um fardo pesado de suportar:

... sou divorciada do pai dela, na vida dela hoje só tem eu...dar apoio que ela precisa...é muito estressante para mim...é dificil...medicação, p'ra ela se adaptar...fisioterapia, eu me estresso muito...aquele cuidado constante, diário...fico ligando do trabalho p'ra saber como ela está...(E 2, mãe)

...vim p'ra Recife, trazer ela pr'a cá, p'ra lá é muita coisa, exames, remédios...eu sei que tem muita responsabilidade...casa, meninos, mas com ela é diferente...eu trabalhava três horários antes de ter ela, depois que eu tive complicou minha vida por conta da doençinha dela...(E 11, mãe)

O cuidado, em geral, centraliza-se na figura materna, pois ela aprende como cuidar e preocupa-se em executar corretamente esse cuidado. Pela convivência diária com a doença, aumenta seu conhecimento sobre a situação do filho, tendo uma visão mais apurada com relação aos aspectos clínicos e emocionais apresentados pela criança, assim como passa a conhecer suas reações e necessidades20.

Desde o diagnóstico ocorrem mudanças na rotina domiciliar, direcionando toda a atenção para o filho doente, é exigido um tempo e dedicação maior nessa assistência, deixando de lado outras tarefas domiciliares (filhos, marido, casa, lazer, estudo, etc...). Esta situação é minimizada quando a família (geralmente é a mãe que vivencia a doença e seus efeitos sobre a família) sente-se segura em relação aos cuidados domiciliares19,20,21.

Diante de eventos estressantes, como a doença ou a hospitalização, verifica-se que os familiares tem uma posição inicial de maior impacto, mas adquire aos poucos a capacidade de reorganização da dinâmica familiar22.

Quando, no teste de associação de palavras, foi solicitado que o cuidador dissesse o que pensava a seu respeito, surgiram palavras que apontaram o conflito vivenciado, foram elas: abençoada, forte, cuidadosa e sofrida.

A doença altera o ritmo de vida da criança e do adolescente, ocorrendo situações de constrangimento e discriminação, conforme os relatos dos familiares:

...o diretor tinha pegado as enzimas, né, tinha tomado e guardado...ele não sabia p'ra que era...o diretor pensou que era outros medicamentos...(E 5, mãe)

...deixava Joana morrer de tossir e não dava água...você está atrapalhando minha aula, num faz nada, só vem pra atrapalhar minha aula...Joana já vinha chorando...(E 7, mãe)

...ô mainha porque tantas coleguinhas que brincava comigo e num 'tá brincando? Até eu fui no colégio por causa disso. Aí me dá pena...(E 9, mãe)

O relacionamento na escola, com amigos, às vezes é prejudicado, não pela doença em si, mas pela falta de estratégias de enfrentamento positivas que auxiliem a criança e a família. O conhecimento equivocado da doença é a principal causa de afastamento dos amigos e aumento de problemas familiares23.

A falta de conhecimento da doença é referendada no teste de associação com as respostas mais freqüentes sobre a doença: contagiosa, tuberculose e medo.

A criança em idade escolar tem necessidade de sentir-se igual às outras, mas percebe as diferenças físicas e desvios da normalidade, comparando seus atributos e capacidades com os das outras crianças. As que são consideradas "normais" apontam os defeitos das que são diferentes delas, causando, nas crianças, sentimentos negativos. Na adolescência, as transformações físicas e emocionais e a independência adquirida fazem parte do processo que resulta no desenvolvimento da identidade, ou seja, olhar-se como um indivíduo singular24: Isto, repercute em toda família que vivencia o sofrimento da criança no convívio social, como demonstram os relatos maternos:

...antes ela tinha 28 quilos, hoje ela tem 46!...depois que começou a se tratar, fazer a medicação correta, tomar as enzimas...ela passou a crescer...mas ela só anda de cabeça baixa e num olha pr'a ninguém....(E 2, mãe).

...ela é muito magrinha e ela é pequenininha em relação aos outros...muita gente mexia com ela, magricela...ela chorava...num queria ir p'ra escola...(E 6, mãe)

Alguns familiares têm a preocupação de omitir informações sobre a piora e morte de alguém em situação semelhante, tentando proteger seus filhos do desânimo e sofrimento:

... eu não tive coragem ainda de dizer...porque aaí é que ela vai ficar maiiis nervosa, aaí que ela num vai querer as medicação, porque vai pensar que num 'tá adiantando nada, né... (E 3, mãe)

Esta tentativa de proteção foi apontada por alguns familiares como fator que os impedia de participar de grupos de apoio e associações.

Nas crianças portadoras de doenças crônicas, a compreensão da dimensão do sofrimento e morte só ocorre depois que superam a fase inicial, que funciona como fator de amadurecimento18.

Sentimentos como tristeza, preocupação, medo, angústia e evocação a Deus foram respostas ao teste de associação de palavras quando na abordagem sobre a piora da criança.

Os momentos incertos vivenciados pelas crianças e adolescentes, provenientes de idas e vindas, de perdas e ganhos, significam que sobreviver a uma doença grave e ao seu tratamento (nas três esferas: biológica, psicológica e social) é viver um dia de cada vez, enfrentando os desafios e buscando novas perspectivas de vida.23

Perseverança e esperança na ciência e na divulgação da doença

Os familiares têm esperança na ciência, acreditando que a divulgação da doença pode ajudar no campo da pesquisa, mostrando a necessidade de buscar apoio:

...a minha vontade é que cada vez mais essa doença seja pesquisada, né....seja divulgada, principalmente divulgada porque é é muito raro você vê em jornais, televisão......em algum lugar vai prestar atenção, vai entender o que está acontecendo e vai dar a mão...(E 7, mãe)

...não é fácil, e saiba de uma coisa, que a gente não pode cuidar do filho da gente para morrer, como se fosse o último dia da vida dele e sim para viver!...(E 9, mãe)

...minha filha disse: esse livro novo, edição nova, tem falando sobre minha doença, isso é bom, né?que dá também p'ra me explicar um pouco; as pessoas acham que é contagiosa...vai clareando um pouco o entendimento das pessoas...(E 12, mãe)

A esperança relaciona-se à divulgação da doença pelos meios de comunicação, escolas e associações, que aumenta o conhecimento da população, facilitando a socialização23.

As mães nunca desistem; perseveram, para aliviar a ansiedade causada pela doença e seus cuidados. Aproveitam as oportunidades em que estão próximas para passar umas às outras suas experiências, como vivenciaram, como encontraram maneiras de enfrentar novas situações e problemas que hoje parecem não as assustar mais20,25.

Cura apoiada pela crença e fé

O desejo de recuperação é manifestado pela busca de apoio na dimensão espiritual, na experiência dos familiares. Ter fé e acreditar em Deus são imprescindíveis para adquirirem força para a difícil convivência com a doença e enfrentar a realidade19,24:

...graças a Deus, agora eu digo: Jesus ela ficou boa porque eu tenho ela como boa...(E 10, avó)

... acima de tudo muita fé, muita força, em Deus, que busque sempre esta força que, com certeza, Ele dará...e cuidados... (E 4, mãe)

...tenha muita força feito eu tive, tenha coragem, tenha fé em Deus...(E 13, mãe)

A perspectiva de futuro no teste de associação mostra que a esperança e a fé podem ter determinado o aparecimento das palavras: cura, melhora, felicidade e vida normal.

Entretanto, sabendo que a fibrose cística é uma doença progressiva e multissistêmica, sua ocorrência em algum membro da família acarreta importantes e profundas alterações em sua dinâmica e características atingindo a todos em seu cotidiano, impondo sofrimento, angustia e insegurança. Por este motivo, é essencial à atenção à família (principalmente ao cuidador) desses pacientes, eles necessitam de apoio, principalmente na fase de descoberta da doença, recebendo informações adequadas e total acolhimento no momento da crise.

Para que isso ocorra, os profissionais de saúde precisam estar sensíveis ao problema, respeitando os valores, crenças e sentimentos dos familiares, que convivem com a doença bem antes do diagnóstico ser confirmado, efetuando grandes mudanças para garantir a assistência ao paciente, normalmente esse cuidado é centrado na figura materna.

A desestruturação familiar desde o diagnóstico é um fato marcante, que provoca alteração no seu cotidiano. Após o início de reestruturação da família, a decisão de lutar pelo filho com esperança e perseverança, buscando apoio na divulgação e pesquisa da doença, e, principalmente, em algo sobrenatural ou divino, para adquirir forças para continuar lutando, foram as estratégias identificadas neste estudo para que estas famílias vivenciassem o cuidado a um filho portador de fibrose cística.

O estudo apresenta informações de famílias acompanhadas em um serviço de referência para tratamento de fibrose cística, não sendo possível extrapolar os resultados para famílias que não tem acesso à assistência especializada, sendo esta uma limitação desta pesquisa.

Verificou-se a necessidade de uma maior divulgação de informações sobre a fibrose cística na sociedade e especialmente no meio acadêmico, bem como a formação humanística de profissionais de saúde pois o desconhecimento sobre a doença aliado à pouca valorização conferida às informações dos cuidadores pode estar retardando o diagnóstico e prejudicando o acesso das famílias a assistência de seus filhos.

 

AGRADECIMENTOS

Os autores agradecem o apoio financeiro do CNPq na modalidade bolsa de pesquisa.

 

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Endereço para correspondência:
Luciane Soares de Lima
Rua do Futuro, 77/1101 - Graças,
CEP 52050-020 - Recife-PE.

Recebido em 08 de setembro de 2009
Modificado em 14 de outubro de 2009
Aceito em 23 de novembro de 2009

 

 

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