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Journal of Human Growth and Development

versão impressa ISSN 0104-1282

Rev. bras. crescimento desenvolv. hum. vol.21 no.3 São Paulo  2011

 

EDITORIAL

 

Dinâmica familiar, morte dos pais e saúde da criança

 

 

Marcelo Marcos Piva Demarzo

Departamento de Medicina Preventiva, Escola Paulista de Medicina, Universidade Federal de São Paulo, UNIFESP

Correspondência para

 

 

É bem conhecido entre profissionais de saúde, principalmente os que atuam em Atenção Primária à Saúde (APS), que a configuração e a dinâmica familiares influenciam diretamente nas condições de saúde de cada componente do núcleo familiar e vice-versa1. Alguns eventos durante o ciclo de vida da família são fundamentais nesse aspecto, entre eles: nascimento de um novo filho, desemprego, separação conjugal, mudança de domicílio, violência e a presença de familiares com condições crônicas de saúde. Um evento em particular é extremamente relevante: a morte de um membro familiar, sendo que a morte de um dos pais parece ser um dos piores cenários nesse sentido.

Neste número da RBCDH, o artigo de Atrash2 traz evidências científicas sobre esse tema, analisadas de forma compreensiva e rigorosa, com foco nas consequências da morte de pais ou mães para a saúde e a sobrevivência de seus filhos pequenos. O artigo aborda informações relevantes para a saúde pública em geral e para a área de saúde da criança, em particular.

A partir da revisão de uma série de artigos científicos que associam dados históricos de mortalidade materna e paterna com a sobrevivência dos filhos2, o autor chega à conclusão que a morte da mãe eleva significativamente o risco de morte de seus filhos, principalmente se o fato ocorrer nos primeiros meses ou anos de vida da criança. A morte do pai traria menos impacto para a sobrevivência dos filhos, mas também teria consequências negativas. Outros fatores foram apontados como relevantes para a sobrevivência dos filhos, principalmente para crianças com até cinco anos de idade: as condições socioeconômicas, de educação e de saúde das mães, as condições ambientais, o estado nutricional das crianças e a utilização dos serviços de saúde2.

Segundo Atrash2, o artigo mais consistente sobre o tema foi publicado em 2010, com dados provenientes de um estudo de coorte em Bangladesh3. O estudo revisou retrospectivamente todas as mortes maternas e de crianças de até 10 anos de idade na área rural de Bangladesh, no período de 1982 até 2005, e incluiu o seguimento de 144.861 nascidos vivos, com registro de 14.868 mortes de crianças e 1.385 mortes maternas.

Concluiu-se que as crianças cujas mães morreram no período neonatal tiveram uma probabilidade oito vezes maior de morrerem, em comparação às crianças cujas mães permaneceram vivas. A morte da mãe entre o primeiro e o sexto mês de vida aumentou a chance de morte da criança em 27,6 vezes. A associação positiva entre a mortalidade materna e risco aumentado de morte dos filhos se manteve em todas as idades, com diminuição do impacto com o aumento da idade da criança quando da morte materna3: 18 vezes maior, 8,2 vezes maior e de 2,1 a 5,1 vezes maior, se a mãe morrer quando a criança estiver entre seis e 11 meses, 12 e 23 meses e de 24 a 119 meses de idade, respectivamente. A proporção de crianças cujas mães morreram, e que também vieram a falecer antes de completarem 10 anos de idade, foi de 86%, 61%, 32%, 19% e 2%, para mortes maternas ocorrendo ao nascimento, de zero a um mês, de um a seis, de seis a 12 e de 12 a 60 meses de idade, respectivamente; significativamente maior que a mortalidade de crianças cujas mães permaneceram vivas3. Os números são bastante expressivos.

A revisão de Atrash2 focou predominantemente a relação entre a morte dos pais e a taxa de mortalidade dos filhos, mas outros estudos têm abordado também aspectos de morbidade relacionados à morte dos progenitores, evidenciando a relevância do tema para a saúde em geral, e não apenas para a sobrevivência de crianças. Um artigo recente estudou a prevalência de transtorno bipolar em pacientes candidatos à cirurgia bariátrica, e identificou uma associação positiva entre a perda de um dos pais na infância e o risco aumentado para transtorno bipolar4. É provável que o mesmo fenômeno esteja ocorrendo em outras condições de saúde, o que deveria ser sistematicamente verificado nos estudos científicos na área da saúde.

No Brasil, os estudos são escassos sobre o tema da influência da dinâmica familiar sobre o processo saúde-doença5,6, e não há estudos publicados até esse momento que verifiquem especificamente a associação entre a morte de um dos pais e a sobrevivência dos filhos, similares aos que foram analisados por Atrash2. Uma revisão da literatura realizada por Oliveira e colaboradores6, com artigos publicados entre 1955 e 2005, encontrou apenas 415 artigos produzidos no período, sendo 401 internacionais e 14 nacionais, um número extremamente baixo em relação à relevância do tema, mesmo em nível internacional.

Apesar da ausência de estudos, é bastante provável que a associação entre mortes dos pais e saúde da criança seja importante para a saúde pública brasileira, haja vista a ainda alta mortalidade de adultos jovens, por exemplo, por complicações da infecção por HIV e por causas externas7,8, situação não tão grave, mas similar aos países africanos, lembrados por Atrash em sua revisão2. Se os números brasileiros fossem semelhantes ao de Bangladesh3, seria esperada uma morte (relacionada à morte materna) de crianças até 10 anos para cada 100 nascidos vivos. Provavelmente a taxa brasileira seja menor, pelas melhores condições socioeconômicas, mas não deve ser desprezível, com impacto considerável frente ao tamanho da população.

Por outro lado, a boa cobertura da população brasileira (acima de 60%) pelas equipes da Estratégia Saúde da Família (ESF) pode potencializar a identificação de famílias e crianças de risco, e intensificar as ações de saúde integral sobre o problema. As características próprias da ESF permitem às equipes uma abordagem privilegiada da dinâmica familiar e seus problemas, frente a um território conhecido9, podendo se configurar numa importante estratégia de saúde pública para o manejo adequado de crianças cujas famílias perderam um ou ambos os pais, ou que sejam componentes de famílias com dinâmica familiar inadequada. Nesse sentido, o tipo de conhecimento abordado aqui deveria fazer parte da capacitação e educação permanente dos profissionais das equipes da ESF, somado às habilidades para lidar com tais situações.

Enfim, as informações sistematizadas por Atrash2, somadas a outros estudos que analisam esse aspecto fundamental de saúde da criança, deveriam guiar políticas públicas e agendas de pesquisa nos países em todo o mundo, e em especial em países com taxas elevadas de mortalidade de adultos jovens, como é o caso de algumas regiões brasileiras e também de muitos países do continente africano. Outro aspecto relevante, que também deve ser sublinhado2, seria a aplicação desses conhecimentos para a consecução dos Objetivos do Milênio (ODM), em especial o de número 4 (reduzir a mortalidade infantil), cujas ações prioritárias deveriam incluir, com destaque, a garantia de bons níveis de saúde e educação para as mães (atuais e futuras).

 

REFERÊNCIAS

1. Fernandes CLC, Curra LCD. Ferramentas de Abordagem da Família. In: Programa de Atualização em Medicina de Família e Comunidade. 1 ed. Porto Alegre-RS: Artmed Panamericana Editora 2006, 1(3): 11-41.         [ Links ]

2. Atrash HK. Parent's death and its implications for child survival. Journal of Human Growth and Development 2011; 21(3): 769-770.         [ Links ]

3. Ronsmans C, Chowdhury ME, Dasgupta SK, Ahmed A, Koblinsky M. Effect of parent's death on child survival in rural Bangladesh: a cohort study. Lancet 2010; 375: 2024-31.         [ Links ]

4. Alciati A, Gesuele F, Rizzi A, Sarzi-Puttini P, Foschi D. Childhood parental loss and bipolar spectrum in obese bariatric surgery candidates. Int J Psychiatry Med. 2011; 41(2):155-71.         [ Links ]

5. Campos R, Raffaelli M, Ude W, Greco M, Ruff A, Rolf J, Antunes CM, Halsey N, Greco D. Social networks and daily activities of street youth in Belo Horizonte, Brazil. Street Youth Study Group. Child Dev. 1994 Apr;65(2 Spec No):319-30.         [ Links ]

6. Oliveira D, Siqueira AC, Dell'Aglio DD, Lopes RCS. The impact of family configurations on child and adolescent development: the review the scientific production. Interação psicol 2008; 12(1): 87-98.         [ Links ]

7. Barreto ML, Teixeira MG, Bastos FI, Ximenes RAA, Barata RB, Rodrigues LC. Successes and failures in the control of infectious diseases in Brazil: social and environmental context, policies, interventions, and research needs. Lancet 2011; 377: 1877-89.         [ Links ]

8. Reichenheim ME, de Souza ER, Moraes CL, et al. Violence and injuries in Brazil: the effect, progress made, and challenges ahead. Lancet 2011; 377: 1962-75.         [ Links ]

9. Gabardo RM, Junges JR, Selli L. Arranjos familiares e implicações à saúde na visão dos profissionais do Programa Saúde da Família. Rev. Saúde Pública 2009; 43(1): 91-97.         [ Links ]

 

 

Correspondência para:
demarzo@unifesp.br

Artigo submetido em 14.11.11, aceito em 02.12.11.

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