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Journal of Human Growth and Development

Print version ISSN 0104-1282

Rev. bras. crescimento desenvolv. hum. vol.22 no.2 São Paulo  2012

 

ARTIGO ORIGINAL

 

O aborto do feto anencefálico e a questão constitucional

 

The anencephalic fetus abortion and the constitutional issue

 

 

Vinícius Secafen MingatiI; Winnicius Pereira de GóesII; Ilton Garcia da CostaIII

IMestrando em Ciência Jurídica pela Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP). Bolsista Capes. Advogado
IIMestrando em Ciência Jurídica pela Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP). Bolsista Fundação Araucária. Advogado
IIIProfessor Doutor do Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP). Advogado

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Há tempos o aborto vem ocupando as discussões jurídicas, tanto no ordenamento pátrio como internacional. É tema de imensa complexidade, que, por sua interdisciplinaridade, gera intensas discussões entre juristas, médicos, cientistas, filósofos e a própria sociedade civil. Nesse ambiente, a questão referente à possibilidade, ou não, da interrupção da gestação do feto anencefálico vem ocupando os salões da Corte Constitucional Brasileira, que tem possibilitado o embate de ideias e a participação ampla de todos os interessados. Por meio do julgamento da ADPF 54, todas as particularidades dessa "modalidade de aborto" vêm sendo esmiuçadas. Porém, é por meio de uma interpretação constitucional que os hermeneutas devem compreender a questão. Em um momento de constitucionalismo contemporâneo valorizador dos princípios fundamentais do cidadão, a dignidade, a liberdade e a saúde da mãe devem ser colocadas em proeminência, lançando-se mão, inclusive, de instrumentos da hermenêutica constitucional, como a interpretação conforme e a ponderação. Assim, o tratamento jurídico da gravidez anencefálica deve entender a interrupção desta gestação como medida terapêutica garantidora da dignidade humana da mulher, e jamais como aborto.

Palavras-chave: anencefalia; aborto terapêutico; dignidade humana; interpretação constitucional; ponderação.


ABSTRACT

Abortion has long occupied the legal discussions in both Brazilian and international law. It is asubject of immense complexity, which in its interdisciplinarity, generates intense discussions among lawyers, doctors, scientists, philosophers and the civil society. In this environment, the question concerning the possibility or not of the termination of the anencephalic pregnancy occupies the halls of the Brazilian Constitutional Court, which has enabled the clash of ideas and the full participation of all stakeholders. Through the trial of ADPF 54, all the peculiarities of this "type of abortion" are being teased out. However, the issue should be constitutionally interpreted by the hermeneutist. In a moment of contemporary constitutionalism that values the fundamental principles of the citizenship, dignity, freedom and health of the mother should be placed in prominence, even making use of instruments of constitutional hermeneutics, as the consistent interpretation and reflection. Thus, the legal treatment of anencephalic pregnancy must face the interruption as a therapeutic guarantor of human dignity for women, and never as abortion.

Key words: anencephaly; therapeutic abortion; human dignity; constitutional interpretation; weighting.


 

 

INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem por condão a análise de delicada situação jurídica, de solução conflituosa, que irradia efeitos no âmbito social, médico, filosófico e religioso. Trata-se da possibilidade de interrupção da gestação do feto anencefálico, conduta esta que configuraria, em uma interpretação friamente positivista, a tipificação do delito de aborto.

Para que se possa realizar um estudo hermeneuticamente constitucional da questão, curial que se analise o instituto da anencefalia, como situação médica de inevitável inviabilidade vital do feto que, ainda que venha a nascer, não terá perspectiva de vida superior a algumas horas, ou dias.

Tal análise, potencialmente capaz de, por si só, justificar a interrupção da gravidez, sofrerá a complementação de outro diagnóstico médico-psíquico, dessa vez do quadro clínico da mãe. A manutenção da gestação de um feto anencefálico traz para a mãe, invariavelmente, comprovado risco de morte. Não bastasse tal situação, devem-se analisar, também, os desdobramentos à dignidade humana da mulher, que é obrigada a suportar todas as complicações de uma gravidez incapaz de gerar vida humana viável.

Neste ambiente, esmiuçar-se-á a evolução, no seio da Suprema Corte Constitucional Brasileira, da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54, debatedora da possibilidade, ou não, da interrupção da gestação do feto anencefálico.

É fundamental, para que se possa chegar a uma resposta constitucionalmente adequada, sem adentrar em questões filosóficas e éticas acerca da origem da vida, que se analise a presente questão sob o viés da liberdade, dignidade e saúde da mulher, que, mesmo diante de um aparente embate com a suposta vida do feto, prevalecerá por meio da calibragem de princípios e de uma interpretação evolutiva e conforme a Constituição dos artigos que disciplinam o aborto no Código Penal.

Por fim, convém ressaltar que diante da proximidade do julgamento se dará no STF - Supremo Tribunal Federal referente a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental de nº 54, este trabalho se desenvolve a luz da polemica questão de relevância social que se abate sobre casais e mães que podem estar as voltas com este dilema. Que podem estar sendo criminalizadas ou descriminalizadas pela interrupção da gravidez de feto anencefálico, dependendo de como o Supremo se posicionar.

1. A anencefalia: a invariável inviabilidade vital do feto anencefálico e os riscos à saúde da mulher

A anencefalia consiste na anomalia fetal, resumidamente descrita como a má formação do tubo neural, que ocasiona o desenvolvimento incompleto do cérebro, da medula e da caixa craniana, que pode apresentar como características físicas a ausência completa de cérebro ou dos hemisférios cerebrais, dos ossos cranianos e até mesmo do couro cabeludo.

Os fetos que desenvolvem esta anomalia, geralmente ainda no ambiente intrauterino ou após o parto, têm como características a cegueira, surdez, inconsciência e, sobretudo, a incapacidade de sentir e interagir com o mundo que os circunda.

Porém, mesmo com a falta de desenvolvimento cerebral adequado, é comum encontrar fetos anencefálicos que apresentam o desenvolvimento de sistema cardiovascular, pulmão, fígado etc., que permanecem em funcionamento enquanto durar a gestação, em regra por alguns minutos ou dias após o parto.

O Conselho Federal de Medicina, através da Resolução 1.752/2004, qualificou o feto anômalo acometido de anencefalia como um ser natimorto cerebral, justamente por não possuir desenvolvimento completo do cérebro ou atividades elétricas cerebrais, o que impede o surgimento do ser humano em perspectiva e, de certo modo, o caracteriza o feto anencefálico como algo subumano, ou seja, há o surgimento de um ser abaixo do nível humano1.

Atualmente, o diagnóstico acerca da anencefalia é extremamente preciso. Os avanços tecnológicos e científicos da medicina permitem a constatação de anomalias fetais antes de se chegar à metade do período gestacional. A maioria dos diagnósticos realizados na área da medicina fetal baseia-se em análises convictas, sendo inexistentes diagnósticos baseados em probabilidades. Isto se deve ao fato de que a margem de erro quando se tem profissionais da medicina habilitados, é ínfima2.

É importante que se destaque, conforme informações obtidas por intermédio do então Ministro da Saúde, Sr. José Gomes Temporão, quando da Audiência Pública ocorrida para o julgamento liminar da ADPF 54 (STF, ADPF 54-8/DF, 27.04.2005), que o Sistema Único de Saúde está perfeitamente equipado para, na quase totalidade do Brasil, efetuar o diagnóstico preciso da ocorrência de uma gravidez anencéfala, sem que haja qualquer margem de dúvidas acerca da inviabilidade vital deste feto3.

Nesse sentido, a avaliação sobre a saúde fetal e o diagnóstico de casos de anencefalia pode se dar a partir do terceiro mês (décima segunda semana) de gravidez através da ecografia, consistente em avaliação médica que permite a visualização completa da caixa craniana fetal. Todavia, este exame não possibilita a elaboração de qualquer prognóstico referente à cura ou período de sobrevida4.

Diante do quadro de anencefalia fetal, a única certeza que surge para os profissionais da área de saúde, após o diagnóstico da anomalia, é a de que o feto, após seu desenvolvimento corporal - o que, em alguns casos, inclui a capacidade de deglutição, respiração e resposta a estímulos após o parto - , terá em seu futuro somente a morte como destino, seja em questão de minutos ou até mesmo em dias, como consequência da incompletude de sua formação cerebral.

Vale destacar que a maioria dos casos detectados da anomalia em questão geralmente ocasiona a falência vital do feto ainda no ambiente intrauterino, sendo mais uma evidência de sua incompatibilidade com a vida extrauterina.

Por outro lado, não é somente a má formação fetal que está em jogo quando se fala em anencefalia. O desenvolvimento anormal do feto também causa prejuízos à saúde da gestante e, ocasionalmente, diante da gravidade do caso, poderá até mesmo levar ao falecimento da mulher durante o desenvolvimento gestacional ou, ainda, no decorrer ou após o parto.

A presença do feto anencefálico no ambiente intrauterino leva a gestante a sofrer enorme desgaste físico e psicológico. Dentre os problemas físicos está o aumento excessivo do líquido amniótico, também conhecido como polidramia, a distenção uterina, hemorragias, atonia uterina, deslocamento de placenta, distorcia do ombro, hipertensão, bloqueio de lactação etc.

No tocante aos danos psicológicos, estes são evidentes, haja vista a complexidade da situação enfrentada pela gestante, que ao ser informada, por meio de dados clínicos precisos, sobre a anomalia que acomete o feto, tem a certeza que a criança poderá perder suas funções vitais ainda no ambiente intrauterino ou logo após o parto, em questão de minutos, horas ou dias. Neste momento desfazem-se os sonhos, os projetos familiares e passa a prevalecer a angústia, o sofrimento materno e familiar diante de uma gestação que não terá, ao seu final, uma criança com perspectiva alguma de passar por todas as aventuras e desventuras de uma vida.

Ademais, não se pode olvidar que a gravidez é, independentemente das condições sociais e econômicas, a fase que marca a transição na vida da mulher, como consequência das grandes transformações físicas e emocionais. Nesse sentido, a que carrega em seu ventre um feto um feto anencéfalo, pode experimentar sentimentos extenuantes de revolta, choque, negação, tristeza, raiva e ansiedade etc5.

A desoladora missão da mulher enquanto gestante do feto anencefálico suscita debates de ordem jurídica e religiosa, ética e moral em torno do prosseguimento ou não da gestação nas condições supra delineadas. Surge, deste modo, a questão de se permitir ou não o aborto do feto anencefálico como medida terapêutica ou interruptiva da gravidez, trazendo a tona o embate entre direitos constitucionalmente previstos, tendo-se de um lado o direito fundamental à vida e dignidade do feto (art. 5°, caput, CF) e de outro os direitos fundamentais à liberdade (art. 5°, caput, CF), à integridade física e psíquica, à saúde (art. 196, CF) e à dignidade humana (art. 1°, II, CF) da mãe em estado gestacional, questão que será melhor abordada nos tópicos seguintes6.

Portanto, o feto anencefálico, mesmo que tenha o desenvolvimento corporal avançado, o que inclui órgãos vitais como coração, fígado, estômago, pulmões e, também, o seu sistema vascular, constitui, invariavelmente, um ser incompatível com a vida. Daí se utilizar da incompatibilidade do feto com a vida, ou de sua quase inexistente expectativa de vida extra-uterina como razões que balizam as discussões técnicas, jurídicas e morais ao aborto terapêutico nos casos de anencefalia, também conhecido como interrupção seletiva da gestação1.

2. A interrupção seletiva da gravidez como medida terapêutica

O desenvolvimento tecnológico e científico da medicina oferece, atualmente, exames que possibilitam o diagnóstico pré-natal de anomalias fetais como a anencefalia. A denominada Medicina Fetal aderiu a técnicas de diagnóstico juntamente com a adoção de possibilidade de terapêutica intra-uterina e, através do diagnóstico pré-natal consegue-se identificar fetos portadores de anomalias cromossômicas, trazendo à tona a questão do aborto por anomalia fetal como medida terapêutica, tendente a preservar a higidez física e psicológica da gestante2.

O Código Penal Brasileiro entrou em vigor em 1940, muitos anos antes de se introduzir no Brasil técnicas de diagnóstico pré-natal, somente disseminadas a partir de 1979. Somente por meio destas técnicas é que se deu início à investigação médica precisa sobre anomalias fetais, o que teve como consequência o surgimento de debates acerca do aborto de fetos cujo desenvolvimento fisiológico, ainda em ambiente intrauterino, mostrava-se incompleto2.

Em 1940, obviamente, não havia condições técnicas para que médicos e demais profissionais da área da saúde procedessem a exames aprofundados sobre a sanidade fetal. Não havia qualquer possibilidade de se detectar, previamente ao parto, a ocorrência de anomalias que, invariavelmente, inviabilizariam a vida no ambiente intra ou extrauterino e, consequentemente, exporiam a elevado risco a saúde e a vida da gestante.

Sendo assim, o Código Penal Brasileiro, dentro do panorama social, político, cultural e jurídico da época, bem como diante da impossibilidade de se detectar anomalias fetais através de exames médicos, considerou ilícita a prática abortiva.

Passados os anos a configuração social, política, cultural e jurídica alterou-se. O Brasil enfrentou o regime militar e hoje se tem uma Constituição Federal que privilegia a dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais, verdadeiros baluartes da proeminência de uma Constituição com força normativa e vontades próprias, no sentido dado por Hesse, hoje se tem presente a chamada vontade de Constituição, transformada em força ativa para orientar a conduta e a consciência geral, sobretudo na consciência daqueles que são responsáveis pela ordem constitucional7.

Todavia, o Código Penal, excetuadas algumas pequenas alterações, continua o mesmo, tornando-se, pois, excessivamente anacrônico, inclusive no que diz respeito ao tratamento dado ao aborto entre seus artigos 124 e 128.

Do artigo 124 ao artigo 127 estão as tipificações de abortos tidos como ilícitos, quais sejam, o aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento, o aborto provocado por terceiro e a forma qualificada de aborto, designadamente aquele que causa à gestante lesão corporal de natureza grave ou sua morte8.

Interessa-nos neste artigo, sobretudo, analisar o artigo 128 do Código Penal, que traz em seu texto duas formas legais de aborto, nomeadas como aborto no caso de gravidez resultante de estupro e, ainda, aborto necessário. Neste trabalho proceder-se-á a leitura desta última permissividade legal abortiva para, posteriormente, concluir-se se o aborto do feto anencefálico pode ser tido como medida terapêutica adequada ou se subsume a tipificação legal penal.

O artigo 128 do Código Penal permite o aborto necessário apenas quando não há outro meio de salvar a vida da gestante, podendo-se afirmar que a disposição legal de natureza penal busca, sobretudo, a preservação da vida da gestante em casos de gravidez que apresente risco à sua vida. Nesse contexto percebe-se que no Código Penal aceita-se que nos casos em que há o conflito entre o direito à vida do feto (anômalo ou não) e o direito à vida da gestante deve se optar por preservar a mãe, afastando-se, nesta linha, a responsabilidade médica pela efetivação de técnica orientada à consumação do aborto9.

No entanto, embora o Código Penal preveja em seu artigo 128 a permissão ao aborto em casos de riscos à vida da gestante, não tratou especificamente de situações fáticas que apresentem como sujeito central fetos de desenvolvimento anômalo, como aqueles acometidos pela anencefalia.

Diante deste quadro nota-se que há inegável descompasso entre a lei, a realidade social e a ciência médica atual, haja vista que o Código Penal se mostra incapaz de solucionar um problema já superado, principalmente, pela medicina. A questão continua gerando debates sociais, estando, inclusive, em pauta no Supremo Tribunal Federal, por meio da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 54, que trata especificamente sobre o aborto terapêutico. Em outras palavras, o Direito Penal naufraga ao não conseguir estabelecer a previsão legal para um fato típico específico na qual, não obstante tenha o envolvimento do direito à vida, esta se apresenta invariavelmente inviável, pois não perdurará, será caracterizada pela existência instantânea, efêmera e episódica, tendo-se em vista que a anencefalia retira do feto qualquer condição de sobrevivência fora do ambiente intra-uterino 10.

A falta de amparo legal fez surgir no Brasil considerável número de alvarás nos quais os profissionais da saúde procuram a tutela jurisdicional em busca de uma posição jurídica definitiva, que na maioria dos casos atende às exigências clínicas de se proceder ao aborto como medida terapêutica e de preservação da saúde da gestante. A primeira decisão judicial neste sentido foi proferida na cidade de Londrina, Estado do Paraná, em 19 de dezembro de 1992, quando o atual Presidente do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, Miguel Kfouri Neto, autorizou a interrupção de uma gravidez de vinte semanas. O julgador justificou seu posicionamento ao asseverar que a anencefalia impede o desenvolvimento do ser humano, destacando que sua decisão não visava o melhoramento genético por meio de prática eugênica, mas simplesmente evitar que um feto, cuja vida a ciência comprova não existir, venha ao mundo apenas para comprovar a inviabilidade de sua existência1 e 2.

No cenário jurídico brasileiro, tem destaque o caso "Gabriela", que ganhou destaque no ano de 2003, quando a jovem Gabriela Oliveira Cordeiro, à época com dezoito anos, requereu ao Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro permissão para a retirada de feto anencefálico, após ser constatado por exame médico que a gravidade da anomalia fetal (anencefalia) impossibilitaria a sobrevivência extrauterina da criança. O Tribunal de Justiça prontamente acolheu seu pedido, mediante a interpretação extensiva do artigo 128 Código Penal. No entanto, dias após a concessão da permissão, a Ministra Laurita Vaz, do Superior Tribunal de Justiça, em julgamento de habeas corpus impetrado por um padre católico em favor do feto anencefálico, cassou a decisão do Tribunal de Justiça Fluminense, sob a alegação de que as disposições do artigo 128 do Código Penal não abarcam o caso que lhe foi proposto, afastando-se, deste modo, a simples interpretação extensiva da legislação penal11.

A decisão denegatória do aborto foi confirmada pela Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, o que levou à impetração de novo habeas corpus, agora perante o Supremo Tribunal Federal, em favor da jovem Gabriela. Embora muito bem fundamentado na autonomia da vontade e na dignidade da gestante, o remédio constitucional não atingiu seu objetivo, pois Gabriela desistiu de abortar e deu a luz a uma criança anencefálica em 28 de fevereiro de 2004, que recebeu o nome de Maria Vida, fato noticiado durante a sessão de julgamento11.

Ainda no ano de 2004, logo após o encerramento do caso "Gabriela", foi ajuizada a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 54, na qual a Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde - CNTS buscou junto ao Supremo Tribunal Federal solução definitiva para os casos em que a anomalia fetal inviabilizasse a vida, como acontece com os fetos anencefálicos.

O patrono da indigitada arguição, o renomado jurista e professor Luís Roberto Barros, provocou a jurisdição constitucional ao apontar como justificativas à procedência do aborto de fetos anencefálicos a inviabilidade de vida extrauterina, já que o feto nem mesmo chega a ter suas atividades cerebrais iniciadas, já que não apresenta a formação dos hemisférios cerebrais e o córtex, subsistindo somente resíduo de tronco anencefálico e, complementa, com a afirmativa de que a anomalia impede o feto de se tornar um ser vivo12.

Na ADPF n. 54 buscou-se a aplicação da interpretação conforme a Constituição dos artigos 124, 126 e 128, I e II do Código Penal, com efeitos erga omnes, para declarar inconstitucional qualquer interpretação restritiva ao aborto terapêutico de feto anencéfalo com base nos dispositivos penais declinados. Segundo o patrono da causa, se o Código Penal é permissivo quanto ao aborto de feto em caso de estupro, porque a gestante que carrega em seu ventre feto acometido de anomalia incompatível com a vida deveria passar por tamanho sofrimento? Segundo o renomado jurista e patrono da causa, o correto seria dar ao Código Penal uma interpretação evolutiva e, assim, sem muito esforço, chegar-se à conclusão de que o aborto do feto anencéfalo, denominado aborto terapêutico, está entre as excludentes de punibilidade criadas pelo código, por tratar-se de conduta menos grave do que o aborto em caso de estupro3, 8 e 12.

Além disso, afirma que uma das consequências acarretadas pelo impedimento ao aborto, nos casos em debate, está na imposição da obrigação, à mulher, de suportar por nove meses um feto que sabidamente é inviável e não sobreviverá, causando-lhe dor, angústia, raiva e frustração, o que importaria, certamente, violação à sua integridade física, psíquica, e moral, comparável à tortura12.

Em que pese ter o Ministro Marco Aurélio de Mello concedido, liminarmente, o direito da gestante em submeter-se à medida terapêutica abortiva, sua decisão foi caçada em plenário sob a alegação de que a matéria não poderia ser resolvida via medida liminar, dada a importância da decisão. Desde então se aguarda a decisão final do Supremo Tribunal Federal, que, no entanto, já deixou claro, através de alguns Ministros, sua intenção em permitir o aborto do feto anencéfalo, tome-se, por exemplo, o pronunciamento do Ministro Joaquim Barbosa, ao ponderar os valores constitucionais vida extra-uterina inviável e a liberdade e autonomia da mulher, entendeu que deve prevalecer a dignidade da mulher e seu direito de liberdade desta de escolher aquilo que melhor representa seus interesses pessoais3.

Em verdade, a discussão acerca do aborto do feto anencefálico ainda não chegou ao seu fim. O debate envolve questões religiosas, morais, éticas e as concepções sobre a origem da vida fetal, o que o torna árduo e vivo na sociedade. Todavia, a única certeza que se apresenta é aquela advinda da ciência médica, consistente na recorrente afirmação de profissionais de saúde de que a vida do feto anencefálico é invariavelmente inviável, devendo-se, portanto, oferecer à gestante a opção de escolher sobre o prosseguimento ou não da gestação, como medida de inteireza constitucional.

3. O direito à vida e o feto inviável

A Constituição Federal em seu artigo 5°, caput assegura o direito à vida. Conforme já mencionado, a anencefalia tem como consequência a certeza da inviabilidade da vida extrauterina da criança acometida por tal anomalia, sendo esta incompatibilidade com a vida justificativa para aqueles que defendem a prática abortiva terapêutica.

O debate sobre o aborto terapêutico de feto anencefálico suscita grandes debates na literatura jurídica sobre os direitos do nascituro. Discute-se sobre a partir de que momento o nascituro passaria a ter personalidade jurídica para, então, ser sujeito de direitos e, consequentemente ser protegido pelo direito a vida e pela dignidade da pessoa humana. Além disso, muito se discute também sobre quando se iniciaria a vida, determinação contextual imprescindível para se chegar a uma conclusão sobre a constitucionalidade ou inconstitucionalidade do aborto terapêutico.

Existem três teorias sedimentadas na literatura jurídica que tratam especificamente do início da personalidade civil, designadamente as Teorias Concepcionista, Natalista e da Personalidade Condicional.

A Teoria Concepcionista entende que há vida a partir da fecundação óvulo-espermatozoide, que dá origem ao zigoto. Para esta teoria a personalidade civil do nascituro surge desde os primeiros estágios gestacionais, momento em que ainda não é possível determinar se a vida em desenvolvimento biológico será viável ou apresentará alguma anomalia que lhe retire a capacidade de sobrevivência extrauterina, ou que venha a lhe causar a interrupção da vida ainda em ambiente intrauterino.

Aqueles que entendem ser a Teoria da Personalidade Condicional a mais adequada, consideram que a personalidade civil do feto também se inicia desde a concepção, com a condição do nascimento com vida. Aqueles que defendem esta teoria entendem que o nascituro tem direitos, todavia, sob condição suspensiva, que seria justamente o nascimento com vida13.

Por fim, há a Teoria Natalista, defensora da ideia de que a pessoa está revestida pela personalidade jurídica a partir de seu nascimento com vida. Mais uma vez surge a condição nascer com vida para se ter efetivamente a personalidade jurídica e a capacidade de ser titular de direitos. Esta teoria foi adotada pelo Código Civil de 2002.

Determinar o início da investidura do nascituro na personalidade civil passa pela escolha de qual teoria seria a mais adequada, o que obviamente influenciaria a decisão sobre o aborto de fetos anencéfalos.

Nos dizeres de José Afonso da Silva, a vida é mais um processo vital, instaurado com a concepção e inclui o direito à existência14.

O mesmo jurista conceitua o direito à existência como o direito de estar vivo e de viver, defender a própria vida e de permanecer vivo, de modo que o processo vital somente poderá ser interrompido pela morte espontânea, natural e inevitável, sendo este o propósito da Constituição Federal quando assegura a todos, indistintamente, o direito à vida, corolário da dignidade da pessoa humana14.

Vale lembrar que o entendimento consistente em dar proteção à vida desde a concepção também está presente no Pacto de São José da Costa Rica ou Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969, inserido no ordenamento jurídico brasileiro pelo Decreto 678/92, que firma em seu artigo 4°, 1 que toda pessoa tem direito a que se respeite a sua vida e esse direito deve ser protegido pela lei desde o momento da concepção, sem deixar de lado que ninguém será privado da vida arbitrariamente15.

Segundo Ronald Dworkin, as diversas teorias sobre o início da vida suscitam discussões acerca dos direitos do feto e se estes passam a existir a partir da concepção. Para o filósofo do direito norte-americano existem dois lados quando se fala em aborto: o lado que acredita ser o feto humano um sujeito moral, uma criança ainda por nascer, desde a concepção, e em posição contrária aqueles que vêem o feto como um aglomerado de células que possuem um código genético16.

De fato, a fixação do início da vida fetal, tendo-se como parâmetro o desenvolvimento gestacional, ainda não foi consensualmente estabelecida pelos cientistas. Há aqueles cientistas que acreditam que a vida fetal passa a existir apenas após o desenvolvimento completo do cérebro, com a maturação cortical, momento no qual o feto passa a ter consciência da dor e interage com o mundo que o circunda. Do outro lado estão aqueles cientistas que creem no início da vida logo na fase embrionária, a partir da identificação do embrião no ambiente intrauterino, quando este ainda é um aglomerado de células em constante multiplicação16.

A religião, principalmente por influência do cristianismo, considera a vida humana um valor sagrado em qualquer estágio, portanto, desde a concepção, independentemente da ocorrência de qualquer anomalia fetal, tendo o feto, direito a existir desde a concepção justamente por ser obra divina, o que por si só já afastaria qualquer possibilidade de se proceder ao aborto.

Como se vê, trata-se de questão delicada. O embate entre a religião e a ciência e entre as correntes científicas acerca do início da vida trazem a tona divergências de certo modo incontornáveis, em virtude das diferenças de posições quanto às questões morais, metafísicas e legais referentes ao aborto, seja terapêutico ou não, que envolvem, principalmente, discussões em torno do embrião recém-fertilizado, ou seja, se constitui em um ser humano com direitos, isto é, uma pessoa, que pretende viver e ter direito que protejam seus interesses, amparado, ainda, pela inviolabilidade da vida humana16.

A Constituição Federal não trata explicitamente de casos de anomalia fetal e se estes estariam protegidos pelo direito à vida e pela dignidade da pessoa humana. Embora os direitos do nascituro sejam protegidos por disposições constitucionais e infraconstitucionais, as questões sobre o início da vida e a prática do aborto em casos de inviabilidade da vida como nos casos de anencefalia ainda passam ao largo do consenso científico e religioso.

Desta forma, ainda que extremamente relevantes para se chegar a uma solução da questão jurídica analisada no presente estudo, a resposta constitucionalmente adequada para a (im)possibilidade de interrupção da gestação do feto anencefálico levará, prioritariamente, em conta instrumentos da hermenêutica constitucional, capazes de harmonizar as agruras dos casos concretos com a supremacia da Constituição.

4. A liberdade de escolha pelo aborto terapêutico como meio de se preservar a dignidade da gestante

O debate jurídico em torno do aborto como medida terapêutica para os casos de anencefalia, após comprovação médica da ocorrência da anomalia, destaca a liberdade de escolha da gestante quanto ao prosseguimento da gestação, diante da ausência de previsão legal que vede a antecipação terapêutica do parto.

De acordo com o exposto nos tópicos anteriores, o desenvolvimento fetal prejudicado pela anencefalia tem como resultado o surgimento de um feto desprovido de formação cerebral completa, o que pode tornar sua vida inviável ainda dentro do ambiente intrauterino, sendo comum a morte de crianças acometidas pela anencefalia apenas minutos após o parto.

Além disso, inquestionáveis, como já tratados no presente trabalho, os danos físicos (hipertensão, alterações respiratórias, hemorragias, etc.) e psicológicos (estresse e transtornos mentais, etc.) que certamente irão acometer a gestante que se vê obrigada a levar a cabo uma gravidez impossível de gerar um ser humano viável.

Diante deste quadro clínico, e de acordo com suas convicções religiosas, éticas e morais - além da necessidade de decisão judicial - , à gestante cabe a solução de um terrível dilema, de escolher se a gestação prosseguirá ou se, com vistas à sua saúde, integridade física e psíquica, deverá ser interrompida.

Nota-se que estão em jogo a liberdade (autonomia da vontade), o direito à integridade física e psíquica, o direito à saúde, o direito à vida e à dignidade da gestante, todos de amplitude constitucional.

Sendo indubitáveis os riscos que uma gravidez de feto anencefálico traz à gestante, possibilitar a ela o exercício de sua autonomia da vontade, de acordo com suas convicções religiosas e morais, mediante a escolha sobre o destino do feto anencéfalo atende perfeitamente aos preceitos constitucionais analisados, em especial no atual momento de constitucionalismo contemporâneo.

Não se busca, nesta análise, consolidar o entendimento de que a gestação do feto anencefálico deverá ser sempre interrompida em virtude dos danos que acarreta à genitora. Tenta-se, também, firmar a discussão em torno da autonomia da vontade da gestante, quando colocadas em risco sua saúde, integridade física e psíquica e sua dignidade enquanto pessoa humana.

Portanto, assim que constatada a anomalia anencefálica, o que hoje é diagnosticado com enorme precisão e relatado em laudo médico detalhado que atesta a inviabilidade vital do feto anencefálico, mais conveniente seria deixar a decisão sobre o prosseguimento da gestação para a mulher e sua família, com o objetivo de fazer prevalecer a dignidade da gestante, em vez de obrigá-la a manter uma gestação que, como visto, é efêmera 17.

Nestes casos, a autonomia da mulher para decidir ou não pelo aborto tem como pressuposto a preservação de sua vida, saúde e integridade física e psíquica, reverenciando a sua dignidade. A autonomia estimula e protege a capacidade da gestante de conduzir sua vida de acordo com uma percepção individual de seu próprio caráter sobre aquilo que é importante para ela16.

Deste modo, a autonomia da vontade da mulher em casos de anomalias fetais que tornam a vida inviável conduz à conclusão de que viver em liberdade e de acordo com a nossa liberdade e consciência é tão importante quanto o fato de tê-la à disposição, e somente assim se poderá caminhar em direção a uma plena e irrestrita dignidade humana16.

5. Analisando-se o caso sob o viés constitucional. a jurisdição constitucional e a necessária interpretação pluralista

A Constituição Federal tem papel de destaque no ordenamento jurídico brasileiro, em decorrência de sua supremacia material e axiológica, caracterizando-a não somente como um sistema ordenado, unido e em harmonia, mas principalmente como um ponto convergente de interpretação das normas12.

Deste modo, a constitucionalização do direito e das relações sociais leva a jurisdição de natureza constitucional a tratar questões das mais controvertidas, sobretudo aquelas que colocam frente a frente direitos de magnitude constitucional.

A complexidade de casos propostos perante o Supremo Tribunal Federal, como o caso do aborto terapêutico de feto anencéfalo, personificam a missão constitucional dada ao indigitado Tribunal, consistente no desenvolvimento da jurisdição constitucional, e não somente com os olhos voltados para os direitos fundamentais e à dignidade da pessoa humana, mas também em busca da decisão que melhor conforme a situação fática ao texto constitucional.

Assim, a interpretação tem papel fundamental e extremamente complexo na harmonização dos direitos fundamentais constitucionalmente garantidos, e tem papel decisivo para a preservação e reafirmação da força normativa da Constituição. A interpretação constitucional deve buscar ao máximo atender o ao princípio da ótima concretização da norma7.

Desta forma, fortalece-se a vontade de Constituição, com entendimentos jurisprudenciais condizentes com os anseios de uma sociedade pluralista. E conforme destacado por Gustavo Zagrebelsky, nesta indigitada sociedade plural, os juízes tem grande responsabilidade na vida do direito ainda não percebido pelo poder legislativo do Estado. Para o indigitado autor italiano, os juízes, e aqui se utiliza a afirmação como representativa da atuação da Suprema Corte Constitucional pátria, são os garantidores da coexistência entre lei, direitos e justiça18.

Portanto, imaginar uma sociedade pluralista, bem como os progressos vividos pela humanidade, desvinculados da ciência jurídica configuraria um grande equívoco. Se o direito e a Constituição têm a sua eficácia condicionada pela realidade, não se é possível a interpretação sem sua consideração. A interpretação deve considerar os fatos da vida correlacionando-as com as proposições normativas da Constituição5.

Nesse ambiente, o Supremo Tribunal Federal maximiza o seu papel de oráculo do Direito Constitucional, e em uma posição proativa, passa a resolver questões de interesse de toda a coletividade, gerando nos cidadãos a expectativa de solução prática para todas essas divergentes e polêmicas questões, como a que ora se discute.

5.1. A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 54) e uma solução prática. Interpretação conforme a Constituição

Como já mencionado no presente estudo, pende de julgamento definitivo no Supremo Tribunal Federal, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 54, proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde - CNTS, e que tem o condão de "descriminalizar", através de uma interpretação evolutiva do Código Penal, a conduta médica interruptiva da gestação do feto anencefálico.

Referida ação constitucional, típica do controle abstrato de constitucionalidade, apesar da demora no julgamento definitivo, permitiu que a questão fosse amplamente debatida pelos interessados, tendo ocorrido audiências públicas, bem como atuação dos amigos da corte, tudo no intento de ofertar maior legitimidade à decisão da referida arguição.

Insta, neste momento da pesquisa, e lançando mão de instrumentos da hermenêutica constitucional, buscar uma resposta constitucionalmente válida para a possibilidade, ou não, de se legitimar a interrupção seletiva da gravidez do feto anencefálico.

Em uma análise inicial, como já trazido pelo presente trabalho, comungando da ideia do constitucionalista Luís Roberto Barroso, a solução prática seria facilmente obtida por meio de um processo subsuntivo, que não enquadraria a conduta supostamente ofensiva à vida do feto, como aborto, justamente por não se estar diante de vida humana viável.

Porém, para que se possa chegar a essa conclusão sem sufragar a legislação existente, qual seja o Código Penal, que não prevê como causa extintiva da punibilidade do delito de aborto a interrupção da vida intrauterina por anencefalia do feto, deve-se praticar uma interpretação evolutiva da indigitada legislação penal, que foi promulgada na década de 40.

Portanto, ao se concluir, conforme exaustivamente trazido nos tópicos precedentes, que a possibilidade de certeza acerca da inviabilidade de vida do feto anencefálico é de praticamente cem por cento, fato que não ocorria quando da entrada em vigor do Código Penal, quando a tecnologia não permitia tal afirmação, deve-se partir para uma interpretação que, a luz da evolução da ciência e da sociedade, permita a interrupção da gestação daquele feto comprovada e absolutamente inviável.

Enquadrar-se-ia, pois, a interrupção da gestação em questão como hipótese permitida de abortamento, por conta de uma interpretação conforme a Constituição dos dispositivos do Código Penal. É o que defende Luís Roberto Barroso, ao definir que a hipótese é de interpretar os dispositivos do Código Penal à luz da Constituição, para excluir sua aplicação no caso de antecipação terapêutica de parto de fetos anencefálicos (ou anômalos) 12.

Segundo Barroso, a aplicação da interpretação conforme a Constituição consiste na escolha de um caminho interpretativo para determinada norma, em meio a outros caminhos a que o texto poderia conduzir, excluindo-se, assim, um dos sentidos possíveis da norma, por produzir um resultado que não consonante a Constituição. Escolhe-se, portanto, a interpretação mais compatível com a Constituição dentro dos limites e possibilidades oferecidos pelo texto. É exatamente o que se busca em relação à normatização do delito de aborto no atual Código Penal Brasileiro12.

Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Gustavo Gonet Branco, ao definirem o princípio da interpretação conforme a Constituição, exaltam o papel do intérprete constitucional, de valorizar do papel do Poder Legislativo, a partir da recomendação de que diante de normas infraconstitucionais que apresentem de muitos significados, deve-se optar pelo significado que as tornem constitucionais, sob pena de viciá-las de inconstitucionalidade. Referida atuação representa, em verdade, uma prevenção ao surgimento de conflitos advindos da diversidade de interpretações de um texto infraconstitucional, exaltando a vontade de Constituição19 e 20.

Assim, uma interpretação constitucional das normas penais definidoras do delito de aborto, que esteja atenta à evolução social, jurídica e tecnológica, deve conceber a conduta de cessação da gravidez de feto anencéfalo como medida plenamente lícita, e situada no âmbito da autonomia da vontade da gestante.

Ainda que tal tese não prospere, o que se admite a título de argumentação, ou seja, em não se aceitando o fato do feto anencefálico ser desprovido de expectativa de vida viável, o que qualificaria a sua interrupção seletiva como crime de aborto, criar-se-ia uma situação de choque de interesses e direitos, envolvendo aquelas garantias devidas ao feto, em contrapartida aos direitos atinentes à figura da mãe.

Mais uma vez, diante do referido embate, técnicas de interpretação constitucional poderão solucionar a questão. Aqui se fala em ponderação ou calibração de princípios, terminologia comumente utilizada pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.

Ana Paula de Barcellos, de forma simples, define a ponderação como sendo uma técnica de decisão utilizada em casos difíceis (hard cases), nos quais o raciocínio tradicional da subsunção não é adequado. No caso em tela, o hard case traz à tona a dúvida sobre a prevalência da dignidade humana da mãe ou da dignidade humana do feto21.

Insta, aqui, no entanto, observar, o limite tênue entre a dignidade do feto e a dignidade da mãe. Liame estreito por conta da congruência e cumplicidade que existe entre mãe e feto. Situação esta que acaba por legitimar a escolha da gestante que, diante do avassalador sofrimento que será obrigada a passar, aguardando e convivendo com nove meses de uma gravidez que não trará como consequência vida humana viável, opta pela interrupção da gestação.

Desta forma, mostra-se de fundamental importância o papel dos instrumentos e técnicas de interpretação constitucional, em particular, da interpretação conforme a Constituição e da calibração. Instrumental este que, no caso sob análise, permite a preservação da dignidade da pessoa humana, materializada, aqui, não apenas na figura individual da mulher, mas na figura da gestante, da mãe, que vive, protege e sofre com a sua dignidade e com a dignidade do feto.

Diante do exposto, não há como caminhar em um sentido que não nos leve a uma única conclusão: a interrupção seletiva da gestação de um feto anencefálico não configura aborto, mas sim a concretização de um direito constitucionalmente garantido de preservação da dignidade humana da gestante.

O aborto é questão pontual dentro do universo jurídico, e que a todo o momento é alvo de discussões acaloradas, exatamente por envolver o maior dos bens tutelado pelo direito pátrio, qual seja, a vida. No que se refere à interrupção das gestações daqueles fetos considerados inviáveis, carentes de atividade cerebral, síndrome que na técnica médica recebe o nome de anencefalia, a situação não é diferente. Estar-se-ia diante de uma escolha entre a vida do feto e a vida, liberdade e dignidade da mãe. Inevitável não se falar em colisão ou choque de interesses e de garantias fundamentais.

A solução da presente controvérsia toma forma pela análise da própria definição da anencefalia, como ausência de atividade cerebral inviabilizadora da manutenção da vida do feto fora da barriga da mãe. Em se confirmando a inexistência de vida cerebral, torna-se simplificada a conceituação dessa conduta de interrupção da gestação, não como aborto, mas sim como medida terapêutica tendente a preservar a vida da genitora.

Ainda, por se tratar de quadro de ausência de atividade cerebral, e contando, para tanto, com pareceres técnicos interdisciplinares, é possível que se tenha um diagnóstico exato no sentido de que a manutenção daquela gestação, além de não trazer como consequência a sobrevivência da criança, trará, inevitavelmente, riscos à saúde da genitora. Vê-se, portanto, que se está diante de preservação de direitos e garantias fundamentais da mãe.

O embate entre os direitos do feto, ainda que inviável, e as garantias da vida e da dignidade da mãe, deverão ser solucionados, pois, por meio de uma interpretação constitucional das normas de nosso sistema jurídico, em especial do Código Penal. Ao hermeneuta caberá a utilização de postulados orientadores de controvérsias, como a proporcionalidade e a razoabilidade.

Não se quer, aqui, retirar ou esvaziar as garantias que o feto recebe dentro de nosso sistema jurídico. O que se busca, em verdade, é, atualizando hermeneuticamente as regras presentes no Código Penal, fazer uma interpretação conforme a Constituição Federal. Interpretação esta que deve levar em conta, quando se está diante de um ser humano em estado gestacional, a vida da mãe como a provedora do feto, e as consequências que a manutenção da gravidez inviável trará à dignidade humana desta.

Destarte, o tema referente à interrupção da gestação de fetos anencefálicos deve ser visto, em um primeiro momento, como medida terapêutica, e jamais como espécie de aborto, conclusão que se obtém por mera aplicação subsuntiva da norma penal. Além disso, ainda que se fale em choque entre os direitos do feto e da genitora, uma interpretação constitucional ponderada deverá preservar os direitos de liberdade, saúde, vida e dignidade da mãe.

Agrade-se a julgamento do STF que estabelecera o marco legal necessário para esta polêmica.

 

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