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Journal of Human Growth and Development

versão impressa ISSN 0104-1282

Rev. bras. crescimento desenvolv. hum. vol.22 no.2 São Paulo  2012

 

ARTIGO ORIGINAL

 

Puericultura e a atenção à saúde da criança: aspectos históricos e desafios

 

Childcare and children's healthcare: historical factors and challenges

 

 

Renata Cavalcante Kuhn dos SantosI; Rosa ResegueII; Rosana Fiorini PucciniIII

IPediatra, preceptora do Programa de Residência Médica em Pediatria do Departamento de Pediatria. Escola Paulista de Medicina - UNIFESP
IIPediatra da Disciplina de Pediatria Geral e Comunitária do Departamento de Pediatria da Escola Paulista de Medicina - UNIFESP. Doutora em Ciências pela UNIFESP. Coordenadora do Projeto Desenvolver (Secretaria da Saúde de Embu e UNIFESP)
IIIProfessora titular da Disciplina de Pediatria Geral e Comunitária do Departamento de Pediatria da Escola Paulista de Medicina - UNIFESP

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo faz uma revisão sobre a história da puericultura e da atenção à saúde da criança no Brasil, estabelecendo relações dessa história com a concepção de infância em diferentes momentos e contextos sócio-culturais, bem como com a organização do sistema de saúde no país. Destacam-se características do processo de formação do povo brasileiro, o papel do Estado na saúde, a criação do Sistema Único de Saúde e o Estatuto da Criança e do Adolescente como fatores determinantes de uma atenção à saúde que considera a criança e sua família como sujeitos de direito. Essas importantes conquistas de nossa sociedade tem impulsionado mudanças na prática clínica e na puericultura, em especial. A puericultura, hoje, deixa de cumprir um papel controlador do Estado sobre as famílias e normalizador das condutas das pessoas, firmando-se com caráter científico, desenvolvida por uma equipe multiprofissional, em parceria com as famílias e comunidades.

Palavras-chave: puericultura; direito à saúde; direitos do paciente; sistemas de saúde; história social da criança.


ABSTRACT

This paper reviews the history of puericulture and attention to children's health in Brazil and establishes relationships between this history and the concept of childhood at different times and within different sociocultural contexts, and between this history and the way in which the Brazilian healthcare system has been organized. The characteristics of the Brazilian educational process, the state's role in healthcare, the creation of the national health system and the creation of the children's and adolescent's laws are highlighted as determinants of healthcare that consider children and their families as subjects under the law. These important achievements within Brazilian society have stimulated changes in clinical practice and, especially, in childcare. Today, the state no longer has a controlling role over families' childcare through regulation of individuals' conduct. Rather, childcare is undertaken scientifically, through a multiprofessional team in partnership with families and communities.

Key words: childcare; right to health; patient rights; health systems; social history of children.


 

 

INTRODUÇÃO

A história da puericultura e da atenção à saúde da criança insere-se nos processos de organização do sistema de saúde, relacionando-se, também, à concepção de infância e ao papel da criança na família e na sociedade em diferentes contextos culturais e históricos1. Essa história, segundo diferentes concepções ideológicas, está em permanente construção, admitindo caminhos e fontes diversas de informações - documentos de órgãos governamentais, dados demográficos, textos e estudos da área das ciências humanas, além de contar com importantes contribuições da arte, da música, da literatura. Assim, a compreensão do processo de estruturação e organização da puericultura e da atenção à saúde da criança requer uma abordagem contextualizada, lembrando que ideais e expectativas referentes à criança são, também, constituintes do sujeito em formação2.

Áries (1981)3 foi um dos autores que tiveram grande contribuição para a compreensão da historicidade da concepção de infância. Ainda que sua abordagem estivesse centrada na singularidade em detrimento da totalidade histórica, o que tem sido criticado por outros autores, é inegável sua influência na desmistificação de uma criança abstrata e natural4. Segundo Áries (1981), nas antigas sociedades medievais, não havia uma percepção da particularidade da infância, o que não implicava em ausência de afeição pela criança. Em tempos de taxas de mortalidade tão elevadas, o primeiro papel da criança era o de sobreviver. Vencida esta etapa, ela passava diretamente para o convívio com os adultos de toda sociedade e os conhecimentos e os valores eram apreendidos nessa convivência. A família medieval tinha como principal objetivo a preservação dos bens, o aprendizado de um ofício, a proteção da honra e da vida, em tempos que isolados, os indivíduos não sobreviveriam. As trocas afetivas e sociais das crianças, portanto, eram realizadas na vizinhança, com amos, criados, adultos e outras crianças3.

Foi apenas no século XVIII, como conseqüência das mudanças ocorridas nas relações de trabalho, na organização das famílias e inserção das crianças na sociedade é que surge a concepção moderna de infância4. Nesse período, ocorre a privatização da família que se retrai para uma casa mais preparada para sua intimidade. A afeição passa a ser um fator importante na união entre cônjuges e passa a ser expressa entre pais e filhos, principalmente pelos cuidados e mimos para com a criança pequena3.

No século das luzes, as invenções, as novas técnicas e os avanços das ciências trouxeram questionamentos quanto ao papel do homem na sociedade e no mundo. O homem passou a confiar na sua capacidade racional, exaltando a ciência e depositando esperança na técnica, instrumento capaz de dominar a natureza. Pela razão o homem teria acesso à verdade e à felicidade5. É neste contexto histórico e social que a disciplina, a educação, a escolarização, a preocupação com o futuro da criança assumem grande importância, ainda que, de início, esse processo estivesse limitado às famílias burguesas ou nobres. A sociedade moderna adota, portanto, um caminho paradoxal. Se de um lado a criança torna-se objeto de atenção e começa a ser reconhecida na sua particularidade, por outro, essa atenção está embasada na negação da própria infância, por considerá-la como o futuro adulto ou "o homem de amanhã". Parte-se da premissa que a criança é imperfeita, imatura e a infância é uma passagem que precisa ser acelerada2. Nesse processo, a aprendizagem, que se dava no cotidiano da comunidade, passa a ser realizada no interior das famílias e nas escolas. Assim, os dois atributos modernos da infância - a inocência e a imperfeição - constituem uma concepção que é dependente da história da existência do sujeito, de sua classe social ou cultura. Essa concepção surge nas sociedades urbano-industriais, com a organização da família burguesa, com as novas formas e relações de trabalho, geração de riquezas e de conhecimento6.

No Brasil, a história da criança foi fortemente influenciada pela dominação colonizadora7 iniciada no século XVI e apresenta características próprias, segundo as especificidades da formação do povo brasileiro e da nossa história. Os estudos de Darcy Ribeiro (2001)8 enfatizam a complexidade dessa formação, caracterizada por intensa confluência étnica e cultural - colonizadores portugueses, índios que aqui estavam (dizimados após algumas décadas), negros africanos escravizados, imigrantes de toda parte do mundo nos séculos XIX e XX. Para Darcy Ribeiro, este povo novo [grifo do autor] se organizou num modelo de sociedade que, embora, estabelecesse diferentes composições e intensa mestiçagem, manteve e exacerbou um grande distanciamento entre classes sociais, este mais significativo que as diferenças raciais. O século XX, em especial, foi marcado por grandes mudanças políticas, econômicas, sociais e demográficas - urbanização da população, redução do analfabetismo e das taxas de fecundidade, expressivo aumento da expectativa de vida ao nascer e intensas modificações nas causas de morbimortalidade. A ampliação do acesso aos serviços de saúde é considerada um dos mais importantes determinantes para a evolução favorável desses indicadores9.

Os cuidados para com a criança e o adolescente - a puericultura e a pediatria

Apesar de o interesse científico pela criança ter se iniciado nos países ocidentais somente a partir do século XVIII, sua prática, principalmente relacionada à observação e à habilidade clínica, pode ser reconhecida já na era pré-histórica10. Devido ao esqueleto semi-cartilaginoso, foram raras as amostras de crianças desse período, constituindo a escrita a principal fonte de informações para esses estudos. As crianças eram freqüentemente mencionadas na medicina Mesopotâmica e, dessa época, encontram-se cartas de médicos para médicos com recomendações especiais para tratá-las - a maior parte das referências envolvia tratamentos mágicos, poções e medidas farmacológicas antigas, com documentos sugerindo diferentes dosagens para crianças de tamanhos distintos. Hieróglifos indicam possíveis diferenciações entre lactentes, crianças e adolescentes.

Do período Greco-romano, Hipócrates, Celsus, Soranus e Galeno foram os grandes contribuintes para os estudos da criança. Hipócrates descreveu suas observações sobre algumas doenças em crianças, como a difteria, a tuberculose, o mal de Pott, a convulsão febril, epilepsia e doenças helmínticas. Aristóteles, por sua vez, descreveu a eliminação fisiológica do mecônio, a transição do colostro para o leite e mudanças na aparência física no decorrer da infância. Foi o romano Cornelius Celsus quem escreveu "Crianças necessitam ser tratadas totalmente diferentes dos adultos". Soranus dedicou-se ao estudo dos recém-nascidos e Galeno aprimorou o conhecimento sobre a nutrição infantil. Do período medieval, médicos islâmicos escreveram sobre a higiene infantil, exercícios, dietas e sono. Autores do século XVI multiplicaram os pensamentos da área pediátrica, contribuindo com a concepção de que as crianças faziam parte de um grupo de tratamento distinto10.

Os séculos XVII e XVIII constituíram marcos importantes em relação ao reconhecimento da necessidade de cuidados especiais para com a criança, de forma mais sistematizada e elaborada conceitualmente. Nesse período é significativo, também, o papel do Estado na atenção à saúde. As exigências sociais não eram apenas as dos interesses burgueses, mas também as dos operários, já que a Revolução Industrial havia contribuído para uma crescente concentração urbana. As epidemias e as condições insalubres de vida e trabalho nas cidades desencadearam ações do Estado que contavam com o apoio e o interesse de elites que se viam ameaçadas pela disseminação de doenças. As soluções individuais e voluntárias já não eram suficientes para conter problemas tão extensos e os avanços da bacteriologia, nesse período, iriam constituir subsídio científico, reforçando ainda mais a necessidade de medidas a serem assumidas pelo Estado11.

A possibilidade de se evitar doenças através de medidas de higiene ambiental e pessoal foi importante para o desenvolvimento não somente da Puericultura, mas sobretudo da concepção e atuação do Estado sobre a saúde das pessoas - a Polícia Médica na Alemanha, a Medicina Social da França e a Medicina dos pobres na Inglaterra, constituem marcos desse período. A primeira, na Alemanha, se desenvolveu sobretudo no início do século XVIII, e foi caracterizada pela normalização da prática e do saber médicos, subordinação da prática médica a um poder administrativo superior (o Estado) e integração de vários médicos em uma organização médica estatal. Com a Lei dos Pobres, na Inglaterra, estes passam a receber assistência e atendimento às suas necessidades de saúde, ao mesmo tempo em que as classes ricas ou seus representantes asseguram sua própria proteção. Com o desenvolvimento das estruturas urbanas e o receio de suas conseqüências surge a medicina urbana na França, marcada por políticas sanitárias e controle da circulação de indivíduos12,13.

Frente a esse movimento que se configurava no século XIX, os médicos contribuíram ativamente ao fornecer estatísticas pessoais ou oficiais lançando alertas sobre a mortalidade infantil, inadequação nas condições de trabalho de mulheres e crianças. A pediatria começa a se constituir como especialidade médica, acompanhando a evolução de outras especialidades como a obstetrícia, a ginecologia e a psiquiatria, articulando a clínica ao ensino e à investigação científica dos fenômenos fisiopatológicos relacionados à criança. Surgem as primeiras publicações sobre as doenças infantis, em particular aquelas relacionadas à alimentação e à amamentação mercenária. Eventos e congressos internacionais abordavam temas relacionados à clínica pediátrica e também aos aspectos sociais e suas conseqüências para a saúde da criança14, 15.

Na França, a pediatria se desenvolveu notadamente nesse período, tanto no aspecto clínico e cirúrgico, quanto no aspecto preventivo, lançando as bases da puericultura. O termo, que surge em 1762, consolida-se com a criação de ambulatórios para lactentes sadios13. A "revolução pasteuriana" forneceu à Puericultura um corpo teórico, redefinindo a etiologia das doenças, extraindo o conceito sobre a relação infecção - imunidade e incorporando os fundamentos das técnicas de anti-sepsia. Constituiu-se na reorganização de uma série de conhecimentos incorporados ao saber médico, tais como as necessidades nutricionais do organismo humano, a fisiologia da digestão, cuidados gerais necessários para se evitar a contaminação de alimentos, as doenças infecciosas e suas vacinas, transformando-as em regras que definiam a melhor forma de tratar uma criança nos primeiros anos de vida14.

Por um longo período o discurso da puericultura não reconheceu a diversidade social e cultural, reproduzindo normas de enunciados fechados, admitindo uma única forma como sendo a correta para se educar a criança do ponto de vista mental, psicológico e emocional14, 15. Sua incorporação como parte das ações de saúde pública voltadas para a criança, seu papel como controle do Estado sobre as famílias e como normalizador das condutas das pessoas são temas abordados por muitos autores e está claro que não há uma única forma de analisar os fatores que contribuíram para seu surgimento e incorporação na prática pediátrica. A criança e o adolescente dos nossos dias se apresentam com novas demandas e novas necessidades em saúde. Hoje, a puericultura firma-se com caráter científico, deixa de ser estritamente médica e passa a ser desenvolvida por uma equipe multiprofissional, em parceria com as famílias e comunidades16.

A atenção à criança e ao adolescente no Brasil

A Pediatria, no Brasil, constitui-se formalmente em especialidade no ano de 1882. Carlos Arthur Morcovo Figueiredo propõe o primeiro curso da especialidade e a criação da cadeira de Clínica de Moléstias de Crianças na Escola de Medicina do Rio de Janeiro. Em justificativa ao Governo Imperial para a criação dessa cadeira, Moncorvo de Figueiredo destacava: "A freqüência exagerada das moléstias que assaltam a infância, a sua crescida letalidade e finalmente as particularidades que oferecem tais moléstias demonstram a necessidade inadiável de se prestar à criança doente grande soma de cuidados especiais, cuidados que exigem por sua vez conhecimentos que só pode possuir o médico que se tenha consagrado ao estudo aliás difícil da patologia infantil"17(p.103). Outra justificativa apresentada por Moncorvo de Figueiredo ao Governo Imperial referia-se à tendência mundial de instituir clínicas para atendimento ambulatorial específico para crianças e, ainda, enfatizava os conhecimentos mais recentes sobre doenças de crianças17. Nesse mesmo período, era grande número de médicos que desenvolviam formação complementar na Europa, onde as práticas médicas estavam fortemente voltadas à higiene, ao controle e a puericultura se difundia rapidamente14. Definida por Martagão Gesteira como "parte das ciências médicas que se ocupa em cultivar a vida e a saúde das crianças, esforçando-se para que cheguem ao mundo sadias e fortes e se desenvolvam normalmente, amparando-as e defendendo-as contra múltiplos perigos que as ameaçam, em conseqüência da ação maléfica dos fatores ambientais e sociais", declara-se a puericultura como principal arma na defesa da infância14,15.

Congressos brasileiros de higiene, realizados na década de 1920, apontavam a mortalidade infantil como grave problema de saúde pública e a alimentação e a higiene infantil como principais responsáveis por esse quadro18. Nesse período, a implementação de ações voltadas à criança pelo Estado refletia, em grande parte, reivindicações da sociedade e de movimentos operários do início do século XX19. Surgem propostas de controle do trabalho de crianças, licença gestante de um mês no final da gestação e após o parto. Em 1923, Carlos Chagas busca ampliar o atendimento à saúde por parte da União, criando o Departamento Nacional de Saúde Pública, estabelecendo, dentre outras medidas, as atribuições da Inspetoria de Higiene Infantil: medidas especiais de profilaxia de doenças transmissíveis próprias das primeiras idades; orientação e propaganda da alimentação apropriada à primeira e à segunda infância, no estado hígido e patológico; inspeção das escolas particulares, colégios, asilos infantis, creches14. Fica, assim, definido que o Estado deveria exercer sua função de proteção à criança - defesa da integridade física, vigilância, assistência médica, auxílio social, educação sanitária. Ainda em 1923, o decreto nº 16.300 institui o Dia da Festa da Criança - 12 de outubro - e, em 1925, o decreto nº 4.983 estabelece medidas complementares às leis de assistência e proteção de menores abandonados e delinqüentes.

Durante o Estado Novo foi criado o Departamento Nacional da Criança (1940) e, paradoxalmente, considerando a centralização política desse período, a proposta desse departamento implicava em participação ativa da sociedade, sobretudo de médicos, professores, autoridades públicas e mulheres20. Até o início da década de 1950 a atenção à criança manteve-se com o caráter normativo voltada, sobretudo, ao meio urbano que assumia progressivamente maior importância em razão do desenvolvimento industrial. Posteriormente, ocorre grande expansão da medicina previdenciária, tendo como base a estrutura hospitalar privada. Nesse período o hospital assume posição central na prestação de assistência à saúde, definindo-se como o local de encontro de diversas especialidades médicas21. A emergência de programas materno-infantis, na década de 1970, configurou-se como uma das tentativas de racionalizar e implementar políticas sociais que respondessem de alguma forma aos movimentos populares por saúde22. A crise do setor previdenciário, decorrente do modelo adotado, somada aos movimentos de redemocratização exigia algumas respostas. No ano de 1978, a Declaração de Alma-Ata (OMS, 1978)23 ao eleger a Atenção Primária à Saúde como estratégia de planejamento, funcionamento e programação para os serviços de saúde visando à Saúde para todos no ano 2000 passa a influenciar fortemente políticas de saúde em vários países, inclusive no Brasil.

Na década de 1980, as Ações Básicas de Saúde na Atenção Integral à Saúde da Criança definem normas e priorizam o desenvolvimento das ações básicas voltadas à criança - acompanhamento do crescimento e desenvolvimento, aleitamento materno, controle de doenças diarréicas, controle de infecções respiratórias agudas e controle de doenças imunopreveníveis - consideradas como eixo nucleador da assistência a ser prestada na rede básica de serviços do país. O movimento da reforma sanitária, a redemocratização do país, dentre outros fatores, determinaram mudanças no sistema de saúde que se concretizaram na criação do Sistema Único de Saúde, em 1988 (Brasil, 1988)24 - a saúde é direito do cidadão e dever do Estado, uma das mais importantes conquistas de nossa sociedade.

Os princípios do SUS - eqüidade, acesso universal a todos os níveis de atenção, a integralidade das ações, controle social - embora presentes na legislação, requerem permanente defesa visando à sua qualificação. Na atenção pediátrica, somam-se direitos garantidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente25, definindo-se o papel do Estado e as responsabilidades sobre a assistência à infância e à adolescência. Com o ECA a criança torna-se sujeito de direito pela primeira vez na nossa história.

A puericultura hoje - direito e autonomia

Ao conhecer a origem da puericultura, pode-se observar seu caráter autoritário e disciplinador com que foi inserida na pediatria, entretanto, há mudanças importantes e contínuas que buscam incorporar aspectos da organização da sociedade, dos modelos de assistência e dos direitos sociais. Refletir sobre os conceitos de saúde, doença, vida, morte, autonomia é fundamental em nosso campo, compreendendo que esses saberes são complementares à biomedicina e que não é possível assumir uma neutralidade e objetividade que negligencie as dimensões socioculturais presentes também no processo terapêutico. Com o deslocamento da subjetividade para a objetividade, do respeito aos valores para o estabelecimento de regras e normas "neutras", ocorre um afastamento crescente entre médicos e pacientes, e destes em relação ao seu corpo. Diminui, assim, a capacidade de ação dos pacientes enquanto sujeitos no processo saúde26.

Com o intuito de se resgatar valores como democracia, ética, capacidade crítica e autonomia na medicina, algumas propostas vêm emergindo mais recentemente. A medicina contemporânea, incluindo a pediatria, deve privilegiar sentimentos e valores dos pacientes, de seus familiares e dos profissionais de saúde, todos sujeitos envolvidos de forma compartilhada na recuperação da saúde e no estímulo à reflexão em conjunto para as tomadas de decisões necessárias, ou seja, a democratização da relação médico-paciente. Puccini, Cecílio (2004)27 consideram que nessa perspectiva transformadora "ganha importância a relação entre profissionais de saúde e usuários: passagem do ambiente relacional de individualismos com individualismos para o ambiente relacional de sujeitos sociais com sujeitos sociais. Na área da saúde, a perspectiva da conquista social do direito à saúde constitui a busca de um estágio mais avançado de autonomia, definido como capacidade das pessoas de não apenas eleger e avaliar informações com vistas à ação, mas de criticar e, se necessário, mudar as regras e práticas da sociedade a que pertencem".

O novo Código de Ética Médica28 estabelece em vários de seus artigos a autonomia do paciente e de seus familiares, destacando o direito à informação sobre a própria saúde e às decisões sobre o tratamento. No Estado de São Paulo, a Lei nº10.241, promulgada em 17 de março de 1999, garante ao cidadão atendimento digno, identificação pelo nome, resguardo de dados pessoais, identificação obrigatória do profissional de saúde, acesso a prontuário médico e estabelece direitos fundamentais de ser esclarecido quanto aos aspectos de sua doença e, uma vez esclarecido, de consentir ou recusar, de forma livre e voluntária, procedimentos diagnósticos e terapêuticos29.

Esse longo processo de mudanças revela a complexidade de fatores envolvidos e sua relação com questões da sociedade como um todo. A legislação resulta sempre de amplo debate que envolve interesses diversos e concepções também diferentes em relação à abrangência dos direitos sociais. O reconhecimento da especificidade na prática pediátrica e a organização da assistência voltada à saúde da criança e do adolescente constituem processos articulados que guardam forte relação com a história, cultura e políticas de diferentes sociedades. O olhar crítico da história da puericultura, por sua vez, leva a uma maior compreensão das suas limitações no dia-a-dia. A compreensão que a puericultura não é constituída por "verdades científicas universais", mas por normas concebidas em diferentes momentos históricos e por diversos interesses, pode ajudar o pediatra a encontrar formas menos autoritárias e rígidas de transmitir suas condutas, partindo do processo de decisão médica da realidade concreta das famílias. Ao refletir sobre a criança em sua relação com os profissionais de saúde, teremos de considerá-la um ser único, individual, que não pode ser considerado fora da sociedade, da família e da cultura à qual pertence.

Por fim, deve-se reconhecer a necessidade da transformação na concepção sobre o processo saúde - doença. A saúde deve ser considerada como vida, como a capacidade de romper normas e instituir novas normas, valorizando-se a diversidade, a multiplicidade, a capacidade criativa do ser humano, a heterogeneidade das relações, fortalecendo-se, dessa maneira, as relações entre os profissionais e a criança e sua família.

 

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