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Journal of Human Growth and Development

versão impressa ISSN 0104-1282

Rev. bras. crescimento desenvolv. hum. vol.23 no.1 São Paulo  2013

 

ORIGINAL RESEARCH

 

Avaliação do temperamento aos 13 e aos 24 meses através do relato da mãe: validação da versão portuguesa do infant characteristics questionnaire

 

 

Alexandra CarneiroI, IV; Pedro DiasI, II; Carla MagalhãesIII, II; Isabel SoaresIV; Margarida Rangel-HenriquesV; Joana SilvaIV; Sofia MarquesV; Joana BaptistaVI

ICentro de Estudos em Desenvolvimento Humano
IIFaculdade de Educação e Psicologia, Universidade Católica Portuguesa
IIIColégio Nossa Senhora do Rosário
IVEscola de Psicologia, Universidade do Minho
VFaculdade de Psicologia e de Ciências da Educação, Universidade do Porto
VIUniversidade Lusófona do Porto

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O temperamento é considerado um conjunto de traços individuais, com origem em parte biológica, que se demonstram desde a infância precoce e que apresentam algum grau de continuidade ao longo do tempo. Desta forma, e uma vez que a avaliação do temperamento permite compreender de forma mais aprofundada o funcionamento da criança, torna-se necessária e relevante a validação de instrumentos que permitam recolher este tipo de informação nos mais variados contextos. Os estudos que aqui se apresentam estão inseridos num projecto de investigação mais amplo que visa conhecer melhor o desenvolvimento de crianças com idades compreendidas entre os 0 e os 60 meses de idade. Mais especificamente, os dois estudos mencionados têm como objectivo geral validar o Infant Characteristics Questionnaire (ICQ1) para os 13 e para os 24 meses de idade para a população portuguesa, junto de mães. Assim, recorreu-se a duas amostras de conveniência. A primeira amostra é composta por 289 bebés com idades compreendidas entre os 11 e os 20 meses de idade (Estudo 1), e a segunda amostra é composta por 398 crianças com idades entre os 21 e os 32 meses de idade (Estudo 2). As duas amostras foram recolhidas em creches e jardins-de-infância da zona Norte de Portugal Continental. Durante o processo de recolha de dados, para além do preenchimento do ICQ1, foi solicitado à que mãe completasse uma ficha sócio demográfica com informação relativa a si, à criança e à gravidez. Os objectivos específicos deste estudo foram avaliar as qualidades psicométricas das duas versões deste instrumento quanto à validade de constructo e quanto à consistência interna. Os resultados aqui apresentados demonstram que se alcançaram soluções factoriais adequadas quer para a versão do ICQ1 dos 13 meses quer para a dos 24 meses junto das mães. Para além disso, os níveis de consistência interna das dimensões obtidas são, no geral, adequados.

Palavras-chave: validação; temperamento; infância; avaliação.


 

 

INTRODUÇÃO

Existe, desde há várias décadas, uma preocupação em estudar as diferenças individuais no comportamento dos indivíduos durante a primeira infância, com o objectivo inicial de identificar indicadores da origem das diferenças de personalidade.

Para Bates2, o temperamento é um conjunto de traços individuais, com origem em biológica, que se demonstram desde a infância precoce e que apresentam algum grau de continuidade ao longo do tempo2,3. Bates procurou centrar-se no conceito de temperamento difícil e na relação que este poderá ter com as trajectórias de vida menos adaptativas. È defendida também a existência de factores sociais que poderão ser relevantes na avaliação do temperamento, sendo que as diferenças daqui resultantes se devem a características relativas ao bebé e à mãe. Para a avaliação parental do temperamento da criança, deve-se atender ao facto desta incluir características objectivas da própria criança (e. g. estilo comportamental), aspectos subjectivos da resposta (e. g. personalidade do informador), expectativas parentais e uma margem de erro4,5.

O ICQ1 apresenta-se como sendo uma medida de auto administração desenvolvida para avaliação do construto de temperamento difícil aos 6 meses, que se baseia na medição das percepções parentais sobre a dificuldade do temperamento dos filhos com base em quatro factores: chorão/difícil, adaptabilidade, apatia e imprevisibilidade7. Tendo como referência o trabalho desenvolvido para a faixa etária dos 6 meses, Bates e colaboradores construíram versões do ICQ1 para os 13 (11-20 meses) e para os 24 meses (21-32 meses). No que diz respeito à versão dos 13 meses, Bates coloca a hipótese desta versão possuir características psicométricas semelhantes à versão dos 6 meses, não acontecendo o mesmo para os 24 meses. No que concerne aos factores identificados para os 13 e dos 24 meses estes são semelhantes nas duas versões. Contudo, estas duas versões ainda não estão tão bem desenvolvidas como a versão dos 6 meses7.

Na versão dos 13 meses do ICQ1, o factor central é denominado de Fussy/Difficult, e avalia a emocionalidade negativa como o choro, a rabugice, o humor negativo e as dificuldades da criança em auto-acalmar-se, permitindo uma avaliação do grau de dificuldade média da criança. O factor Unadaptable avalia a forma como a criança se adapta a pessoas, coisas e acontecimentos novos. O terceiro factor - Persistent - relaciona-se com a avaliação do grau em que a criança persiste na concretização de determinados objectivos. O último factor - Unsociable - avalia a forma como a criança interage e socializa com os outros7.

Por outro lado, a versão do ICQ para os 24 meses, é originalmente composta por 7 factores, sendo, tal como na versão para os 13 meses, o factor Difficult aquele que se apresenta como central. Este factor caracteriza-se por ser uma medida de emocionalidade negativa, reflectindo a percepção da mãe acerca deste tipo de emocionalidade, o que corresponde ao construto de temperamento difícil7,9. O factor Negative Adaptation to Change relaciona-se com a adaptação negativa às mudanças a que a criança poderá estar sujeita. O factor Unstoppable está associado à dificuldade da criança em parar de empreender a sua acção mesmo quando é impedida de o fazer. O factor Dependent está relacionado com a excessiva dependência da criança em relação à sua figura de referência. O factor Irregular está associado com a irregularidade da criança em termos de ritmos biológicos. O factor Sober encerra em si ideias relacionadas com o humor da criança. Por último, o factor Factor Seven não está relacionado com uma dimensão específica do temperamento, sendo que agrupa itens que, em termos teóricos, não estão relacionados10.

Quanto à validade do ICQ1, os autores mais recentes suportam a utilidade de utilização do instrumento, uma vez que é considerado uma medida psicométrica adequada para a investigação sobre o temperamento difícil da criança11 uma vez que este conceito apresenta considerável validade externa.

Este instrumento é útil para investigadores que queiram estudar a percepção dos pais acerca das dificuldades no temperamento das crianças. No entanto, dever-se-á atender ao facto de não existirem evidências de que possa ser usado para avaliar a qualidade da relação mãe - filho. Todavia, Bowlby12 afirmou que o temperamento dos bebés regula e é regulado pelas interacções que o bebé estabelece com os outros desde que nasce. Para Rothbart13, as diferenças individuais no temperamento influenciam a relação diádica, desde os primeiros momentos, tal como a regulação promovida pelo prestador de cuidados é influenciada pela expressão do temperamento da criança. Existe ainda a possibilidade da percepção dos pais acerca do temperamento da criança ter implicações nos estádios desenvolvimentais posteriores9.

Desta forma, o objectivo é validar o instrumento Infant Characterístics Questionnaire numa amostra de crianças portuguesas.

 

MÉTODO

Participantes

Em ambos os estudos realizou amostra de conveniência, que foi recolhida em creches e jardins-de-infância localizados na zona Norte de Portugal Continental. Para a validação da versão do instrumento para os 13 meses participaram 71 creches e jardins-de-infância e 289 mães, ao passo que para a versão dos 24 meses participaram 46 creches e jardins-de-infância e 398 mães.

No Estudo 1 a amostra recolhida constituiu-se por 289 bebés com idades compreendidas entre os 11 e os 20 meses (idade média de 15.5 meses - D.P. 3.75), dos quais 51.6% eram do sexo masculino e 39.8% eram filhos de mães entre os 30 e os 36 anos, sendo que 40.1% das mães têm apenas um filho. Nesta amostra 54% das mães tem como estado civil casada ou em união de facto, e, no que respeita à formação e nível sócio-económico, 33.6% das mães têm o ensino superior, e 23.2% pertencem a uma classe social média alta. Por outro lado, no Estudo 2, o total de crianças participantes foi de 398, com idades compreendidas entre os 21 e os 32 meses de idade (idade média 26.5 meses - D.P. 3.31 meses). Destas 51.8% eram do sexo masculino e 36.6% das crianças são filhas de mães entre os 30 e os 39 anos de idade. Cerca de 37.1% das mães encontram-se casadas e 26.7% têm apenas um filho. Em termos de formação e NSE, 18.6% têm licenciatura e 14% pertencem a uma classe social média (ver Tabela 1).

 

INSTRUMENTOS

Infant Characteristics Questionnaire (Bates, Freeland eLounsbury, 1979)

O ICQ 12/181 e o ICQ 24/301, enquanto instrumentos de avaliação do temperamento difícil, foram traduzidos para português mantendo o mesmo número de itens e a mesma escala de resposta dos instrumentos originais. Após ter sido realizada a tradução dos instrumentos, recorrendo a alguns itens já traduzidos e validados para a população portuguesa a partir da versão portuguesa do instrumento para os 6 meses, foi feita a retroversão por um investigador bilingue.

O ICQ1 é um instrumento de auto-relato que se aplica às mães, ou a outros informadores relevantes. Todas as versões do ICQ são compostas por 32 itens, que podem ser classificados de 1 a 7 (em que 1 caracteriza o temperamento óptimo, 4 a dificuldade média e 7 o temperamento difícil)7. No Estudo 1 realizou-se a validação do instrumento para os 13 meses (com crianças entre os 11 e os 20 meses) e, no Estudo 2, foi validada a versão dos 24 meses (com crianças entre os 21 e os 32 meses). Nos dois estudos procurou-se obter um relato sobre a percepção da mãe sobre temperamento das crianças.

Ficha Sócio-Demográfica

Foi ainda construída, para este estudo, uma ficha sócio-demográfica com o intuito de recolher dados referentes à própria mãe (idade, profissão, grau de escolaridade, estado civil e número de filhos); dados referentes à criança (data de nascimento, se a criança é o primeiro filho, problemas de saúde, com quem vive a criança e há quanto tempo frequenta a creche); e ainda dados referentes à gravidez (se foi planeada, se existiram complicações durante a gravidez e parto e o número de semanas de gestação).

Procedimentos

Procedimentos de recolha de dados

A recolha de dados decorreu entre Dezembro de 2007 e Julho de 2008, com os mesmos procedimentos nos dois estudos. Inicialmente, foi realizado o contacto com o director ou responsável de cada instituição. Após obter a autorização para a recolha de dados, era deixado na instituição um envelope por cada criança participante, contendo uma carta explicativa do estudo, um consentimento informado e um ICQ1. O envelope era entregue à mãe pelo educador.

Procedimentos de análise dos dados

Nos dois estudos, a informação recolhida foi tratada estatisticamente com recurso ao programa estatístico SPSS, versão 17.0 para Windows. Em primeiro lugar, fez-se uma análise descritiva para a caracterização da amostra. Seguidamente, com o intuito de estudar as qualidades psicométricas dos instrumentos, procedeu-se à avaliação da validade de construto, através de Análises Factoriais Exploratórias de Componentes Principais (com rotação Varimax) e à avaliação da consistência interna, utilizando-se, para tal, os valores de alpha de Cronbach. Os dois tipos de análises utilizados foram aqui considerados, simultaneamente, devido à sua complementaridade, ou seja, a conjugação destas análises permite determinar a estrutura final das escalas do instrumento13. Através de correlações de Pearson, analisou-se a associação entre os factores do ICQ das Mães.

Aquando da realização das análises psicométricas foram definidos alguns critérios para a selecção da estrutura factorial: a saturação dos itens no factor deveria ser igual ou superior a 0.30; o conteúdo teórico do item não deveria ser discordante do conteúdo da dimensão em causa, e, a correlação item total deveria ser superior a 0.20. Outro aspecto a realçar é o facto de, inicialmente, terem sido sempre realizadas Análises Factoriais Exploratórias de Componentes Principais, sem que fosse forçado o número de factores a extrair. Sempre que se justificou, foram realizadas novas Análises Factoriais Exploratórias de Componentes Principais forçando a extracção dos factores. Nesta linha de análise, procurou-se alcançar estruturas factoriais cujas dimensões tivessem valores de alpha mais satisfatórios, e que garantissem também a adequabilidade dos itens, quer à estrutura factorial da versão original, quer à teoria subjacente.

 

RESULTADOS

Estudo 1 (12/18 meses)

Análise Factorial Exploratória de Componentes Principais

A estrutura factorial sem forçar a extracção de factores era composta por 11 factores, responsáveis por 68% da variância.

Uma vez que esta estrutura se distanciava significativamente da proposta por Bates e Colaboradores7, que indicavam a presença de 4 factores e que, do ponto de vista teórico, não era possível justificar tão elevado número de dimensões, foram analisadas distribuições com um menor número de factores. Nestas análises, o factor 1 apresentava-se robusto em todas as soluções factoriais experimentadas, apresentando uma estrutura semelhante à proposta por Bates e colaboradores7 e excelentes valores de alpha de Cronbach.

Assim, da solução factorial inicial com 11 factores, passou-se à extracção forçada de 4 factores, em linha com a proposta dos autores originais. Esta solução, com uma variância explicada de 38% e à qual do ponto de vista teórico era possível dar sentido à distribuição dos itens, não apresentou valores de alpha de Cronbach robustos e por isso a estrutura factorial foi novamente reformulada.

A solução factorial que se mostrou mais adequada era composta por 3 factores responsáveis por 33.1% da variância total (ver Tabela 2): 1) Difícil refere-se à emocionalidade negativa da criança e inclui aspectos como o choro e o humor negativo ("Com que facilidade é que o seu bebé fica inquieto ou chora"); 2) - Persistente relaciona-se com o grau em que o bebé persiste em determinadas tarefas ("O seu bebé continua a mexer em certos objectos, mesmo quando lhe diz para não o fazer?"); 3) Adaptação negativa à mudança/Não sociável reporta-se à forma como a criança se adapta a novas situações/pessoas/objectos e também à forma como interage socialmente com os outros ("Como é que o seu bebé, geralmente, responde/age perante novas comidas?").

Nesta organização factorial, verifica-se que o último factor agrupa duas dimensões propostas por Bates e colaboradores7, o que se poderá dever à relação que existe entre a forma como a criança se relaciona nas interacções com os outros e a forma como se adapta à novidade, nomeadamente a novas pessoas.

Nesta estrutura factorial foi necessário proceder a algumas alterações na distribuição dos itens e foi necessário também fazer uma análise qualitativa dos mesmos no sentido de os incluir em determinados factores, nos casos em que não saturavam nos factores propostos por Bates. É o caso do item 20 ("Como é que o seu bebé responde às mudanças das rotinas do dia-a-dia, como, por exemplo, quando vai a um passeio, a uma festa, quando faz uma viagem, etc?") que apesar de apresentar uma saturação no factor Difícil, passa a ser incluído no factor Adaptação negativa à mudança/Não sociável, uma vez que o seu conteúdo refere-se à forma como o bebé responde às mudanças do dia-a-dia e, portanto, teoricamente será mais adequado que seja incluído junto de itens como o 7 ("Como é que o seu bebé, geralmente, responde/age perante novos brinquedos?"), o 8 ("Como é que o seu bebé, geralmente, responde/age perante novas comidas?") e o 9 ("Como é que o seu bebé, geralmente, responde/age perante pessoas que não conhece?"), em que há uma referência à resposta à novidade.

Nas propostas dos autores, os itens 24 e 31 ("O seu bebé brinca bem quando está sozinho?"; "Até que ponto o seu bebé insiste em chamar a sua atenção quando você está ocupado?") não estavam incluídos no factor Persistente; no entanto no caso do item 24, existia a possibilidade de ser incluído nesta categoria já que provavelmente se a criança não está capaz de brincar sozinha é possível que persista na chamada de atenção de outrém para brincar com ela. No mesmo sentido, no caso do item 31, o facto de o bebé insistir ou não para chamar atenção da mãe quando esta está ocupada poderá estar relacionado com a persistência.

De acordo com a estrutura proposta por Bates e Colaboradores, o item 13 ("Quando o seu bebé fica rabugento ou chora, fá-lo com vigor, chora alto?") está incluído no factor Difícil e por isso, também nesta solução factorial este item se inclui no mesmo factor, apesar de apresentar saturação mais intensa no factor Persistente. O mesmo acontece com o item 20 que foi incluído no factor Adaptação negativa à mudança/Não sociável desta solução factorial - que é integrado por Bates no factor Adaptação negativa à mudança e pelo seu conteúdo diz respeito à adaptação às mudanças do dia-a-dia - apesar de ter uma saturação mais intensa no factor Difícil.

Três dos trinta e dois itens - 14 ("Como é que o seu bebé reage quando o está a vestir? "), 19 ("O seu bebé gosta que lhe peguem? ") e 23 ("De uma forma geral, seu bebé pede mais atenção, para além dos cuidados de rotina, como o banho, a alimentação, etc? ") - não foram incluídos na solução factorial final por não saturarem nas análises efectuadas em nenhum dos factores apresentados.

Consistência Interna

Os valores de alpha de Cronbach obtidos para esta estrutura factorial podem ser considerados robustos uma vez que o alpha do primeiro factor (.81) é excelente e os alphas dos restantes factores (.73 e .72) são extensos (ver Tabela 2). Com isto é possível concluir que os factores identificados apresentam boa consistência interna.

Relações entre factores

Com recurso às correlações de Pearson (ver Tabela 3) foi possível verificar o tipo de associação entre as diferentes dimensões do temperamento, sendo verificadas correlações significativas: entre o factor Difícil e o factor Persistente, o que traduz a ideia de que as mães que percepcionam os bebés como mais difíceis, também os consideram mais persistentes; e entre o factor Difícil e o factor Adaptação negativa à mudança/Não sociável, o que poderá indicar que os bebés percepcionados como mais difíceis são também os que têm mais dificuldade na sociabilidade e na adaptação à novidade.

Estudo 2 (ICQ 24/30 meses)

Análise Factorial Exploratória de

Componentes Principais

A Análise Factorial Exploratória de Componentes Principais resultou numa estrutura factorial de 9 factores que explicava 57.7% da variância. Contudo, esta organização factorial indicava mais dimensões que a versão original, surgindo 2 novos factores constituídos apenas por 2 itens cada. Teoricamente, o agrupamento destes itens não seria apropriado, veja-se o exemplo do factor Sober que, na versão original, apenas contém itens relativos à dimensão humor e, nesta estrutura factorial, inclui itens que se associam ao nível geral de actividade da criança, variabilidade na resposta às mudanças no dia-a-dia e qualidade da interacção com os outros. Por conseguinte, tornou-se necessário efectuar uma nova Análise Factorial Exploratória de Componentes Principais, forçando-se a distribuição de 8 factores, procurando-se, desta forma, uma aproximação à estrutura factorial original, o que permitiu alcançar uma variância explicada de 54.4%. Nas organizações factoriais consideradas, o factor relativo à dificuldade do temperamento parece ser bastante robusto, mantendo quase sempre os mesmos itens e apresentando valores de alpha de Cronbach excelentes (> 0.80).

Nesta organização factorial foi necessário proceder a algumas modificações. No factor Adaptação Negativa à Mudança foi necessário suprimir o item 22 ("A sua criança fica excitada, alegre, quando as pessoas brincam ou falam com ela?"), uma vez que existia uma correlação item total inferior a 0.20 (0.19). Ao eliminar este item do factor, o alpha total da escala aumentou de 0.66 para 0.73. No factor Humor/Sobriedade foi retirado o item 20 ("Como é que a sua criança responde às mudanças das rotinas do dia-a-dia, como, por exemplo, quando vai a um passeio, a uma festa, quando faz uma viagem, etc?"), pois este relaciona-se com a resposta às mudanças de rotina, o que não se insere na dimensão Humor/Sobriedade. No factor Irregular, foi excluído o item 14 ("Como é que a sua criança reage quando a está a vestir?"), já que do ponto de vista teórico não se aproximava dos restantes itens, ainda que a sua correlação item total fosse superior a 0.20. No caso do factor Proximidade Física as respostas aos itens 19 ("A sua criança gosta que lhe peguem?") e 26 ("A sua criança abraça quando é pegada?") tiveram de ser invertidas, devido ao sentido da sua escala de resposta. Apesar da inversão dos itens, o valor de alpha de Cronbach é de -0.42, o que sugere que o factor seja omitido, na medida em que não apresenta consistência interna adequada. Por último, o factor Reacção à Novidade foi excluído, pois apresenta um valor de alpha de Cronbach de 0.29, claramente insatisfatório.

Após a realização das alterações mencionadas, a estrutura factorial proposta para a versão portuguesa do ICQ 24/301 é a seguinte (ver Tabela 4): 1) Difícil relaciona-se com a percepção de dificuldade do temperamento ("É fácil ou difícil para si acalmar ou sossegar a sua criança quando ela chora ou está inquieta?"); 2) Imparável caracteriza-se por descrever uma criança que continua a empreender determinada acção ou insistência para tal mesmo quando impedida ("A sua criança continua a mexer em objectos, mesmo quando lhe diz para não o fazer?"); 3) Adaptação Negativa à Mudança associa-se à reacção negativa a novas pessoas, lugares ou situações ("Como é que a sua criança, geralmente, responde/age perante pessoas que não conhece?"); 4) Dependência traduz-se na exigência de cuidados extra-rotina e actividade intensa ("De forma geral, a sua criança pede mais atenção, para além dos cuidados de rotina, como o banho, a alimentação etc?"); 5) Humor/Sobriedade reúne itens que se relacionam com o humor da criança e disponibilidade para estar com os outros ("Até que ponto a sua criança sorri e faz sons de satisfação?"); e, 6) Irregular prende-se com questões de regularidade dos ritmos biológicos ("A sua criança mantém alguma regularidade no que diz respeito às horas de comer?").

Consistência Interna

Os valores de alpha de Cronbach são excelentes para o factor Difícil (0.82), extensos para os factores Imparável (0.79) e Adaptação Negativa à Mudança (0.73) e mínimos para os factores Dependência (0.58), Irregular (0.62) e Humor/Sobriedade (0.49) (ver Tabela 4).

Relações entre factores

Verifica-se uma correlação positiva entre o factor Difícil e os restantes factores (ver Tabela 5). Assim, quando uma mãe avalia o temperamento da criança como mais difícil também tenderá a avaliar a criança como mais irrequieta, com dificuldades de adaptação à mudança, mais dependente ou elicitadora de mais atenção da figura prestadora de cuidados, como tendo um humor mais negativo e com padrões biológicos mais irregulares.

Verifica-se ainda uma correlação positiva entre o factor Adaptação Negativa à Mudança e os restantes factores. Deste modo, quando uma mãe avalia uma criança como tendo uma adaptação mais negativa à mudança, também a poderá avaliar como tendo um temperamento mais difícil, ter um humor mais negativo, padrões biológicos menos regulares, ser uma criança com mais dificuldade em estar sossegada e ser mais dependente da sua figura de referência;

É possível aferir que entre os factores Imparável e Dependência existe uma correlação moderada, o que leva a inferir que quando uma criança é considerada pela mãe como mais dependente também poderá ser avaliada como mais inquieta.

Finalmente, constata-se uma correlação positiva entre os factores Humor/Sobriedade e Irregular, igualmente muito fraca, o que implica que quando uma mãe avalia a criança como tendo uma emocionalidade mais negativa também a vê como possuidora de padrões biológicos irregulares.

 

DISCUSSÃO

Estes estudos tinham como principais objectivos avaliar as qualidades psicométricas (validade de construto e consistência interna) das versões portuguesas do ICQ para os 13 e para os 24 meses e examinar correlações entre os diferentes factores do questionário.

No que diz respeito à estrutura factorial do ICQ1 12/18 meses, a solução factorial encontrada, embora seja diferente da proposta por Bates e Colaboradores (1979), contempla as mesmas dimensões, ainda que os factores Unadaptable e Unsociable se constituam como um só factor, o que pode dever-se ao facto de as mães não dissociarem a dificuldade de adaptação do bebé a novas situações, da dificuldade de se relacionar com outros. Quanto ao estudo da fidelidade, na versão 12/18, foi possível verificar uma consistência interna robusta e elevada.

A estrutura factorial proposta para a versão 24/30 é semelhante à proposta original dos autores, porém, a distribuição dos itens pelos factores é distinta. Esta discrepância poderá ocorrer devido a vários motivos, destacando-se o facto de o estudo da versão original ter sido empreendido com uma amostra de 128 crianças e o presente estudo ter uma amostra mais alargada (398 crianças). Um outro dado a salientar é a diferenciação social e cultural entre os dois países, isto porque apesar de estarmos perante uma cultura ocidental em ambos, existem traços culturais específicos de cada um deles. Em 1981, Thomas e Chess referiram que o temperamento das crianças varia de acordo com o período de vida, a cultura, a classe social e o género. Deve, ainda, atender-se ao facto de que, a cultura e os valores de cada sociedade regulam a resposta emocional que cada sujeito tem a diferentes estímulos, isto é, modula a expressão comportamental do temperamento14. Na versão 24/30 verifica-se a existência de valores de consistência interna adequados para todos os factores, à excepção do factor Humor/Sobriedade (0.49), que foi mantido em função da sua adequabilidade conceptual.

Para a versão 12/18, verificou-se uma associação nalgumas dimensões: as crianças vistas como mais difíceis são vistas também como tendo mais dificuldade na sociabilidade e na adaptação à mudança, embora sejam mais persistentes. Tal traduz a ideia da dificuldade do temperamento ser algo que não pode ser dissociado de outras dimensões, ou seja, crianças consideradas difíceis terão menos facilidade na interacção com os outros e na adaptação à mudança - algo que é suportado pela própria definição de temperamento difícil13 - no entanto poderão ser persistentes, no sentido de exigirem atenção ou de realizarem determinadas tarefas, mesmo quando sabem que não o devem fazer.

No que concerne à correlação entre os factores da estrutura factorial da versão 24/30, verifica-se que o factor Difícil se correlaciona com todos os restantes factores da estrutura factorial, o que indica que a dimensão de temperamento difícil inclui aspectos que englobam o nível de actividade, a adaptação negativa à mudança, o humor/sobriedade, a irregularidade, e, no caso das mães, a dependência. Apesar de não existir uma referência teórica que o suporte, é de esperar que todos os restantes factores se correlacionem com o Difícil, já que todos eles acabam por ser dimensões que traduzem a maior ou menor dificuldade de temperamento. Assim, uma criança com o temperamento difícil tende, similarmente, a ter um maior nível de actividade, uma adaptação à mudança menos positiva, maior dependência em relação ao adulto de referência, emocionalidade menos positiva e maior irregularidade nos padrões biológicos. Sendo certo que, todos os factores dizem respeito (in)directamente ao conceito de temperamento difícil é de esperar que se correlacionem estatisticamente.

Não se pode votar ao esquecimento a ideia de que não existem certezas quanto à estabilidade ou instabilidade do temperamento, ou seja, não podemos considerar difícil uma criança que pode ter características temperamentais mais difíceis numa determinada fase do seu desenvolvimento, pois isto teria implicações no seu desenvolvimento subsequente14. A capacidade de modulação do temperamento é elevada em idades mais jovens, logo, as características actuais de temperamento de uma criança terão influência no seu desenvolvimento mas não serão totalmente determinantes do mesmo15.

Estes estudos apresentam algumas limitações de ordem metodológica, que se verificam desde logo no facto de recorrerem a uma amostra de conveniência, o que não permite a generalização de resultados à população nacional.

Apesar das referidas limitações, este estudo enfatiza a importância do ICQ na avaliação do temperamento da criança, uma vez que permite a compreensão das caraterísticas das crianças, através do relato materno. O facto de ser confirmado por diversos autores que deve existir um reconhecimento da mudança de abordagem relativamente ao conceito de saúde-doença, leva a que a saúde na infância deva ser vista de uma forma ecológica. Assim, uma vez que poderão ser múltiplos os factores que conduzem ao surgimento de dificuldades, a avaliação deve ser feita de uma forma compreensiva e utilizar diferentes fontes de informação, envolvendo a família em todo o processo, considerando sempre o desenvolvimento da criança16.

 

AGRADECIMENTOS

Os autores agradecem a Filipa Rouxinol, Cláudia Almeida, Sara Barroso, Catarina Figueiredo e Linda Candeias pelo auxílio no prestado no processo de recolha de dados.

 

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Endereço para correspondência:
acarneiro@porto.ucp.pt

Manuscript submitted Jul 16 2012
accepted for publication Nov 30 2012.