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Journal of Human Growth and Development

versão impressa ISSN 0104-1282

Rev. bras. crescimento desenvolv. hum. vol.24 no.1 São Paulo  2014

 

EDITORIAL

 

Crescimento humano: parâmetros e reflexões acerca de referenciais

 

 

Claudio Leone

Médico, Pediatra, Doutor e Livre Docente em Pediatria Social. Professor Titular do Departamento de Saúde Materno-Infantil da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo

 

 

Apesar da pesquisa "Growth parameters of Sri Lankan children during infancy: A comparison with world health organization multicentre growth reference study", de Perera P.J. e colaboradores1, publicada no presente número da revista, estar basicamente focada na adequação, ou não, para o Sri Lanka do referencial da OMS 20062, pelos resultados que apresenta, acaba obrigatoriamente, provocando algumas reflexões sobre o crescimento das crianças, seus determinantes e suas implicações, tanto para a atenção básica à saúde da criança e do adolescente em geral, quanto para a utilização do crescimento como um indicador de bem-estar de grupos populacionais.

Antes de tudo é preciso considerar que a referida pesquisa, em seus aspectos metodológicos foi realizada de maneira adequada e cuidadosa, o que confere robustez aos seus resultados, características essas sine qua non seria possível realizar quaisquer considerações.

A primeira consideração é relativa ao extremo cuidado que se deve ter ao avaliar crescimento com base em resultados obtidos a partir da utilização de um referencial (curva) de crescimento. Qualquer que seja o referencial utilizado os resultados devem ser relativizados3, mesmo quando se recorre a um referencial elaborado com os melhores cuidados metodológicos, como é o referencial proposto pela OMS em 2006. É preciso lembrar sempre que se trata de um referencial, portanto é mais um definidor de tendência de crescimento do que um padrão que deva ser alcançado por todos de maneira absoluta em seus valores.

A reflexão dos autores acerca das possíveis repercussões negativas para o aleitamento materno em seu país é um bom exemplo disso1, mesmo se admitindo que a troca de referencial não possa ser considerada a única solução para este tipo de dificuldades. Uma utilização de forma crítica, e não uma análise puramente mecânica, quando da comparação dos valores obtidos com os do referencial muito provavelmente seria uma melhor solução, inclusive pelos aspectos educativos que daí seriam decorrentes.

Nesse sentido, os resultados do estudo, interpretados por outro ângulo, o coletivo, produzem uma estimativa de que 85% ou mais das crianças do Sri Lanka no primeiro ano de vida são menores do que a mediana do referencial ou, o que é ainda pior, que 50% do total está abaixo do percentil 15 do referencial de comprimento da OMS 2006, o que indica uma prevalência muito elevada de baixa estatura.

Isso induz a uma segunda reflexão: por mais que se saiba que o crescimento é resultante da interação entre a genética e o ambiente4,5, não é possível considerar que tamanho déficit de crescimento seja decorrente principalmente de características étnicas, portanto genéticas, da população do Sri Lanka, mesmo aceitando o que os autores afirmam acerca da amostra, isto é, de que se trata de uma população relativamente bem situada dentro do cenário socioeconômico daquele país.

Nem sempre é possível atingir um padrão ideal de crescimento (se é que ele existe), muitas vezes o importante é tentar entender se uma determinada criança (ou grupo de crianças) está tendo um crescimento que é compatível com a expressão de seu potencial no ambiente em que vive, pois se estiver aquém, não do referencial mas do melhor possível naquelas circunstâncias, exigirá que se entenda o porquê (ou porquês) de maneira a produzir alguma forma coerente de intervenção, visando otimizar o crescimento naquele ambiente específico.

Como consequência uma terceira reflexão torna-se necessária, agora considerando as transições demográfica, epidemiológica e, sobretudo, a nutricional6. Popkin considera que a transição nutricional é composta por diversas fases entre quais existe uma na qual coexistem na população a quase ausência de desnutrição energético-proteica grave, a presença baixa estatura (possível sequela de uma desnutrição crônica nos primeiros anos de vida) e o aumento gradual da prevalência do sobrepeso e da obesidade que, de maneira progressiva, acaba se estendendo também em direção às camadas de menor nível socioeconômico. Além disso, ao longo da evolução da transição, o sobrepeso e a obesidade acabam afetando também indivíduos cada vez mais jovens, crianças inclusive.

Este cenário é compatível com os resultados descritos por Perera e colaboradores. A análise da evolução do crescimento das crianças do estudo dos 2 até os 12 meses de vida é condizente com este momento de evolução da transição nutricional, pois evidencia um ganho de peso e de estatura que é praticamente idêntico ao observado no referencial da OMS 2006 para o mesmo período de vida, permanecendo entretanto um déficit de estatura que não pode ser ignorado.

Isso leva a uma quarta reflexão, isto é, que a análise sequencial, evolutiva, do crescimento, tanto individual quanto coletivamente, é fundamental, até mais do que a de momento isolado do crescimento alcançado pela(s) criança(s). Ambas as análises, se combinadas e interpretadas à luz de um determinado momento histórico, poderão gerar resultados que superam a simples somatória das duas análises.

O artigo em questão é um bom exemplo disso1. Se à análise dos resultados que mostram que aos 12 meses as crianças continuavam bastante abaixo dos valores do referencial for somado o fato de que no período de dez meses do estudo cresceram o que seria esperado para crianças normais, no mínimo torna-se lógico levantar a hipótese de que o déficit já estaria instalado no período de vida que antecede o de acompanhamento, isto é, antes dos dois primeiros meses de vida.

Portanto torna-se óbvio que passa a ser essencial estudar como nasceram essas crianças, em particular seu peso, comprimento, perímetro cefálico, a idade gestacional, além das características antropométricas e de antecedentes ligados à infância dos seus genitores, não esquecendo de que é necessário também saber se foi feito o acompanhamento preconizado durante a gravidez e qual foi a evolução do pré-natal.

As repercussões de uma desnutrição materna, ocorrida precocemente durante a sua infância, podem perdurar por mais de uma geração, contribuindo assim para o nascimento de filhos pequenos ou com peso insuficiente para a sua idade gestacional, mesmo em períodos históricos em que já estejam ocorrendo melhorias no bem estar da população.

Essas considerações assumem extrema relevância, até por que, em caso de déficit de crescimento nesta fase da vida, atualmente tem sido questionada e até mesmo considerada prejudicial a promoção de um catch up rápido e intenso de crescimento nos primeiros anos de vida pelo fato do mesmo se associar a um risco de no futuro desenvolver obesidade e todas as alterações metabólicas que, com muita frequência, a ela se associam7,8.

Aqui uma nova reflexão, a quinta, se encadeia às demais: a validade da utilização da vigilância do crescimento como instrumento de avaliação periódica e continuada das condições de vida e nutrição de uma população.

Como já foi concretamente evidenciado há mais de um século, as populações que melhoram seu bem estar ao longo do tempo apresentam, uma elevação nos valores médios de crescimento que atingem, fenômeno que foi denominado Tendência Secular de Crescimento9.

No Japão, Takahashi demonstrou não só a presença desta Tendência, mas inclusive que ela pode já ser mensurável após intervalos de tempo relativamente curtos, quando as condições ambientais sofrem mudanças intensas também em curtos períodos de tempo. Naquele país, anos após a segunda guerra mundial, os jovens de 17 anos de idade num período de 15 anos (entre 1960 e 1975) evoluíram de uma estatura média de 163 para 168 centímetros (um ganho de 5 cm), enquanto entre 1930 e 1960 (período de 30 anos) a estatura média desta faixa etária havia aumentado apenas 4,1 centímetros10.

A próxima reflexão, a sexta, é acerca da necessidade de existir uma política de vigilância epidemiológica do crescimento e, como consequência, do estado nutricional, enquanto instrumento eficaz para se identificar eventuais iniquidades nas condições de bem estar existentes entre regiões, comunidades e outros grupos populacionais de um país, bem como a evolução natural destas condições ao longo do tempo e/ou após políticas de intervenção voltadas especificamente para a promoção do bem estar da população.

Retomando agora os dados apresentados pelos pesquisadores do Sri Lanka, se existisse uma série histórica de avaliação do crescimento das crianças desta faixa de idade nesse país a análise muito poderia se tornar ainda mais importante e produtiva. Infelizmente, mesmo os dados de outra pesquisa citada no artigo, na opinião dos próprios autores, não permitem comparações seguras.

Outro artigo, publicado por Martorell e colaboradores11, com dados relativos ao Sri Lanka na década de 80, mostrava que o crescimento médio atingido por pré-escolares correspondia a cerca de -2,2 e -1,7 escores z, respectivamente para a estatura e para o peso, o que poderia sugerir que desde então vem ocorrendo uma melhora do crescimento das crianças deste país. Entretanto, embora isso possa parecer provável, é impossível de ser confirmado e até dimensionado, pois as duas avaliações foram transformadas em escores z a partir de referenciais de crescimento distintos, sabidamente diferentes quanto aos parâmetros de peso e estatura que apresentam para as crianças com menos de 5 anos de idade.

De todas essas reflexões fica evidente que não há um referencial de crescimento ideal, na verdadeira acepção da palavra, mas que é necessário que se adote um referencial, o melhor possível, e que sua utilização seja feita de uma maneira bastante crítica, reconhecendo as vantagens e as desvantagens de sua utilização numa determinada população, de modo a obter as melhores informações possíveis naquelas circunstâncias.

O estudo do crescimento é importante e instigante, não fosse por outras razões, bastaria considerar que estabelece a Convenção sobre dos Direitos da Criança, aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1989: ...the child must be allowed to develop normally both physically and mentally.12

Deste modo, embora atingir um crescimento normal possa ser considerado quase uma utopia, fica claro que o referencial de crescimento, instrumento que nos programas de atenção à saúde se utiliza para promoção e proteção do crescimento das crianças, deve obrigatoriamente retratar um bom padrão de crescimento.

Concluindo, não fosse a publicação de Perera e colaboradores no Journal of Human Growth and Development (2014) estas considerações, mesmo que parciais, não teriam sido provocadas, o que seria uma pena para todos os que se interessam pelo estudo do crescimento humano e que se propõem a debater acerca dos referenciais de crescimento.

Considerem isso tudo uma provocação, leiam o artigo, contribuam com novas reflexões e questionamentos, serão bem vindos, afinal a temporada de discussão tem que estar sempre aberta. Este é o maior propósito de uma revista científica: promover o debate entre os que se interessam por determinado campo de conhecimento.

 

REFERÊNCIAS

1. Perera PJ, Fernando MP, Ranathunga N, Sampath W, Samaranayake R, Meththananda S. Growth parameters of Sri Lankan children during infancy: A comparison with world health organization multicentre growth reference study. Journal of Human Growth and Development 2014; 24(1): 11-15.         [ Links ]

2. World Health Organization Multicenter Study Group. WHO Child Growth Standards based on length/height, weight and age. Acta Paediatr Suppl 2006; 450:76-85.         [ Links ]

3. Cole, TJ. Growth References and Standards. In: Cameron, N. Editor, Human Growth and Development. Academic Press, London, 2006.         [ Links ]

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5. Marcondes E. Fatores ambientais do crescimento da criança. Revista brasileira de crescimento e desenvolvimento humano 1991, 1(1):11-24.         [ Links ]

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10. Takahashi E. Secular Trend in Milk Consumption and Growth in Japan. HumanBiology 1984; 56(3): 427-437.         [ Links ]

11. Martorell R, Khan LK, Hughes ML and Grummer-Strawn LM. Overweight and obesity in preschool children from developing countries. International Journal of Obesity 2000, 24: 959-967.         [ Links ]

12. Lindström B. For the best interest of the child - UN Convention on the rights of the child. In Lindström B and Spencer N, Editors, Social Paediatrics. Oxford, Oxford University Press, 1995.         [ Links ]

Manuscript submitted Dec 19 2013
Accepted for publication Jan 25 2014