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Journal of Human Growth and Development

Print version ISSN 0104-1282

Rev. bras. crescimento desenvolv. hum. vol.24 no.1 São Paulo  2014

 

ORIGINAL RESEARCH

 

Alimentação escolar: o que o desenho infantil revela

 

 

Tatiana Yuri AssaoI; Marcia Faria WestphalII; Cláudia Maria BógusII; Bruna Robba LaraIII; Ana Maria Cervato-MancusoI

IDepartamento de Nutrição. Faculdade de Saúde Pública. Universidade de São Paulo. Av. Dr. Arnaldo, 715 - CEP: 01246-904 - São Paulo, SP, Brasil
IIDepartamento de Práticas de Saúde Pública. Faculdade de Saúde Pública. Universidade de São Paulo. Av. Dr. Arnaldo, 715 - CEP: 01246-904 - São Paulo, SP, Brasil
IIIDepartamento de Saúde Materno-Infantil da Faculdade de Saúde Pública. Universidade de São Paulo. Av. Dr. Arnaldo, 715 - CEP: 01246-904 - São Paulo, SP, Brasil

 

 


RESUMO

OBJETIVO: Identificar as percepções das crianças do ensino fundamental de escola públicas do município de Guarulhos, São Paulo, sobre a alimentação escolar.
MÉTODO: Trata-se de um estudo do tipo descritivo com abordagem qualitativa. Participaram 82 crianças de 4 escolas selecionadas por desenvolverem atividades educativas em alimentação e nutrição, dentre as 63 instituições. Para coleta dos dados optou-se pela técnica do desenho e a entrevista com as crianças para sua interpretação do desenho. Foram apresentados 13 desenhos, aqueles representativos de conteúdos expressos por um dos grupos de crianças. As verbalizações das crianças descrevendo os desenhos foram gravadas e transcritas, e juntamente com o conteúdo resultante da análise do material gráfico, submetidos à análise de conteúdo.
RESULTADOS: De acordo com os desenhos das crianças e suas respectivas verbalizações, a alimentação escolar estava associada: aos alimentos, os que são ofertados, que estes saciam a fome e trata-se de um momento que proporciona prazer; ao ambiente, o destaque foi para a estrutura física em que eram realizadas as refeições e a organização da fila que se formavam para se servirem e nas relações, representando a alimentação como um momento de convivência, de conversar e socializar com os amigos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS: Para as crianças a alimentação escolar adquire uma representação que extrapola o ato da alimentação, é um momento que engloba a relação com os alimentos, o ambiente escolar e as relações com os pares. Desta forma, um dos desafios para os gestores e toda a comunidade envolvida, é incorporar essas dimensões que permeiam a alimentação e que foram apontados como fundamentais e parte integrante do cenário escolar.

Palavras-chave: alimentação escolar, educação alimentar e nutricional, pesquisa qualitativa, programas e políticas de nutrição e alimentação.


 

 

INTRODUÇÃO

O Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) implantado em 1955 é o programa social mais antigo na área de Segurança Alimentar e Nutricional a reconhecer a alimentação dos alunos da rede pública como um direito previsto na Constituição. O objetivo do programa é suprir parcialmente as necessidades nutricionais dos alunos, contribuindo para o seu crescimento e desenvolvimento, assim como para promover hábitos alimentares saudáveis1.

Apesar de ser considerado um programa universal, pois beneficia a maioria das escolas públicas de ensino fundamental, cerca de 1/5 destes alunos usualmente não come a merenda2. Nesse sentido, deve considerar a oferta de refeições, a qualidade do cardápio, as condições de preparo, de distribuição e sua adequação aos hábitos alimentares culturalmente estabelecidos na região, bem como o ambiente físico e social em que se oferece essa alimentação³.

Além dos alimentos e dos serviços de alimentação, o ambiente e as circunstâncias em que ocorrem, também exercem influência na escolha alimentar4. O comportamento alimentar é complexo, inclui determinantes internos e externos ao sujeito, leva em conta as práticas alimentares relacionadas à seleção dos alimentos, sua preparação e seu consumo propriamente dito e outros valores simbólicos.

O ato de comer está repleto de significados que transcendem o fato de satisfazer a fome e as necessidades nutricionais, característica pela qual o programa frequentemente é associado5. É necessário compreender que as escolhas alimentares estão ligadas a aspectos objetivos como quantidade e qualidade dos alimentos, renda, entre outros, mas também, aos aspectos subjetivos, como gosto, prazer, valores e relações sociais.

A alimentação requer desenvolver novos "olhares" e "escutas" para captar os sentidos e as necessidades que estão por trás da discursividade, a intersecção do plano dos processos sociais e da subjetividade6.

Há uma dimensão concreta: a fome, a falta de disponibilidade de alimentos nas casas e o atendimento de uma necessidade nutricional. Há uma dimensão simbólica: a alimentação escolar é um espaço coletivo de prazer, aproximação e de construção cultural. Há uma dimensão vivencial: a alimentação revela relações e convivência, reinvenção do coletivo, que pode ou deve ser trabalhado como função pedagógica.

Assim, o objetivo é identificar as percepções de crianças do ensino fundamental sobre a alimentação escolar.

 

MÉTODO

O estudo do tipo descritivo com abordagem qualitativa foi desenvolvido no município de Guarulhos, Estado de São Paulo, Brasil, em escolas públicas municipais. O município, na época da pesquisa, apresentava um universo de 63 unidades escolares do ensino fundamental. Dentre essas 63 unidades, foram selecionadas 13 escolas que fizeram parte de estudo realizado nos anos de 2007 e 2008, com o objetivo de identificar o desenvolvimento de atividades educativas no contexto escolar7.

Das 13 unidades escolares sorteadas, somente as crianças pertencentes às 4 escolas com atividades educativas, identificadas em entrevista com os diretores e coordenadores pedagógicos, fazem parte do presente estudo. Essa identificação foi validada em seminário conjunto, realizado pela equipe de pesquisadores e gestores locais. Destas 4 instituições, participaram 2 classes de cada, entre 1ª, 2ª, 3ª ou 4ª séries (dependendo das séries disponíveis em cada), totalizando 8 grupos de crianças.

Os dados foram coletados por meio da técnica do desenho, no qual a partir da proposição do tema "Alimentação na escola", as crianças individualmente foram incentivadas a desenhar e posteriormente descrever o seu significado. O desenho é uma linguagem que as crianças dominam muito antes da escrita e utilizam para diversas finalidades, entre elas, comunicar ideias, representar situações e brincar8, tornando-se uma forma de linguagem, de expressão consciente, resultado da criação lúdica, uma recriação da realidade9.

Desta forma, dois tipos de dados permitiram a análise: o próprio desenho e a descrição de cada criança do respectivo grafismo. Essa interpretação se apoiou na análise dos elementos representados e interação entre eles. Para análise de traços e cores tomou-se por base a pesquisa de VAN-KOLCK10, sobre interpretação de desenhos.

As cores foram incorporadas na análise com parcimônia, já que as crianças nem sempre tiveram tempo de pintar seus desenhos ou dispuseram das cores que poderiam ter pretendido usar. Observou-se o conjunto da produção da criança, considerando-se a produção em função do que seria esperado para sua faixa etária11, mas também do que crianças na mesma faixa etária e no mesmo grupo haviam produzido.

Assim, se o desenho de uma criança trouxesse indícios de falta de autonomia, por exemplo, procedia-se à comparação com outros desenhos do mesmo grupo, para avaliar se aquele indício era melhor interpretado como uma questão daquela criança, daquele grupo, ou ainda, se poderia ser de fato uma representação fiel de dificuldades concretas enfrentadas no dia a dia.

Após a pré-análise, seguida da exploração do material e o tratamento e interpretação dos resultados, realizou-se a categorização do conteúdo12-13.

Visando o anonimato dos participantes criou-se uma identificação codificada. Assim "C" significa "criança", seguido por um número que varia de 1 a 12 (número de crianças por turma) e a letra "E" de "escola" seguida do número de identificação.

A pesquisa, sob o protocolo de n° 1518/2006, foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo.

 

RESULTADOS

Dentre as 83 crianças pertencentes aos 8 grupos convidados, 82 aceitaram fazer parte do estudo. Do material produzido (82 desenhos e respectivas descrições), somente 13 serão apresentados, por serem representativos de conteúdos expressos por um grupo de crianças, a saber: Alimentação Escolar associada aos Alimentos (Descrição e Função); Alimentação Escolar associada ao Ambiente (Estrutura e Organização na fila) e Alimentação Escolar associada às Relações (Conversando e Brincando).

Alimentação Escolar associada aos Alimentos:

A percepção da alimentação escolar focou o alimento em si, a descrição dos alimentos que são servidos, observações relacionadas a função de saciar a fome e/ou proporcionar prazer. Frequentemente, observaram-se desenhos com representações positivas e crianças alegres, associada a momentos agradáveis, características constatadas também nas falas das crianças. No geral, são desenhos que evidenciam a relação individual com o alimento, com apenas uma criança representada ou nenhuma criança. (Figura 1)

No primeiro desenho desta categoria, há uma menina sorrindo diante de um prato de comida e uma colher (C1-E12). O conteúdo e o colorido representam a alegria e bem-estar da criança ao se alimentar na escola. A descrição da criança: ' Aqui sou eu na merenda. Eu gosto muito da comida da escola", reforça o significado que a hora da merenda parece ser uma experiência prazerosa.

O segundo desenho (C5-E8) traz a alimentação como sonho. O desenho representa positivamente a alimentação escolar. A criança descreve: "Meu desenho diz que a merenda é um sonho". O desenho ocupa a metade superior da folha, com um retângulo de traços curvilíneo (nuvem). Dentro dele vários corações, estrelas e uma menina feliz com uma colher na mão, cercada de pratos, cenouras, maçãs e um balcão de servir os alimentos. O desenho está focado no prazer de se alimentar e demonstra um apreço muito grande pela alimentação oferecida na escola, ressaltando-a como um momento agradável.

O fato da criança representar a merenda como "um sonho" também faz pensar na qualidade e disponibilidade de alimentos que encontra fora da escola. A alimentação em casa representaria a realidade e a da escola, "um sonho".

O desenho C3-E1 (Figura 1) tem a seguinte descrição: "Aqui desenhei um abacaxi, um prato de comida, uma maçã, banana, melancia, uma bolacha, pão, café e bolinho". Ou seja, o momento da alimentação remete à presença e lembrança desses alimentos que são alguns dos servidos rotineiramente às crianças. O desenho mostra um momento agradável e lúdico.

Semelhantemente, na descrição do desenho C2-E12, a criança cita os alimentos, especificamente o que é servido durante a refeição. "Aqui é o prato, tem arroz, feijão, frango e aqui é a colher". Trata-se de um desenho de um prato cheio de grãos e um pedaço de carne (frango). A criança se empenhou em retratar o que costuma ou gosta de comer, sem se incluir no desenho. A alimentação é representada como oferta de alimentos.

Alimentação Escolar associada ao Ambiente

Nesta categoria (Figura 2), os desenhos e as descrições das crianças evidenciaram a estrutura do local em que eram realizadas as refeições e na organização da fila que se formava durante a distribuição dos alimentos.

Na descrição do desenho C3-E8, a criança coloca sua percepção mais sobre o local da alimentação e dos utensílios utilizados: "Aqui os pratos e colher, aqui é onde a gente senta para comer e aqui é o pátio, estou fazendo os menininhos..." Há um grande balcão e mesas vazias vistas de cima. Considerando o capricho dos detalhes do balcão, a criança valoriza a possibilidade que os alunos têm de se servirem, assim como a importância do entorno que envolve esse momento.

O material gráfico (C7-E1) mostra as crianças sentadas à mesa sorrindo e uma lousa com o cardápio do dia: "Meu desenho representa onde nós pegamos comida e as crianças comendo. Isso é onde escreve a comida que vai ter no dia. Tem aqui na escola uma lousinha. Aqui é na onde põe os pratos e aqui os talheres. E aqui a gente comendo" Apesar de o foco estar no ambiente, a alimentação também aparece como um momento agradável em que é possível estar com os amigos, e percebe-se um interesse pelos alimentos. (Figura 2)

A alimentação é representada, (C5-E7), principalmente pela fila que se forma quando são servidos os alimentos: "Eu fiz aqui a fila, aqui é a professora sentada e aqui onde a tia serve". No desenho, a merendeira serve os alimentos e há uma fila de meninos e meninas no aguardo. Há também duas mesas em que crianças se alimentam. (Figura 2)

O momento da alimentação é lembrado pela fila (C2-E8): "Eu desenhei as crianças na fila da merenda". Há uma fila de crianças que se preparam para se servirem. Nas cubas do balcão há beterraba, carne, feijão e arroz, retratando algo que faz parte do cotidiano para estas crianças.

O ambiente, descrito nos detalhes que compõe o local onde é realizada a refeição, integra pratos e mesas, mas, em geral, o alimento não recebe destaque. Em alguns desenhos desta categoria, nota-se a ausência das próprias crianças. A alimentação foi representada como estrutura física, mesas e bancadas. O fato de as crianças não terem se incluído nos desenhos nem utilizado outros recursos expressivos foi entendido como representativo de uma relação mais distanciada com a alimentação, como observado no desenho C10-E8.

Alimentação Escolar associada às Relações

Essa categoria representa a alimentação como um momento de convivência e de se socializar com os amigos, não sendo frequente a representação do alimento, como demonstrado nos materiais gráficos. ( Figura 3)

A valorização da convivência é evidenciada pelo desenho C1-E12, no qual a criança refere: "Eu tô desenhando todo mundo falando, que é a única coisa que todo mundo sabe fazer na merenda" (C1-E12). Desenho em grafite, com uma mesa vista de cima e duas cabeças pintadas (somente os cabelos) e em volta de uma delas estão escritos vários "blá". O momento da alimentação aparece como um período de bate papo com os colegas.

No comentário do desenho, (C4-E12), a criança compreende a alimentação como um momento de possibilidade de conversar: "Eu desenhei eu e o Pedro conversando". Desenho em grafite, com uma mesa, um banco e dois meninos sorrindo e um deles com um balão cheio de "blá". A alimentação aparece como hora de conversar, não havendo qualquer representação do alimento.

Semelhantemente, o desenho (C9-E8) retrata algumas crianças que estão se alimentando e outras brincando ou indo ao banheiro. A alimentação é percebida como um momento de socialização, porém por meio de brincadeiras: "Eu fiz um menino comendo e dois amigos meus jogando a bolinha. Dois meninos brincando de pega-pega. Aqui é o banheiro. Uma maçã. Aqui é onde pega a comida. E isso tá fechado, é tipo uma grade, uma grade". Trata-se de um período em que é possível se alimentar, mas principalmente brincar, sendo o comer encarado como um ato mais individual e solitário do que o brincar. O ambiente escolar parece agradável. (Figura 3)

No desenho C5-E1, a alimentação escolar é associada ao lúdico, há uma bancada, uma mesa e três crianças que estão brincando. Mostra a alimentação como um momento prazeroso em que é possível estar com os amigos e principalmente brincar: "Desenhei as crianças brincando no pátio. Isso aqui é a mesa e onde ficam as comidas".

 

DISCUSSÃO

Considerando as descrições e desenhos que evidenciaram o momento da Alimentação Escolar associados aos Alimentos, a visão biológica da alimentação na perspectiva de fonte de nutrientes, pareceu não ser relevante. O alimento é percebido como um sonho, um momento de comer, de prazer, quase em contraposição às diretrizes do PNAE de oferecer alimentos com a finalidade de suprir as necessidades básicas do organismo, favorecendo o crescimento e o desenvolvimento saudável1.

Esse sentimento de prazer ao se alimentar e saciar a fome está em consonância com outros estudos que descrevem o alimento como meio de prazer e desejo14. Essa concepção de comer, alimentar e nutrir, vem sendo questionada por estudiosos que passaram a analisar e identificar a alimentação, o ato de comer, como um aspecto cultural e social, ultrapassando o sentido de nutrir-se para sobreviver15.

O ato da alimentação deve estar inserido no cotidiano das pessoas, também, como um evento agradável, o que foi percebido por esta categoria, o qual foi associado ao prazer. O que despertou esse sentimento representado e a razão pela qual a alimentação foi referida como "um sonho" parece estar vinculada ao acesso aos alimentos e à possibilidade de comer. As crianças estão focadas na "comida" e tudo o que esta pode representar para elas, como as questões afetivas e culturais.

A alimentação é determinada por múltiplos fatores. As práticas e os comportamentos alimentares refletem a interação dos aspectos biológicos, sociais, culturais, psicológicos e das condições ambientais14,16. Uma abordagem holística da alimentação é imprescindível para enfrentar o desafio de motivar os indivíduos para a adoção de uma alimentação saudável17.

Enquanto nos desenhos da categoria Alimentação Escolar associada ao Ambiente, interessante destacar a lembrança das crianças de outros atores escolares envolvidos no momento da alimentação. Isto reforça as afirmações de estudos que apontam as merendeiras e os professores como elementos importantes no âmbito escolar, pois atuam diretamente no processo de aprendizagem e desenvolvimento de condutas, entre elas a formação de hábitos alimentares saudáveis. Estes atores encontram-se em posições estratégicas visto o contato frequente com as crianças, os valores que expressam na escola geralmente são apreendidos na vivência diária18.

Quanto ao sistema de distribuição dos alimentos, durante o período do estudo, as escolas municipais estavam em processo de transição, do modelo centralizado, no qual a criança recebe o prato, para o de auto-serviço, aquele em que a própria criança tem a oportunidade de se servir. A escola desta criança, autora do desenho, ainda possuía o sistema de distribuição da alimentação centralizada, ou tratava-se de uma novidade para ela, visto que remetia o momento da alimentação na escola às merendeiras servindo as crianças. Este novo modelo de distribuição, a ser adotado pelas escolas de Guarulhos, é positivo uma vez que permite a autonomia das crianças, estimula os hábitos alimentares saudáveis e propicia a integração de outras atividades educativas, por meio da criação de espaços de construção do conhecimento sobre saúde e nutrição19.

Observa-se a alimentação como o momento da fila, de organização, associado ao processo de se servir. O alimento era apenas esboçado, não tendo destaque no desenho ou nas falas. A fila tem se caracterizado como um elemento importante de organização, otimização de tempo e desenvolvimento e interação com os colegas20,21.

A questão dos detalhes da estrutura e formação das filas estiveram mais evidentes ainda, representando fortemente o momento da alimentação escolar, devido ao novo sistema implantado e disponibilizado às crianças no momento das refeições, o auto serviço. Esse sistema apareceu em muitos dos desenhos e recebeu destaque nas produções, bem como a possibilidade de escolha dos alimentos que este oferece também foi valorizada por algumas crianças. Isso permite observar a importância para a criança do ambiente e da estrutura em que acontece a alimentação, e não somente dos alimentos e das preparações que são servidas22.

Nos desenhos em que as crianças percebem a Alimentação Escolar associada às Relações, a alimentação está vinculada ao momento de se alimentarem, porém está muito mais evidente a questão da socialização, em que é possível conversar e brincar com os colegas. Constata-se que a alimentação na escola, não tem como intuito principal a satisfação biológica, mas sim possibilitar a socialização com seus pares.

A temática "alimentação" quase sempre está associada a uma quantidade de proteínas, carboidratos e vitaminas que são necessárias ao organismo do indivíduo. Contudo, antes de se resumir a sua importância fisiológica para o homem, a alimentação é um ato cultural, que envolve rituais, emoções, memórias, sendo essencial para a constituição do indivíduo15.

A alimentação está envolvida nos mais diversos significados, desde o âmbito cultural até as experiências pessoais. Em torno da mesa, são consagradas as confraternizações, são transmitidos valores culturais, são rememoradas as raízes familiares e são reforçadas as relações afetivas14. E o momento da alimentação para essas crianças faz parte desse âmbito, em que além de se alimentar é possível confraternizar e se relacionar livremente com os pares, o que muitas vezes não ocorre dentro da sala de aula.

Percebe-se que o fato de estarem acompanhados durante as refeições, influenciar positivamente na alimentação ocorre independentemente do grupo etário, como verificado em estudo com estudantes universitários23. De acordo com ZUIN e ZUIN15, as pessoas além de se alimentarem com a intenção de nutrir, possuem a necessidade de se relacionar com outras, por isso, por meio dos alimentos que os homens desde os tempos remotos, em comunhão, se organizaram cultural e socialmente.

Nessa mesma direção, em pesquisa com crianças de 9 a 11 anos de escolas públicas e particulares, percebeu-se que além do direito de estudar e de se alimentar na escola, reconheciam o espaço como lugar de brincadeira e de convivência, "direito de ir para escola estudar, alimentar/comer, brincar e fazer colegas"24. Semelhante ao que foi constatado nesse estudo.

Para que estes direitos se realizem é importante agregar a perspectiva de quem prepara a refeição, dos professores que organizam o momento da merenda25, com a percepção da criança sobre o seu ato de comer na escola.

Finalmente, a saúde é muitas vezes definido como um resultado de interações complexas. Mais de duas décadas atrás, houve definição que "Saúde é um estado sustentável"26, que é algo em constante movimento e, dependendo da constante atenção, cuidados e manutenção ativa. Em particular, que a realização de uma boa qualidade de saúde pública depende da nossa capacidade de fazer as escolhas certas em relação ao ambiente que determina o estado de saúde atual de uma população, mas também para fazer as escolhas certas e tomar as medidas adequadas para impedir que ameaças previsíveis. Como podemos definir a qualidade da saúde pública, em determinado momento deve ser compatível com as gerações futuras em desfrutar de saúde de forma equivalente. Profissionais de saúde pública também deve integrar a sustentabilidade na definição de saúde pública27,28.

Esta pesquisa contextualizou o entendimento dos alunos das escolas públicas do ensino fundamental de um município sobre a alimentação escolar. Contundo observou-se que é possível que os resultados apontados nesta pesquisa ou achados próximos a estes também sejam a realidade de outras localidades. A baixa aceitabilidade da alimentação escolar, observada em alguns estudos, pode ser atribuída a fatores como não se conhecer o que pensa, espera ou representa essa alimentação para os escolares. Poucas vezes a criança é consultada sobre o que gostaria de comer na escola, oferecendo assim alimentos que, na opinião dos gestores, seriam adequadas a sua idade e de seu gosto. Semelhantemente ao que ocorre com a composição dos cardápios, acontece em relação aos aspectos o ambiente e as ações desenvolvidas sobre a alimentação, são elaboradas, desenvolvidas e definidas em função da concepção que os adultos possuem sobre as crianças.

Nesse sentido, frente ao observado nos desenhos e descrições das crianças, acredita-se que para uma maior adesão do programa e aceitação da alimentação, além de considerar os aspectos já contemplados pelo programa, deve-se incorporar ou reforçar os três aspectos, que foram apontados pelo grupo estudado como fundamentais e parte integrante do cenário da alimentação na escola. A alimentação envolve um conjunto de características que extrapolam a oferta de uma refeição adequada nutricionalmente, que atenda ao paladar e que faça parte da cultura alimentar local. Para as crianças, implica em prazer, saciar a fome, ter alimentos que gostam, em um ambiente com estruturas e utensílios adequados, e poder conversar e brincar com os colegas.

Frente ao reduzido número de pesquisas que abordam a alimentação escolar na perspectiva das percepções dos atores escolares, destaca-se a relevância deste estudo uma vez que poderão propiciar subsídios para ações e iniciativas mais efetivas do programa de alimentação escolar e, talvez para outras políticas, com vistas a promover a adequação às necessidades dos beneficiários.

Assim, neste estudo verificou-se que as crianças pertencentes ao ensino fundamental das escolas públicas de Guarulhos, Estado de São Paulo, Brasil, perceberam a alimentação escolar sob três aspectos: do alimento, do ambiente e das relações sociais. Para as crianças, ao encontro do que vem apontando estudos, a alimentação para promover a saúde deve buscar uma maior abrangência, ampliando suas interfaces com outras áreas. A alimentação escolar foi percebida como um momento de prazer em que as crianças se alimentam para saciar a fome, no qual é possível socializar com os amigos, brincar e conversar, dentro de um ambiente adequado. Ou seja, na concepção dessas crianças a alimentação escolar engloba um conjunto de aspectos: o alimento ofertado, o ambiente em que ocorre a alimentação e as possíveis relações estabelecidas com os pares neste momento.

 

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Manuscript submitted Aug 01 2013
Accepted for publication Dec 28 2013

 

 

Trabalho realizado pelo Departamento de Nutrição e Departamento Práticas de Saúde Pública. Faculdade de Saúde Pública. Universidade de São Paulo. Av. Dr. Arnaldo, 715 - CEP: 01246-904 - São Paulo, SP, Brasil.
Pesquisa financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Edital MCT- CNPq/ MS-DAB/ SAS - no 51/2005. Processo: CNPq 402198/ 2005-0. Atividades de Educação Nutricional em escolas de um município da região metropolitana de São Paulo.
Article based on the thesis "School feeding: perceptions of the social actors in the schools of a municipality in Greater São Paulo". São Paulo: Public Health School of the University of São Paulo; 2012.
Corresponding author: cervato@usp.br