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Journal of Human Growth and Development

versão impressa ISSN 0104-1282

Rev. bras. crescimento desenvolv. hum. vol.24 no.2 São Paulo  2014

 

EDITORIAL

 

Perspectivas sobre o uso de modelos murinos da síndrome de Down em pesquisas translacionais envolvendo função visual e motora

 

 

Alberto CostaI; Dafne HerreroI, II

IDivision of Pediatric Neurology, Department of Pediatrics, Case Western Reserve University, Cleveland, OH, United States
IIDepartment of Maternal and Child Health, School of Public Health, University of São Paulo, São Paulo, Brazil

 

 

A síndrome de Down (SD) é uma desordem genética decorrente da presença de um cromossomo 21 extra no núcleo celular (trissomia 21), e é a causa mais frequente de deficiência intelectual de origem genética1. Atualmente, dados epidemiológicos brasileiros revelam que a incidência de lactentes com SD é de 1:600 nascidos vivos, enquanto nos EUA o número é de aproximadamente 1:7002,3.

Entre o amplo repertório de características fenotípicas e comorbidades comumente associadas à SD estão diversas malformações cardíacas congênitas, deficiência auditiva de condução e/ou neurossensorial, risco elevado de desordens convulsivas e de subluxação atlanto-axial, distúrbios da tireoide (tipicamente hipotireoidismo; às vezes subsequente a um hipertireodismo transitório) e certas características compatíveis com um envelhecimento precoce; incluindo a presença universal da patologia típica do mal de Alzheimer na quarta década de vida e consequente alta frequência de demência a partir da quinta década4,5. Além destes componentes importantes da SD, a ocorrência de alterações de função visual e motora são extremamente frequentes. Dentre os principais fatores envolvidos estão: imaturidade cardíaca (antiga cardiopatia congênita, agora com a nomenclatura atualizada por Mustacchi), disfunções motoras, problemas auditivos, distúrbios da tireóide, acometimento neurológico, características compatíveis com um envelhecimento precoce e disordens visuais4.

O sistema visual pode ser afetado de diversas maneiras em pessoas com SD, dentre elas há uma elevada incidência de erros de refração, imprecisão acomodativa, ambliopia, estrabismo, aparecimento de nistagmo espontâneo, funções anormais oculomotora e vestibular, diminuição da acuidade visual e diminuição da sensibilidade a cor e contraste6-11.

Estudos neste campo ainda não estabeleceram precisamente se a apresentação das anormalidades oftalmológicas associadas com a SD é primariamente de origem óptica ou neurológica. Contudo, estudos conduzidos por John et al9, usando uma combinação de avaliações comportamentais e objetivas (registros de potenciais evocados visuais), forneceram fortes evidências de uma origem neurossensorial para os déficits de acuidade visual e sensibilidade ao contraste, os quais haviam sido anteriormente relatados em lactentes e crianças com SD7. Clinicamente, observamos que o simples uso de métodos ópticos (óculos e lentes de contato) raramente corrige de forma completa déficits na acuidade visual em pessoas com SD.

Diversas formas de disfunção motora estão presentes quase que universalmente em pessoas com SD, as quais são caracterizadas por atrasos e alterações no desenvolvimento motor. A hipotonia muscular, que é operacionalmente definida como baixa resistência a movimentos passivos é quase que universalmente observada em crianças com SD, juntamente com a hipermobilidade ou hiperflexibilidade articular12. Mas, do ponto de vista funcional, estes distúrbios do sistema motor são eclipsados em grande parte por disfunções em capacidades motoras dinâmicas como o tempo de reação alentecido e alterações em reflexos posturais e no equilíbrio13.

Tradicionalmente, estratégias habilitativas, sob a forma de serviços fisioterápicos e de terapia ocupacional, têm sido usadas em crianças com SD visando maximizar o desenvolvimento motor. Amplas evidências da eficácia destas estratégias existem na literatura14. Contudo, de uma forma geral, tais estratégias são voltadas à normalização de movimentos ou conjuntos de movimentos específicos e não diferenciam entre etiologias. Desta forma, uma criança com SD tende a receber o mesmo tipo de terapia habilitativa que uma pessoa sem SD que apresente atrasos e alterações no desenvolvimento motor semelhantes em termos de apresentação clínica. Portanto, a escolha de abordagens terapêuticas específicas, assim como a otimização de cada estratégia para cada caso particular é limitada tanto pela falta de estudos com controles apropriados como pela falta de um melhor entendimento das bases neurais da disfunção motora que acomete o indivíduo com SD.

Como em outras áreas da ciência biomédica, o uso de modelos animais talvez seja uma das possíveis maneiras de se preencher as lacunas no conhecimento tanto na área relacionada com o déficit visual como a disfunção motora, associadas à SD. As vantagens do uso de modelos animais, dos quais se destaca o camundongo (Mus musculus), é a habilidade de executar estudos científicos tecnicamente ou eticamente não permissíveis em seres humanos. Diversos modelos murinos com aneupoidia foram criados nas últimas duas décadas15. Um modelo animal, em particular, vem sendo utilizado preponderantemente na área da SD: o Ts65Dn. Este camundongo possui uma trissomia da região distal do cromossomo murino 16, a qual contém 60% dos genes homólogos contidos no cromossomo 21 humano.

Historicamente, a maioria das pesquisas envolvendo modelos murinos da síndrome de Down se concentra nos componentes cognitivos e neurológicos desta síndrome (SD). De fato, tais estudos geraram mais de dez candidatos a terapias farmacológicas objetivando a melhora da performance cognitiva de pessoas com SD. Destas pesquisas, uma das mais avançadas atualmente envolve a droga memantina, a qual produziu melhoras significativas do desempenho de camundongos Ts65Dn em tarefas comportamentais especificas, desenhadas a mensurar a habilidade desses animais em termos de aprendizagem e memória16. Estes estudos foram independentemente reproduzidos em dois outros laboratórios17,18. Mais importantemente, estes achados foram traduzidos para o domínio humano através de um ensaio clínico piloto que detectou melhoras significativas numa medida neuropsicológica em pessoas com SD no grupo que tomou a memantina em relação ao grupo placebo19.

Assim, o estudo de modelos murinos da síndrome de Down tem tido um grande foco nos componentes cognitivos e neurológicos da síndrome de Down. Existem, contudo, exceções claras e notáveis a esta regra. Por exemplo, Costa et al20,21 estudaram vários aspectos da função motora do camundongo Ts65Dn, inclusive aspectos relativos a dinâmica da marcha, que se assemelham ao que se observa em pessoas com SD. Scott- McKean et al22 demostraram que, similar às pessoas com síndrome de Down, camundongos Ts65Dn apresentam déficits detectáveis pela análise eletrofisiológica do limiar de luminância, resolução espacial e no limiar de contraste, os quais são parâmetros correlacionados à sensibilidade a luz, acuidade visual e sensibilidade ao contraste, respectivamente. Mais recentemente, Rachubinsky et al23 observaram um atraso na aquisição de marcos motores em camundongo Ts65Dn, e Gutierrez-Castellanos et al24 demonstraram que estes camundongos apresentam déficits no reflexo vestíbulo-ocular comparáveis com aqueles previamente observados em pessoas com síndrome de Down por Costa10.

Com os dados de tais estudos e centenas de outros estudos em modelos murinos da SD e de outras deficiências mentais de origem genética, adicionados ao repertório cada vez mais sofisticado de técnicas neurofisiológicas, bioquímicas, e genéticas disponíveis para estudos em camundongos, pela primeira vez temos a uma chance real de desvendar as bases neurais das várias formas de déficits visuais e disfunções motoras associadas à síndrome de Down. É importante que se mantenha perspectiva sóbria e que não se esqueça que camundongos não são pessoas em miniatura. Assim, é imprescindível que as novas informações que se espera ser geradas nos próximos anos têm potencial real de revolucionar a terapêutica da síndrome de Down.

Por exemplo, dada à possibilidade que um componente significativo da desordem visual observada em pessoas com síndrome de Down possa ser de origem neurológica, poder-se-á vislumbrar futuro relativamente próximo no qual desenvolvimento racional de terapias farmacológicas para melhorar a função visual e motora de pessoas com síndrome de Down seja possível. Em adição, a evolução do entendimento das bases neurais dos déficits visuais e motores associados especificamente à síndrome de Down pode também levar ao refinamento e individualização de estratégias habilitativas para indivíduos com síndrome de Down.

Estudos em andamento em nosso grupo de pesquisa buscam aprimorar essas informações e investigar as interações entre a função visual, performance motora e o equilíbrio (citadas nesta revista por Pinheiro et al25 e Rocha et al26 no acompanhamento e harmonização do desenvolvimento infantil). Espera-se, assim, que tais pesquisa ajude a revitalizar a consciência da importância da função visual e motora (assim como a integração destas duas funções) para a qualidade de vida das pessoas com síndrome de Down.

Cognição é certamente chave, contudo, para que se possa operar eficientemente na sociedade, faz-se necessário que a informação sensorial chegue ao cérebro e que se possa interagir com o mundo físico através do sistema motor.27

 

REFERÊNCIAS

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Manuscript submitted May 12 2014
Accepted for publication Jun 18 2014

 

 

Corresponding author: dafneh@uol.com.br